quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Ricardo Dias: Desporto Radical (#leiturtugas)

Escrevi aqui há relativamente pouco tempo a propósito de outro texto que o ciberpunk português é um subgénero tão rarefeito que qualquer um que cometa um conto ciberpunk se arrisca a ter escrito uma das nossas melhores histórias ciberpunk. E, na verdade, uma das piores também, que a rarefação é realmente muito grande. É mais ou menos como eu ser simultaneamente o melhor escritor do meu prédio e o pior, visto ser o único.

E sim, Ricardo Dias fê-lo com este Desporto Radical. Trata-se de um conto ciberpunk muito típico e um bom bocado derivativo, que retoma o tema do fantasma na máquina que surge no filme com o apropriado título de Ghost in the Machine, e integrando também outros elementos característicos do subgénero (houve alguns detalhes que me fizeram lembrar um pouco filmes como eXistenZ ou Johnny Mnemonic; as referências do autor parecem ser sobretudo cinematográficas). Dias exibe também algumas fragilidades na construção do ambiente, exagerando com alguma frequência na descrição de, ou mera menção a, detalhes técnicos e/ou futuristas que pouco ou nada contribuem para o avançar da narrativa. Na verdade, tendem a travá-la, e é esse o principal problema da introdução deste tipo de technobabble nas histórias. Há uma técnica para conseguir estes efeitos e, ajuizando pelo exemplo, Dias não a domina bem. Outro detalhe em que faria falta algum trabalho são os diálogos. Não são maus (não são daqueles diálogos em que não é possível ver uma pessoa a falar, por exemplo), mas são pouco sólidos, faltando-lhes aquela espécie de definição que permite identificar quem é e o que pensa uma personagem pela forma como fala.

Mas apesar disso, e apesar de alguns buracos no argumento (por exemplo o facto do protagonista, um profissional treinado, levar mais tempo a perceber o que se passa do que o leitor), o conto é interessante. Um detetive da polícia é contactado discretamente pelo médico legista com quem trabalha para lhe transmitir suspeitas relativas às mortes de algumas pessoas, as quais foram identificadas como suicídios. A investigação subsequente vai revelar o tal fantasma na máquina, e o desfecho é adequado, ainda que também seja bastante previsível (e de novo o profissional treinado fica com uma imagem bastante tosca; ou não deve muito à inteligência, ou o treino foi uma treta).

O trabalho do texto, não sendo nada de extraordinário, é eficaz, e o conto desenrola-se com bom ritmo, se se descontar a areia que o excesso de technobabble mete na engrenagem. O resultado é um conto que se lê bem, talvez um pouco melhor que razoável, mesmo não trazendo grande novidade.

Um dos melhores contos ciberpunk portugueses, portanto.

Mia Couto: O Filho da Morte

É realismo mágico bastante puro o que encontramos neste O Filho da Morte, pequeno conto que tem o subtítulo de No Campo de Refugiados e que traz consigo toda a magia poética das histórias fantásticas de Mia Couto.

A situação é terrível. Num campo de refugiados, há o cadáver de uma mulher grávida com todos os sinais de estar morta há vários dias. Não se sabe porque morreu, nem isso interessa; terá morrido de ser refugiada, simplesmente. Mas está grávida, e o presente aqui não é casual, pois a vida que tem dentro recusa-se a acompanhar a morta na morte. Acontece um nascimento, nada menos que milagroso. E depois, outra refugiada, uma mulher que era mais louca que mulher, toma conta da criança e assim se metamorfoseia em mãe.

Um conto bastante belo, apesar do tema. E também apesar do tema um conto otimista, que nos diz que a vida sobrevive a qualquer situação, por mais desesperada que pareça, e que o amor é capaz de transformar qualquer pessoa em alguém melhor, mais realizado. E, claro, tão bem escrito como é de esperar de Mia Couto. Muito bom mesmo.

Contos anteriores deste livro:

João Ventura: Insideout

Com a competência que habitualmente se lhe reconhece, mas sem a fina ironia de que as suas prosas tantas vezes dão provas, João Ventura apresenta uma história também perfeitamente integrada no espírito da coisa mas não tão imaginativa como eu estava à espera. Não na ideia base, que esta o é, mas na sua concretização. Insideout (bibliografia), a doença, é mais uma das múltiplas enfermidades que constam deste livro e envolvem metamorfoses, embora a metamorfose de Ventura seja das mais simples: uma mera inversão total do organismo, cuja parte exterior passa a ser interior e vice-versa.

Como disse, eu de Ventura esperava mais humor do que o que encontrei aqui. Não que ele esteja inteiramente ausente, mas está bastante mais diluído do que em outros textos, nomeadamente os dois do Palinhos que o precedem. Também há aqui um certo elemento de azar, visto que os contos seguem a ordenação alfabética e simplesmente calhou esta história ficar muito perto de uma das mais divertidas de todo o volume. Não fosse isso, e é possível que me tivesse divertido mais a associação de uma doença destas aos estudos topológicos dos matemáticos, as únicas pessoas afetadas.

Seja como for, é uma boa história. Não tanto como eu esperaria, talvez, mas boa.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Pedro Pereira: A Besta (#leiturtugas)

Se eu analisasse este conto sob a ótica da literatura adulta, ele sairia bastante maltratado da análise. A Besta não é um bom conto e, se visto como história para adultos, nem sequer é um conto razoável. É mau. Mas a ideia de Pedro Pereira parece ter sido criar uma história juvenil e, para isso, há alguns critérios que mudam um pouco. Encarando esta história dessa forma, ela sobe ao nível do razoável. Mas daí não passa.

Não é tanto uma questão de clichés, ainda que eles sejam abundantes. Quem tenha visto alguma das milhentas produções audiovisuais de fantasia de série B ou C dirigidas ao público adolescente encontrará aqui elementos que conhece bem: o grupo de jovens amigos que embarca numa aventura, uma espécie de Buffy tuga a salvar o que é possível salvar, diálogos tipicamente teen, muito pouca profundidade, por aí fora.

O problema tem mais a ver com o português, em geral pouco entusiasmante e com alguns erros de palmatória que só em parte poderiam ter sido resolvidos com uma revisão (quando li a frase "desculpem lá a massada" primeiro ri-me, depois perguntei a mim mesmo se seria de carne ou de peixe e depois ri-me outra vez). E também com a estrutura, pois as três mil e tal palavras do conto se leem mais como o primeiro capítulo de uma história mais longa, um romance, ou até mesmo uma série, do que como um conto propriamente dito.

Por outro lado, Pedro Pereira até tem jeito para este tipo de história. Apesar de tudo o que de negativo ficou dito acima, a leitura não deixa de ser razoavelmente agradável, em especial porque o texto mostra um ritmo narrativo interessante e muito adequado à ficção juvenil. É isto o que torna o conto razoável.

É que bem desenvolvida, esta história até podia vir a ser o embrião de qualquer coisa válida. Uma fantasia juvenil ou, como agora está na moda no mercado, uma YA com interesse. Mas só se bem desenvolvida. Como está, não chega.

Isaac Asimov: Galatea

Sim, sim, é mais um conto de Azazel, o diabrete inventado por Isaac Asimov, mas este tem um pouco mais de interesse do que a maioria. Não muito, apenas um pouco, e parte dele tem mais a ver com a inspiração mitológica para a história do que propriamente com algo que Asimov tenha inventado.

