quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Lido: O Alfaiatinho Valente

Se julgam que a chico-espertice é coisa exclusivamente portuguesa, desenganem-se. O Alfaiatinho Valente, teutónica história construída a partir de elementos razoavelmente díspares — mas nos quais a chico-espertice já estava bem presente — pelos não menos teutónicos Irmãos Grimm, demonstra cabalmente que o fenómeno está bem disseminado e é antigo. Pois o alfaiatinho que protagoniza esta história é, além de valente, coisa que realmente até é, um chico-esperto do mais típico que existe, intrujão e gabarolas como poucos. E, pior, sai-se bem de todas as peripécias, sempre tingidas de vigarice, meio por mérito próprio, por uma questão de agilidade mental, autoconfiança e até agilidade física, meio por pura sorte. Sai-se tão bem, na verdade, que de modesto alfaiate acaba em rei, depois de intrujar gigantes — que mata —, soldados, o próprio rei, toda a gente e alguma não gente.

Para mim, o mais interessante desta história são as conclusões a que se chega quando se coloca nos pratos da balança ideológica a sua óbvia imoralidade de base com a vontade, claramente expressa pelos autores destas histórias, de criar uma espécie de corpus de histórias exemplares, com propósitos educativos, baseadas nas lendas e histórias folclóricas que foram encontrando pela Alemanha fora. Torna-se premente a interrogação: que exemplo pretenderiam eles dar com uma história destas? Que a ambição justifica todos os meios? Que ser espertalhão é uma virtude superior a qualquer outra... desde que não se seja apanhado?

E refiro-me aqui aos Grimm, mas podia referir-me de forma igualmente apropriada ao caldo cultural que produziu tais pérolas, pois através das notas que acompanham o conto (como é de norma nesta edição) percebe-se claramente que esse elogio à chico-espertice inescrupulosa já estava bem presente no material de base, embora os Grimm nada tenham feito para a atenuar, muito pelo contrário.

Pensando bem, isto é capaz de explicar uma parte razoável da Europa de hoje.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Horóscopo

Depois do Calendário aparece mais um texto mestiço, desta feita uma espécie de Horóscopo. Sim, só "uma espécie de". É que aqui, Sofia Romualdo mostra muito mais interesse em criar um ambiente steampunk, servindo-se de alguma da parafernália típica do subgénero (goggles, dirigíveis, por aí fora), e um texto divertido, do que em apresentar um texto credível enquanto horóscopo, pois falta-lhe, em quase todos os signos, o tipo de informação que os fiéis destas coisas mais habitualmente procuram: relações, saúde, finanças, etc. Por outro lado, por vezes tem verdadeira piada, especialmente quando insulta — é o termo — o gentil leitor.

Digamos que, assim, o Astrólogo Sepharial, em nome do qual este horóscopo vem assinado, não tem grande futuro na... hm... bem, chamemos-lhe arte. Mas entrevê-se nestas curtas linhas uma personagem interessante. Talvez desse umas histórias curiosas, o amigo Sepharial. Deste "seu" texto é que não gostei lá muito.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Lido: Os Meninos Perdidos

Quem conhecer alguma das versões de Hänsel und Gretel, que eu li há pouco tempo porque é um dos contos recolhidos e reconstruídos pelos Irmãos Grimm, pega em Os Meninos Perdidos, história que na versão de Adolfo Coelho ocupa apenas duas páginas, e depressa percebe estar perante uma variante. Aqui se encontra a mesma bruxa, aqui se encontram as mesmas crianças perdidas na floresta, aqui se encontra o mesmo encarceramento e engorda com vista a um futuro pitéu canibal, aqui se encontra o mesmo rasto de objetos na floresta, para ser seguido e fornecer orientação, ainda que neste caso não sejam migalhas de pão mas cascas de tremoço a construí-lo, aqui se encontra a mesma estrutura básica. Mas há suficientes detalhes divergentes para que a história acabe por ser outra. Existe, por exemplo, uma velhinha bondosa e igualmente mágica (ou pelo menos com conhecimentos de magia alheia) que acaba por ajudar a resolver o problema dos miúdos, personagem que não existe na versão alemã. Esta é uma história muito curiosa em si mesma e curiosíssima enquanto contraponto à versão dos Grimm.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Calendário

Este almanaque inclui vários textos mestiços, entre a ficção e a não ficção. Os Anúncios de que já aqui se falou são um exemplo, e pouco depois vem outro, o Calendário. Trata-se basicamente de um calendário de eventos futuros do mundo real, ligados de alguma forma — mesmo que ténue; inclui informação astronómica, por exemplo — ao steampunk, mas está escrito como se esse mundo real fosse um parque de diversões vitoriano, com dirigíveis por todo o lado. Não achei grande piada, em parte, confesso, por não fazer a mínima ideia de como vou categorizar este texto quando chegar o momento de o incluir no Bibliowiki. Meter-me em assados não tem graça, menina Joana Neto Lima.

Texto anterior deste livro:

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Lido: Anúncios

Os almanaques de antanho incluíam sempre anúncios às coisas mais variadas. Daí que, quando o Clockwork Portugal decidiu criar um almanaque steampunk, elaborado à imagem e semelhança dos almanaques da viragem do século XIX para o XX, uma secção de anúncios não pudesse faltar, graficamente moldada à época dos almanaques originais e devidamente adaptada à temática steampunk.

Os anúncios dividem-se em dois grupos. Um logo a abrir, o outro a fechar.

