domingo, 25 de abril de 2021

Ângelo Brea: 盆栽

Não, não é engano nem piada. O título que Ângelo Brea deu a este seu conto foi mesmo 盆栽. E eu acabei de aprender que o itálico também funciona nos kanji japoneses. E o negrito idem.

Perguntarão vocês, a menos que saibam ler japonês, o que raio significa 盆栽. Os mais expeditos poderão ter ido a algum tradutor automático e já saberão que significa "bonsai". Para os menos expeditos, e para aqueles que têm apenas o livro na mão, sem possibilidade de uso imediato de alguma forma de conexão à rede, Brea explica numa notinha de rodapé. E no índice. Mas de que trata, ao certo, este conto tão estranhamente intitulado?

Ninguém se surpreenderá se eu disser que é um conto de ficção científica, suponho. Mais: é um conto de FC profundamente asimoviano, que acompanha a vida de uma família japonesa que cuida há gerações de uma coleção de bonsais quase capaz de rivalizar com a do próprio imperador. Um determinado bonsai é passado de pai para filho (ou filha), ou de avô para neto, não porque seja oferecido mas porque quando chega o momento do jovem que demonstra interesse pela coleção ser presenteado com um dos bonsais, do qual terá de cuidar a partir dessa altura, escolhe-o sempre. Este processo vai-se repetindo até que chega um momento em que a família parece não ter nenhum jovem interessado na coleção. Sorte que estejamos no futuro. Um futuro em que o colecionador da vez ganha a vida como roboticista. E, como sucede n'O Homem Bicentenário, constrói para si próprio o mais sofisticado dos robôs.

O Homem Bicentenário, de resto, parece ser a principal inspiração desta história, que lida com o tempo, a família e a tradição e a forma como essas coisas se relacionam com a mudança e a sucessão das gerações. É uma boa inspiração, convenhamos. Em parte por isso, talvez, este é um bom conto, dos melhores do livro até agora.

Contos anteriores deste livro:

Mia Couto: O Secreto Namoro de Deolinda

Lá anda o Mia Couto a trocar-me as voltas. Depois de crónicas que são mais contos que crónicas e de crónicas que são mesmo crónicas e até de crónicas mais ou menos ficcionadas, crónicas com cheiro a conto, eis que me atira para cima com uma crónica com conto dentro. A qual até pode ser simplesmente um conto escrito em tom de crónica.

Confusos? Também eu.

Mas vou tentar explicar. O Secreto Namoro de Deolinda é basicamente uma crónica política, cujo tema principal é uma crítica àqueles ideólogos que tendem a projetar a ideologia mais além do que seria aconselhável ou meramente lógico. Mais concretamente, é sobre alguém que teria criticado Mia Couto por as suas crónicas serem escassas de acutilância contra a burguesia. Moçambique, anos 80: estavam na moda os alardes de marxismo. E é contra esses alardes que Couto se atira, com a sua típica fina ironia. Mas lá pelo meio, para vincar melhor o seu ponto, conta uma história: a história de Deolinda que foi parar ao título.

Deolinda — reza a história —, operária fabril, aparece um dia em casa com um crachá de propaganda que mostra a efígie de Karl Marx, o próprio. O pai é que não acha graça nenhuma: sem saber de quem se trata, desconfia da filha, julgando-a enrolada com o "cooperante" cuja foto traz ao peito. A tal ponto a enferniza que ela se imagina realmente enamorada do velho judeu prussiano das longas barbas e passa a namorar com ele às escondidas, por mais imaginário que seja o namoro. A ironia final é este deixar de ser imaginário e o "Marx" da vida real ser em tudo diferente do que inspirou o crachá.

A opinião de Mia Couto fica clara para quem a saiba ler nas entrelinhas, o que no fundo é o objetivo de qualquer crónica. E o texto, tão bem escrito como sempre, tem o interesse acrescido de também ser de certa forma um texto de ficção. Pouco mais podemos pedir, não é verdade?

