quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Lido: O Sul

O Sul é um conto de Jorge Luís Borges que, pelo menos à primeira vista, nada tem de fantástico. Relata as desventuras de um tal Juan Dahlmann que às tantas se acha a debater-se pela vida, no hospital, depois de o seu entusiasmo por um exemplar recém-adquirido de As Mil e Uma Noites o ter levado a dar uma cabeçada, da qual resultou uma ferida, a qual entrou em septicémia. Embora já se fosse desenganando, acaba por recuperar e parte para sul, para convalescer. Mas aí é quase como se a Dona Morte não se deixasse levar pela habilidade dos médicos, e acaba envolvido, sem saber como nem porquê, num duelo.

Há neste conto, de enredo inteiramente realista (na verdade é até autobiográfico, pois Borges sofreu mesmo um problema de saúde grave causado por um ferimento na cabeça), uma atmosfera que de certa forma o aproxima do fantástico. De resto, é uma atmosfera muito semelhante à que se encontra em O Fim, ainda que neste conto o fantástico seja mais concreto do que em O Sul, onde só existe se interpretarmos o conto sob esse prisma. Mas em ambos os contos há a noção fatalista de que as coisas simplesmente acontecem, de que não vale a pena tentar remar contra a maré. Há em ambos personagens sem qualquer mão sobre o rumo que as suas vidas seguem.

Mas é bom, este conto? No prólogo desta parte do livro Borges diz que é (talvez, só talvez) o seu melhor conto. Eu não creio que o seja; os melhores contos, os exercícios realmente assombrosos de criação literária, estão, julgo, na primeira parte. Mas é um bom conto, sim.

Contos anteriores deste livro:

Lido: As Três Folhas da Serpente

As Três Folhas da Serpente, mais um conto construído pelos Grimm a partir de contos tradicionais, é uma história sobre o egoísmo e a presunção dos poderosos. Conta a história de um homem humilde que se perde de amores por uma princesa (instantaneamente, como sempre acontece nos contos de fadas) e faz a promessa que a princesa exige para se casar com alguém: a de que, se ela morresse, o marido fosse enterrado com ela. E morre mesmo, e ele encerra-se na cripta e, peripécia após peripécia, acaba por ressuscitá-la (magicamente, claro), bondades que ela paga traindo-o e matando-o, ou pelo menos julgando fazê-lo. Mas tudo acaba por ficar bem, claro, e o bondoso e fiel marido acaba vingado pela rápida e incisiva justiça régia. Afinal, há que confiar nas instituições e nos seus titulares; no fundo é essa a moral de muitas destas histórias.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 28 de agosto de 2016

Lido: Contos Fantasia

Contos Fantasia (bibliografia), mais uma das pequenas antologias publicadas há uns anos pela Rosto e distribuídas com o DN e o JN, é, para não variar, um tiro levemente ao lado. Prometendo contos de fantasia, o que entrega é um conto que realmente é de fantasia, embora nada tenha a ver com o tipo de fantasia mais em voga nos dias que correm, antes se aproximando de temas e abordagens que hoje costumam agrupar-se sob a designação de realismo mágico, e um conto de... história alternativa.

É quase uma constante nestas antologias raramente entregarem exatamente aquilo que os títulos prometem. Há algumas exceções, mas não são muitas. Isso tende a diminuí-las porque, não havendo — deliberadamente — uma unidade temática entre os contos, uma forma de a compilação ser mais que uma mera soma de partes seria havendo uma estruturação forte em torno de cada género ou tipo de história. Mas o anónimo compilador não parece ter pensado nisso, ou se pensou decidiu fazer o contrário: usar o género como orientação bastante vaga e incluir histórias muitas vezes periféricas a esse género.

A sorte é que essas histórias são com frequência boas ou muito boas. É o que acontece aqui: estamos perante uma compilação acima do razoável porque ambos os contos que a compõem são bons.