Galatea (bibliografia), como de resto o título já indica, é a versão asimoviana do mito grego de Pigmaleão. Para quem não conhece a lenda, Pigmaleão era um escultor cipriota que esculpiu a sua visão da mulher ideal e depois se apaixonou pela estátua que fizera, o que levou Afrodite a ter pena dele e a dar vida à estátua, chamando-lhe Galateia. Pelo menos numa versão da história... há várias. Mas é claramente essa a inspirar Asimov, pois é precisamente esse o enredo deste conto.

E Asimov segue-o fielmente, embora com algumas adaptações. Para começar, não é Afrodite que dá vida à estátua, claro, mas sim o seu demoniozinho Azazel, e não por se ter apiedado de quem a esculpiu mas porque essa intervenção lhe foi solicitada pelo homem que tem a capacidade de o invocar. O escultor, além disso, é uma escultora. E as coisas, claro, correm mal, como seria inevitável. Ora, também aqui esta história é mais bem sucedida do que a maior parte das histórias de Azazel: é que nas outras Asimov tenta (e muito) ter piada; aqui consegue. Não muita, mas alguma.

Não contarei mais sobre a história, pois ela é daquelas que dependem do efeito surpresa para funcionar, e aqui isso é particularmente importante por o conto seguir tão de perto um enredo alheio, clássico e razoavelmente bem conhecido. Direi apenas que esta história se ergue acima da maioria das demais histórias de Azazel. O suficiente para ser boa. Ou, vá, boazinha.

Contos anteriores deste livro:

Pedro Pereira: A Barca (#leiturtugas)

Um título como A Barca, para leitores portugueses, ou pelo menos para aqueles leitores portugueses que tomaram contacto com Gil Vicente na escola, remete imediatamente para os seus Autos das Barcas e é precisamente isso o que Pedro Pereira aqui apresenta: uma versão modernizada, muito encurtada e bastante simplificada do Auto da Barca do Inferno, escrita em jeito de homenagem.

Esta ideia de homenagear Gil Vicente é uma ideia simpática, mas não gostei muito do resultado. O espírito satírico de Vicente é difícil de transpor e Pereira só mostra dele um fantasma, apesar do seu pequeno conto até seguir fielmente o enredo do auto vicentino, completo com o ataque aos poderosos e o elogio dos simples. A escrita em si é eficaz, mas não passa disso, faltando-lhe a riqueza literária dos versos do auto, o que seria sempre até certo ponto inevitável numa adaptação para prosa, mas só até certo ponto.

Por outro lado não sei bem como poderia o autor ter conseguido melhor resultado com esta ideia. Um texto mais longo, menos simples, com espaço e elaboração suficientes para acrescentar qualquer coisa ao texto vicentino, talvez fosse uma opção, mas também é verdade que se correria assim o risco de perder aquilo que os Autos das Barcas têm de direto, mesmo quando algo oblíquo. É possível que assim eu não tivesse sentido que faltava aqui alguma coisa, mas também é possível que tivesse continuado a sentir o mesmo, embora a coisa em falta fosse outra.

A verdade, porém, é que senti. Este é um continho simpático, razoável, mas apenas isso.

Manuel Bernardes: Lenda dos Bailarins

É muito curta, esta prosa de Manuel Bernardes que, como de resto é relativamente frequente acontecer nos textos mais antigos que são selecionados para antologias deste género, não é propriamente um conto mas sim um excerto de uma obra maior.

Neste caso, a Lenda dos Bailarins (bibliografia) foi retirada de uma obra intitulada Nova Floresta, um conjunto de textos de vária índole mas radicados no catolicismo, ou não fosse Manuel Bernardes padre.

E o título dado (apocrifamente?) ao texto não desmente o seu conteúdo. O conto, de facto, narra uma lenda, a dos bailarins, um grupo de desgraçados que, por cometerem a heresia de dançarem e cantarem no cemitério, são condenados por deus a dançar um ano inteiro sem parar, findo o qual a maioria acaba por morrer. Misericórdia divina, mas não para quem comete o terrível pecado de se divertir, como se vê.

Não sei se Bernardes inventou a lenda ou se limitou a reproduzir uma história ouvida algures. Mas sei que a história é boa, fazendo um uso eficaz do fantástico para dar força a uma mensagem religiosa. E há nela elementos de gore suficientes para fazer com que Bernardes, por via desde pequeno conto (são só duas páginas), tenha acabado por se tornar num percursor do horror português.

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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Jorge Palinhos: Hippopotamus Perperam Animadvertu

Embora continue a integrar-se perfeitamente no espírito da coisa e a ser bom, este segundo conto/doença do Jorge Palinhos fica algo aquém do primeiro. Parte do motivo para isso é este Hippopotamus Perperam Animadvertu (bibliografia) ser bastante menos imaginativo que a Hipersensibilidade Lexical. Outra parte é ser também consideravelmente menos divertido.

Estamos perante um caso único. Um paciente, português, que insiste estar constantemente acompanhado por um hipopótamo que mais ninguém vê e, ocasionalmente, também por outros animais, igualmente invisíveis. Palinhos consegue contar a história da vida dele a partir do momento em que se vê afligido pela doença, através do simples truque de descrever a evolução do caso clínico. E é interessante, e está bem feito, mas não é nada de particularmente insólito. Parece um caso de loucura razoavelmente plausível, não muito diferente de casos reais de pessoas que veem ou ouvem coisas que não têm existência concreta. É esse, para mim, o seu principal ponto fraco, pois o facto de ser consideravelmente menos divertido que o outro conto não implica que não seja também divertido (o outro é-o muito; a diferença é basicamente essa).

Fora isso, esta história funciona a contento e está bem escrita. É uma boa história.

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Leiturtugas #82

Uns dias mais tarde do que é hábito, devido às coisas da vida, mas apenas com o material da semana, eis mais uma nota de divulgação das Leiturtugas.

E esta semana tivemos apenas uma opinião da Carla Ribeiro a contribuir para as leiturtugas oficiais, por assim dizer. É o livro da imagem aqui ao lado, uma coletânea de contos de Tiago Moita que parecem dispersar-se por aquele espaço que se radica na fantasia e num fantástico bastante alegórico mas estende ramos para outros lados, incluindo a ficção científica. Os Contos Impossíveis foram publicados pela Chiado em 2019. E a Carla sobe assim a 4c9s.

Quanto a material vindo de fora do grupo, também só temos uma entrada, e já com alguns meses: uma breve opinião da Nádia sobre Doze Doses de Ilusão, da Carina Portugal. A vida não deixou escavar mais.

Entretanto, tomei outra decisão relativa à integração dos oficiosos no processo Leiturtugas. Tinha dito aqui que "cada leiturtuga de não participantes vai valer um quarto (ou um quociente de 0,25, ou 25%) das dos participantes", mas vou alterar isto. É que a ideia principal deste projeto foi promover a leitura e o comentário especificamente da ficção científica portuguesa, e estar a tratar com o mesmo quociente o que é (ou tem) FC e o que não o é (ou tem) não faz nada por isso. Portanto vai passar a ser assim: uma leiturtuga sem FC vai valer um quinto (quociente de 0,2, 20%) da dos participantes, uma leiturtuga com FC valerá um terço (quociente de 0,33, 33%) da dos participantes. Portanto já sabem: toca a ler FC!