Textos anteriores deste livro:

Leiturtugas #99

Sabem qual é o grande problema das fontes de energia renováveis? A irregularidade. Para produzir energia eólica tem de haver vento, para a solar convém que faça sol, para a hidroelétrica tem de chover. E todas essas coisas são inconstantes, o que leva à necessidade de arranjar alguma forma de armazenamento ou reservatório que possa compensar os momentos de falta.

Que tem isto a ver com as Leiturtugas? Nada. Exceto o facto de as Leiturtugas seguirem precisamente a mesma dinâmica. O tempo é um recurso finito, e o tempo que se gasta a ler material português, nomeadamente de ficção científica e fantástico, mais finito é. O que faz com que por vezes haja muitas leituras e muitos comentários, e outras não haja nenhuns. Ou quase nenhuns. E como não temos um reservatório leiturtuguento de onde retirar material em momentos de escassez, pode acontecer, e já aconteceu bastantes vezes, passarmos uma semana ou mais sem termos nada para publicar numa destas notas.

Esteve mesmo quase a acontecer desta vez. A semana passada foi muito abundante, e eu estava a ver que esta ia ficar a zeros. Mas não. No domingo apareceu um dos oficiosos (um oficioso estreante, ainda por cima), o Tomé, a opinar sobre um livro que já tinha aparecido na semana passada: A Revolução dos Homens Sentados, de Rute Simões Ribeiro. Publicação da autora, do ano passado, trata-se de uma coletânea que parece conter algum fantástico.

E para terminarmos falta apenas dizer que o Marco quis o livro do António Bizarro, pelo que o processo deste sorteio está encerrado. Daqui a um mês e tal haverá outro. E quanto a Leiturtugas, elas seguem já na próxima semana. Provavelmente.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Nem só de Leiturtugas se faz o estímulo à leitura de originais na nossa língua

Não sei de onde veio, ainda que uma pesquisa rápida no Google me sugira que é coisa oriunda do Instagram, essa rede que não frequento (mas não tenho raiva a quem frequenta, embora preferisse de longe que essa malta viesse cá para fora com o que tem a dizer em vez de se encerrar no jardinzinho murado e pelo menos semi-inacessível que aquilo é... para a internet aberta, sabem?, onde a sua audiência não fica limitada aos que frequentam a mesma rede social). Mas a ideia é boa, vai na linha do que tenho tentado fazer com as Leiturtugas, portanto aqui fica a menção e a ver vamos se ficará também a adesão. Sim, não sei ainda se vou participar. Depende de várias coisas que não estão inteiramente sob o meu controlo. Mas vocês? Vocês deviam.

Em que consiste a coisa? Em ler contos. 31 contos, para ser preciso, um por dia durante o mês de maio, com a única restrição de terem de ser de autores de língua portuguesa. É uma coisa que eu faço com regularidade — mais um motivo por que não sei ainda se vou aderir; não é nada que seja incomum nas minhas leituras, pelo que não preciso deste tipo de estímulos — mas não vos vejo a fazer tanto como seria desejável. Os contos não mordem. Os nossos autores também não (a não ser que o leitor queira, claro; se o leitor quiser, podemos morder com todo o gosto. O leitor ou a leitora, naturalmente, consoante as inclinações de cada um(a).) E há por aí contos bestiais só à espera de serem descobertos. E há muitos outros que, não sendo bestiais, são na mesma leituras agradáveis e/ou relevantes.

Mais: nem têm de gastar dinheiro, o que nesta altura do campeonato pandémico é um fator determinante para muita gente. Há por aí contos grátis com fartura, e eu compilei aqui, há algum tempo, para as Leiturtugas, uma lista de sítios espalhados por esta internet fora que têm disponível um subconjunto muito específico de histórias completamente válidas para esta nova iniciativa: portuguesas e de ficção científica (ainda que vários desses sites tenham também coisas não portuguesas e de outros géneros). Não fui verificar se todos os links continuam válidos, mas julgo que a maioria deve continuar. E se não querem andar à procura, olhem, tenho este livro disponível, em EPUB, MOBI (kindle) e PDF. São 29 histórias, de autores portugueses e brasileiros, pelo que vos basta somar duas outras histórias (que até podem sacar aqui mesmo da Lâmpada, se quiserem) e ficam com o projeto composto.