Eis o que achei deles:
Este livro foi comprado.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Lido: A Cachoeirinha

A Cachoeirinha é mais um conto tradicional recolhido por Afonso Coelho com grande potencial para servir de base a qualquer coisa de maior e mais desenvolvido. Conta, em página e meia, a história de um homem com muitos filhos mas muito pobre que parte para servir o rei e, após algum tempo de bom serviço, é recompensado com coisas mágicas, regressando para junto dos seus mas acabando roubado por um taberneiro sem escrúpulos. Claro que as coisas não ficam assim, claro que há mais peripécias, e claro que no fim tudo fica em bem, pois este não se limita a ser conto tradicional, também o é tradicionalista. Não há aqui nem um pouco de insubmissão, nem sombra de subversão, o que o aproxima do mais habitual nos contos dos Grimm e o afasta de outros contos portugueses incluídos neste volume. Mas apesar disso, e em parte por isso, há que reconhecê-lo, pois muita da fantasia mais popular partilha das mesmíssimas características, esta história poderia perfeitamente servir de base a outras.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 21 de agosto de 2016

Um mês de Fantástico Algarve

Cumpre-se hoje um mês desde que arrancou o Fantástico Algarve. Na altura, escrevi aqui na Lâmpada que a coisa partia com um conjunto de 10 autores identificados, sendo que desses 10 um era eu e outro o meu pai. Também escrevi que seria um projeto lento, provavelmente inativo durante largos períodos, e que se destinava em parte a suprir lacunas no meu conhecimento sobre a literatura fantástica produzida por pessoas com ligação direta ao Algarve. Julgava que antes do site entrar na fase lenta haveria material para menos de um mês de atividade contínua, só a colocar no site o material já conhecido e, eventualmente, algum que me surgisse entretanto sob o radar.

Mas enganei-me.

Um mês mais tarde, os 10 autores identificados subiram a 22 e o material já identificado à espera de vez para ser incluído dá para mais umas duas semanas, mais coisa menos coisa, à velocidade a que a compilação tem vindo a ser feita. Entre este e o que já lá se encontra, e apesar de algum já constar do Bibliowiki ou fazer parte do vasto manancial de material identificado para inclusão no wiki mas ainda não incluído por falta de tempo, muito era-me desconhecido até agora.

O Fantástico Algarve também serviu para eu me pôr a fazer uma coisa que tenho vindo a adiar por ser das atividades mais chatas no trabalho com o Bibliowiki: procurar completar a informação biográfica que existe (ou não) sobre os autores já incluídos. Isto porque continuo convencido de que entre os muitos autores com biografias em falta, total ou parcialmente, deverá haver uma parcela não desprezível de autores com ligação direta ao Algarve. Gostaria de dispor, por exemplo, de alguma informação biográfica sobre a Susana Custódio, autora de um conto intitulado Mistério na Praia da Rocha, ou sobre a Graça de Sousa, autora de Os Monstros da Ilha da Culatra. Se é certo que o ambiente algarvio não implica necessariamente que as autoras sejam de cá, a probabilidade existe. E como elas deve haver mais.

Curiosa é a distribuição dos 22 autores por concelho de nascimento ou radicação. Embora não disponha dessa informação para todos, ela existe para a vasta maioria, e a minha cidade de Portimão segue destacadíssima à frente, com 7 (Faro vem a seguir com... 4). Será viés da amostragem ou realidade? Haverá mesmo mais gente a produzir fantástico em Portimão do que no resto do Algarve, ou será que, por eu ser de cá, descubro mais facilmente os meus conterrâneos que os outros?

Não sei responder a essa questão. Ainda. Porque a ideia é que isto continue a crescer. E pela amostra obtida até agora deverá mesmo continuar, o que era precisamente o que se pretendia.

sábado, 20 de agosto de 2016

Lido: O Messias de Duna

O Messias de Duna (bibliografia) é o segundo romance da série Duna, de Frank Herbert, que começa com um dos grandes clássicos da ficção científica, centrado na chegada ao poder, num planeta aparentemente insignificante mas fulcral por ser o fornecedor único, monopolista, de uma substância que permite as viagens espaciais, de Paul Atreides, um jovem que começa por ser alheio ao planeta mas depressa se acultura e opera uma fusão bem sucedida entre a sua cultura de origem e aquela que vai encontrar no seu novo mundo.

Duna é um romance particularmente rico precisamente por isso, por consguir entretecer de uma forma bem sucedida intriga política com uma base económica sólida, ainda que algo fantasiosa, com uma cultura humana num planeta distante que consegue ser mais alienígena do que muitas culturas alienígenas que a FC nos legou, por mais de perto que se baseie nas culturas da grande faixa desértica que ocupa o planeta Terra desde a costa atlântica de África até às estepes da Ásia Central, e tudo isto com um sistema místico-religioso muito próprio, baseado nas propriedades precognitivas de uma droga que a ecologia única de Arrakis, o planeta vulgarmente conhecido como Duna, produz. É essa riqueza que faz de Duna um clássico da ficção científica.