E por esta semana é só isto. Vemo-nos para o ano.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Leiturtugas #81

Esta semana, quem tratou de nos trazer Leiturtugas "oficiais", por assim dizer, foi a Carla Ribeiro, publicando uma opinião sobre A Assembleia das Mulheres, adaptação de Zé Nuno Fraga para banda desenhada da peça homónima de Aristófanes. Contrariamente ao que tem vindo a ser hábito aqui pelas leiturtugas nos últimos tempos, não se trata de uma edição deste ano, mas sim do ano passado, pel'A Seita. BD, já se sabe, é sem FC, e a Carla passa a 3c9s.

Quanto às "oficiosas", isto é, vindas de fora do grupo, temos uma opinião de António Bizarro, já com alguns meses, sobre A Arca, conto de Joel G. Gomes.

Também temos uma opinião da Carla (outra Carla), também antiga, sobre os Contos Exemplares, de Sophia de Mello Breyner Andresen, alguns dos quais poderão conter algum fantástico.

E também já tem alguns meses a opinião do Tomé sobre A Breve História da Menina Eterna, uma novela ou romance curto de Rute Simões Ribeiro que parece integrar-se no realismo mágico.

Por fim, também já há alguns meses, a Inês publicou uma opinião sobre A Relíquia, romance em que Eça de Queirós, conhecido como grande escritor realista, pisca o olho ao fantástico.

E por esta semana é só. Para a semana haverá mais leiturtugas. Oficiosas de certeza; oficiais veremos. Até lá.

Jorge Palinhos: Hipersensibilidade Lexical

Não sei ainda se este conto de Jorge Palinhos é o melhor da parte lusófona deste livro, uma vez que ainda não os li a todos. Mas posso dizer com toda a certeza que é o melhor dos que já li, o que significa todos os que ficaram para trás e mais alguns de que ainda irei falar.

É que esta Hipersensibilidade Lexical (bibliografia) não só se integra perfeitamente no espírito da coisa como está impecavelmente escrita e tem um piadão.

A doença é um achado, já agora. O Palinhos arranjou uma maleita que consiste em ataques de cegueira, surdez e paralisações de outros órgãos dos sentidos sempre que os pacientes são expostos a certas palavras específicas. Não sei se foi essa a inspiração, mas fez-me lembrar aquele sketch genial dos Gato Fedorento sobre o "indivíduo que é javardola menos quando usa termos franceses".

Mas o que torna este conto realmente especial são os exemplos e os casos clínicos, do empregado de mesa que descobriu ser suscetível à palavra "pudim" à cantora, presume-se que lírica, que ensurdeceu vítima da palavra "bravo!" É a miríade de pormenores deste género, e a forma seriíssima como eles são apresentados, que tornam este conto um dos mais divertidos de todo o livro. Muito, muito bom. Aliás, diria mesmo, e correndo o risco de provocar um ataque nalguma cantora, que é caso para rematar com um:

Bravo!

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sábado, 19 de dezembro de 2020

Dino Buzzati: O Bicho-Papão

Engana-se quem ler o título de O Bicho-Papão (bibliografia) e supuser tratar-se de uma história infantil. Na verdade este conto de Dino Buzzati está muito longe de o ser; é, isso sim, um conto sobre o conflito entre a fantasia e a realidade e também sobre política. Não tanto sobre a política propriamente dita, isto é, o combate de ideias sobre a organização social (embora isso também lá esteja), mas sobre o processo da política.

A história é sobre um engenheiro, daqueles que ocupam cargos de topo em empresas e organismos públicos, o qual um belo dia se enfureceu com a ama do filho por esta tentar acalmá-lo ameaçando-o com o aparecimento do bicho-papão. Não é a ameaça que o enfurece, note-se, mas o recurso à tolice do bicho-papão, que como toda a gente sabe não existe, é só superstição.

E claro que o bicho-papão começa a aparecer-lhe a ele, o engenheiro cético. E isso, depois de descobrir que a existência do bicho-papão era afinal de conhecimento comum na cidade, o leva a manobrar politicamente no sentido de arranjar forma de o destruir.

E consegue, o que serve para Buzzati fazer no fim uma espécie de lição de moral, quase à maneira das fábulas. Como outros fantasistas, este autor italiano parece encontrar uma oposição irreconciliável entre a fantasia, a imaginação, e o mundo moderno da técnica e da ciência (e para ele a política parece ser uma extensão deste mundo, e basta olharmos em volta para vermos como esta noção é ridícula), e este conto é claramente reflexo dessa ideia. É um bom conto, e só não é muito bom porque a liçãozinha de moral era bastante escusada (as opiniões subjacentes ficariam claras mesmo sem ela), mas a ideia é absolutamente errada. Não há incompatibilidade nenhuma, desde que cada coisa permaneça no campo que lhe compete.

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sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Michaela Davide: Felix Influenza

A literatura portuguesa está pejada de textos em que se procura catacterizar, de forma mais ou menos irónica, a "natureza do povo português" e este conto de Michaela Davide é mais um.

E o seu problema é (além de algumas fragilidades de português, talvez falhas de revisão, como a repetição de "a partir do momento" em duas linhas seguidas ou algumas vírgulas fora de sítio) precisamente esse: ser mais um. E ser apenas mais um. Davide está a um universo inteiro de distância de ser Eça, e Eça fê-lo primeiro e fê-lo muitíssimo melhor.

Não tenho paciência para histórias destas, confesso. Não vislumbro nelas a graça que quem as faz obviamente julga existir. Só consigo ver a banalidade dos desabafos de esplanada. "Isto só neste país", "isto só este povinho", constituem fraco, fraquíssimo, motor para histórias interessantes, até porque já houve quem as fizesse, e muito em especial porque reforçam e se apoiam em alguns dos estereótipos mais daninhos e mais falsos sobre uma fantasmagórica "maneira de ser" tuga. Que Eça o tenha feito, passa, porque Eça era um escritor do caraças. Mas os escritores do caraças não nascem por aí como trevos, e uma maioria, tão esmagadora que se aproxima da totalidade, dos que tentam imitá-lo não têm nem perto da qualidade que ele tinha.

Objetivamente, este conto não é péssimo. Nem sequer é mau. Tem uma ideia que até podia ter pernas para andar se a autora não se tivesse metido a Eça (não era nem um pouco necessário): uma espécie de gripe da felicidade, origem do título de Felix Influenza (bibliografia), que deixa os infetados irrazoavelmente sorridentes. Mas não está particularmente bem estruturado, tem as fragilidades mencionadas acima e está tão cheio de chavões que também não é bom. É, objetivamente, mediano.

E eu, subjetivamente, fiquei perto de o detestar.

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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Guilherme Barros da Fonseca: Espondilose Agnose da Membrana Geográfica

E aqui estamos perante um texto que seria bastante melhor e, talvez paradoxalmente, teria bastante mais piada, se o autor não se esforçasse tanto por ter piada. Porque a ideia, uma doença que provoca espirros, os quais provocam o teletransporte do espirrador, é ótima, capaz de proporcionar situações verdadeiramente hilariantes, e o "engraçadinhismo" de que o autor dá provas não só é desnecessário como chega até a tornar-se prejudicial.

De resto, ele é visível tanto no título como na forma como o autor assina. Não é Guilherme Barros da Fonseca, mas sim Dr. Guilherme "Santinho" Barros da Fonseca. O "Dr." faz parte; praticamente todos os autores presentes na antologia vestem a pele de médicos, mais ou menos charlatânicos. Mas a piadola escusada do "Santinho" dá uma ideia do que se encontra no texto. E o título não fica atrás: Espondilose Agnose da Membrana Geográfica (bibliografia) não significa quase nada, é puro nonsense.