De modo que vá, toca a ler contos em maio. Um por dia. De autores de língua portuguesa, venham eles de onde vierem. E se forem de FC tanto melhor, porque eu sou fã. E se os comentarem por aí, na internet aberta, ouro sobre azul, porque acabam por participar de duas iniciativas com uma só leitura: o #DesafioLerPT e as #Leiturtugas.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

E ainda dizem que ninguém dá valor à ficção científica portuguesa!

Quer adquirir o meu Sally? Tem uma conta na Amazon? Então, pela módica quantia de 126 dólares e 66 cêntimos (mais 15 dólares de portes de envio), poderá receber no conforto do seu lar esse meu primeiro livro com todas as suas 38 páginas! Apenas 3,33 dólares (mais portes) por página! Encomende já!

Duvida? Então siga o link. Não tem nada que enganar.

E fica aqui a prova, em imagem. Para mais tarde recordar.

(E não, não tenho rigorosamente nada a ver com isto, caso estejam com dúvidas. E se alguém decidir mesmo desembolsar os benditos 3,33 dólares por página nem um cêntimo me virá parar ao bolso. O mundo é injusto, não é?)

E ainda dizem que ninguém dá valor à ficção científica portuguesa!

Obrigado ao Roberto Mendes pelo toque e pela gargalhada.

domingo, 18 de abril de 2021

Leiturtugas #98

Prontos para mais uma semana de Leiturtugas? Então vamos lá.

Entre os participantes oficiais, a semana começou com a Tita, que publicou a sua opinião, como quase sempre em texto e em vídeo, sobre Almas Gémeas: Liberdade ou Ilusão, de Rui Pinto Ferreira. Apesar de um título que remete mais para a autoajuda, este livro, publicado há pouco mais de um ano pela Chiado, é um romance distópico. Com FC, portanto, e a consequência é a Tita passar a 4c1s.

Depois, apareceu por aí um tal Jorge Candeias, que veio opinar sobre Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos, um livro que junta quatro livros de Mário-Henrique Leiria e que foi publicado pela E-Primatur em 2016. Um dos livros de que o livro se compõe é praticamente um livro de FC (sim, sim, sim, livro, livro, livro, sim), pelo que passa a sinalefa a dizer 3c1s.

De seguida, a Tita voltou à carga com mais uma opinião, de novo em texto e vídeo, desta feita sobre uma coletânea. Intitula-se A Revolução dos Homens Sentados e foi edição da autora, Rute Simões Ribeiro, datada de há quase exatamente um ano. Pelo texto não cheguei a perceber se o livro contém algum fantástico mas não parece conter nenhuma FC, que é o que mais importa, pelo que a Tita passa a 4c2s.

E como a semana foi muito movimentada, não nos ficámos por aqui. Também tivemos uma opinião da Carla Ribeiro sobre uma pequena coletânea (2 contos; 44 páginas) de Jaime Soares intitulada A Cor Azul. Publicada pela Novembro no mês passado, parece tratar-se de um livro basicamente mainstream mas com elementos de realismo mágico. Sem FC, portanto, pelo que a Carla passa a 1c4s.

E encerramos as leituras dos participantes oficiais com o Artur Coelho e a sua opinião sobre um romance do Rui Zink que tem elementos de FC. Intitulado O Livro Sagrado da Factologia, foi publicado em 2017 pela Teodolito e leva o Artur a 4c3s.

Quanto aos oficiosos, a semana iniciou-se com uma opinião da Raquel, breve como sempre, sobre A Defensora do Oculto, romance de fantasia de Andreia Ramos, outra edição da Chiado, esta de 2019.

E terminou como a semana passada já tinha terminado: com uma opinião da Silvana. O alvo da opinião foi desta feita um romance de Liliana Lavado intitulado Encontro em Itália, que aparentemente é uma fantasia urbana e foi publicado pela Marcador em 2014.