E é essa riqueza que está ausente deste O Messias de Duna.

Este é um romance muito mais limitado. Ambientado no mesmo planeta Arrakis mas doze anos mais tarde, numa época em que Paul Atreides consolida o seu poder no império interestelar que é a principal entidade política deste início de série (e a sua característica mais space-operática) através de uma guerra santa desencadeada por ele mas que sente fugir-lhe ao controlo, é um romance de que as questões ecológicas e culturais tão presentes no primeiro livro estão praticamente ausentes, concentrado sobretudo em questões de poder e de destino. Paul Atreides é uma criatura em luta consigo própria, carregadinha de angst, assombrada por um destino que a sua presciência lhe revela, ainda que com limitações, e que sente inescapável, e também com a irmã, também parte desse destino, mas uma parte com vontades próprias nem sempre coincidentes com as suas, uma criatura assombrada também pelo estatuto divino que adquiriu junto do seu povo e pelos temíveis adversários que esse estatuto, e a guerra que o acompanha, acabam por gerar.

O que resulta disto é um romance cujo fulcro são intrigas palacianas entrecruzadas com o fortíssimo peso que a antevisão do futuro tem na série já desde o primeiro livro (Herbert cria ordens inteiras, como a das Bene Gesserit, que têm nos planos de muito longo prazo a sua razão de existir) e servidas por uma prosa que está muito longe de ser brilhante, o que, aliás, não é novidade. É certo que lá mais para o fim irrompe alguma violência física que arranca o enredo da mera intriga palaciana, mas é mesmo só lá mais para o fim.

Para muitos leitores, certamente, isso será suficiente. Para mim não foi. Senti falta de Duna neste livro. Senti falta daquilo que, no primeiro romance, mais interesse me causou: o mundo em si e o impacto que as suas características têm sobre os seus habitantes e os que, fora dele, dele dependem. Senti falta de sair do palácio e da órbita do umbigo de Paul Atreides.

Quer isto dizer que achei este livro mau?

Não. Quer só dizer que não o achei bom. É um livro razoável, bem distante da qualidade do primeiro, mas que dá sequência à história daquele de uma forma que acaba apesar de tudo por ser sólida. Para muitos leitores isso é mais que suficiente, e até para mim bastou não só para encontrar interesse na leitura, como para ter vontade em saber o que o resto da série ainda reserva. Pelo menos até ao volume seguinte, Children of Dune.

Mas esse, infelizmente, só em inglês (ou em português do Brasil). Nunca foi publicado em Portugal.

Este livro foi comprado.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Lido: Só Poeira

Só Poeira é mais uma vinheta de ficção científica de Luiz Bras que, apesar de interessante e de estar tão bem escrita como é hábito, não me parece ser das melhores porque se torna demasiado previsível demasiado depressa. Trata a história da lenta substituição da humanidade por androides em tudo idênticos aos humanos, exceto na sua condição de constructos artificiais, e tão convencidos de serem humanos como os humanos de verdade. Creio que Bras dá demasiadas pistas sobre o sentido em que quer levar a história, a começar logo pelo título, e que isso lhe diminui o impacto. Contudo, continua a ser mesmo assim um continho com interesse.

Textos anteriores deste livro:

Lido: História de um Homem Casado

História de um Homem Casado é um conto inacabado de Katherine Mansfield sobre relações conjugais. Descritivo, umbiguista, escrito na primeira pessoa por uma personagem que encara a sua relação com a mulher com um misto de surpresa, indiferença e quiçá se até uma espécie de amor, é daqueles contos que me costumam dizer muito pouco, por mais bem escritos que estejam. E este está bem escrito, muito. Mas de facto cumpriu-se a tradição e o conto pura e simplesmente não me interessou. O reduzido interesse que esta leitura teve para mim prendeu-se com a técnica literária da autora, com a forma como os rodeios, as hesitações e os ziguezagues da narrativa contribuíram para construir as personagens. Mas isso é interesse do (pouco) praticante da arte da escrita, não do leitor. Este, coitado, mal podia esperar que o raio do conto terminasse. E depois não terminou. Não propriamente.