Os do primeiro desses grupos são praticamente microcontos, quase sempre mais pelo que sugerem do que pelo que dizem, o que, de resto, é apanágio de quase todas as ficções ultracurtas. Anunciam-se coisas como uma Oneirocâmara (Sofia Romualdo), que promete fotografar sonhos; Termas Vaporosas (João Ventura), que garantem beneficiar a saúde com vapores sulfúreo-radioativos; Armas (Manuel Alves), que será talvez um pouco terra-a-terra em demasia para a publicação a que se destina, pois só publicita um revólver sem nada de especial, Engraxadora a Vapor Brilhantíssima (Carlos Silva), utilíssima maquineta para o cavalheiro bem calçado; uma Poção Hércules (Manuel Alves), que sofre do mesmo padecimento das armas, pois é anúncio que poderia ser encontrado em qualquer almanaque verdadeiro; Abelhas Mecânicas (Sofia Romualdo), autómatos polinizadores de primeira qualidade; Beba Elixir Milagroso Dr. António Medeia (Carlos Silva), banha da cobra da melhor para curar doenças steampunk; O Petrol Cyclo (Anton Stark), brilhante invenção automóvel que é anunciada na orthographia pré-1911, o que acaba por se tornar incongruente com o restante texto, e por fim um verdadeiro conto sob capa de anúncio, intitulado Cuide dos Seus Males com... TAURUM MÁGICO (Pedro Ferreira), sobre uma magnífica invenção "com capacidade de reestruturar os compostos magnéticos do cérebro".

São sobretudo textinhos divertidos, que sugerem — quase todos — ambientes e histórias sem chegarem propriamente a contá-las. Todos poderiam servir de eixo para ficções mais desenvolvidas, ainda que, bem entendido, nem todos em grau igual. Para isso, as ideias com menor potencial são naturalmente as menos fantasiosas, as duas do Manuel Alves, ao passo que as que o têm maior são a da oneirocâmara, a das abelhas mecânicas e a do taurum mágico. Nada de transcendente, mas engraçado.

O segundo grupo mantém o mesmo ambiente gráfico e publicitário, mas publicita coisas do mundo real, supõe-se que aquelas que contribuíram para a concretização do projeto, de editoras a criadores de roupa e acessórios steampunk, passando por revistas, fanzines, eventos, etc. Ao contrário do primeiro grupo, aqui não há literatura e há muito pouca diversão — e a que existe é sobretudo gráfica; há apenas publicidade.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Lido: 2014 Campbellian Anthology

Há antologias que têm uma estrutura; outras, e por vezes as mesmas, incluem uma componente editorial forte. O primeiro caso exemplifica-se com antologias temáticas, e em especial antologias de universo partilhado, como a brasileira Intempol ou a portuguesa Lisboa no Ano 2000. O segundo caso pode ter como exemplo qualquer antologia em que o ou os organizadores selecionem aqueles que lhe(s) pareça(m) ser os melhores contos e novelas para a publicação que organizam.

Outras antologias existem, contudo, que têm muito pouco de uma coisa e outra, limitando-se a englobar tudo o que aparece dentro das balizas razoavelmente latas da proposta de publicação. É, pelo lado negativo, o caso das antologias pagas pelos autores. E é também, pelo lado positivo, o caso de publicações como esta 2014 Campbellian Anthology, compilada por David M. Blake.

Trata-se de uma gigantesca edição em ebook que, se se tratasse de livro físico, chegaria quase às 2500 páginas de contos, novelas e excertos de romances. Sim, a sério.

E pretende reunir exemplos, supostamente os melhores, do trabalho dos autores elegíveis em 2014 — ou pelo menos daqueles que desejaram a sua inclusão — para o Prémio John W. Campbell para o Melhor Novo Escritor, atribuído anualmente a um escritor que tenha tido a sua primeira publicação profissional de ficção científica, fantasia ou horror, em língua inglesa, no decurso dos dois anos civis anteriores.

E é o que faz, de facto. Reúne tudo: o bom, o mau, o ótimo, o péssimo, o assim-assim, de continhos de uma página a excertos de romances ou novelas com quase 50, ficção científica, fantasia, horror, das coisas mais tradicionais às mais experimentais, das mais juvenis às mais adultas.

E ao fazê-lo, apresenta-nos um interessantíssimo panorama do que se anda a fazer nos três géneros (e arredores) e das abordagens que autores acabados de chegar trazem para cima da mesa. É uma vasta janela sobre os géneros fantásticos e o seu futuro. E, em grande medida por isso, é uma publicação francamente boa, mesmo que parte do seu conteúdo esteja longe de o ser. Pena é só se terem publicado duas destas antologias, em 2013 e 2014, tendo a ideia de publicar a de 2015 sido assassinada pelos puppies e existindo uma iniciativa semelhante em 2016, organizada por outras pessoas e intitulada Up and Coming. E mais pena ainda eu só ter conseguido agarrar esta, só tendo dado pelas outras já depois do período de disponibilidade ter chegado ao fim. Bolas! E mais bolas! Porque sim, valem bem a pena.

Abaixo encontram a longa lista dos autores presentes na antologia, com ligações para posts dedicados a cada um, onde falo brevemente do que achei das respetivas histórias.
Este livro foi descarregado legalmente da web.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Lido: A Viagem do Elefante

No contexto da obra de José Saramago, A Viagem do Elefante é uma raridade: um romance histórico, como alguns dos outros, mas que, ao contrário destes, não contém nenhum elemento fantástico se descontarmos algumas passagens em que o narrador especula sobre que pensamentos passarão pela cabeça do elefante que o protagoniza. E podemos fazê-lo sem dificuldade, pois o elemento fantástico que em tais passagens se contém é no máximo tenuíssimo.

Relata, como se sabe, a viagem do elefante Solimão, originário da ilha de Ceilão e dado de presente pelo rei português ao arquiduque da Áustria, no já distante século XVI, época em que Portugal era superpotência global e a Áustria lhe ficava bem abaixo na hierarquia dos poderes. Ora, oferecer como presente um elefante implica que este viaje de casa de quem oferece até à casa de quem recebe a oferta, e um elefante, mesmo sendo asiático e por isso mais pequeno que os primos africanos, não é propriamente coisa que se enfie num bolso ou numa mala.