(Apareceu ainda uma menção do LV Paulo a uma antologia portuguesa, mas como não traz nenhum elemento opinativo, por mais mínimo que seja, não vou incluí-la.)

E finalmente chegamos ao sorteio do livro do António Bizarro. Por fim num vídeo decente, que me deu mais trabalho do que devia ter dado (na verdade podia tê-lo pronto na semana passada; descobri que não estava a fazer nada de errado e a dificuldade foi só devida a um bug no programa que usei para sincronizar o vídeo e o áudio, o qual não gosta do formato de vídeo que eu estava a usar... bastou-me convertê-lo para outro formato e voilà, tudo OK). Aqui está ele:


Como veem, depois de ameaçar ir parar às mãos do Artur Coelho, duas vezes às da Cristina Alves e uma às da Carla Ribeiro, o livro acabou por calhar ao Marco Lopes. Agora é contactá-lo, para ver se o quer. Se ele não quiser, como digo no vídeo, segue a lista final até encontrar alguém que o queira. Parabéns ao Marco e o próximo sorteio é em junho. Até lá.

Até lá quanto a sorteios, entenda-se. Quanto a Leiturtugas, até à próxima semana. Provavelmente.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Mário-Henrique Leiria: Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos (#leiturtugas)

No mundo lá fora, nomeadamente no anglófono, é comum fazer-se edições destas, embora geralmente a quantidade de páginas com que os volumes acabam seja substancialmente superior a estas meras 218. Chama-se-lhes "omnibus", e consistem da junção de vários livros independentes do autor Xis num único volume. Por cá são raras, embora não desconhecidas. E aqui reúnem-se quatro livros que Mário-Henrique Leiria publicou entre 1974 e 1979, e pelo total de páginas (que ainda abrem espaço a uma nota dos editores) que eles somam depressa se vê quão breves quase todos são. Leiria nunca foi propriamente prolífico ou palavroso; era daqueles escritores para os quais a concisão da palavra é um valor em si mesma. E além disso escreveu bastante poesia, género que tem uma longa história de livros fininhos e cadernos de duas ou três dúzias de páginas, ou até menos.

O título, Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos (bibliografia), pode levar a pensar que o texto principal é precisamente o dos Casos de Direito Galático. É verdade e não é. Em extensão, ou melhor, em número de páginas, o maior dos quatro livros é o último, Lisboa ao Voo do Pássaro. Mas sim, os Casos de Direito Galático, com o seu companheiro de sempre, os fragmentos d'O Mundo Inquietante de Josela, são de facto os textos mais extensos que aqui se encontram, até porque os restantes são todos poesia.

E para mim são também, e de longe, os mais interessantes. É que os Casos de Direito Galático são um muito sui generis exemplar de ficção científica portuguesa, escritos e publicados numa época em que praticamente se desconhecia a existência de tal coisa. E os fragmentos de Josela também, embora bastante menos.

Mais: são um exemplar de boa FC portuguesa, o que não deverá surpreender ninguém que conheça pelo menos o livro mais conhecido do autor, os Contos do Gin-Tonic, pois também aí a FC aparece. Mário-Henrique Leiria conhecia obviamente o género, tendo pelo menos feito algumas traduções de livros da Argonauta, ainda que eu não saiba se seria leitor habitual. Parece-me provável, pois não é sem leituras que se atinge a sofisticação que alguns dos casos de direito galático mostram, mas não é algo que eu possa afirmar com qualquer grau de certeza. É uma pena que tenha produzido tão pouco no género (e fora dele também, na verdade); de outro modo podíamos ter pelo menos um autor a fazer consistentemente boa FC já na década de 70, e quem sabe se não se formaria alguma espécie de movimento em volta dele. Mas não; isso é história alternativa. No mundo real tivemos um autor a fazer boa FC na década de 70 mas só de uma forma esporádica.