Contos anteriores desta publicação:

domingo, 7 de agosto de 2016

Lido: A Amizade

A Amizade (bibliografia) é mais uma noveleta de Telmo Marçal, duma ficção científica negríssima, passada entre os escalões mais baixos de uma sociedade repressiva económica e politicamente. Desta feita, o protagonista é um indigente que, após algumas peripécias, e não tendo outro remédio (mas sem grande sacrifício, reconheça-se) se vê colocado pela polícia numa fábrica com a função de farejar subversivos, agitadores, gente que ache que está a ser explorada e não goste da ideia. Há muito nesta história que não só a aproxima genericamente das outras histórias do livro, como faz lembrar uma em particular, O Paciente, o que pode levar a supor que as duas partilham o mesmo universo ficcional, ainda que isso em nenhum lado seja explicitamente reconhecido.

Trata-se de mais uma boa história, dura e cínica, bem escrita, especialmente no recurso que faz da linguagem oral e dos seus calões e ritmos, que tem como tema não só a miséria, a exploração e a forma como o poder tende a abusar, mas o valor que a amizade pode ter (ou não) nesse contexto. Por outro lado, também é uma história previsível, não por características próprias, mas por influência das histórias que a rodeiam. A distopia total sofre do mesmo problema das utopias, ainda que em sentido inverso: o leitor já sabe à partida que no fim tudo terá necessariamente de correr mal, porque é essa a lógica subjacente à história, e isso leva ao desaparecimento de um efeito surpresa que extravase os detalhes.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Contingência, ou Tô Pouco Ligando

Contingência, ou Tô Pouco Ligando (bibliografia) é um magnífico conto de Martha Argel que, a propósito da muito ciencioficcional ideia dos universos paralelos, do multiverso, segundo a qual cada minúscula alteração, cada instante que algo se atrasa ou adianta, cada decisão que acontece de forma levissimamente diferente, corresponde à criação de um universo inteiro, idêntico em tudo ao original menos nessa insignificância, a propósito dessa ideia, ia eu dizendo, cria uma história extremamente crítica da forma como o seu país, o Brasil, lida com o ambiente, e ao mesmo tempo descreve de modo muito didático o que pode resultar das decisões que na aparência menos importância têm.

Esta é uma história que, apesar de todo o sumo que tem, poderia perfeitamente não resultar. Afinal, viola todas as regras que se ensinam por aí nas escritas criativas. E no entanto resulta na perfeição, em grande parte devido à forma como é contada, como uma conversa, num texto fluido e cheio de ritmo, que deambula pela narrativa aparentemente sem rumo firme, o que o torna sempre surpreendente, sempre interessante. E o resultado é, repito porque me apetece, muitíssimo bom. Devia ser muito lido, este conto.

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sábado, 6 de agosto de 2016

Lido: A Seita da Fénix

A Seita da Fénix é um pequeno conto pseudofactual de Jorge Luís Borges, mais um, mas desta feita afastamo-nos do costumeiro tema literário para nos debruçarmos sobre uma misteriosíssima seita. Há aqui, aviso já, ironia a rodos. Com efeito, a seita é tão misteriosa que nem os seus membros parecem realmente conhecê-la, e ao mesmo tempo conhecem-na perfeitamente. Poderão pensar que esta forma retorcida de apresentar a coisa corresponde a mais um dos labirintos borgesianos, e não andarão muito longe da verdade, mas também não é bem isso. Na verdade, diz-nos Borges, a seita está espalhada por todo o lado, e baseia-se num segredo a uma vez vulgar e sublime, desconhecido e instintivo. Que segredo é esse? Borges não diz, e a vossa suspeita vale tanto como qualquer outra. E eu tenho cá a minha, naturalmente: suspeito que até eu próprio, sem o saber, me tornei há algumas décadas membro da Seita da Fénix.

Felizmente sem consequências.

Que dizem? Uma avaliação? Bem, entre os pseudofactuais este é particularmente divertido. Fiquemos assim.

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Lido: Joãozinho e Margarida

Joãozinho e Margarida é o título português que foi dado a uma das mais famosas histórias de Grimm: Hänsel und Gretel (e pensar que eu levo nas orelhas por traduzir alcunhas. Heh!). E este é mesmo, mais uma vez, um conto dos Irmãos Grimm, pois foi construído por eles a partir de vários contos tradicionais. Todos conhecem pelo menos parte da história; a que diz respeito à esperteza do Joãozinho que descobre o caminho de regresso da floresta com recurso ao estratagema de deixar um rasto de pedrinhas no chão quando nela penetrara. E muitos também devem lembrar-se da casa da bruxa, no meio da floresta, feita de guloseimas para atrair crianças.