Daí que Solimão tivesse sido obrigado a atravessar meia Europa, quase sempre a pé, causando grande comoção e sensação em todos os locais que atravessa, pois a Europa do século XVI já havia há muito esquecido as legiões cartaginesas de Aníbal e não se lembrava da existência de tão assombrosos animais. Uma viagem fantasticamente épica, em sentido próprio. E tudo isto é história histórica, realmente acontecida na realidade factual das coisas, não só na realidade da ficção.

Saramago pega nessa história e conta-a à sua maneira, dividindo o protagonismo entre Solimão, o elefante, e o seu cornaca, pois para que tão grande animal viaje para onde se deseja é sempre preciso que haja quem saiba conduzi-lo para lá. Subhro, assim se chama o cornaca, é a voz do povo, e portanto a voz da razão, é aquela pessoa que sabe o que há que fazer e porquê, o homem que é capaz de conciliar as necessidades diplomáticas da viagem com as necessidades e capacidades mais imediatas da oferta, ajustando umas às outras conforme seja necessário.

E é esse o facto que mais é usado como motor deste romance. E é isso, mais do que a sucessão de peripécias e paisagens que inevitavelmente se sucedem numa viagem de Lisboa a Viena, mais a mais há quinhentos anos, que lhe confere interesse. São as reflexões do povo e do estrangeiro, corporizados em Subhro, em confronto com os vários poderes por cujas mãos vai passando, são as formas como se lhes vai adaptando umas vezes e impondo-lhes, de outras, a sua vontade ou necessidades, que realmente sustentam a história.

No fim, fica a ideia de que, no fundo, o que o povo quer é que o deixem em paz, que lhe permitam viver a vida sem o chatearem demasiado, e também uma ideia internacionalista, quiçá fruto parcial ou total da emigração, também sentimental, do próprio Saramago: a pátria fica onde ficam as coisas de que gostamos ou necessitamos. No caso de Subhro, a sua pátria foi o elefante Solimão; morto este, o que resta?

O que resta, aqui, é responder à pergunta: é bom, este romance? Claro que é.

Este livro veio da biblioteca dos meus pais.

Lido: Nas Catacumbas

A ficção científica está cheia de histórias em que o contacto entre civilizações oriundas de diferentes planetas resulta em invasão — ainda recentemente falei aqui de uma. Normalmente, a invadida é a Terra, o invasor é uma espécie alienígena qualquer. Mas mais raras e em geral mais interessantes são as histórias em que são os terrestres que invadem planetas distantes. Nas Catacumbas é uma dessas histórias. Talvez.

E talvez porque esta vinheta de Luiz Bras não é inteiramente clara a esse respeito. Em parte devido ao ponto de vista escolhido, a dos invadidos, que se veem obrigados a refugiar-se em catacumbas, o que explica o título, em parte devido ao tamanho do conto, página e meia, e em parte devido à sua estranheza, pois o método de invasão e combate é francamente desusado. E original, tanto quanto eu saiba.

Essa originalidade contribui para o interesse que o conto tem, mas há mais. Há aqui uma muito subtil conexão ecológica, talvez algo retirado da mundovisão de povos indígenas sul-americanos. Se encarada sob um certo ponto de vista, esta é a história não só da invasão do Novo Mundo, como a própria história da espécie humana no planeta que lhe deu origem. Se visto a esta luz, este conto é extraordinariamente sumarento para obra tão pequena. E por isso muito bom.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 15 de janeiro de 2017

Lido: A Frio

Está um tipo sossegadamente a ler, no seu casarão, enquanto lá fora o mundo se desfaz em chuva, quando lhe vem bater à porta um miúdo, ensopado que nem um pinto, e assustado porque estaria a ser perseguido. O que faz o tipo? Bem, vocês não sei o que fariam, mas o dono deste casarão em concreto, o protagonista de A Frio, já parece ter o esquema todo montado.

É um conto curioso, este. Mas não passa disso. Ricardo Lopes Moura deixa uma ou duas pontas demasiado soltas na sua narrativa e faz uso muito pouco irónico (isto é, com muito pouca consciência aparente de que está a usar clichés) de alguns clichés para que eu consiga achar o conto bom.

O pior é que sem esses clichés o truque que usa para desviar as atenções do que se estava ali a passar resultaria em pleno. Sem tantas referências ao imaginário do terror, o leitor acreditaria na generosidade do dono da casa quando deixa o miúdo sair da chuva e obter refúgio de um qualquer perigo iminente. Mas com elas, a sensação de que há qualquer coisa que não está bem e a suspeita, quase imediata, de qual é a coisa que não está bem, surge demasiado depressa. E assim, a leitura acaba com um "ora bolas" de oportunidade perdida.

Ora bolas.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Lido: Não é o que Ignoras o Motivo da tua Queda mas o que Pensas Saber

Um dos subgéneros mais comuns na ficção científica internacional, e talvez aquele que é mais maltratado por escritores que não conhecem o suficiente do género para evitar cair em todos os seus muitos clichés, é a FC mais ou menos ufológica, centrada em visitas ou invasões de criaturas extraterrestres. Não por acaso: A Guerra dos Mundos de Wells é dos tais livros que toda a gente acaba mais tarde ou mais cedo por ler, e há abundância de material audiovisual construído à volta do mesmo tema, já para não falar de todo o History Channel e da muita divulgação que tem há largas décadas a pseudociência ufológica.