Talvez seja só problema de compatibilidade de sentidos de humor, embora eu também seja dado à parvalheira quando estou para aí virado, como bem sabem todos os que me conhecem razoavelmente bem, mas o facto é que me parece que sem este tipo de coisa, e sem algumas bicadas a factos e personagens da contemporaneidade portuguesa da época, que rapidamente perderam relevância e, por conseguinte, piada, este conto poderia ter saído muito bom. Alguns dos exemplos de teletransporte para situações insólitas que Fonseca apresenta têm tanta graça em si mesmos que ela só sairia reforçada se fossem apresentados de uma forma mais séria e talvez sem a companhia de outros exemplos menos bem conseguidos.

Dito isto, o conto é divertido. É certo que é um pouco desequilibrado, que não será tão bom como poderia ter sido, o que é sempre algo frustrante, mas está longe de ser mau.

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Julio Cortazar: Carta a uma Senhorita em Paris

Uma das coisas que separam irremediavelmente quem gosta de literatura fantástica em sentido lato, isto é, aquilo a que eu gosto de chamar literaturas do imaginário (FC, fantasia, fantástico em sentido estrito, horror, maravilhoso e por aí fora), dos demais é que estes, quando confrontados com alguma alteração àquilo que entendem como o mundo "tal como ele é", tendem a empinar os narizinhos e pensar "disparate!", tantas vezes sem sequer tentarem perceber que objetivos pretendem os autores atingir com esses "disparates", ao passo que os primeiros se divertem, se sentem estimulados por qualquer coisa que os surpreenda.

(Um parêntesis para reconhecer que alguns fãs de FC mostram a mesma intolerância dos leitores de mainstream "realista" para com os "disparates", considerando que nada que não obedeça às possibilidades abertas pela ciência vale o seu tempo. Mas são uma minoria.)

Pois bem, este conto de Julio Cortazar está repleto de "disparates". E é uma delícia.

Trata-se, de facto, de uma Carta a uma Senhorita em Paris (bibliografia). Mais precisamente, trata-se de uma carta enviada a uma senhorita que anda de viagem por Paris pelo homem que se alojou provisoriamente e "por mútua conveniência" no seu apartamento de Buenos Aires. Nela, o inquilino explica à senhoria por que motivo a casa ficou arruinada. É que ele tem um problema, que no entanto estava controlado até ir morar para casa dela: vomita coelhinhos. Um de vez em quando, normalmente. Só que a mudança de ambiente parece tê-lo descontrolado e ele passou a vomitar muitos coelhinhos. E, como se sabe, os coelhos são roedores.

Tudo isto é descrito ao jeito sinuoso típico de uma carta, ainda que algo mais elaborada que uma carta comum. Uma carta repleta de pormenores deliciosos, muito divertidos, através dos quais a dimensão do problema vai sendo escalada até o leitor se aperceber de que está perante uma catástrofe. Muito bom. Mesmo.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Eduardo Madeira: Um Rio Chamado Angústia

Já o disse várias vezes após a leitura de textos criados por humoristas habituados a encenar guiões em televisão, em rádio ou em espetáculos de comédia, mas vou mais uma vez repetir: há uma diferença, que pode ser muito significativa, entre ler um texto enquanto obra literária, sem mais, e vê-lo representado por um ator ou humorista "cénico", digamos assim.

É claramente o caso deste conto de Eduardo Madeira. Constituindo um longo ensaio pretensioso sobre um rio ficcional chamado Angústia, cheio de gags sem grande graça e frequentemente absurdo, eu até conseguiria ver Um Rio Chamado Angústia a ser apresentado por Eduardo Jaime, o presunçoso e incompetente intelectualoide que Madeira encarnou no programa Paradoxo da Tangência. Até talvez tivesse graça, devido ao contraste entre o disparatado do texto e a apresentação deadpan que é imagem de marca de Eduardo Jaime. Só que um texto literário é outra coisa. Um texto literário tem de se sustentar por si próprio.

E não, este não se sustenta. Mesmo não sendo muito longo, a leitura arrasta-se penosa pelas suas poucas páginas, raramente dando para sequer se começar a esboçar um sorriso. Nem tentar imaginar a leitura de Eduardo Jaime ajuda, porque um Jaime imaginado é algo diferente de um Jaime visto e ouvido. Fica aquém. E de resto, eu nem tenho bem a certeza de isto ter graça se apresentado pelo Jaime; limito-me a admitir essa possibilidade. Lido não tem, lamento. E como literariamente também está longe de ser uma obra-prima, fica como um dos piores textos desta coleção de "contos digitais", como o DN lhes chamou.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Flávio Moutinho: Enteropatia Sílico-Láctea do Recém-Nascido

Outro conto que nos chega do Brasil, esta Enteropatia Sílico-Láctea do Recém-Nascido (bibliografia) cai bastante mais para o lado dos pseudofactuais do que dos contos que contam histórias, pelo que já deverão estar a prever que não me agradou muito. Flávio Moutinho escreve de forma credível, ou seja, a sua prosa é seca e objetiva, perfeitamente credível como texto científico. O que também implica que é basicamente uma prosa séria, sem ironias de monta no correr da prosa, ainda que a situação em si, a doença descrita, seja bastante irónica.

Trata-se de uma deficiência alimentar causada pelos implantes mamários de silicone. E Moutinho descreve-a de uma forma que quase poderia levar o leitor a acreditar tratar-se de uma doença real. Ponto para ele, pois foi claramente isso o que quis fazer, e quando se faz o que se pretende ganha-se sempre uns pontinhos. Mas eu, que não costumo gostar muito de pseudofactuais puros, saí algo insatisfeito da leitura. É um bom conto, mas não me agradou muito.

Textos anteriores deste livro:

David Soares: A Luz Miserável

Este conto faz-se de três personagens. Um moribundo que já só espera a morte; um assassino em série, claramente psicopata, um homem que tenta apenas viver a sua pequena vida o mais normalmente possível. Três personagens que acabamos por descobrir terem um passado comum, na guerra colonial. Tinham sido amigos, camaradas de armas. Juntos, tinham cometido um crime. Uma chacina. Depois, passaram décadas cada um por seu lado, a viver vidas em grande medida separadas. Mas agora que um deles vai morrer voltam a ter de se juntar.

Porque um feiticeiro africano procura vingança.

É este o enredo básico desta noveleta de David Soares, A Luz Miserável (bibliografia), uma noveleta de um horror que é mais psicológico do que propriamente sobrenatural, ainda que este aspeto também tenha a sua importância. Não só porque a vingança do feiticeiro consiste em capturar os espíritos dos criminosos na altura em que morrerem, a fim de poder atormentá-los na eternidade, mas também porque as mortes causadas pelo assassino são justificadas com uma tentativa de se opor a essa vingança. Magicamente, claro.

E é muito boa, a noveleta. Bem escrita, sem aqueles exageros de pretensão que menorizam os textos mais recentes do autor, capaz de abordar um tema tão sensível como a guerra colonial (e consequentemente o colonialismo e o racismo) de uma forma violenta e crua mas sem ceder aos nacionalismos e saudosismos a que alguns dos nossos autores cedem, até porque nenhuma daquelas personagens é propriamente boa gente, nem mesmo o tipo que só quer mesmo que o deixem em paz, esta história é das melhores coisas que li dele. De caras.