Claro que é uma FC "impura", tingida de outras coisas. Felizmente, diga-se. De surrealismo, para começar. De humor, muito, e de política, também bastante, ou talvez seja melhor falar em crítica social. De novo, nada que deva surpreender quem saiba quem foi o autor, pois tudo o que ele escreveu tinha esses ingredientes. E é em boa parte isso o que o torna relevante.

São também esses os ingredientes que para mim tornam interessantes as outras coisas que arredondam as contas deste livro, pois não só prefiro a prosa à poesia, em geral, e não só sou apreciador de FC, como tenho a opinião de que Leiria era muito melhor prosador que poeta. Já o disse quando falei dos Contos do Gin-Tonic (ou talvez tenha sido dos Novos Contos do Gin) e repito-o aqui. Por isso não creio que os outros três livros sejam tão bons como os Casos. Mas não deixam de ser interessantes o suficiente para fazer com que este livro de livros seja em geral uma boa leitura. Talvez menos relevante hoje do que na época em que os livros foram publicados, pois é essa a velha pecha da arte de intervenção social direta — tende a perder acutilância quando as circunstâncias mudam —, mas boa.

Eis o que achei sobre os vários textos de que o livro se compõe: Este livro foi comprado.

domingo, 11 de abril de 2021

Leiturtugas #97

Mais uma semana que passa, e mais uma vez que temos Leiturtugas a pedir que se lhes faça referência.

E mais uma vez foi ao Marco Lopes que coube abrir a semana, ao publicar a sua opinião sobre a antologia O Resto é Paisagem, organizada pelo Luís Filipe Silva e publicada em 2018 pela Divergência. Se bem me lembro de opiniões anteriores, este é mais um livro em que não há FC, e por conseguinte o Marco passa a 0c9s.

Também a Carla Ribeiro reaparece nestas notas, através da publicação da sua opinião sobre um livro que tem aparecido frequentemente por aqui nos últimos tempos: Segredo Mortal, de Bruno M. Franco. Já sabem como é: edição deste ano da Cultura, um thriller com um pouco de FC, portanto a Carla passa a 1c3s.

Os oficiosos também regressaram esta semana, ainda que com uma leitura um pouco lateral. Chegou pela mão da Anabela Risso, e é um daqueles livros que não são de nenhum género fantástico mas se relacionam intimamente com eles, muito embora este seja dirigido à juventude: o Bestiário Tradicional Português, de Nuno Matos Valente. Edição de 2016 da Escafandro.

Mas esse foi só o primeiro oficioso da semana. Houve um segundo, uma opinião da Silvana sobre A Rainha Desejada, romance de Telma Monteiro Fernandes que parece ter sido fortemente inspirado por Outlander. Edição da autora, do mês passado.

Relativamente ao sorteio, ainda não tive oportunidade de fazer todos os testes que tenho de fazer à questão do vídeo, pelo que ainda não será esta semana. Será na próxima. Sem falta. E além do vídeo, também haverá mais Leiturtugas. Garanto.

Até lá.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Mário-Henrique Leiria e João Freire: Lisboa ao Voo do Pássaro

Tudo me leva a crer que o ponto de partida para este livro (pois é de um livro que se trata; neste caso um livro dentro do livro) foram as fotografias de João Freire. O tema, como o título de Lisboa ao Voo do Pássaro indica com toda a clareza, é a cidade de Lisboa, embora quem conheça algo da obra de Mário-Henrique Leiria não se surpreenda em nada se eu lhe disser que não é a cidade de Lisboa. E o tempo, que também é aqui de toda a relevância sendo Leiria quem é, é aquele período pós-revolucionário em que o PREC já ficou para trás e a democracia formal já se vai consolidando.

Razoavelmente longo, o livro vai sendo construído de uma forma bastante semelhante à do Conto do Natal para Crianças: cada fotografia de Freire é como que comentada ou complementada por uns quantos versos de Leiria. Não poemas independentes, mas um poema só, apesar de alguns apartes parecerem ser um pouco alheios à história geral. Esta não será propriamente uma história mas vendo bem não deixa de o ser. É sobretudo um comentário, irónico e corrosivo como seria inevitável em Leiria, mas também algo desencantado, agora que o fascismo já ficou para trás mas pouco do sonho que a revolução trouxe se cumpriu, sobre a cidade de Lisboa que Mário-Henrique Leiria parece achar demasiado igual a si própria, demasiado semelhante à de antigamente.