Trata-se de uma história infantil, claro, um conto de fadas bom o suficiente para resistir ao teste do tempo. É também das histórias mais elaboradas neste início de livro, em parte graças a elementos originais, em parte devido à reutilização de elementos já vistos em outras histórias, como, mais uma vez, a existência de uma madrasta malvada que procura por todos os meios ver-se livre dos filhos do marido, mesmo tendo aqui uma razão melhor do que é costume: a fome. Mas o que realmente faz mover este conto é outra coisa: a aventura dos miúdos sozinhos na floresta misteriosa e cheia de perigos.

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sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Lido: Comadre Morte

Comadre Morte é mais um continho recolhido por Adolfo Coelho, e volta a ser um conto muito interessante sob um ponto de vista andropológico porque, mais uma vez, mostra um povo muito pouco reverente à beatice católica, o que é tanto mais interessante quando nos lembramos que tivemos por cá uma coisa chamada Inquisição durante vários séculos. O conto, muito curto, relata as astúcias de um homem que, depois de recusar tornar-se compadre de Deus, prefere tomar a Morte como comadre e depois vai-lhe trocando as voltas até ao dia em que se distrai. Há qualquer coisa de vagamente faustiano nesta história, que também deixa um certo sabor de coisa resumida ou de potencial por explorar, como várias das histórias anteriores. Francamente interessante.

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quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Lido: Temporada de Caça

Temporada de Caça é uma vinheta de Luiz Bras que parece escrita de propósito para misturar os três géneros principais em que tradicionalmente se dividem as ficções fantásticas. Começa como ficção científica, postulando um mundo (futuro?) totalmente urbanizado, à exceção de uma extensão de floresta, a última que resta. Depois passa a fantasia de base folclórica quando o protagonista descobre um saci que saíra da floresta. E no fim, sobre o qual nada direi porque o impacto do conto depende dele, é horror puro e duro. Além de ser um conto eficaz, este é um exercídio de estilo mesmo muito interessante. Outro bom conto, sim.

Textos anteriores deste livro:

Lido: O Medo

O Medo é um pequeno conto de Guy de Maupassant sobre o medo e não, não é engano, nem estou a gaguejar nem a repetir-me. Maupassant escreveu dois contos com aproximadamente a mesma temática e a que deu o mesmo título, um em 1882 e o outro em 1884. Aqui falo do primeiro, e isto é sobre o segundo. E na verdade, há muito em comum entre as duas histórias: a sua extensão é semelhante, o tema também, como já se disse, e a forma de as contar idem, embora as histórias em si, os episódios contados, sejam outros. Como no primeiro caso, também esta é uma história de ouvir contar, desta feita relatada no comboio, durante uma conversa despoletada por uma estranha visão: a de um grupo de homens na floresta, a aquecer-se à volta de uma fogueira. E também aqui nos são relatados episódios de terror em que os protagonistas mergulham ao depararem com algo de desconhecido ou momentaneamente inexplicável, só para mais tarde reconhecerem que afinal os fenómenos tinham explicações simples. Serve este artifício para discorrer sobre a natureza do medo, objetivo principal, afinal, de ambos os contos. E também aqui, por fim, temos um texto em que se mostram as qualidades de um grande escritor, mas o impacto é um pouco escasso. Dito isto, este segundo conto parece-me mais bem conseguido do que o primeiro. Não muito, mas um pouco.

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terça-feira, 2 de agosto de 2016

Lido: A Saga do Homem-Cavalo

A Saga do Homem-Cavalo (bibliografia) é uma noveleta de ficção científica de Telmo Marçal, tão negra como todas as outras, que acompanha a vida de Arid desde que deixa de ser montada e passa a escravo de uma fábrica até que as suas aventuras e andanças chegam a um desenlace. Explicando melhor: estamos no futuro, provavelmente, um futuro pós-contacto com inteligências alienígenas. O contacto não correu bem. Estamos, também, e ao que parece, num planeta distante, dominado por uma espécie identificada como os "Caranguejos". Aí, os humanos são escravos. Escravos com várias funções, como de resto é hábito nas sociedades esclavagistas, podendo ser transferidos de umas para outras. É o que acontece a Arid, cuja vida começou confortável, num estábulo, onde servia de montada para os "caranguejos" seus donos mas, quando a idade deixa de permitir que desempenhe convenientemente as funções de homem-cavalo, passa a operário fabril. A noveleta acompanha o que lhe acontece a partir desse momento: a progressão na carreira, os contactos que faz com outros escravos, a fuga em que entra de forma quase casual, a difícil ambientação à vida em liberdade, e por aí fora.

É uma história bastante boa sobre a dicotomia entre a liberdade, com os seus desconfortos e as suas decisões difíceis, e o conforto de se fazer o que nos é ordenado, de não se pensar, de se seguir a manada, de se ser apenas e só uma peça na engrenagem. Não que seja declaradamente sobre isso, mas é isso o que está subjacente a esta história.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Alma

Alma (bibliografia) é um conto de Osíris Reis, de uma espécie de ficção científica mística, protagonizado por Alma, uma "cientista do inconsciente" que tem pesadelos muito seus. Todo o conto é onírico, e portanto tem muito de surreal, mas há algumas características, como a identificação da protagonista como cientista, cenas em que ela vê o seu planeta de fora, aparentemente do espaço, ou vagas sugestões de que talvez se trate de uma criatura inteligente não humana (apesar de parecer humana em todas as características físicas e nas reações), que o aproximam da FC. Será uma fantasia científica, portanto.

Há também muito de filosofia oriental nesta história, sugestões de reencarnação e progressão a caminho de uma espécie de Nirvana (sem este nome), uma criatura quase todo-poderosa cujo nome ressoa a deusa hindu, Lavinahdi, e por aí fora. A história em si consiste de uma sucessão de pesadelos de caráter maniqueísta, em que algo que se pode classificar como "cidadelas de pureza" estão sob intenso ataque das forças sombrias, e parte do conto é composto por cenas de batalha entre a protagonista (ou não) e essas forças.

A grande vantagem deste conto é estar muito bem escrito. Sem isso, as muitas suas características que colidem frontalmente com o meu gosto pessoal e aquilo que me interessa na ficção ter-me-iam certamente levado a não gostar dele. Mas está muito bem escrito, é boa literatura, e não se trata de um daqueles textos ocos, vazias de conteúdo, como há tantos. O conteúdo existe, eu é que não sinto grande interesse por ele. O conto, portanto, é bom. Não gostei muito dele, mas é bom.

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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Lido: O Fim

O Fim é um conto bastante curto de Jorge Luís Borges sobre um duelo, quase em ambiente de faroeste, apesar de se passar na Argentina e aqui não haver Colts mas facas. Um homem espera num bar por outro homem. Espera sete anos, enquanto dedilha uma guitarra, pela oportunidade de, finalmente, vingar o assassínio do irmão. E essa oportunidade enfim chega na pessoa do assassino, que sabe perfeitamente ao que vai. É um conto que, não fora um certo caráter esquemático de situação e anbiente, não fora o fim em que uma metamorfose acontece, apesar de ser uma metamorfose muito mais metafórica do que real, nada teria de fantástico. Nem horror psicológico nele existe; ambos os protagonistas encaram a probabilidade da morte com calmo fatalismo, como que a dizer "vamos lá então fazer o que tem de ser feito". Mas o conto não é menos bom por causa disso. É um belo conto; um conto que, com economia de meios, faz pensar na mácula que roubar uma vida humana causa em quem o faz.

Contos anteriores deste livro:

Lido: As Três Fiadeiras

As Três Fiadeiras, mais um dos contos de Grimm, conta-nos em pouco mais de uma página a história de uma jovem preguiçosa que não gostava de fiar e o que acontece quando ela, graças a uma mentira da mãe, é contratada pela rainha precisamente para... fiar. Entra então na história um trio de velhas deformadas dotadas de poderes mágico-fiadeiros, que em duas penadas resolvem o berbicacho. Este é um conto sobre a entreajuda e a gratidão, e lembro-me de o ter lido (ou de mo terem lido, talvez) em miúdo, numa versão bastante mais desenvolvida, não me recordo onde. A habitual nota que enriquece esta edição fala de numerosas versões desta história, mas julgo que aquela que eu conhecia era mesmo uma adaptação a conto infantil. Seja como for, talvez por já conhecer uma versão expandida da história, este original dos Grimm pareceu-me um pouco amputado.

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