Conto anterior deste livro:

domingo, 13 de dezembro de 2020

Jorge Luis Borges: Tlön, Uqbar, Orbis Tertius

Ah, eis um curtinho. É que Tlön, Uqbar, Orbis Tertius (bibliografia) é um dos contos do livro Ficções de Jorge Luis Borges, e falei dele aqui na Lâmpada há quatro anos e meio, quando li esse livro. E não tenho nada a acrescentar agora ao que disse então: penso agora o mesmo que pensei em 2016. Continua a ser um conto muitíssimo bom.

Textos anteriores deste livro:

Guilherme Solari: Egofobia

E do Brasil chega outro autor que também penetrou perfeitamente no espírito da coisa, trazendo-nos uma doença notável, invulgar, por aí fora. A Egofobia (bibliografia) é, como o nome indica, uma repulsa patológica por si mesmo, e Guilherme Solari não só descreve a doença com graça e imaginação como nos oferece uma história-mesmo-história e cria para si mesmo uma personagem.

Sim, que o Dr. Solari é daqueles charlatães convictos que, em pleno século XX, ainda receitam sangrias e outros "tratamentos" medievais como cura para as doenças que "tratam". O autor, claro, troça deste género de vendedor da banha da cobra, que ainda existe em grande número um pouco por todo o lado, ainda que os tratamentos que prescrevem sejam agora mais subtilmente ineficazes ou prejudiciais.

Quanto à doença, é como se disse uma repulsa extrema por si mesmo, que leva os afetados a fazer todos os possíveis por evitar qualquer toque no seu corpo, qualquer vislumbre de si mesmos, qualquer cheiro, qualquer som, qualquer coisa que os relembre da sua própria existência, e a fugir tentando em pânico escapar de si, acabando por minguar até desaparecer. Tudo isto é descrito de uma forma geral bem e interessantemente, com exemplos bem achados de pessoas afetadas, e com a história do bandeirante Augusto Tabajara Alcântara Machado a dar mais corpo ao texto. Aprovado.

Textos anteriores deste livro:

Leiturtugas #80

Mais uma semana, e mais Leiturtugas a registar.

Desta feita é a Tita que anda muito ativa. Começou por publicar a sua opinião (acompanhada de vídeo) sobre uma antologia comemorativa dos 30 anos da APAV e coeditada no mês passado por esta associação e pela Quetzal. Intitula-se À Roda de Uma Vontade, não parece haver disponível informação sobre de quem foi a responsabilidade pela seleção ou os convites e também não parece haver nas histórias nada de FC. 1c6s para ela.

E no dia seguinte a Tita regressou, de novo com uma opinião acompanhada de vídeo, desta vez sobre um romance, o primeiro de uma série. Trata-se de O Coração de um Reino, livro de fantasia que a autora, Susana Almeida, autopublicou através da Amazon. Nada parece ter de FC, pelo que a Tita passa a 1c7s.

Entretanto, a Cristina pôs mais dois livros a sorteio, que se vão somar ao do António Bizarro e vão levar a alterações no calendário que estava previsto. Trata-se de Projecto: MOTHER, de Mónica Cunha, e de O Último Extraterrestre, de Jorge Borbinha. Ainda não está definido que livro será sorteado quando, mas estou a apontar para fazer um sorteio de dois em dois meses no princípio de 2021: um em janeiro, outro em março e outro em maio. Boa, boa!

E já que falamos de sorteios, em 2021 também vou integrar neles quem não participa formalmente no projeto, embora em desvantagem face a quem participa. Isto é, cada leiturtuga de não participantes vai valer um quarto (ou um quociente de 0,25, ou 25%) das dos participantes, mas eles vão ter também uma vantagem: não têm limite. Os participantes, se estão em dia, ficam a 100%, o que faz com que só contem efetivamente as 12 primeiras leiturtugas; os não participantes, se fizerem 25 leituras de material português contarão todas. No entanto, só contam as do ano. É importante ter isto em mente, porque eu vou ainda levar bastante tempo a divulgar coisas que foram sendo publicadas ao longo de 2020 — estas, para efeitos de sorteio, não contarão.

Por fim, fora do grupo temos uma opinião do António Bizarro sobre O Último Extraterrestre, conto de FC de Jorge Borbinha.

Leopoldo Lugones: Os Cavalos de Abdera

Mais uma vez, numa lista que só não é infinita porque a quantidade de obras já produzidas por mãos humanas é sempre finita, estamos perante um conto profundamente político, semioculto por trás de uma história fantástica. À superfície estamos na Grécia Antiga, na cidade trácia realmente existente de Abdera. E Leopoldo Lugones fala-nos de Os Cavalos de Abdera (bibliografia), um peculiar grupo de equinos que, de tão bem tratados pelos seus donos (os quais, no entanto, não deixam de os explorar como qualquer dono explora os seus animais), começam a ganhar características humanas. Incluindo o sentido de justiça e vontades próprias.

Os cavalos da antiga cidade helénica de Abdera são uma metáfora que me parece óbvia dos membros das classes inferiores da sociedade estratificada, de uma forma geral, mas sobretudo da sociedade industrial da viragem do século XIX para o XX. Uma metáfora dos explorados. Dos oprimidos. Daqueles que realizam o trabalho de que outros irão desfrutar. É essa injustiça básica que os vai levar à revolta quando dela tomam consciência, e boa parte do conto consiste na descrição da revolta e do paroxismo de violência a que ela dá origem. Mas a mensagem de Lugones é ambígua.

E é ambígua porque ao mesmo tempo que parece reconhecer que a revolta dos cavalos se deve àquilo que percebem como uma injustiça básica na distribuição do trabalho e do prazer, parece também dizer que a culpa inicial de toda a turbulência cabe aos donos, não por os tratarem mal, mas por os tratarem bem. Ou seja: parece dizer que o "pecado original", digamos assim, teria sido o tratamento humano dado aos animais. Isto é sublinhado pelo final, quando uma força superior, irresistível, divina, põe os cavalos em fuga e assim restaura a ordem. Por outras palavras: a ambiguidade é apenas relativa.

Lugones foi assim uma espécie de Helena Matos ou Zita Seabra do início do século XX. Começou socialista, pelo menos teoricamente, e depois seguiu sempre rumo à direita até acabar fascista. Não sei ao certo em que fase desse percurso estava ele quando escreveu este conto, em 1906, embora saiba que oito anos depois já era um nacionalista conservador, a um passinho do fascismo propriamente dito. Mas pelo conteúdo do conto quer-me parecer que já tinha deixado o socialismo muito para trás, se é que alguma vez foi realmente essa a sua ideologia.

Mas literariamente? Bem, literariamente o conto é bom.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 12 de dezembro de 2020

Luís Corte Real: Doença de Lovecraft

Antes de mais, um aviso para quem não saiba: não só conheço o Luís Corte Real como tenho com ele uma relação de trabalho que já dura desde 2006. Foi esse o ano em que traduzi o meu primeiro livro, publicado pela editora dele, e tem sido com a Saída de Emergência que tenho trabalhado quase sempre desde então. Como ele não escreve muito, nunca me tinha cruzado com um texto dele nestas minhas opiniões sobre o que vou lendo, pelo que nunca tinha passado pelo dilema de falar ou não falar. Aconteceu agora. E decidi falar; afinal de contas, nunca me coibi de dizer o que penso sobre os livros da Saída que vou lendo, incluindo quando não gosto, pelo que não faria grande sentido calar agora este conto do Luís. Pior: podia até parecer que o tinha achado muito mau, silenciando-o para não ferir suscetibilidades. E não foi isso o que aconteceu: o conto está longe de ser mau. Mas como a relação existe, e a bem da transparência, aqui fica a nota prévia.