Acutilante e, a espaços, bastante divertido, este texto é claramente Leiria, mas aquele Leiria de que eu tendo a gostar menos. Já o disse várias vezes e continua a ser verdade: prefiro de longe as suas prosas aos seus versos. No entanto, este é dos tais autores de que gosto tanto quando gosto mais que não é por gostar menos que deixo de gostar. Portanto sim, prefiro outras coisas dele a esta, mas não deixei de desfrutar desta leitura.

Textos anteriores deste livro:

Lewis Carroll: Alice no País das Maravilhas

Não sei se isto acontece a muita gente, embora saiba que quando se pergunta "serei só eu que" quase nunca se é, mas o facto é que senti durante anos e anos uma enorme resistência a ler livros ou contos de que tinha visto ou lido adaptações em miúdo. Não sei bem porquê. Talvez o receio de destruir com essa leitura memórias de infância, talvez a ideia de que há coisas que se não forem lidas na idade certa perdem a magia e por consequência o encanto, talvez, simplesmente, não ter calhado ou então ter andado demasiado absorvido por outras leituras para regressar a essas histórias. Talvez uma combinação de todas ou algumas estas coisas e de outras tantas. Seja qual for o motivo, o facto não muda: há obras literárias que nunca li simplesmente por ter visto adaptações delas para cinema ou TV ou por as ter lido adaptadas para BD. Ou até resumidas em conto infantil.

Ultimamente tenho vindo, devagarinho, a remediar essa situação. Foi o que me levou, por exemplo, a comprar os Contos de Grimm, que tenho vindo a ler nos últimos meses. E foi também o que me levou a comprar este Alice no País das Maravilhas (bibliografia), que também nunca tinha lido, apesar de conhecer razoavelmente bem a história através de várias adaptações (e uso o advérbio porque as adaptações tendem a desviar-se dos originais em maior ou menor grau, dependendo daquilo que mais interessa neles a quem as faz).

O problema destas leituras, claro, é chegarem a destempo. O leitor de hoje não é o leitor que seria se as tivesse feito no tempo próprio, e estas histórias infantis já são olhadas com o olhar experimentado e demasiado cínico do adulto, não com a ingenuidade da criança. Há nisso uma vantagem e várias desvantagens. As desvantagens são óbvias, parece-me, pelo que me dispenso de as elencar. A vantagem é o adulto que lê estar mais equipado para compreender as motivações do adulto que escreve e por isso conseguir encontrar nestes textos significados que a criança nunca captaria. Ainda que isso por vezes cause também algum incómodo.

A criança, ao ler esta novela de Lewis Carroll (ou ao ler ou assistir a alguma das suas adaptações), deixa-se simplesmente deslumbrar pela imaginação delirante e absorver pela história. O adulto, por seu lado, diverte-se com a crítica implícita aos desmandos e à crueldade dos poderosos ou ao ridículo (e ineficaz) cerimonial dos tribunais, especialmente dos britânicos. A criança nada encontra de estranho na própria Alice; já o adulto, sabendo que a Alice do livro é homenagem a uma Alice verdadeira, de carne e osso e da mesma idade, com quem o autor conviveu demoradamente... bem... falo acima de incómodo, não é? Pois.

Curioso é que a criança tenha retido na memória sobretudo a cena do chá com todas aquelas personagens estrambólicas, Chapeleiro Louco e companhia, a que se soma o Gato de Cheshire de outras cenas, e o adulto, ao ler o livro, tenha descoberto que essas cenas e personagens pouca importância acabam por ter. De facto, a maior parte da novela tem por base a Rainha de Copas e a sua permanente injustiça sanguinária, numa sucessão de cenas a que a criança pouca importândia deu. Talvez por falta de interesse próprio, talvez pela pouca atenção que lhes terá sido dada pelas adaptações a que a criança teve acesso. O adulto não sabe; já não se lembra. Passaram-se muitos anos.