Não é o que Ignoras o Motivo da tua Queda mas o que Pensas Saber (bibliografia), o mais verborraico título que Luís Filipe Silva publicou até hoje, insere-se nessa tradição. O cenário faz lembrar um pouco o do filme Independence Day: objetos, provavelmente naves, aparecem nos céus da Terra e depressa começam a causar problemas. As semelhanças, felizmente, terminam aí. O que se segue é uma história que tem mais a ver com a noção de incompreensibilidade da inteligência alienígena, muito comum em Lem, e a muito citada frase de Clarke sobre a tecnologia suficientemente avançada ser indistinguível da magia, do que com o cliché habitual deste tipo de história. Além disso, trata-se de um conto bem escrito, não só no que toca simplesmente ao uso da língua, como, até certo ponto, na construção do protagonista e de algumas das outras personagens, mas também, ou talvez sobretudo, em certos detalhes estruturais que são fundamentais para sustentar o interesse do leitor até ao fim, pequenas frases ou fragmentos de frases que vão sucessivamente entreabrindo portinholas para o futuro narrativo, fornecendo vislumbres do que aí vem e voltando a fechar-se imediatamente a seguir. De bónus, um final que, apesar de todos estes vislumbres, consegue ainda surpreender.

Como consequência, esta é de caras a melhor história desta curta antologia. Uma noveleta realmente boa, para variar.

Contos anteriores deste livro:

Lido: The Heisenberg Mutation and Other Transfigurations

Esquece-se com demasiada frequência que, lado a lado com a literatura comercial (e não me refiro aqui à que é vulgarmente conhecida desta forma, a literatura formulaica destinada a vender muito, mas sim à literatura que é comercializada através dos circuitos da edição profissional) existe, sempre existiu e provavelmente sempre existirá uma outra, uma espécie de irmão pobrezinho da primeira, que sobrevive de edições pequeninas, de edições amadoras, de autoedições e de edições pagas do bolso dos próprios autores. E que embora seja verdade que a qualidade média é superior na primeira que na segunda, não é menos verdade que na primeira encontramos também material inenarravelmente mau, ao passo que na segunda também existem algumas pérolas de considerável calibre.

The Heisenberg Mutation and Other Transfigurations é um cadernito de 36 páginas, publicado não se sabe quando por uma microeditora de certeza amadora chamada D-Press, escrito por Steve Redwood e ilustrado por Carole Humphreys, e pertence sem qualquer máscara ou simulação ao segundo grupo, mesmo que o objetivo tenha sido, como parece que foi, mais fazer uma ediçãozinha de alguns contos para divulgar gratuitamente junto de eventuais interessados, ligados de uma ou de outra forma ao mundo da edição, do que fazer com que esta edição valesse por si mesma. Mas seja qual for o objetivo, o facto é que este é um bom livrinho, claramente melhor do que muitos dos livros publicados profissionalmente que li no ano passado.

Os seus quatro contos, que oscilam entre a ficção científica soft e uma weird fiction absurdista e surreal, são todos textos bastante interessantes, razoavelmente bem servidos pelas ilustrações de Humphreys e, embora não se possa dizer que o conjunto supera a soma das partes, estas são boas o suficiente para ter sido um prazer ler este livro.

E já que se fala das partes, eis o que achei delas:
Este livro foi-me oferecido pelo autor e passou demasiados anos na pilha dos livros a ler um dia.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Lido: A Saga de Alex 9

De vez em quando aparecem no rarefeito panorama da literatura fantástica produzida em Portugal umas edições invulgares. A Saga de Alex 9 (bibliografia) é uma dessas edições, e por vários motivos.

É invulgar, em primeiro lugar, por se tratar de um tipo de edição que só muito raramente acontece por cá: aquilo a que no mundo anglófono se dá o nome de omnibus, uma compilação, completa ou não, dos romances que compõem uma série, quase sempre após terem sido publicados isoladamente. Além deste livro, que me lembre, só a duologia Galxmente de Luís Filipe Silva recebeu recentemente idêntico tratamento, e neste caso tratou-se de uma obra inicialmente pensada como romance unitário que, com a edição em volume único, terá recuperado a estrutura original. Parece claro que, pelo contrário, Bruno Martins Soares pensou a sua obra como trilogia e dois dos três romances saíram autonomamente, assinados sob o pseudónimo anglófono de Martin S. Braun.

É invulgar, em segundo lugar, porque mistura de uma forma também muito pouco comum entre nós a fantasia e a ficção científica. Não pela mistura em si — ela existe em vários exemplares da ficção fantástica portuguesa, de Tércio a Macedo e até, por vezes, ao próprio Barreiros, ainda que aqui se encontre mais horror do que propriamente fantasia — mas pelos ingredientes postos na mistura: fantasia épica e space opera. Não me consigo lembrar de nenhum outro exemplo que tenha lido.

É também invulgar pela dimensão. Na ficção científica portuguesa, só o Terrarium da dupla Barreiros-Silva e, mais recentemente, o já referido Galxmente, atingem dimensões próximas das 600 páginas.

E é invulgar, enfim, por se inserir numa corrente pulp que tem muito poucos cultores em Portugal, e os que tem muitas vezes dão a impressão de não conhecerem o suficiente do género para o explorarem bem. Não é o caso de Soares.

Este cria uma história complexa, fundada num fascínio evidente pelas artes marciais japonesas, pela estratégia militar e pela forma pulp de contar histórias, suspeito que mais influenciada por formas não literárias de contar histórias (cinema, anime, BD) do que propriamente pela literatura, e na qual se mistura num todo nem sempre harmonioso um futuro de space opera com claros elementos cyberpunk e um passado com muito de medieval, ainda que em mundo secundário. O fulcro, como é de norma nas coisas pulp, é posto na ação, ainda que vá sendo dada mais atenção a outros elementos com o decorrer da história. A abordagem é declaradamente juvenil; não por acaso os dois romances que tiveram edição autónoma saíram numa coleção chamada TEEN.

Bastam muitas destas coisas para transformar esta obra num livro importante no contexto da FC portuguesa. Mas isso não quer dizer que seja um livro sem problemas.

Para começar, há o problema do primeiro romance. É pena que a reedição dos três livros em um só não tenha sido aproveitada para uma revisão aprofundada do primeiro romance, cuja qualidade geral fica bastante abaixo da dos outros dois. Depois, há o problema das pontas soltas que ainda ficam soltas ao concluir-se a leitura, apesar da tentativa de as amarrar, no fim, com um grande infodump em forma de epílogo. E depois há problemas que decorrem da abordagem pulp e talvez fosse difícil evitar mantendo essa abordagem. O maior desses problemas é a previsibilidade.

Uma das grandes qualidades que tem George R. R. Martin é ter compreendido que uma história de ação em que os heróis estão identificados desde o início e têm por isso a sobrevivência assegurada até ao fim é uma história amputada. Que o impacto emocional que os perigos e problemas por que passam causam no leitor é significativamente reduzido quando este sabe à partida que nada de realmente sério vai acabar por lhes acontecer. Mas nas histórias pulp, o herói é o herói e no fim vence, ficando com a heroína e vivendo com ela feliz para sempre. O desfecho está definido de antemão e assim a leitura acaba por ganhar um caráter significativo de ruminação. Ora, apesar do que a editora resolveu pôr na capa deste livro, Bruno Martins Soares decididamente não é "o George R. R. Martin português". À parte o mérito de trocar o género à estrutura pulp típica, usando uma heroína em vez de um herói, tudo o resto é como vem na receita.

E este é, para mim que não gosto de pulp, o grande pecado original deste livro. Mais do que as fragilidades de escrita, mais do que as pontas soltas, mais que o infodump, foi sobretudo isto que não me permitiu usufruir a leitura de forma plena. E foi por isso que, tendo acabado por gostar do livro, e apesar de, como digo acima, o achar importante, não gostei muito.

Para mais detalhes sobre os três romances considerados individualmente, seguir os respetivos links:
Este livro foi comprado.

Lido: Ícaro Montgolfier Wright

Outra faceta na obra de Ray Bradbury, menos numerosa mas que também inclui várias histórias, são as homenagens a heróis pessoais, sejam estes literários, científicos ou exploradores. Ícaro Montgolfier Wright (bibliografia) insere-se nessa faceta, como de resto o próprio título já indica. Trata-se de um conto curto muito poético, praticamente um poema em prosa, muito onírico, desprovido daquilo a que propriamente se possa chamar uma história, que presta homenagem aos três grandes sonhadores e pioneiros do voo referenciados no título e, por seu intermédio, a todos os outros, e faz a ligação aos pioneiros futuros, pois ainda o eram na época em que o conto foi escrito, do voo espacial.

Este é daqueles contos que irá agradar sobretudo a quem é mais sensível à forma literária, pois é nisso que é mais forte. Aqueles que prefiram conteúdo, e sobretudo os que, entre eles, tenham pouca paciência para onirismos poéticos, mais que provavelmente não gostarão, a menos que a homenagem, muito explícita, os consiga sensibilizar. Quanto a mim, gostei. Não muito, sobretudo quando comparo este conto com o melhor que Bradbury fez nos anos 40-50 do século passado, mas gostei.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Lido: A Máquina Voadora

Com A Máquina Voadora (bibliografia), Ray Bradbury leva-nos a um passado já bastante distante, ao ano de 400 AEC, e à China. Mais especificamente, a um momento concreto em que pela primeira vez um homem teria conseguido voar, amarrado a um papagaio de papel. A história que conta é a do que acontece depois a esse homem, quando o seu feito chega ao conhecimento do imperador, e trata-se de mais um dos muitos contos bradburianos em que o tema é a inovação tecnológica e a responsabilidade que ela acarreta.

Trata-se, portanto, de uma abordagem diferente para um tema bastante habitual no autor americano, num conto curto que se pode enquadrar, com boa vontade, na ficção fantástica ou até, com mais boa vontade ainda, na ficção científica, mas é sobretudo filosófico. Por vezes Bradbury parece tecnofóbico, parece — por paradoxal que isso seja num escritor de ficção científica — aconchegar-se a uma noção nostálgica de um passado mítico de infância em que tudo era puro e ainda não tinha sido corrompido pela crueldade da Máquina... ou pelo menos de uma Máquina mais sofisticada do que as que já eram conhecidas nesse passado. Mas neste conto curto transparece aquilo que deverá ser o verdadeiro núcleo dessa aparência de tecnofobia, a ideia de que a tecnologia é uma ferramenta, que pode ser bela, é certo, mas tem um imenso potencial para, nas mãos de gente má, se tornar devastadora.

O conto, esse, é bastante bom. Tão bem escrito como é habitual e com um sumo invulgarmente denso para história tão curta. E, sim, mantém-se muitíssimo atual.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Prosa

Todos os leitores são diferentes. Cada um procura nos livros a satisfação de um conjunto muito próprio de necessidades ou apetites e é em boa parte daí que vem a variedade de públicos que a literatura serve. Raramente é possível reduzir esse conjunto a uma ou duas coisas, ainda que haja sempre algo que predomina. No meu caso, o predomínio cabe ao gosto de aprender, ao gosto pelo poder da imaginação e ao gosto por uma boa história, servida pela prosa que seja mais adequada a essa história em concreto.

Quando acabei de ler este Prosa, de Mário de Sá-Carneiro, parte de uma edição dupla que reúne em dois volumosos volumes a obra completa deste célebre poeta do início do século passado, fiquei a pensar nestas questões. Porque se por um lado já antes tinha lido algumas coisas de Sá-Carneiro com um prazer significativamente menor do que o que tive ao lê-las agora, por outro, e apesar do dito acima, há entre a grande qualidade literária da maioria destes textos e o gosto que a sua leitura me causou um considerável fosso.

A questão, acabei por concluir, é a prosa de Sá-Carneiro pouco me ensinar, amarrada como está a uma conceção hiperromântica do mundo e da vida que nada me diz. Que, para ser brutalmente honesto, me parece até bastante ridícula, o que o narcisismo ora implícito ora explícito na maioria dos contos só piora. Para alguns leitores imagino que baste a literatura para ultrapassarem repulsas semelhantes pelas ideias e filosofia de base dos textos, mas para mim não basta. Mesmo pertencendo a grande maioria destas histórias à grande família da literatura fantástica sensu latu, que é aquela que costumo preferir.

Por outro lado, esta espécie de edição, em que se reúne num só volume a obra completa, todos os contos, novelas e romances, conjugada com a natureza idiossincrática da grande maioria dos textos, permite outra espécie de aprendizagem. Permite compreender bastante bem o autor e os motivos por que escrevia o que e como escrevia. E é por isso, parece-me agora, que a leitura destas histórias, aqui, me agradou significativamente mais do que quando li as que li dispersas. Esse foi o ensinamento mais relevante que retirei desta experiência: alguns autores só se compreendem verdadeiramente quando se lê tudo o que escreveram. Ou pelo menos tudo o que escreveram dentro de certos limites, mais ou menos latos, de técnica e/ou género literários (afinal, aqui só se encontra a prosa).

Daí que o veredicto final que a edição me deixa seja francamente positivo.

Quanto ao que achei individualmente das várias histórias, aqui vai a lista completa, dividida nas partes em que se divide o livro, as quais, à exceção da primeira, correspondem aos livros de prosa que Sá-Carneiro fez publicar:
Este livro pertence à biblioteca dos meus pais.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Lido: O Bonde

Quando a tecnologia evolui, há inevitavelmente um elemento de nostalgia no que é deixado para trás. Ray Bradbury deu muitas vezes voz a essa nostalgia, pondo frequentemente em contraponto uma imagem idílica dos usos, costumes e aparelhos da infância com o caráter frio e impessoal que via na modernidade ou pós modernidade, presente ou futura. Trata-se, naturalmente, de uma ideia conservadora por natureza: nem o mítico outrora teve alguma coisa de idílico, nem o presente (ou o futuro) é despido da sua própria poesia.

O Bonde (bibliografia) é um conto curto de uma fantasia quase mainstream que se insere nessa vertente da obra bradburiana. O enredo centra-se numa última viagem feita por um grupo de miúdos no elétrico (ou bonde, nesta edição brasileira) que costumava levá-los para a escola e vai fechar para ser substituído por autocarros. É um conto bonito, muito bem escrito, com as imagens poéticas certas nos sítios certos e uma dose muito ligeira de fantasmagoria a acentuar-lhe o sabor. Mas não é um grande conto. É bom: bonito, simpático e nostálgico, mas está longe de atingir o patamar do inesquecível.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Lido: Eles Eram Morenos, e de Olhos Dourados

Em finais dos anos 40 e inícios dos 50, Ray Bradbury visitou muitas vezes Marte. Parte dos contos que escreveu sobre o nosso vizinho cósmico acabaram mais tarde por ser incluídos num dos seus melhores livros, As Crónicas Marcianas, mas outros não o foram, apesar de partilharem com aqueles boa parte dos ambientes e preocupações. É o caso de Eles Eram Morenos, e de Olhos Dourados (bibliografia), conto que partilha com uma das histórias das Crónicas Marcianas não só o título original (um deles, pelo menos; este conto foi publicado em inglês sob três títulos diferentes) como parte da ideia. E outras partes da ideia também estão presentes nas Crónicas, em outros contos.

Trata-se da história de uma família de colonos terrestres em Marte, dos primeiros a chegar. O Marte a que chegam é o Marte bradburiano, com mais a ver com as fantasias originadas pelos canalli de Schiparelli e de Lowell do que com o planeta verdadeiro que a exploração científica vem desvendando desde o dealbar da idade espacial. Um planeta seco, mas coberto por grandes obras de engenharia que procuram aproveitar a pouca água que resta. Um planeta morto, mas no qual ainda se podem encontrar e explorar não só os canais, mas cidades inteiras, testemunhas de uma civilização desaparecida. Um planeta pronto para ser colonizado por homens, mulheres e crianças vindos da Terra; uma nova fronteira.

Mas chegados ao planeta, e tal como acontece nas Crónicas Marcianas, os colonos veem-se confrontados com uma guerra devastadora no planeta natal, uma guerra nuclear. Não revelo o que acontece de seguida, mas quem leu as Crónicas Marcianas facilmente adivinha pois, embora neste conto não aconteça exatamente o mesmo é bastante parecido. Digo apenas que o planeta acaba por reclamar o que lhe pertence.

É um conto muito bom, este. Uma antevisão do que viriam a ser as Crónicas Marcianas (o conto é de 1949, o livro de 1950), talvez uma fusão num conto só de várias das histórias que formam o livro, o qual inclui histórias publicadas pela primeira vez entre 1945 e 1950, talvez as duas coisas ao mesmo tempo. O livro é melhor, porque está mais completo, é mais complexo e inclui algumas absolutas obras-primas do conto de ficção científica, mas este conto não lhe fica muito atrás.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Pequenos Terremotos

Uma das qualidades que teve a Ficções foi abrir as portas a primeiras publicações, mesmo que estas por vezes não correspondam em qualidade ao resto dos contos do número da revista em que se integram. É, em parte, o caso de Pequenos Terremotos, um pequeno conto fantástico do brasileiro André Ricardo Aguiar, que conta, resumidamente, a história de uma casa que é constantemente abalada por pequenos terremotos (embora talvez fosse mais adequado chamar-lhes "casamotos"). É um conto com a sua ironia e a sua dose de surrealismo, bem escrito, ainda que me pareça que a ideia poderia ter sido explorada de uma forma mais intensa e que talvez ficasse melhor assim. É daquelas histórias que beneficiam com a extravagância. O final, apesar de surpreendente, tampouco me pareceu inteiramente satisfatório, porque deixa no ar uma certa sensação de ter caído do céu aos trambolhões. No entanto, apesar destas notas menos favoráveis, não se trata de um mau conto e esteve longe de ser o conto de que menos gostei nesta revista. É um conto curioso.

Contos anteriores desta publicação:

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Lido: O Sorriso

Que sentimentos terão pelo passado os sobreviventes (ou os descendentes dos sobreviventes) de um cataclismo provocado pela espécie humana? Em mundos pós-apocalípticos desse género, o que farão essas pessoas daquilo que restou de um passado que se autodestruiu e lhes condicionou assim as vidas? E se esses restos do passado forem arte — a melhor arte — isso mudaria alguma coisa?

O Sorriso (bibliografia) é um desencantado conto curto, ambientado em 2061 (ou talvez não), em que Ray Bradbury reflete precisamente sobre essas questões. E as respostas que nos dá não são confortáveis. Datado de 1952, é mais um conto do pós-guerra, muito marcado pela destruição generalizada que tinha tido lugar poucos anos antes e por um grande ceticismo quanto à capacidade humana de conservar a civilização e o que esta nos traz. A história conta-se em duas linhas: um quadro famoso chega a uma cidadezinha para uma espécie de auto-de-fé, que todos acolhem bem à exceção de um rapaz que se deixa impressionar pela sua beleza. E age.

É um conto forte, de uma ficção científica que se mantém assustadoramente atual. Para ser um dos grandes contos de Bradbury falta-lhe apenas, creio, um desenvolvimento mais profundo. Mas é um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Reconversão de Excedentes

Por esta altura, imagino, ao verem esta imagem aqui ao lado, e se acompanham o que vai sendo escrito aqui para a Lâmpada, já deverão estar à espera do que se segue. Com Reconversão de Excedentes (bibliografia), Telmo Marçal volta aos seus ambientes típicos, aos seus mundos miseráveis e sobrepovoados, aos seus futuros de absoluta distopia, contando desta feita a história da ascensão de um jovem recém graduado que tem a duvidosa sorte de obter emprego como operador de uma central automática de tratamento de resíduos.

Trata-se de um conto com múltiplos pontos de contacto com contos anteriores deste livro. De facto, a páginas tantas durante a leitura ocorreu-me a interrogação sobre se Marçal terá alguma vez pensado em construir com estas histórias uma série ambientada num universo ficcional coerente. Não foi a primeira vez que esta dúvida me veio à mente, mas foi aquela que resultou em mais reflexão — até porque o livro se aproxima do fim. É que, embora nem todas as histórias pareçam poder ambientar-se no mesmo universo ficcional (há algumas diferenças até no planeta que serve de cenário), cerca de metade mostra uma identidade tão grande de ambientes que facilmente poderiam ser vistas como partes de um todo mais vasto.

Voltando a este conto, ele relata a ascensão do jovem trabalhador, como ficou dito, concentrando-se nas relações entre este e a gigantesca maquinaria, por um lado, e, pelo outro, com o supervisor da central, um velho intratável e abusador cujo mau génio é exacerbado por se julgar na iminência de ser substituído pelo jovem aprendiz, com tudo o que isso, numa sociedade daquelas, implica. É mais um bom conto, que só peca verdadeiramente por se tornar um pouco previsível.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Leituras de 2016

Acabo 2016, mais uma vez, com uma enorme pilha de opiniões por escrever e publicar. Uma das resoluções de ano novo é ser este o último ano que acaba desta forma... mas a gente sabe como são as resoluções de ano novo, não sabe? Portanto, olhem, vamos ter ainda vários meses com material do ano passado a aparecer aqui na Lâmpada, lado a lado com outro material (a maioria dos contos que aqui forem aparecendo nos próximos meses) lido já este ano. E fora isso, a ver vamos o que acontece.

Enfim...

Li mais do que no ano passado. Não em número de livros, que esse ficou a um de atingir o total de 2015, mas sim em número de páginas. Este, de resto, é o maior desde que comecei a seguir as minhas leituras via Goodreads, há seis anos e, se não tivessem sido os três últimos meses do ano, bastante fracos em termos de leituras, com apenas quatro livros lidos ao todo entre outubro e dezembro, teria batido todos os recordes. Ainda abaixo do que era hábito antes de enveredar pela tradução, é certo, mas significativamente mais do que tem sido o hábito recente. E sem BD.

Dos 38 livros lidos, portanto, foram 33 os livros propriamente ditos, lidos por lazer, dos quais 13 são de autores lusófonos e um tem participação lusófona (embora esse seja em inglês). A parte lusófona está bastante mais bem representada que no ano passado, ainda que continue a ser a minoria.

A lista completa é a seguinte:

1- O Restaurante no Fim do Universo, de Douglas Adams (romance de ficção científica humorística);
2- Os da Minha Rua, de Ondjaki (contos interligados mainstream, talvez memórias de infância);
3- O Messias de Duna, de Frank Herbert (romance de ficção científica);
4- Contos Fantasia, de vários (contos de fantasia e história alternativa);
5- Academia de Vampiros, de Richelle Mead (romance de fantasia urbana juvenil);
6- Atlas das Nuvens, de David Mitchell (romance em mosaicos de ficção científica);
7- Viajantes do Tempo, de Clifford D. Simak (romance de ficção científica);
8- Caim, de José Saramago (romance fantástico);
9- Escola de Mulheres / Dom João, de Molière (duas comédias teatrais, uma delas com elementos fantásticos);
10- Makas da Banda, de Xakolo Monangumba (novela mainstream);
11- Prosa, de Mário de Sá-Carneiro (de contos curtos a romances, na sua grande maioria de horror);
12- A Saga de Alex-9, de Bruno Martins Soares (três romances interligados de fantasia científica);
13- The Heisenberg Mutation and Other Transfigurations, de Steve Redwood (contos de fantasia e ficção científica);
14- A Viagem do Elefante, de José Saramago (romance histórico);
15- 2014 Campbellian Anthology, org. de M. David Blake (contos e excertos de romances de ficção científica, horror e fantasia);
16- Salto no Tempo, de Yves Dermeze (romance de ficção científica);
17- O Verdadeiro Dr. Fausto, de Michael Swanwick (romance de ficção científica);
18- Cada Homem é uma Raça, de Mia Couto (contos mainstream e fantásticos);
19- O Legado de Mrs. Baker, de Maria do Vale Cartaxo (novela mainstream);
20- Abismos do Tempo, de Lúcio Manfredi (romance de ficção científica);
21- A Balada da Vala dos Velhos, de J. P. Simões (conto mainstream);
22- Entre o Corpo e a Rosa, de António da Silva Carriço (conto fantástico);
23- A Cidade da Ciência, de Maurice Vernon (romance de ficção científica);
24- Capitania de São Vicente, de José de Anchieta (relato de viagem);
25- A Guerra é Para os Velhos, de John Scalzi (romance de ficção científica);
26- D. Pedro I e... Último, de Gabriel Bozano (noveleta de ficção científica);
27- Ficções, de Jorge Luís Borges (contos mainstream e fantásticos);
28- E de Espaço, de Ray Bradbury (contos de ficção científica, fantasia e horror);
29- A Abóbada Energética, de Karl-Herbert Scheer (novela de ficção científica)
30- Almanaque Steampunk 2012, org. de Sofia Romualdo, Joana Neto Lima, André Nóbrega e Rogério Ribeiro (contos steampunk);
31- Imaginários 1, org. de Tibor Moritz, Saint-Clair Stockler e Eric Novello (contos de ficção científica e fantástico);
32- Reflexões do Diabo, de João Cerqueira (conto(?) fantástico humorístico);
33- Anthology of European SF, org. de Cristian Tămaş e Roberto Mendes (contos de ficção científica e fantástico)

A acrescentar aos livros li também uma revista. Ainda menos que no ano anterior, onde por sua vez já tinha lido menos que em 2014. Eu tenho um problema com as revistas: ou são em formato de livro, como acontece com a Ficções e com algumas revistas de FC internacionais, ou então, se são em formato grande, dão-me muito pouco jeito. De vez em quando pego numa Bang! e depressa a ponho de lado; há qualquer coisa naquele formato que não me atrai para a leitura. E por isso, as revistas em formato grande vão ganhando pó, sem serem lidas. Um dia terei de fazer um esforço e lê-las duma vez. Enquanto isso não acontece irão aparecendo listinhas destas:

34- Ficções nº 9 (contos mainstream com duas incursões pelo fantástico);

E também li por obrigação laboral. Desta fez foram quatro livros, sendo que um deles foi em português, para entrar no clima da tradução seguinte:

35- O Último Reino, de Bernard Cornwell (romance histórico);
36- The Pale Horseman, de Bernard Cornwell (romance histórico);
37- Hope and Red, de Jon Skovron (romance de fantasia);
38- Fool's Assassin, de Robin Hobb (romance de fantasia)

Quanto a géneros, continuou a predominar a ficção científica, como é hábito, mas, como também é hábito, houve bastante variedade. Este ano até li duas peças de teatro, coisa que quase nunca faço, e um relato de viagem, que é também coisa rara. Mas a maioria foi FC, com um total de 18 livros total ou parcialmente de ficção científica, mesmo que esta por vezes mostre bastantes impurezas.

A qualidade não foi tão boa como no ano passado, mas também não esteve mal. E daí, até talvez tenha sido ela por ela: se é verdade que houve menos livros a atingir posições cimeiras na minha apreciação, também é verdade que houve menos livros de cuja leitura eu tenha saído arrependido.

O melhor livro do ano foi, claramente, O Atlas das Nuvens, de David Mitchell, seguindo-se Ficções, de Jorge Luís Borges, e depois uma série de livros muito próximos, entre os quais talvez se destaque um pouco Cada Homem é uma Raça, de Mia Couto.

Este livro foi, naturalmente, o preferido entre os lusófonos, mas A Viagem do Elefante de José Saramago vem muito perto, com Prosa, de Mário de Sá-Carneiro logo atrás.

Do lado desagradável das coisas, A Cidade da Ciência de Maurice Vernon leva calmamente a palmatoada de pior livro do ano, seguido, bastante acima, por Salto no Tempo, de Yves Dermèze, e pela Academia de Vampiros de Richelle Mead, dois livros que não são maus, são só razoáveis. Curiosamente, ao passo que os lugares de topo são ocupados por livros de contos e um romance em mosaicos, estes cá de baixo são exclusivamente romances. Se eu quisesse disfarçar a minha preferência por ficção curta, estava bem tramado.

Entre os lusófonos, os lugares do fundo vão para Makas da Banda, de Xakolo Monangumba, D. Pedro I e... Último, de Gabriel Bozano, dois livros que também achei meramente razoáveis, e, um pouco acima, O Legado de Mrs. Baker, de Maria do Vale Cartaxo, três livros bastante curtos, por sinal.

E assim se passou mais um ano de leituras. Venha o próximo. Livros não faltam cá por casa. São às pilhas.