O mais interessante neste Doença de Lovecraft (bibliografia), para quem é apreciador de literatura fantástica, é propiciar uma espécie de jogo da caça à referência. Corte Real é assumidamente fã de Lovecraft e, em geral, da literatura de FC e sobretudo de fantasia e horror da época inicial dos pulps, e consequentemente conhece-a bem. Talvez por isso, ao criar uma doença que batiza com o nome do escritor de Providence, transformando-o em personagem na condição de paciente mais conhecido, aproveitou para espalhar pelo texto numerosas referências ao próprio Lovecraft, à sua obra e a outros escritores seus contemporâneos.

Mas o conto não se limita a isso. É um texto plenamente integrado no espírito e no tema da antologia, descrevendo uma doença deformativa que na prática metamorfoseia os afligidos numa espécie de grandes peixes, e está escrito com competência mais que suficiente para não destoar em nada dos restantes (até inclui um trecho em português antigo). Não sendo dos textos que mais me agradaram, até por cair mais para o pseudofactual do que para o lado da história propriamente dita, que tendo a preferir, é um conto bastante bom que deverá agradar sobretudo a quem conhecer bem Lovecraft, a sua obra e a sua vida. E é também uma homenagem; uma muito bem conseguida homenagem de fã.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Ângelo Brea: A Máquina da Entropia Inversa

Quando aqui falei do primeiro conto deste livro disse que o tinha achado semelhante em estilo e (parcialmente) em abordagem aos contos de António Bettencourt Viana, provavelmente por as influências de Viana e da Ângelo Brea serem semelhantes: Asimov, FC americana da golden age, esse tipo de coisa. Claro que um conto é muito insuficiente para esse tipo de ideia ser sólido e era muito possível que os contos posteriores a desmentissem. Essa possibilidade continua a existir depois de ler este segundo conto, mas A Máquina da Entropia Inversa contribui mais para confirmar a ideia do que para a desmentir.

A máquina de entropia inversa de Brea é uma espécie de máquina do tempo e o conto é daquelas histórias de FC com bastante technobable nos quais um grupo de cientistas faz um avanço tecnológico extraordinário e decide experimentá-lo. Há milhares dessas histórias; é dos tropos mais perenes do género desde os seus primórdios. Aliás, se se concordar que Frankenstein é a primeira história de FC propriamente dita, o género inicia-se precisamente assim, pois a história de Shelley é uma dessas.

Não encontramos aqui, portanto, nada de particularmente novo ou inesperado. O protagonista é enviado ao antigo Egito, por escolha própria (e a explicação para ele, que não faz parte da equipa, acabar por nela entrar para experimentar a máquina de entropia inversa é algo forçada), e em mais uma iteração da velha ideia de que o lar é onde o coração estiver, decide lá ficar, o que obviamente cria problemas ao presente. Trata-se de um conto derivativo, como se vê, mas que apesar disso não deixa de apresentar alguns pormenores interessantes, especialmente ao nível da ideia em si.

Conto anterior deste livro:

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Poul Anderson: A Execução Fatal

Não sei se ainda há quem afirme a pés juntos que a ficção científica é alheia à política, pois já não tenho nem paciência nem tempo para certas discussões, mas sei que essa é ideia que foi sendo defendida por várias pessoas em conversas comigo ao longo dos anos. Crasso disparate, claro. Basta apontar para as distopias para refutar tal hipótese e mesmo fora desse subgénero da FC existe uma vasta variedade de ficção científica muito claramente política, já para não falar daquela que também o é embora de forma menos óbvia.

Já sabem o que aí vem, não sabem? É mesmo isso: esta novela de Poul Anderson pertence ao grupo das obras de ficção científica muito claramente políticas.

O título, A Execução Fatal (bibliografia), é algo ridículo, embora isso não seja culpa de Anderson, o qual intitulou esta sua obra como The Fatal Fulfillment. Compreendendo a dificuldade que a palavra fulfillment coloca ao tradutor, pois não existe em português nenhuma palavra que abranja todo o espectro de significados da palavra inglesa, cuja ambiguidade é aqui muito propositada, ainda assim devo dizer que eu nunca optaria por execução, quanto mais não fosse pela presença do fatal logo a seguir. Que execução não o é? Só a execução falhada.

E ainda por cima não existe aqui execução alguma. O protagonista da novela, no princípio, morre mesmo (ou pelo menos é o que parece) mas a morte parece ser voluntária, ainda que mais rápida do que ele estava à espera. Uma espécie qualquer de eutanásia, talvez, ou de suicídio assistido. Não fica claro... quer dizer, não fica claro até se chegar ao desfecho, onde tudo se reconfigura embora nem tudo se esclareça.

Até lá, acontecem várias mortes, mas todas provisórias. E após cada uma, o protagonista desperta numa realidade diferente. Não sendo a única ideia base desta história, a comparação entre as várias sociedades parece ter sido pelo menos um dos principais impulsos de Anderson para a escrever. Porque é isso o que acontece.

A perspetiva é fortemente de direita. As sociedades retratadas são caricaturas distópicas de várias ideias de esquerda e genericamente idealistas, que Anderson retrata como inerentemente estúpidas, incapazes de satisfazer o Indivíduo (assim mesmo, em maiúscula, nunca explícita mas muito implícita) ou prontas para serem destruídas por um grupo armado ou parasitadas por um oportunista sem escrúpulos. No fim, conclui o que era óbvio que iria concluir, a conclusão típica de todos os conservadores: que o mundo real é o melhor mundo possível.

E no entanto, esta é uma novela razoavelmente boa. Para lá das caricaturas um bom bocado patetas, ultrapassando-se anacronismos risíveis, como computadores capazes de criar ambientes virtuais sofisticados funcionarem com cartões perfurados, há aqui FC interessante, há um ritmo e um controlo da narrativa agradáveis e há um final que, por mais esperado que seja, não deixa de ser eficaz. Ideologicamente, esta ficção é muito palerma, uma completa americanice no pior sentido do termo. Mas é boa FC.

Contos anteriores desta publicação:

Léon Bloy: Os Prisioneiros de Longjumeau

Imaginem como seria chegarem um dia a uma terra qualquer, na companhia apenas da vossa cara metade, e acabarem por descobrir que são incapazes de voltar a partir. Talvez não precisem de imaginar; talvez alguém já o tenha imaginado por vocês. É um enredo que não é particularmente incomum nas histórias de terror e em algumas de outros géneros, e talvez até já o tenham visto nalgum filme ou série de TV. Stephen King, só para dar um exemplo, tem histórias dessas. E Léon Bloy também.

É isso, precisamente, o que são Os Prisioneiros de Longjumeau (bibliografia): um casal de viajantes que chega a uma terra razoavelmente insignificante e nunca mais de lá consegue sair. Bloy vai contando esta história na voz de um amigo do casal que fica a saber dela por ter recebido correspondência do marido, na qual este lhe conta a misteriosa ocorrência. Misteriosa porque nada havia de físico que os impedisse de partir; simplesmente nunca conseguiam chegar a horas para apanhar o comboio ou havia sempre uma avaria, um esquecimento, qualquer coisa que cortava cerce qualquer viagem planeada.