O tom, no entanto, é aquele de que o adulto se lembra dos tempos de criança. A imaginação fervilhante, como que movida a mescalina, e as personagens excêntricas e antropomorfizadas, à boa maneira das fábulas, são as mesmas, e a história, pesem embora os diferentes pesos dados a este ou aquele episódio, também é. A camada de crítica social é nova mas só porque a criança não se apercebeu dela; o que é a redução de toda a hierarquia a um baralho de cartas falantes se não crítica social? Carroll, provavelmente, tê-la-á concebido apenas como uma crítica aos absurdos do mundo dos adultos, a que Alice por ser criança é alheia, mas o olhar desta acaba por funcionar como visão externa sobre uma sociedade cheia de defeitos, de uma forma muito semelhante ao de Gulliver nas andanças descritas por Swift. De resto, toda a forma de caracterizar a sociedade através do exagero e do absurdo é bastante semelhante em Swift e em Carroll, e isto é mais uma coisa que o adulto não esperava.

E de vez em quando, o adulto deixou-se divertir. Não tanto como gostaria mas mais do que temia. Sendo certo que a idade certa para o ler não é aquela em que o li, não é menos certo que há bons motivos para este livro ser o clássico que é. É um bom livro.

Este livro foi comprado.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Escrita de março


Março foi mais um mês fraco, mas não tanto como os anteriores, e acabou por sê-lo em parte por culpa de eu ter passado a última semana doente e sem escrever uma linha. O resto do mês até viu progressos razoáveis no conto que já vem de fevereiro e está a transformar-se em noveleta; progressos que bastaram para fazer com que março tenha acabado por se tornar o melhor mês do ano até ao momento.

Mas foi um mês fraco, muito abaixo da produção média de 2020. Um pouco mais de 4700 palavras, quase todas aplicadas a essa história, não são nada de especial, e tornam-se ainda menos impressionantes tendo em conta que não houve qualquer espécie de revisão, ou outros trabalhos menos virados para o ato de escrever propriamente dito, a fazer reduzir o total.

É o que temos por estes dias, aparentemente. A motivação não é grande, os problemas são muitos e variados, e tudo se ressente. Mas adiante. As histórias continuam a querer sair, armadas em lava de vulcão islandês, e vão saindo, umas vezes mais depressa, outras mais devagar. No fim de abril logo se verá se o ritmo da erupção continua lento ou arranjou alguma maneira de acelerar. É mais que provável que este conto se deixe acabar durante este mês, transformado em noveleta mas ficando bastante longe da novela, mas probabilidade e certeza são conceitos diferentes. Veremos.

Se quiserem ficar por aí, no início de maio já saberemos.

domingo, 4 de abril de 2021

Leiturtugas #96

Isto não seria uma semana se não houvesse Leiturtugas a divulgar.

Bem... exagero. Mas sim, temos material novo por aí. E tudo publicado ainda em março, pelo que conta para o próximo sorteio... mas sobre isso falamos depois. Para já, a semana começou com...

... o Artur Coelho, que regressa depois de umas semanas de ausência e apresentou logo na segunda-feira a sua opinião sobre a coletânea Seis Drones, de António Ladeira, um livro que a On y Va publicou em 2018. É um livro de FC, portanto o Artur passa a 3c3s.

E terminou com a Tita, que leu e comentou, em texto e em vídeo, o thriller Segredo Mortal, de Bruno M. Franco, publicado em março pela Cultura. Trata-se basicamente de um thriller com elementos fortes de policial e um cheirinho de FC. Este cheirinho basta para que conte como "com FC", portanto a Tita passa a 3c1s.

E esta semana os oficiosos tiraram férias, portanto é só o que tenho para vos mostrar. Mas...