É bom, este conto. O tema é hoje suficientemente batido para recomendar uma abordagem diferente a quem queira explorá-lo nos dias que correm, mas Bloy fê-lo há mais de cem anos, muito antes da grande maioria das outras variações sobre ele terem visto a luz do dia. E a prosa tem tanta qualidade como seria de supor. Mas mesmo assim não creio que o conto passe do bom, pois não existe nele grande novidade narrativa. O narrador é o tradicional tipo que conhece uma história e resolve contá-la, absolutamente típico da sua época. Não é uma história extraordinária, esta; julgo até que fica algo distante disso. Mas é boa.

Textos anteriores deste livro:

Pedro M. Amaral: Circum-Ambulação

Outro conto no ponto certo, este Circum-Ambulação (bibliografia), e com o agradável aditivo de contar mesmo uma história. Ou umas quantas histórias, talvez melhor dizendo. Pedro M. Amaral apresenta um texto com verdadeira graça, inteiramente integrado no espírito da coisa, pois a doença que tem por base é, realmente, não só notável como invulgar. E provavelmente também excêntrica e desacreditada.

O nome é descritivo. Trata-se de uma enfermidade que consiste na incapacidade de recuar (ou sequer de se virar no mesmo sítio), a qual obriga os afligidos a descrever círculos para chegar a pontos situados atrás de si. Pensem num carro sem marcha-atrás; é assim. Para a caracterizar, Amaral conta várias histórias relacionadas com casos de pacientes ou de médicos-investigadores específicos, incluindo alguns gags que podiam resvalar para alguma patetice mas (talvez por eu ser pateta) me fizeram sorrir, como o nome do paciente onde primeiro se terá identificado a doença: o pastor Leite C. Alhado.

O resultado é um texto equilibrado, divertido, bem escrito e muito bem integrado no conjunto. Aprovado.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Lafcadio Hearn: Uma Promessa Quebrada

É um tudo-nada misógino, este conto de Lafcadio Hearn, autor de que nunca tinha lido nada e que não me deixa particularmente bem impressionado com este Uma Promessa Quebrada (bibliografia). E sim, o "tudo-nada" ali em cima é irónico.

Ambientado no Japão, é a história de uma mulher que antes de morrer recebe do marido a promessa de que não voltará a casar. Mas claro que promessas leva-as o vento, velho dito português que pelos vistos se aplica igualmente bem do outro lado do mundo, e o homem encontra nova esposa, em parte por vontade própria, em parte por pressões várias, que ele era samurai e havia que perpetuar a linhagem. O problema é que o fantasma da primeira mulher não está pelos ajustes e vai fazer tudo para destruir qualquer felicidade que ele possa encontrar com a segunda.

Mas ataca-o a ele, visto que quem incumpriu o prometido foi ele? Não, que ideia! Ataca-a a ela, a desgraçada da segunda mulher, que nada sabia de promessas e decisões tomadas antes de ela surgir em cena. É ela quem é assombrada, é ela quem é ameaçada, é ela que vai ter de tentar convencer o novo marido a libertá-la, de tentar convencê-lo de que anda o fantasma da anterior mulher a atormentá-la dizendo que ou sai de cena ou é decapitada. Ele nada vê, nada ouve, nada sabe. E no fim, o desfecho trágico, que não é surpresa porque era bastante óbvio desde pelo menos o meio do conto, é-o sobretudo para a desgraçada da inocente.

E ainda vem com liçãozinha moral a rematar, sobre "a natureza das mulheres". Este é um conto profundamente banal, mesmo em termos estruturais, mesmo em termos de escrita, cuja única faceta relevante, que eu consiga ver, é a ambientação japonesa. Não é mau, mas também não é bom.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

David Soares: Cerberite

E ao terceiro conto lusófono, eis que se encontra um que de facto corresponde àquilo que se vem esperando desta antologia desde a parte traduzida, ainda que continue a ser mais palavroso que a maioria. Com efeito, David Soares consegue, com a sua Cerberite (bibliografia), alcançar aquele fugidio equilíbrio entre a ironia e o texto clínico, e o resultado, em parte por isso mas não só, é bastante bom.

Claro que, sendo Soares quem é, também existe nesta história uma componente de horror. A doença descrita é uma peculiar parasitose, na qual o parasita se substitui à língua da vítima, o que torna impossível desalojá-lo. A língua-parasita é perfeitamente funcional... ou seria se não tendesse a emitir vocalizações próprias, frequentemente embaraçosas para os afligidos. Latidos, por exemplo.

Além disso, não sendo este conto propriamente uma história-mesmo-história, que quem tiver vindo a ler estas minhas opiniões sabe serem os que em geral mais me agradam, também não é propriamente um pseudofactual puro. É assim uma espécie de pseudofactual com histórias dentro, e também isso está bem feito. Talvez incaracteristicamente, aqui Soares diverte-se e diverte, e o resultado é o melhor conto desta abertura da parte lusófona da antologia e estou certo que quando chegar ao fim será um dos melhores do todo, ombreando com as boas ficções que constam da parte traduzida.

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Escrita de novembro


Pois bem, caríssimos. Lá chegou ao fim mais um mês. E se setembro tinha sido muito fraquinho e outubro quase inteiramente improdutivo, em novembro as coisas pareceram começar a melhorar um pouco. Continuamos, é certo, muito, muito longe da produtividade dos meses antes da queda (isto é, antes da velhota partir a perna), mas ao menos já se vai voltando a fazer qualquer coisa.

Que coisa? Bom, não foi coisa mas coisas. Escrevi a tal introdução para o romance, revi-a e assim concluí o trabalho nesse texto. Pelo menos para já. É provável que ainda volte a mexer-lhe, mas mais tarde, talvez muito mais tarde. Pelo menos por agora, está pronto. E até gosto do resultado. Ao todo ficou com um pouco menos que 87600 palavras, o que corresponde a umas 250 páginas. Já dava um livrinho de tamanho razoável. Mas dará? Isso veremos.

E também comecei a escrever um conto novo. Comecei e quase acabei, na verdade, o que contribuiu para o total de quase 3700 palavras escritas no mês. Umas 10 páginas, mais ou menos. É modesto? É modesto. Mas para um mês de saída da improdutividade completa e durante o qual foram feitas revisões, que tendem sempre a reduzir a produção (mesmo quando fazem crescer os textos em revisão, o que nem sempre acontece), não está mal.

E agora venha dezembro. Quem quiser saber como foi, só tem se sintonizar esta estação daqui por um mês. Até lá.

Charles Nodier: Lídia ou a Ressurreição

Para o leitor que eu sou, dificilmente poderia ter sido escolhido um conto pior do que esta noveleta, Lídia ou a Ressurreição (bibliografia), para encerrar uma compilação da ficção curta de Charles Nodier. É que junta em si duas características que me desagradam bastante: romantismo e beatice.

E ainda por cima fá-lo de uma forma particularmente desinteressante. Oh, Nodier escrevia muito bem; quanto a isso não há qualquer motivo para narizes torcidos. O problema é que aqui se reencontra o surradíssimo cliché romântico da mulher enlouquecida devido à morte do amado, pelo qual seria capaz dos maiores sacrifícios, e depois o não menos surrado cliché do fantasma do morto lhe aparecer em sonhos, de uma forma tão vívida que a convence da sua realidade.

Em todo o caso, e apesar de tudo, se esses clichés estivessem concretizados de uma forma interessante, poderiam ter resultado num texto de leitura agradável. Mas não. Na verdade não era isso o que Nodier queria aqui fazer. O seu interesse, o seu motivo para escrever este conto, é teológico, e por isso envereda por uma longa dissertação sobre a natureza do Além, que coloca na boca da louca, a qual explica ao narrador o que o fantasma (ou alma, ou lá o que é) do amado lhe tinha por sua vez explicado. Em sonhos, claro.

E o resultado, por mais bem escrito que esteja, e está, é sobretudo muito, muito aborrecido. Esta é uma daquelas histórias que só têm verdadeiro interesse para aqueles que se interessam pela questão que lhes está subjacente. Não é o meu caso: especulações teológicas sobre céu, inferno e purgatório e as relações destes lugares mitológicas com o mundo terreno interessam-me tanto quanto me interessam as peripécias de programas ao estilo Big Brother: zero. Redondinho.

Teria dispensado alegremente a leitura desta noveleta.

Contos anteriores deste livro:

Bruno Schlatter: Cancro de Meme

Estes casos clínicos fictícios são em número suficiente para se conseguirem detetar neles algumas tendências, tipos de abordagem, coisas do género. Uma das tendências mais claras, na parte traduzida, é conterem uma ironia subtil mas omnipresente, capaz de os manter interessantes e divertidos mesmo quando podem correr algum risco de se tornarem algo maçudos. Outro é uma maior ou menor economia na palavra, a qual tem o mesmo efeito. Nem todos precisam: alguns partem de ideias tão boas que até se sustentariam sem isso. Mas essas ideias são uma minoria, e os que não dispõem delas precisam dessa espécie de "muletas" para se sustentarem bem.

A parte lusófona parece ser — pelo menos até aqui, e sou o primeiro a reconhecer que dois contos são insuficientes para generalizar seja o que for — significativamente menos dotada de ironia e/ou bastante menos cirúrgica no seu uso. À exceção da introdução do Seixas, que exibe o mesmo tipo de verve dos estrangeiros, o conto de Tinoco e este de Bruno Schlatter ficam bastante aquém nesse aspeto.

Mas se Tinoco foi sisudo, o problema de Schlatter é outro. Ele tenta introduzir ironia no seu conto, como de resto o título de Cancro de Meme (bibliografia) indica imediatamente. Mas é muito menos cirúrgico no seu uso do que os autores traduzidos, e portanto muito menos eficaz. O título é um bom exemplo do conteúdo: o trocadilho com cancro de mama é óbvio, tal como igualmente óbvias são a maioria das tentativas de ironizar que constam do texto propriamente dito. Este é, além disso, algo palavroso, o que também lhe reduz a eficácia. E mesmo a ideia da ideia enquanto agente infecioso ou cancerígeno limita-se a ser um aprofundamento sem grande rasgo do próprio conceito de meme.

O resultado é um texto relativamente fraco; um dos mais fracos de todo o livro até aqui.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 6 de dezembro de 2020

Ambrose Bierce: O Estranho

Esta é uma história de faroeste, e este meu pequeno texto vai estar carregado de spoilers porque é impossível falar dela sem se revelar detalhes de enredo (ou até da mera situação) capazes de afetar a experiência de leitura. Dizer que O Estranho (bibliografia) é uma história de faroeste não é spoiler porque isso é óbvio desde o início, dizer que narra uma noite em que um estranho vem ter à fogueira a que um grupo de soldados se aquece num deserto do Arizona também não, e pelo mesmo motivo, mas ir mais longe já será.

Considerem-se avisados, portanto.

Esta é uma história de fantasmas. Ambrose Bierce, de resto, é conhecido entre os fãs da ficção especulativa precisamente pelas suas histórias de fantasmas, e mais genericamente de horror, apesar de ter sido um escritor bastante versátil com obra em várias vertentes literárias. E é também conhecido como um excelente escritor, colocado por vezes ao nível de Poe e de outros expoentes do fantástico americano. Conheço-o muito mal, pelo que estou muito longe de poder formar uma opinião sobre se essa comparação é merecida. Mas se todas as suas histórias forem como esta, até é.

A grande qualidade deste conto é a forma como ele vai sendo desvendado. O tal homem aparece junto à fogueira e põe-se a contar a história de um recontro de um grupo de quatro homens com um bando de índios. Há nele alguma estranheza, alguma obstinação, mas nada que chame demasiado a atenção dos soldados. De facto só o comandante parece perceber rapidamente de que se trata, e por isso vai intervindo sempre que algum dos seus homens parece pretender calar o forasteiro ou fazer-lhe alguma pergunta inconveniente. O leitor mais perspicaz acaba também por perceber antecipadamente quem é aquele homem, mas os mais distraídos acabarão por ter uma surpresa no fim.

Um conto excelente. Pela sua construção, sobretudo, pela mão que guia o leitor pela narrativa, pelo final surpresa que pode ou não ser realmente surpreendente, dependendo da atenção com que se lê. Tudo francamente bom.

Textos anteriores deste livro:

Leiturtugas #79

De volta à programação normal, com estes posts a sair aos domingos cheios com as Leiturtugas da semana anterior. E tivemos uma semana movimentada, sim senhor!

Começou pela Cristina Alves, que publicou a sua opinião (chocada) sobre um livro de algo a que talvez se possa chamar ficção científica social, o mais recente romance de um nome conhecido no mainstream: Manuel Jorge Marmelo. Com o título de Tropel, saiu há poucos meses pela Porto Editora e, uma vez que o livro tem FC, a Cristina passa a 5c10s.

No dia seguinte chegou mais uma das breves opiniões do Artur Coelho sobre BD, mais desenvolvidas noutro lado. Desta vez o alvo da opinião é um breve número de revista (?), em inglês, intitulado Holy, nº 1. BD é quase sempre um empreendimento coletivo e esta não é exceção, sendo os seus autores Rafael Marques e Katiurna. Foi publicado já este ano pela RK Comics. BD, já se sabe, conta como sem FC pelo que o Artur passa a 5c14s.

Nesse mesmo dia, a Tita também comentou uma obra de BD, com uma breve opinião em texto mais desenvolvida em vídeo. Trata-se de Balada para Sophie, de Filipe Melo e Juan Cavia, publicada este ano pela Tinta-da-China. Tal como sempre, BD conta como sem FC, pelo que a Tita passa a 1c4s. Para já.

E para já porque, dias depois, a Tita voltou à carga, de novo em texto e em vídeo, mas desta feita com uma opinião sobre uma obra que não é BD. Trata-se de Alice do Lado Errado do Espelho, uma coletânea de contos de Pedro Rodrigues publicada também este ano pela Cultura. São contos inspirados na célebre história de Carroll e em vários contos de fadas, que não parecem incluir nenhum sinal de FC, pelo que a Tita passa a sinalefar 1c5s.

A rematar a semana, a Cristina Alves publicou a sua opinião sobre mais um daqueles contos que a Imaginauta tem publicado em edições razoavelmente artesanais, na coleção Brabante. O conto intitula-se Similitude, é de Nuno Miranda Ribeiro e é um conto de FC, pelo que a Cristina soma 6c10s e é a primeira participante a fechar o ano no que toca às Leiturtugas.

Por fim, fora do grupo e já com alguns meses, aqui fica uma opinião de António Ganhão sobre Rua de Paris em Dia de Chuva, um romance de Isabel Rio Novo que parece ter elementos de fantástico.