... mas vamos fazer em abril o segundo sorteio do ano, pelo que o material que conta é o que saiu até ao fim de março. Ainda não sei ao certo se o farei esta semana que entra ou na seguinte — vou mudar a forma de filmar, que já basta de écrans filmados por telemóvel, e tenho ainda de fazer uns testes que não sei quanto tempo levarão. Seja como for, o livro a sortear é este que podem ver aqui ao lado: O Invisível, a Sua Sombra e o Seu Reflexo, uma coletânea de António Bizarro. Oferecida pelo próprio.

E quem participa? Montes de gente, que o número de participantes oficiosos cresceu bastante nos dois últimos meses. Eis a lista completa com os quocientes de cada um:

Publicação Já cumprido Falta cumprir Quociente
Rascunhos 4c5s 3 (2c) 27
Intergalactic Robot 3c3s 6 (3c) 27
O Senhor Luvas 0c8s 6 (6c) 15
O Prazer das Coisas 3c1s 8 (3c) 7
A Lâmpada Mágica 2c1s 9 (4c) 25
As Leituras do Corvo 0c3s 9 (6c) 25
Marcador de Livros 2c0s - 1
Book Tales 1c1s - 0,75
Livros de Cabeceira e Outras Histórias 1c1s - 0,75
A Viciada dos Livros 0c2s - 0,5
Atmosfera dos Livros 0c2s - 0,5
Gotika 1c0s - 0,5
No Conforto dos Livros 1c0s - 0,5
Postal do Algarve 1c0s - 0,5
Palavras Sublinhadas 1c0s - 0,5
Quando se Abre um Livro... 1c0s - 0,5
Portugueses Contemporâneos 1c0s - 0,5
D311nh4 0c1s - 0,25
Deus me Livro 0c1s - 0,25
Estante de Livros 0c1s - 0,25
Livros 2009 0c1s - 0,25
O Livro Pensamento 0c1s - 0,25
Papéis e Letras 0c1s - 0,25
The Girl Who Reads Books 0c1s - 0,25

Não me lembro ao certo se é a primeira vez que acontece, mas creio que sim: neste sorteio todos os participantes oficiais estão em dia com as leituras. Na verdade, metade deles vai bem adiantada. Tudo verdinho. Assim é que é bonito.

Além disso, os leitores mais atentos terão reparado em duas coisas: o quociente da Tita (O Prazer das Coisas) é bastante mais baixo que os outros, e os quocientes dos participantes oficiosos são diferentes dos do primeiro sorteio. Bons olhos, bons olhos. A Tita, como levou para casa o último livro, está com a penalização do último vencedor, que lhe corta dois terços ao quociente.

Quanto aos oficiosos, resolvi melhorar-lhes os quocientes: uma leitura sem FC valia um quinto e agora passa a valer um quarto de uma leitura dos participantes oficiais, e uma leitura com FC valia um terço e agora passa a valer metade. Fi-lo por dois motivos:

- para lhes melhorar um pouco as possibilidades (ou antecipar o tempo que terão de esperar / reduzir as leituras que terão de fazer até terem alguma possibilidade real) de ganharem um livro;
- para facilitar as contas, que aquelas divisões por três tendem a dar uns números um bocado intratáveis. Assim já se faz tudo de cabeça sem problema nenhum.

Não sei se para a semana já conseguirei ter cá o vídeo relativo ao sorteio, mas é provável que sim. E quer tenha, quer não tenha, as Leiturtugas não faltarão. Portanto até lá.

Mia Couto: O Monstro Infantil

De cerca de página e meia se faz esta crónica a que Mia Couto chamou O Monstro Infantil, título que daria pano para muitas páginas fantásticas mas designa apenas o pacholas paquiderme (enquanto não o enfurecerem... e desde que não seja macho no cio) trombudo, tal como, de resto, o autor revela logo a seguir num subtítulo aconchegado a parêntesis: Declaração de Amor ao Loxodonta africana. E é o subtítulo que descreve o texto, pois é disso mesmo que se trata: uma declaração de amor ao elefante, escrito na típica prosa de Mia Couto; uma crónica daquelas que se leem bem mas são basicamente inócuas, sem grande coisa que as faça memoráveis.

Textos anteriores deste livro: