sexta-feira, 31 de dezembro de 2004

Feliz ano novo

Ainda andam por aí?

Então, meus caros, que o mau que 2004 trouxe (e foi tanta, tanta coisa!) se vire ao contrário em 2005. E o bom que em 2004 até foi havendo melhore pelo menos mais um bocadinho.

Pró ano, a Lâmpada volta. Até lá.

terça-feira, 30 de novembro de 2004

Até que enfim!

Respostas a comentários - Sinais dos Tempos

Bem, antes de mais, obrigado a todos os comentadores que foram deixando pedacinhos de prosa durante a minha semi-ausência primeiro e depois ausência verdadeira. Porque não respondi nas caixas de comentários em tempo útil, vou agora responder no corpo do blog a alguns desses comentários. Começo pelos comentários ao post Sinais dos Tempos.

O post era irónico, sem incluir grandes reflexos daquilo que eu penso sobre o assunto. Limitava-se a ironizar sobre o facto conhecido de que a bíblia sofreu inúmeras alterações ao longo dos seus muitos séculos de existência, com erros de tradução, imprecisões, omissões e acrescentos a funcionarem quase como um processo de mutação e de adaptação (lenta e incompleta) do texto aos tempos.

O post também tinha qualquer coisa de exasperação com o rumo que os assuntos ligados à religião têm seguido nos últimos anos, com o ressurgir de todos os fanatismos e fundamentalismos e um clima quase medieval a invadir algumas consciências e a afectar discursos e práticas políticas em países supostamente já livres de tais pragas. Este projecto da bíblia manuscrita parece-me precisamente isso: uma coisa medieval que procura fazer de todos nós descendentes directos dos monges copistas de antanho. Não me oponho a que Sampaio, por mais ateu ou agnóstico que seja, esteja presente em cerimónias religiosas. Já me incomoda que ele, como representante do organismo laico que é o estado português, participe activamente dessas cerimónias, mas também não me oponho, propriamente. Digamos que aceito o facto com algum incómodo. O que me chateia é somar-se o medievalismo da bíblia manuscrita à participação activa nesse projecto de alguém com o cargo de PR. Isso sim, chateia-me. E não me interessa nem um bocadinho saber qual o trecho que ele copiou. Não acho uns mais adequados que outros. É o princípio que me importa.

Sabem que mais?

O trabalho que se segue a uma formatação do disco, quando se tem as coisas mal organizadas à partida e quando o backup do disco antigo inclui os traços de mais de uma década de vida informatizada, é de fazer nascer uma plantação de cabelos brancos das sobrancelhas ao meio das costas.

E quando a isso se junta mais de uma semana de e-correio por tratar e a vida real a que dar atenção, o tempo passa e a produtividade é uma miragem de cartolina.

Quando tiver dinheiro, vou investir em gavetas.

quarta-feira, 24 de novembro de 2004

Ffffffff

Enfim já se respira de novo por aqui. Devagarinho, com cuidado e com mais uma viagem para a assitência técnica marcada para amanhã. Mas respira-se. De certo modo.

sexta-feira, 19 de novembro de 2004

O fim?

Faz amanhã uma semana que o computador colapsou nas minhas mãos. Escrevo em computador emprestado, e posto utilizando uma lentíssima (e caríssima) ligação dial-up.

Podem pensar que morri. Não andarão longe da verdade.

domingo, 14 de novembro de 2004

Propagando a fé e os valores

Querem saber como é que se propaga a fé cristã e os valores morais do ocidente em terras infiéis? Querem saber como é que se demonstra ao mundo a superioridade moral de tudo o que não seja islâmico sobre o Islão?

É assim.

sábado, 13 de novembro de 2004

Não acredito!

Não acredito! Acabei de ouvir uma canção do Toy com um mínimo (mínimo, ok?) de bom gosto! Uma coisa em tom de blues slow, medianamente bem cantada e com uma guitarra que, apesar de convencionalíssima, lhe acaba mesmo assim por dar uma atmosfera agradável.

Será o crescimento da música pimba?

sexta-feira, 5 de novembro de 2004

Sinais dos tempos

Jorge Sampaio, que ao que consta é ateu, copia a bíblia.

Resta saber é se, seguindo uma tradição com milhares de anos, também vai introduzir nela alterações de sua lavra.

quinta-feira, 4 de novembro de 2004

A Janela Indiscreta fechou a gelosia

E lá se foi outro dos melhores blogues portugueses. Porquê? Ninguém sabe, mas eu julgo que adivinho: os blogs têm uma certa condição de prisão, e de vez em quando temos a necessidade de nos afastarmos deles e respirar outros ares. Mas muitas vezes voltamos, por nada, porque sim. Espero que a Janela regresse. Mas sei que quem teve a teimosia de manter o blog em funcionamento por quase dois anos, e quase sem vacilações, também terá a teimosia necessária para uma vez tomada a decisão do fim, a manter. Por isso, espero que a Janela regresse mas não tenho muita esperança, se me perdoam a contradição.

Tenho é pena. Claro.

quarta-feira, 3 de novembro de 2004

Nos sítios mais insuspeitos encontra-se sabedoria

O orkut não é propriamente aquilo a que se pode chamar um centro de sabedoria. Na verdade, como muitos outros locais de "convívio" na internet, o que mais por lá se vê é estupidez misturada com insultos, protegida atrás de uma sensação exagerada de anonimato. Mas a verdade é que de vez em quando surpreende, quer no nível de algumas das pessoas que por lá se encontram, quer em algumas características do próprio sistema.

Uma dessas características é muito zen: uma citaçãozinha aleatória por dia, um aforismo, uma espécie de sorte chinesa, que algumas pessoas apreciam muito mas outras, como eu, em geral não lêem. Mas às vezes acontece. Hoje foi uma dessas vezes, e o aforismo, que nunca vem assinado, dizia:

A sociedade prepara o crime; O criminoso comete-o.


Ah, pois é.

segunda-feira, 1 de novembro de 2004

Uma aposta

Ou amanhã há uma fraude eleitoral massiça nos EUA, ou será a véspera do primeiro dia de preparação do monkey boy para ir viver para outro sítio. Vai uma aposta?

terça-feira, 26 de outubro de 2004

O caso Cachapa

Já há algum tempo que venho sentindo vontade de escrever qualquer coisa aqui na Lâmpada sobre o caso Cachapa, e só não o fiz ainda porque das várias vezes que me sentei a pôr alguma coisa no papel sobre esse assunto achei que a abordagem não estava a ser inteiramente correcta.

Para quem não sabe o que é o caso Cachapa, algum enquadramento:

Possidónio Cachapa escreveu e publicou um livro chamado Materna Doçura que o levou a ser citado num relatório do SIS, ao lado de outros autores como Thomas Mann e André Gide, como um escritor que escreveu livros que "apresentam a pedofilia a uma luz favorável". O caso foi divulgado num certo tipo de imprensa, nomeadamente o Crime e o Correio da Manhã.

Ora bem, eu não li o livro em causa, logo não faço ideia se ele apresenta ou não a pedofilia a uma luz favorável, embora me custe a crer que o faça. Mas o simples facto de uma coisa como o SIS se dar ao trabalho de elaborar um Index inquisitorum de livros "subversivos" é revelador do estado fascizante em que vamos mergulhando cada vez mais profundamente. Desde o 25 de Abril que não havia um corpo de atrasados mentais a vasculhar produtos culturais à procura de indícios incriminatórios. Nessa altura, a coisa chamava-se PIDE e era célebre e notória pela absoluta imbecilidade de que dava mostras naquilo que cortava e deixava passar; hoje, o SIS parece querer ir pelo mesmo caminho, com o beneplácito dos mesmos poderes vigentes que procuram a todo o transe controlar ou, pelo menos, influenciar a comunicação social.

Um livro é uma coisa complexa. Um bom livro é-o mais ainda, e tem níveis de leitura variados e por vezes contraditórios: lido superficialmente parece uma coisa, lido aprofundadamente é outra, muitas vezes bem diferente. Só livros pastilha-elástica são lineares e óbvios como o sabor da própria pastilha-elástica, mas mesmo nestes as leituras possíveis dependem das experiências e sofisticação de quem lê. Em muitos livros (naqueles que têm personagens e pelo menos um esboço de enredo), há gestos, ideias e atitudes que coincidem com as do autor e outras que estão, por vezes, nos seus antípodas. Em livros onde não existe um narrador que comenta e opina, saramaguianamente, sobre aquilo que as personagens vão fazendo, é tarefa no mínimo complexa ter uma ideia, ainda que vaga, sobre a "luz" a que certos factos são vistos pelo autor. Na maior parte dos casos, é mesmo impossível.

Mas claro que os cretinos censores não sabem de nada disto. Para eles, a sua leitura, deformada pelos seus preconceitos e ideologia, é a única leitura possível. Para este tipo de gente, se um escritor procurar explorar os comos e porquês que podem levar alguém, por exemplo, a tornar-se pedófilo, está a fazer a apologia da pedofilia. Um escritor que escreva sobre crimes e não retrate os criminosos como marionetas sem alma, é um criminoso potencial. Um escritor que se debruce sobre terroristas sem fazer deles caricaturas simplificadas do Pinguim, arqui-inimigo do Batman, é alguém que de certeza que financia a Al Qaeda.

A vontade que dá é escrever sobre tudo o que esta gente acha subversivo. Escrever sobre pedófilos, ateus, comunistas, terroristas, homossexuais, apoiantes de John Kerry, opositores a Santana Lopes, cientistas, artistas, pessoas livres. Escrever sobre tudo o que não é eles, sobre a imensa panóplia de actos, coisas e pessoas que eles nunca serão capazes de compreender. Escrever, no fundo, sobre o mundo.

E também escrever sobre eles, mostrando-os como realmente são: uma corja de gente minúscula, mesquinha, subterrânea e emaciada que olha para o mundo através de perversões que tenta esconder até de si própria mas que são bastante evidentes para todos os demais.

E depois há os "jornalistas" do Correio da Manha e do Crime. Mas isso é toda uma conversa nova...

segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Blogus interruptus

OK, tenho de dizer isto: o post anterior foi injusto ao atribuir as culpas das interrupções na acessibilidade da Lâmpada ao Blogger e provavelmente terá gerado perplexidades a utilizadores que sempre cá chegaram sem a menor dificuldade.

A realidade é outra. A realidade é que a Netcabo andou vários dias intermitente, deixando os seus utilizadores, e só os seus utilizadores, à beira de um ataque de nervos. Durante os ataques de intermitência, metade da internet estava acessível de forma insuportavelmente lenta, e a outra metade estava inacessível por trás de uma impenetrável barreira de timeouts, incluindo o próprio site da empresa.

Claro que os clientes não foram informados de coisíssima nenhuma. Claro que do telefone da assistência técnica só atendia uma orquestra sinfónica qualquer. Claro. Afinal de contas, estamos em Portugal. Em Portugal só interessa cobrar as contas. Amabilidade e competência é para os outros, não para nós.

sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Pedimos desculpa por esta interrupção

Não é bem o caso de o programa seguir dentro de momentos, porque não há propriamente programa, mas pedimos desculpa a quem gosta de ler a Lâmpada e aos que vêm cá à procura de mulheres nuas (ou melhor: de uma mulher nua em particular) por esta interrupção. A Lâmpada, como talvez terão reparado, e tal como os restantes blogs alojados no blogspot, esteve indisponível durante boa parte do dia de ontem. Embora o blogger não me tenha pedido desculpa do facto a mim, peço-vos eu a vocês.

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Os livros que estão ali ao lado

E lá foram lidos mais dois livros, muitíssimo diferentes um do outro embora ambos sejam ficção científica e tenham sido editados pela mesma editora. O primeiro a ir foi Planeta Duplo, de John Gribbin e Marcus Chown (um romance de baixíssima qualidade, temática, estrutural e, talvez, linguística, que é piorado mais ainda por uma tradução absolutamente pavorosa. A única qualidade desta coisa é ser curta), e o segundo foi Guerra Sempre, de Joe Haldeman (muito, muito bom, e quem diz isto é um tipo que não costuma gostar de FC militar e de space opera. Está literalmente anos-luz acima do livro a que responde, o Starship Troopers do Heinlein, editado há muitos anos na Argonauta com o título de Soldado no Espaço. A todos os níveis). Para substituir estes dois livros, chegaram outros dois:

- Sulphira & Lucyphur, de António de Macedo, é um romance que vagueia algures entre a FC e a fantasia, como é hábito no autor, com misticismo e cenários novecentistas à mistura. Edição da Editorial Caminho (1995), 224 páginas.
- Corações na Atlântida, de Stephen King, é um romance bastante grande onde o autor norte-americano explora o legado deixado pela guerra do Vietname. Edição do Círculo de Leitores (2002), 679 páginas.

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Outra coisa que gostei de ler

E aqui está mais uma coisa que gostei de ler. Uma crónica cinco estrelas. Bem melhor que muita treta que se lê nos jornais.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Sobre "O terrível destino de Santana Nobre"

Não há muito a dizer sobre este curto conto. O próprio título já sugere que é uma sátira e o conteúdo confirma essa sugestão. Com a tradicional nota de que isto é um esboço, etc. e tal, só espero que a vossa relação com o conto seja de divertimento.

Spam fiction (11)

O terrível destino de Santana Nobre


Baseado num spam intitulado "miuui Natural peniss enlaarrge"


Santana Nobre era um homem atraente, pelo menos na imagem que tinha de si próprio. As mulheres eram o seu meio, e era no mar de saias, seios e perfumes que se sentia confortável, embora fosse frequente ver-se atirado para a praia pelas ondas desse mar. Quando tal acontecia, resmungava numa voz prestes a desfazer-se em lágrimas que não era possível entender as mulheres, mas rapidamente esquecia estas tristezas e mergulhava de novo entre aquelas que não conseguia entender, lançando-se muitas vezes de costas para ter como dizer mais tarde que fora o mar que o fora a terra resgatar.
De sereia em sereia, de duche de areia em duche de areia, foi Santana Nobre saltitando ao longo dos anos. Nunca ancorou em nenhum baixio, pois cada onda de vestido o arrastava na sua esteira. Mas à medida que os primeiros cabelos brancos iam nascendo, à medida que as entradas se iam entreabrindo, começou a sentir cada vez maior dificuldade em achar-se dentro de águas femininas. Ele bem mergulhava, mas rapidamente a rebentação ia dar consigo encalhado em terra, sacudindo os restos de algas que faziam as vezes de recordações, tentando sem sucesso limpar-se da areia que se lhe entranhava nos calções. E depois aí ficava durante períodos cada vez mais longos, dividido entre a vontade de voltar a mergulhar e o medo de se ver de novo dolorosamente arrastado para terra. Intercalava estas épocas melancólicas e lentas com outras em que se dedicava a mergulhos sucessivos num frenesi de peixe-voador perseguido pela desgraça.
Santana Nobre não entendia o que se passava. Que a idade estivesse a afectar o seu sucesso junto do género feminino, o qual, apesar do que pensava de si próprio, nunca fora grande coisa, não lhe entrava na cabeça. Que diabo, pensava, toda a gente sabe que elas se pelam por uma cabeleira grisalha e uma barriguinha bem tratada. É ou não é?
Um dia teve um esboço de resposta, quando, num dos inúmeros mergulhos no mar de estrogénios que ocupavam por esses tempos a maior parte dos seus dias, surpreendeu duas raparigas a falar dele.
— O Santana — dizia uma — é um desastre.
— E ridículo — ria-se outra. — Reparaste no gel que ele anda a pôr no cabelo para ver se não se nota que está cada vez mais careca?
— Nem me fales — retorquia a primeira. — Mas o pior de tudo nem é isso.
— Pois não — aprovava a segunda. — Não sei como é que ele não se apercebe que aquilo não dá nem para começar.
— Pois é — descambava a primeira — aquilo, decididamente não é pau que se apresente.
— Sabes como é que lhe chama a Aninhas? — ria-se a segunda.
— Diz! — gargalhava a primeira.
— O Pilinhas! — rebolava-se a segunda, logo seguida pela primeira numa revoada de risota que parecia canções de baleias em fast-forward.
Foi então que pela primeira vez na sua vida, Santana Nobre saiu do mar de sua livre vontade e pelo seu pé, arrastando-se lentamente para a praia como um leão marinho exausto e ferido, no fim da migração.
Pilinhas!
Chamavam-lhe Pilinhas!
Sentado num rochedo debruçado sobre o mar, envolto em cheiro a maresia e coberto de salitre, estremecendo a cada onda que se quebrava na praia, julgando entreouvir no seu rugido milhares de feminis gargalhadas, ficou um longo tempo acabrunhado, uma sombra do Santana Nobre confiante de outrora, curvado sob o peso de várias camadas de pena por si próprio.
Pilinhas!
O raio das mulheres chamavam-lhe Pilinhas!
Que fazer?
Passaram-se vários dias nesta indecisão. Santana Nobre descurava-se, deixava que o sol lhe secasse o gel na cabeça em pequenas partículas quebradiças que o vento arrastava para longe, despenteando-o, descaracterizando-o, não reagia quando salpicos da rebentação lhe traziam aos lábios o familiar cheiro a fêmea, o que antes teria sido suficiente para se julgar chamado, desejado, imprescindível, e para se atirar do rochedo para o mar. Decididamente, não era o mesmo. Coberto por uma melancolia incaracterística, Santana Nobre definhava devagar, evaporando-se em desinteresse.
Fosse pelo que fosse, talvez porque estar inteiramente imóvel e inactivo é, paradoxalmente, actividade que cansa mais do que fazer alguma coisa, talvez numa tentativa subconsciente de recuperar algum controlo sobre a sua vida, talvez como terapia de substituição, talvez por outro motivo qualquer, o certo é que Santana Nobre começou aos poucos a prender a sua atenção, todos os dias, nas nuvens de mensagens que lhe passavam pelo céu e a que nunca dera mais que uma fugaz olhadela. Apreciava as suas configurações, avaliava a forma como se sobrepunham, ultrapassavam ou fundiam, vislumbrava nelas significados ocultos, enfim, começava a conhecê-las.
Um dia reparou numa que lhe causou uma viva impressão. Atravessando o céu a grande velocidade, tornando difícil a leitura, esta mensagem vinha numa versão encriptada de inglês e dizia, simplesmente:

"miuui Natural peniss enlaarrge"

Seguia-se um número de telefone e a promessa de "Guarrantied resultss".
Foi o fim da melancolia de Santana Nobre. Por fim, tinha de novo esperança, tinha de novo algo que o incentivasse. Por fim, recuperara a imaginação, que se antes só lhe servira para criar a sua auto-imagem de garanhão irresistível, agora voltava a criar essa mesma auto-imagem, mas desta vez de uma forma diferente, menos centrada na sua figura geral, mais centrada numa particular característica da sua figura. Já se imaginava, nu, ou então vestido de forma reveladora, a exibir o seu novo e multiplicado pénis, rodado de ohs e risinhos, não já de troça mas de admiração.
A ver se alguém iria ter coragem de lhe continuar a chamar Pilinhas!
Telefonou para o número que vinha na mensagem, fez e encomenda e ficou à espera. Durante esse tempo nem se aproximou do mar feminino, limitou-se a aproveitar as noites de vento favorável para subir à varanda recolher o seu cheiro e sonhar com um futuro risonho.
Quando o "mui natural penis enlarge" chegou, descobriu tratar-se de três comprimidos esverdeados, envoltos em papel de prata e acompanhados por uma receita que indicava que o tratamento consistiria de um comprimido ao deitar durante um fim de semana (sexta, sábado e domingo), noites de sono descansado e muito repouso durante os dias. Como não fazia nada que se visse com a sua vida, e como recebera o embrulho a uma terça-feira, Santana Nobre decidiu que não valia a pena esperar pelo fim de semana e nessa mesma noite tomou o primeiro comprimido.
Cumpriu o tratamento à risca nos dias seguintes, passando as noites a dormir e os dias a ouvir música disco, deitado no sofá, e a dormitar. Sempre que acordava, pegava numa régua e media-se cuidadosamente, ao milímetro, anotando o resultado num papel que preparara de antemão.
Os resultados foram-no desapontando. Ainda teve uma alegria quando tomou o segundo comprimido, na quarta-feira, pois o pénis media-lhe mais 4 milímetros do que na véspera, mas ao longo de quinta-feira o resultado da medição foi variando de forma aparentemente aleatória e à noite, após o comprimido, media menos dois milímetros do que na primeira medição. Nessa noite deitou-se deprimido, teve dificuldade em adormecer e acabou por dormir pouco, o que também se terá devido às sestas que dormira durante o dia. A sexta-feira foi, de novo, um dia melancólico e a banda sonora mudou de disco para fado, com Santana Nobre cada vez mais convencido de ter sido enganado, de que os comprimidos de nada valiam e de que iria continuar a ser conhecido por Pilinhas no futuro mais próximo e, quem sabe, no mais longínquo, salvo se se afastasse de vez do género feminino, o que talvez fosse mais deprimente ainda do que ser perseguido por aquela alcunha. Mas decidiu, apesar de tudo, levar o tratamento até ao fim, e foi com uma tristeza obstinada que engoliu o comprimido de sexta-feira e foi para a cama.
Nessa noite teve uma série de sonhos estranhos, que, se ele tivesse algum conhecimento da cultura literária do século XX, teria sem dúvida associado ao escritor checo Franz Kafka. Coisas relativamente normais transformavam-se em coisas decididamente estranhas, o pequeno passava a ver-se gigantesco, braços e pernas transmutavam-se em pequenos bolbos inúteis e cobertos de pêlos rijos, homens metamorfoseavam-se em seres grotescos, cuja forma nunca chegava a fazer-se clara nos filmes que a sua cabeça ia criando. Apesar dos sonhos, dormiu a noite inteira, sem sequer acordar para a tradicional ida à casa de banho das 5 da manhã, o que também teve, à sua maneira, algo de bizarro.
O sábado acordou solarengo e Santana Nobre acordou tarde com o sol a entrar-lhe pela janela. Sentiu-se de imediato estranho, talvez flácido demais e, ainda muito estremunhado, pensou que se calhar o tratamento tinha acabado por fazer efeito, o que serviu de motor e roldanas para que saltasse da cama e se encaminhasse para o maior espelho da casa, tropeçando em pernas que de repente lhe pareciam excessivamente curtas.
Ao olhar para o espelho, ficou horrorizado, cambaleou e acabou por cair, sem sentidos. Esperara ver um grande pénis a sobressair do seu púbis, rodeado do Santana Nobre de sempre, com o físico de sempre, a cara de sempre e o gel de sempre no cabelo (sim, regressara com a renovação da esperança). Em vez disso, no entanto, viu apenas um grande pénis. Apenas um grande pénis a olhar para si através de olhos implantados incongruentemente na superfície da glande, braços fininhos e negros, com uma forma que dava a sensação de encaracolamento e que se projectavam da porção intermédia do cilindro e umas pernas que se pareciam estranhamente com testículos.
Ninguém sabe o que lhe aconteceu depois, porque nunca mais ninguém o viu. De certo, fica só uma coisa:
Nunca mais ninguém lhe chamou Pilinhas.

Uma coisa que gostei de ler

Foi esta. Exactamente, José Carlos. Sem tirar nem pôr.

domingo, 17 de outubro de 2004

Sobre "Uma coisa que nunca te direi"

Neste conto é apresentada uma espécie inteligente, embora não muito, que desenvolveu um esqueleto de cultura sem ter tido possibilidade de ter desenvolvido uma civilização, por vários motivos que — espero — compreenderão ao ler o conto.

Uma palavra que talvez crie alguma perplexidade em alguns de vocês é "telson". Trata-se do nome que tem o último segmento em vários tipos de animais cujo corpo se divide total ou parcialmente em segmentos, como as minhocas, as centopeias ou os camarões. Aquilo a que muitas vezes se chama coisas como "rabo"...

Quanto ao resto, a lengalenga é a de sempre: isto é um esboço, precisa de trabalho, etc. e tal, blá blá blá.

Spam fiction (10)

Uma coisa que nunca te direi


Baseado num spam intitulado "Do you remember me?"


— Não quero trocar fluidos com ninguém! — explodiu a toupeira-furadora enquanto se afastava do cruzamernto o mais depressa que conseguia, fazendo ecoar fantasmas do grito (ninguém-guém-ém) nas paredes do túnel.
A outra toupeira-furadora ficou parada, a ouvir. Pareceu-lhe conhecer aquela voz, mas colheitas e colheitas de vida solitária na vastidão dos túneis enchiam-lhe o cérebro traseiro de dúvidas. Não conseguia ter a certeza.
Esta segunda toupeira-furadora tinha, no entanto, uma característica que a distinguia da maior parte das outras toupeiras-furadoras e que levava todas as que a conheciam a evitá-la. Não que fosse invulgar que uma toupeira-furadora evitasse tanto quanto possível os outros membros da sua espécie, bem pelo contrário, mas no caso específico daquela, as toupeiras-furadoras que a conheciam punham um pouco mais de empenho nesse afastamento, chegando algumas ao ponto de fazer grandes desvios por túneis desconhecidos assim que as respectivas terceiras patas detectavam no chão dos túneis um odor que lembrasse vagamente o seu.
Não, não cheirava mal, ou pelo menos não punha nos túneis um cheiro pior que o das restantes toupeiras-furadoras. Tampouco cheirava desagradavelmente bem, empestando as zonas de trânsito, trabalho e descanso de cheiros enjoativos de tão agradáveis. Não era uma questão de cheiros.
Esta toupeira-furadora tinha o pior defeito conhecido na espécie: era curiosa.
Ou, na versão de todas as outras, era metediça.
Por isso não supreendeu ninguém (ou pelo menos não supreenderia ninguém, se alguém ali estivesse a assistir) que ela, em vez de sacudir o telson numa aprovação da atitude insociável da outra toupeira-furadora e de enveredar por outro túnel qualquer (naquele cruzamento juntavam-se cinco), tivesse esgravatado durante algum tempo o chão com as terceiras patas e depois tivesse resolvido enfiar o seu longo corpo pelo mesmo túnel da outra toupeira-furadora.
Aquela voz parecia-lhe conhecida. Ah, sim, parecia conhecida. E o cheiro, mais ainda.

Antes de ir mais longe, talvez convenha esclarecer que as toupeiras-furadoras não possuem nomes, uma vez que deles não necessitam para viver as suas vidas solitárias. Não só raramente se encontram, como quando o fazem o habitual é passarem a maior parte do tempo a trocar fluidos e o mínimo indispensável de tempo extra a trocar informações, num sistema de comunicação que é mais uma sucessão de dois monólogos do que propriamente uma conversa e onde nada é dito acerca de outras toupeiras-furadoras específicas, antes se fala sobre acontecimentos gerais, ou em acontecimentos particulares mas sem nunca mencionar os seus protagonistas. Diz-se que nasceu uma nova toupeira-furadora no sector xis, ou que foi descoberta uma nova camada de raízes no sector ípslon, mas nada é dito sobre quem esteve envolvido em cada um destes acontecimentos. A protecção da privacidade é encarada muito a sério. E uma reunião de mais de dois indivíduos é coisa nunca vista.
Quase tão inédito é acontecer encontros sucessivos entre duas toupeiras-furadoras. Quando duas se encontram, tratam da troca de fluidos o mais depressa que são capazes, despacham a conversa em dois tempos e depois separam-se sem se despedirem, cada uma segue o seu caminho por túneis diferentes, e passam ambas a evitar-se uma à outra com maior afinco do que o que utilizam para evitar as demais. É como se a troca de fluidos as repugnasse tanto que não conseguissem sequer imaginar a ideia de voltar a encontrar-se, ou como se ficassem submersas em vergonha por ter baixado a guarda o suficiente para dar de caras (é força de expressão) com outro indivíduo da mesma espécie e fizessem o possível para evitar até a memória de tal acontecimento.
Por tudo isto, como logicamente se deduz, a nossa e curiosa toupeira-furadora não possuía um nome. Mas esse facto causa dificuldades à elaboração de um texto acerca dela, texto esse destinado a ser lido por membros de uma determinada espécie de primatas originários do planeta Terra, para os quais o nome é uma condição inseparável da individualidade, e que são incapazes de conceber um mundo desprovido destes sinais convencionais de identificação. Nestas condições há duas hipóteses: pode-se procurar por todos os meios identificar a toupeira-furadora sem o recurso a um nome, usando malabarismos linguísticos cada vez mais complicados e artificiais e nem sempre fáceis de gerir, ou pode-se atrabuir-lhe um nome qualquer, arbitrário ou baseado nas suas características, por uma questão de comodidade. Poderia ficar Curiosa, por exemplo. Ou Gertrudes. Ou Minhoca-de-Vinte-Patas. Qualquer coisa.
Há situações em que a escolha entre estas duas opções é complicada, causa suficiente para um longo processo de avaliação de pesos e contrapesos. Mas neste caso, trata-se apenas de um pequeno conto escrito por um obscuro rapazola que se convenceu um dia de que aquilo que escrevia poderia, talvez, vir a ter algum interesse para alguém mas que bem lá no fundo não acredita nisso. Portanto, em cinco segundos a decisão estava tomada.

Gertrudes, a toupeira-furadora, curiosa por ter encontrado um cheiro e uma voz que causavam ressonâncias na sua memória, pôs-se a perseguir a minhoca-furadora dona desse cheiro e dessa voz. Chamemos-lhe Genoveva. A perseguição foi demorada, não só porque as minhocas-furadoras não são propriamente conhecidas pela sua rapidez, mas também porque Genoveva se movimentava quase à velocidade máxima que as suas vinte curtas patas permitiam.
Enquanto fugia — porque era precisamente isso que aquela correria toda era -, Genoveva tinha ambos os cérebros presos num ciclo contínuo em que recordava a visão súbita da cabeça de Gertrudes a emergir do túnel por onde planeava seguir, o susto, o grito que soltara por instinto, os primeiros metros da corrida, tudo intercalado com velhas e nebulosas memórias que a informavam de que não era a primeira vez que contactava com aquela toupeira-furadora, e de que esse primeiro contacto se perdia na sua juventude, que ela achava longínqua, numa época em que os túneis ainda eram coisas gigantescas, espaços amplos cobertos por tectos que mal se veriam não fosse a fosforescência dos fungos que cresciam nas paredes.
Genoveva, claro, não tentou aprofundar essas recordações. Eram apenas um mecanismo automático que servia para manter a fuga durante o tempo e o espaço considerados convenientes para tornar altamente improvável que o contacto acabasse por acontecer e que pouco dependia da sua vontade consciente. Além disso, e ao contrário de Gertrudes, Genoveva não era metediça.
Por isso, quando dobrou uma curva no túnel e à sua frente apareceu de súbito um conjunto de raízes maduras pendentes do tecto, ao qual chegava agora com a maior das facilidades (na verdade, raspava por ele com o dorso nas passagens mais apertadas — era uma toupeira-furadora bastante grande), o ciclo mental de fuga foi quebrado por uma avassaladora sensação de fome e não mostrou qualquer sinal de ter reparado no desvanecimento das recordações ligadas à toupeira-furadora que encontrara mais atrás. A verdade é que a esqueceu por completo e a todos os acontecimentos relacionados com ela, reajustando o seu mundo interno a uma paisagem plácida de movimentos lentos e progressivos através dos túneis, e dedicou-se à sua actividade favorita: comer.

Para Gertrudes, o mesmo caminho foi um passeio bastante mais calmo. Por um lado, era uma toupeira-furadora mais velha e naturalmente mais lenta, e possuía duas patas que lhe doíam sempre que as mexia e que lhe quebravam o ritmo aos passos. Por outro lado, sempre que se aproximava de uma intersecção de túneis, o que acontecia com alguma frequência, apesar de os grandes entroncamentos serem raros, tinha de parar, esgravatar o solo com as terceiras patas para descobrir o túnel por onde a outra toupeira-furadora enveredara, e combater a vontade de investigar todos os outros cheiros que lhe despertavam curiosidades e, às vezes, velhas memórias, antes de se pôr de novo em movimento. Por outro lado ainda, mesmo na relativa uniformidade dos troços de túnel desprovidos de ramificações, surgia com freequência qualquer coisa que a distraía do seu objectivo, e passava-se algum tempo até que lograsse recolocar o seu confuso cérebro na trilha de Genoveva. Ainda por outro lado, o último, por vezes deixava-se submergir tão completamente em recordações e especulações acerca do cheiro e da voz da outra toupeira-furadora que acabava por não se dar conta dos acidentes de percurso, e tropeçava em pedras ou raízes expostas, ou esbarrava em paredes que curvavam, atrapalhando a sua tendência natural de seguir em frente, ou deixava passar cruzamentos e avançava por túneis errados, às vezes durante algum tempo, o que a forçava a voltar para trás, às arrecuas, fazendo uso do telson como segunda cabeça, modo de locomoção bem menos eficiente e seguro.
Passou-se, por isso, bastante tempo até Gertrudes começar a sentir uma intensificação significativa na frescura do cheiro a Genoveva que a vinha chamando atrtavés dos túneis. Na verdade, passou-se tanto tempo que foi obrigada a parar por duas vezes para recuperação fisiológica e mais quatro para mordiscar velhas raízes que se espetavam das paredes laterais do túnel, alimento que não era propriamente delicioso mas teria de servir à falta das raízes frescas, penduradas do tecto, que constituíam o principal acepipe existente naquela área.
Mas acabou por acontecer. Com a paragem de Genoveva, o seu esquecimento do encontro com Gertrudes, o seu regresso à rotina preguiçosa da sua vida, Gertrudes acabou por começar a ganhar-lhe terreno. E quanto mais próxima estava Gertrudes de Genoveva mais fresco era o cheiro, mais fácil era seguir o rasto que ele criava, menos Gertrudes se distraía com outros estímulos e mais rápida se tornava a aproximação da toupeira-furadora que perseguia à toupeira-furadora que era perseguida. Se a curiosidade da toupeira-furadora e a cultura do seu povo fossem suficientes para chegar a dados tão sofisticados, facilmente teria Gertrudes chegado à conclusão de que estava envolvida num ciclo de retroalimentação positiva. E não era só na eficiência da perseguição que se poderia detectar esse ciclo. Também a curiosidade que sentia pela outra toupeira-furadora estava aser retroalimentada com mais intensidade, e até a memória era estimulada da mesma forma. Era como se o problema de quem, realmente, era aquela toupeira-furadora, possuidora de uma voz e de um cheiro tão familiares fosse a pouco e pouco sobrepujando todos os outros pequenos problemas que ocupam a vida quotidiana de uma toupeira-furadora. Era como se Genoveva andasse pelos túneis cada vez mais depressa e com cada vez maior segurança, presa num ciclo mental que perguntava uma e outra vez "Quem és tu? Quem és tu?"
Há perguntas que não têm resposta. A outras não é possível dar uma resposta com toda a certeza. Outras têm mais do que uma resposta provável. E é impossível saber à partida a que categoria pertence a maior parte das perguntas, antes é necessário ficar à espera que algo ou alguém tente responder-lhes. É até frequente que a mesma pergunta salte de categoria em categoria consoante as novidades que cada lugar do tempo traz consigo. Tudo isto é verdade quer no nosso mundo de macacos sabichões, quer no mundo subterrâneo das toupeiras-furadoras, embora estas sejam bastante menos sabedoras das coisas do universo exterior aos seus buracos do que nós (que, por outro lado, sabemos muito pouco do mundo interior aos seus buracos).
A pergunta de Genoveva, a princípio, pertencia ao grupo das perguntas sem resposta. A resposta tradicional da sua espécie a este tipo de perguntas é, como já terão compreendido, esquecê-las, ignorá-las, fingir que não existem, procurar conforto naquilo que já conhecem ou julgam conhecer, ocupar-se com outras coisas. Mas Genoveva era diferente. Metediça. E por isso parecia que as perguntas sem resposta chamavam por si, especialmente se tinha a sensação, quase a certeza, de ter dentro de um qualquer dos seus dois cérebros exactamente a resposta que procurava. Era o caso. De cada vez que perguntava a si mesma "quem és tu?", era percorrida por uma corrente subterrânea, meio inconsciente, que lhe fornecia um indício de resposta: "eu sei quem tu és". Mas era um saber sem forma, uma coisa ectoplásmica feita de impressões vagas como o espaço vazio entre os planetas. Um quase nada sem substância.
Só quando Genoveva finalmente olhou em frente e viu o telson adormecido da outra toupeira-furadora, as memórias dispersas se começaram a juntar e a formar um fio condutor, uma espécie de túnel entre a porção consciente dos seus cérebros e as zonas onde as memórias antigas dormiam o seu sono solto e, geralmente, eterno. Só então, parada, a escutar o murmúrio que Gertrudes fazia nos seus sonhos e a vasculhar com as terceiras patas todo o cheiro que era capaz de retirar do solo se começou a lembrar.
Antes de tempos vêm tempos e antes deles outros tempos. E na vida das toupeiras-furadoras a cada tempo corresponde um ciclo que começa num encontro e termina no seguinte ou, o que é dizer o mesmo, a vida das toupeiras-furadoras é determinada pelas ocasiões em que trocam fluidos. Não é uma medida rígida como os nossos anos, horas e minutos, não é determinada por ritmos naturais cuja duração muda tão lentamente que parece imutável. Em mundos subterâneos não existem dias e no planeta das toupeiras-furadoras nem sequer as estações sugerem que talvez haja ritmos mais subtis do que a evidente sucessão da claridade e escuridão. Para elas, só os encontros são capazes de pontuar com novidade o fluxo monótono do tempo. Por vezes, muitas vezes mesmo, dessas trocas de fluidos surge nova vida e ficam então conhecidas como trocas grandes; outras vezes nada acontece para além da simples troca de novidades, e essas são as pequenas trocas. A vida que nasce das trocas grades é autónoma quase desde que começa, mas fica sempre nela qualquer coisa da outra vida que lhe deu vida. Um subtil subtom no tom de voz. Uma componente quase imperceptível no cheiro corporal. Coisas assim, subtis e pouco claras, só descortináveis por muito poucas toupeiras-furadoras.
Muito tempo antes, a toupeira-furadora a que chamámos Genoveva tivera uma certa troca grande. Fora oito trocas grandes antes, para sermos mais precisos. E dessa troca grande nascera a toupeira-furadora a que chamámos Gertrudes.
Foi isso que Genoveva descobriu, e foi isso que fez com que tivesse ficado ficou imóvel e silenciosa, a observar a sua filha. Primeiro a dormir, depois a acordar, a comer durante algum tempo e a ir-se embora, túnel adentro, sem chegar a dar-se conta de que tivera a mãe muito próxima de si. E durante todo aquele tempo, pensava, absorvida nessa ideia fixa como é hábito da sua espécie, que ali tinha uma vida que nascera da sua vida mas que nunca lhe diria nada sobre isso. Para quê? De que serviria? E como lhe poderia transmitir essa informação, visto que na sua espécie a comunicação era uma questão acessória da troca de fluidos?
Mas a sensação era estranha. Uma espécie de confusão maravilhada ou de maravilhamento confuso, uma coisa assim. Ali, na sua frente, estava uma grande toupeira-furadora que nascera apenas porque ela própria passara pelos túneis. Que se poderia sentir em casos desses?
Ficou ainda muito tempo imóvel, a matutar neste problema. Mas por fim trincou a uma das primeiras patas em sinal de indiferença: não eram estas perguntas sem resposta que a iriam alimentar.
Uma coisa, no entanto, era certa: não iria prosseguir o seu caminho pelo túnel por onde seguira a sua filha. Então, verificou a consistência da parede da esquerda e saboreou-a, verificou a consistência e saboreou a parede da direita, comparou uma e a outra e pôs-se a escavar um novo túnel na parede da esquerda. Tinha a certeza de que por ali, não muito longe e um pouco mais acima, iria encontrar raízes saborosas, e os três estômagos contorciam-se-lhe com a fome.
Não passou muito tempo até encontrar as raízes, e pôs-se de imediato a mastigá-las. Não demorou muito mais até esquecer-se da perseguição e da descoberta que se lhe seguiu, guardando tudo naquela zona adormecida dos seus cérebros onde ficam guardadas as recordações que não serão necessárias durante muito tempo. E não muito depois foi a sua vez de adormecer, ainda com um resto de raiz preso entre as placas trituradoras.
Afinal, estava muito cansada. Não sabia era porquê.

sexta-feira, 15 de outubro de 2004

Clang

O ruído que acabaram de ler é o som da responsabilidade que me caiu em cima da cabecinha leviana ao ficar a saber que este blog (junto com uma catrefada de outros, é certo) foi parar a uma lista sobre literatura na internet elaborada por uma docente da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Beja.

Esta, decididamente, fez galo!

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Raios partam o Blogger!

O Blogger anda a atravessar uma fase má. De vez em quando abranda até ficar mais lento que carroça sem rodas puxada por um burro anémico em greve de fome. E nós, ao postar, apanhamos depois de um teste à paciência com mensagens de erro a dizer que a operação não foi concluída. Voltamos a tentar. E a treta do Blogger, que se calhar tinha tido tempo para colocar o post no sistema mas só não tinha conseguido publicá-lo, cospe com o post duas vezes, ou mais. Depois, lá se tem de voltar a editar tudo, ou para apagar os posts extra ou, como neste caso, para editá-lo e transformá-lo em algo totalmente diferente. Raios partam!

Spam fiction

Quem tem vindo à Lâmpada à procura de spam fiction tem saído desapontado nos últimos tempos, provavelmente pensando coisas pouco abonatórias em relação à minha pessoa, coisas como "este sacana largou outra vez o raio do projecto". Não é verdade. O que acontece é que o primeiro conto cresce, cresce e não há meio de chegar ao fim. Neste momento, tem 10 mil palavras, o que equivale mais ou menos a 30 páginas de um livro. E isto levanta um problema: isto é um blog, um local adequado a textos relativamente curtos, não a noveletas, que é aquilo em que Littleton já se transformou. O que levanta um obstáculo evidente à sua publicação.

Neste momento, estou tentado a não o publicar aqui, a deixá-lo inédito para quando (e se) a spam fiction se transformar em livro. De qualquer maneira, muito poucas pessoas teriam a paciência necessária para ler um texto daquele tamanho no blog...

Além deste, três outros contos estão "em obras", um deles com cerca de 3000 palavras, outro com pouco mais de 1000 e outro ainda pequenino, com 500. Todos estes são ainda publicáveis e, julgo, todos eles serão publicados, provavelmente em breve.

quarta-feira, 13 de outubro de 2004

Os livros que estão ali ao lado

Acabei a leitura de mais dois livros, que foram substituídos por outros dois. Um dos velhos, e que já estava há muito tempo em cima da minha mesa de cabeceira, é a colectânea Weirdmonger, de D. F. Lewis, com mais de 60 contos (em inglês, e num inglês muito elaborado, quase barroco às vezes. Não é livro para quem conheça mal a língua, e mesmo para quem a conhece bem não é um livro fácil. Apesar disso, gostei medianamente. Os contos do Lewis têm muita atmosfera, embora seja frequente não terem enredo suficiente para o meu gosto). O outro é a antologia A Viagem, organizada por Silvana de Menezes e António de Macedo (em geral bastante fraca, a mais fraca das antologias da Simetria, salvando-se dois ou três contos da mediocridade geral).Os novos são:

- Outras Histórias..., de Gerson Lodi-Ribeiro é, como vem aliás explícito na capa, uma colectânea de contos de ficção científica e história alternativa. São em número de 12, divididos em 6 secções (2 em cada secção, naturalmente), algo que é característico das colectâneas deste autor brasileiro. Edição da Caminho (1997), 251 páginas.
- Guerra Sempre, de Joe Haldeman, é a célebre "resposta" deste autor ao inenarrável romance Starship Troopers, de Heinlein. Célebre e bem sucedida, visto que lhe trouxe vários prémios. Edição da Europa-América (2004), 242 páginas.

Come-me o cartão e sofre as consequências!

Há por aí uns tipos que teimam que as máquinas são mais rijas e eficientes que estas simples coisinhas de carne e osso que nós somos. Mas eis que de vez em quando uma história demonstra o erro. Esta chega da Ucrânia e tem como protagonistas uma rapariga de 14 anos e uma caixa multibanco. A caixa, na sua mecânica arrogância, achou por bem engolir o cartão da pequena ucraniana, sem dizer água vai. A miúda é que não esteve pelos ajustes: pim-pam-pum, ai não dás? Toma lá!, porrada para baixo, à mão desarmada, e eis que a caixa se vê reduzida a um monte de ferros retorcidos. Bem feita. É para aprender.

O saldo do incidente foi um prejuízo de 4500 libras. Não sei bem a como está o câmbio, mas acho que é mais ou menos o dobro em euros. Cuidado com as adolescentes ucranianas!...

Relação P/U

No Dilbert de hoje (não sou propriamente fã, mas leio), aparece uma coisa interessante: a relação P/U. Que é isto de P/U, perguntam vocês e o pobre do empregado também? É a razão entre a produtividade e a utilidade.

Se calhar era interessante aplicar o conceito à avaliação dos governos. Este, em particular, parece ter uma razão P/U infinita. Vejamos: tem produzido muitas coisas, logo tem tido uma produtividade alta, mas tudo o que tem produzido ou é errado, ou é escandaloso, ou é incompetência ou é poeira para os olhos, o que redunda numa utilidade de zero. Ou, para ser inteiramente justo: não é bem zero, é só infinitamente pequena.

Ora, já lá diziam os meus professores de matemática, quando se divide um valor não infinitesimal por um infinitésimo, o resultado é infinito.

terça-feira, 12 de outubro de 2004

Última hora da última hora

O atrasado mental já não tem concorrência. Que grande espancamento que deve ter havido naquele grupo parlamentar!...

domingo, 10 de outubro de 2004

Falar e fazer

Muito se tem dito sobre a inconsistência entre o que é dito e as acções concretas de quem diz as coisas. Quem nunca ouviu algum amigo ou conhecido a queixar-se, com desprezo mal disfarçado ou não desfarçado de todo, de que "os políticos" dizem uma coisa e fazem outra bem diferente? Ou, até, de que um dia dizem uma coisa e no dia seguinte o contrário? Há actividades e pessoas de que se espera este tipo de comportamento, mas a verdade é que ninguém parece estar imune a ele.

Em geral, isso não causa grandes problemas. Uma conversa a sério, um par de murros na mesa se for preciso, devolvem os pontos aos respectivos is e, com os pedidos de desculpa que forem necessários, implícitos ou explícitos, as coisas ficam relativamente bem. A confiança sofre sempre, mas pode-se continuar a lidar com as pessoas.

O problema é quando a incongruência entre o que se diz e o que se faz se revela um padrão. Há pessoas que falam e escrevem delicodocemente, derramando mel entre cada palavra e a seguinte, mas que passam a vida em conflitos com toda a gente. Há pessoas que se dizem solidárias e leais nas decisões mas procuram deturpar subterraneamente essas mesmas decisões em favor dos seus interesses ou das suas ambições.

Trabalhar com gente desta é possível só com uma dose muito grande de paciência e diplomacia. Paciência para estar permanentemente atento às manigâncias que vão saindo daquelas cabecinhas retorcidas, diplomacia para conseguir controlá-las sem prejudicar seriamente o trabalho. Só que tarde ou cedo as coisas acabam por rebentar. Porque nem sempre se acorda com os reservatórios de paciência cheios, e porque controlar este tipo de pessoas só é possível enquanto elas não se acham com poder suficiente nas mãos para fazerem o que quiserem: quando estão em meio igualitário, rodeadas de pessoas mais normais, ou então quando estão em posições subalternas num sistema hierárquico. Se um gajo destes sobe a chefinho, está tudo estragado.

A dificuldade é detectá-los a tempo. Como os mentirosos, que são capazes de enganar a maior parte das pessoas durante a maior parte do tempo mas não todas as pessoas durante todo o tempo, estes tipos também se costumam disfarçar bem até que qualquer coisa os desmascare perante a maioria. E como os mentirosos que acreditam nas suas proprias mentiras, também muitos destes indivíduos acreditam sinceramente na sua condição angelical e que quando a sua natureza lhes causa dissabores a culpa é dos outros, sempre dos outros.

No fundo, são uns tristes. Realmente tristes, dignos de pena. Há neles uma qualidade trágica importante — poucas coisas devem ser mais trágicas para uma pessoa do que assistir ao desmoronar do seu mundo e ser incapaz de compreender porquê. Mas a pena é uma qualidade abstracta e nada produtiva, que tem tendência a sumir-se quando as acções deste tipo de gente nos prejudicam a nós.

sábado, 9 de outubro de 2004

Aquecimento global?

Estamos a 9 de Outubro. Hoje, pela primeira vez nesta época, vesti uma manga comprida. Estamos a 9 de Outubro.

sexta-feira, 8 de outubro de 2004

Outra coisa que gostei de ler

E aqui está mais uma coisa que eu gostei de ler (obrigado, Goblin). O sacana do atrasado mental escreve bem. E é divertido. Agora ando nos divertidos, para ver se me tiram a cabeça de coisas tristes.

quinta-feira, 7 de outubro de 2004

Mais uma coisa que eu gostei de ler

Foi esta, neste blog que de vez em quando me faz rir à gargalhada, mesmo que não tenha vontade nenhuma disso antes. Como desta vez.

PS - Por qualquer razão que eu não compreendo, o Blogger decidiu repetir este post, dando aos dois URLs subtilmente diferentes e, mais estranho ainda, mantendo apenas um deles (que assim que publicar esta adenda vou descobrir qual é) na lista de posts. Sim, do outro só há sinal no próprio blog; na área de gestão é como se não existisse. Curioso, não é?

PPS - E agora, desapareceu o outro e ficou só este. LOL! É só rir...

quarta-feira, 6 de outubro de 2004

Nau Catrineta

Ali em baixo, disse que a Nau Catrineta era do Gil Vicente. Asneira.

A verdade é que não se sabe quem (e quando) escreveu a Nau Catrineta. O que se sabe é que Almeida Garrett recolheu o texto e acreditava que ele descrevia uma viagem datada de 1565. E também se sabe que Gil Vicente morreu em 1536, o que tem como consequência que, se Garrett tem razão, os versos não podem ser seus.

De onde me veio esta do Gil Vicente? Vinha no email. E eu, parvamente, não confirmei.

Censura

Ao contrário do que se passa ao nível daquela nebulosa, promíscua e rarefeita camada estratosférica onde se misturam os ministros e os patrões da imprensa, e apesar de ser azul, aqui a Lâmpada só censura insultos particularmente brutamontanos e spam.

Se eu acreditasse em alminhas do outro mundo, tinha a certeza de que Salazar estava cada vez mais satisfeito com o que se vai passando neste país que se vai esquecendo em passo acelerado do que significa viver em democracia.

Ou alguém põe travão nestes fachos, ou qualquer dia é preciso fazer outra revolução. E, convenhamos, não há pachorra para revoluções.

Os livros que estão ali ao lado

E lá se foram mais dois livros, olhos adentro. Seria interessante se ficassem armazenados num recanto qualquer do cérebro, palavra a palavra, letra a letra, mas não é isso que acontece, ou pelo menos se é eu não sei como se recupera tanto rigor. O Homem Ilustrado foi um deles (um dos melhores livros de Ray Bradbury, diz muita gente, e eu concordo. É excelente, embora antigo, e inclui contos que são clássicos da FC ou de géneros relacionados), e o outro foi Um Vulto nas Trevas de Simone Saueressig (bastante bom, embora tenha alguns dos defeitos típicos das edições de autor; a falta de uma revisão profissional que assassine todas as gralhas, por exemplo).

Para o lugar destes dois livros, chegaram outros dois:

- O Homem Duplicado, de José Saramago, é um romance (e um autor, naturalmente) que dispensa apresentações. Edição da Caminho (2002), 318 páginas.
- Planeta Duplo, de John Gribbin e Marcus Chown é um romance de FC que envolve um cometa gigante em rota de colisão com a Terra numa época em que a humanidade abandonou o esforço de exploração espacial. Edição da Europa-América (1990), 187 páginas.

terça-feira, 5 de outubro de 2004

Outra coisa que gostei de ler...

... foi este post aguçado do Cachapa.

Novo template

Devido a uma reinterpretação no modo como as regras do css funcionam, que fez com que o template da Lâmpada deixasse de funcionar convenientemente em alguns browsers mais recentes, fui forçado a mudá-lo. E como fui forçado a mudá-lo, resolvi fazer algumas alterações extra, mais na maneira como as coisas são feitas do que propriamente no visual global.

Não o testei em todos os browsers possíveis antes de o pôr em efeito, portanto se há alguma coisa que não funciona com o vosso sistema, avisem.

segunda-feira, 4 de outubro de 2004

A Roménia é um país muito estranho!

Já não chegava o Drácula e o Ceausescu, agora aparecem notícias sobre um homem de 67 anos que, farto de ouvir cacarejar a mais barulhenta das suas galinhas, resolveu, num impulso, cortar-lhe o pescoço. Só que o homem, vá-se lá saber como, confundiu o pescoço da galinha com o seu próprio pénis e schlack, capou-se. Se isto não fosse suficiente para lhe assegurar um lugarzinho nos anais da bizarria, eis que o seu cãozinho resolve entrar na história: talvez por achar apetitosa a "salsicha", quiçá num esforço para manter o galinheiro limpo e em boas condições para as galinhas, o certo é que engoliu o membro decepado. Parece que, apesar de tudo, o velhote se safou. A notícia não diz nada sobre o estado de saúde do cão. Nem da galinha.

Da próxima vez que pensarem coisas como "isto só em Portugal", lembrem-se desta história...

O «roubo do século»

Hoje, o Público traz uma notícia acerca do roubo de dois diamantes, que parece que são valiosíssimos, de uma vitrine na Bienal dos Antiquários, em França. Parece que a coisa foi tão bem feita que as pedras desapareceram bem de debaixo do nariz de uma quantidade de gente sem que ninguém desse por nada. O Público, talvez influenciado por manchetes na imprensa francesa, chama à coisa "roubo do século".

Hum... esperem lá... o século começou, quê, há três anos e meio? Faltam para que ele acabe, tipo, uns noventa e seis anos, mais hora, menos hora? E já houve o "roubo do século"? Já?! Não acham, se calhar, um bocado cedo?

Quando os clichés substituem, nos jornais, a inteligência, acontecem coisas destas.

Chegou-me por email mais uma coisa que gostei de ler

Numa demonstração da existência de sincronicidades várias neste mundo, no momento em que o Paulo Querido publicava um excelente e muito recomendável (sim, também gostei de o ler) texto acerca de blogues, internet, jornalismo e anonimato, parcial ou total, chegou-me por correio electrónico um óptimo texto de um anónimo a glosar a Nau Catrineta do Gil Vicente. Ei-lo:

NAU CATRINETA

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar

São Paulo Portas à proa
Santanás a comandar

Ouvi agora senhores
Uma história de pasmar

D. Bagão conta o pilim
D. Morais trata das velas

D. Guedes limpa com VIM
Tachos, pratos e panelas

D. Pereira na enfermaria
Conta pensos e emplastros

E o D. António Mexia
Põe vaselina nos mastros

D. Durão deu à soleta
Enjoou de andar à vela

E Santa Manuela Forreta
Largou-os sem lhes dar trela

Aflito El-Rei Sampaio
Com estas novas tão más

Disse aos bobos de soslaio
Chamai lá o Santanás

Aqui estou meu Senhor
Vós mandastes-me chamar?

Soube agora desse horror
D. Durão vai desertar?

Cala-te lá meu charmoso
Não me lixes mais a vida

Troco um cherne mal-cheiroso
Por um carapau de corrida?

Pobre da Nau Catrineta
Já lamento a tua sorte

Esta marinhagem da treta
Nem sabe onde fica o Norte

Parece que já estou vendo
Em vez de descobrir mundo

Ao primeiro pé de vento
Espetam com o barco no fundo

Ou então este matraque
Com pinta de Valentino

Gasta-me a massa do saque
Nas boîtes do caminho

Não se aflija meu Rei
Que agora vou assentar

Pois depois do que passei
Cheguei quase onde quis chegar

E por aquilo que passei
Aqui, que ninguém nos escuta,

Eu quero mesmo é ser Rei
E vamos embora, à luta!!!

sábado, 2 de outubro de 2004

E outra coisa que eu gostei de ler...

... foi esta.

Eu gosto de ler as coisas mais diferentes umas das outras, não acham? Quando era mais novo, julgava que éramos todos assim. Tão ingénuo que eu era nesses tempos...

sexta-feira, 1 de outubro de 2004

A morte da Joana ou o povo

O Luís Ene tem vindo a publicar uns quantos posts sobre este assunto e quero dizer que subscrevo quase cada uma das suas palavras. Mas agora que as coisas estão mais calmas quero acrescentar qualquer coisa que vai para além das queixas que ele debita relativamente à comunicação social. Quero falar do povo.

Tem-se dito por aí que "o povo" isto, e "o povo" aquilo, querendo-se com "o povo" designar aquelas centenas de imbecis que vão, entre insultos, gozar o espectáculo de uma família tragicamente disfuncional (pelo menos isso já está provado) para a Figueira ou para as imediações do tribunal de Portimão. É o mesmo tipo de raciocínio que levou as televisões a fazer directos insuportavelmente longos a partir do Barlavento algarvio. A ideia de que é aquilo que "o povo" quer.

A verdade é que o povo não é aquilo. O povo, os dez milhões de portugueses que o constituem, não tem nada a ver com aquilo. Mesmo se reduzirmos o povo às suas camadas mais desfavorecidas, pouco de comum há entre ele e aquela gente para além de ela ser uma parte dele. O povo terá, sim, ficado chocado com o crime, pelo menos aquele povo que não se esteve nas tintas para ele, mas não se vai amontoar em cima do tribunal aos berros de "assassino", "puta" ou "o que faz falta aqui é a PIDE".

Tanto assim que para que a reunião de imbecis em Portimão tivesse aquelas centenas de componentes foi preciso "importá-los" não só dos concelhos limítrofes de Lagos, Silves e Lagoa, mas até do Alentejo. O povo, na sua esmagadora maioria, ficou em casa. Talvez chocado, mas a tratar das suas vidas e à espera que a justiça funcionasse. Mesmo os 40 mil habitantes do concelho de Portimão (o povo de Portimão), que não teriam de se deslocar muito para se irem juntar à maralha. Ficaram quase todos em casa.

Que é que isto quer dizer?

Quer dizer que quando se aponta para aquela gente e se diz "o povo" está-se a insultar o povo verdadeiro, está-se a imbecilizá-lo, está-se a subumanizá-lo. E isso, meus caros, não é inocente.

quinta-feira, 30 de setembro de 2004

E o pior de tudo...

E o pior de tudo é que nem sequer podemos mandá-los roubar prá estrada!

Sobre ladrões e ladroices

Se a cleptocracia que nos assalta quotidianamente não tem dinheiro disponível em quantidade suficiente para pagar as reformas milionárias de gatunos incompetentes, não há qualquer problema: transformam-se vias rápidas em auto-estradas e cobra-se portagens aos papalvos que são obrigados a passar por elas todos os dias.

E há qualquer problema: a massa de imbecis que vota nos ladrões em todas as eleições vai continuar a votar. Afinal, para a maioria desses atrasados mentais o grande sonho de vida não é que os cleptocratas desapareçam e deixem em paz os cidadãos desta terra: é passarem, eles próprios, a fazer parte do bando.

terça-feira, 28 de setembro de 2004

Os livros que estão ali ao lado

Agora sem setinha, que vocês já sabem onde fica o "ali ao lado", eis o que há de novo e de velho nos livros que ando a ler. Desde a última vez, acabei a colectânea do Mário-Henrique Leiria Casos de Direito Galáctico (um livrinho de FC surrealista decididamente delicioso. Altamente recomendável) e o número 8 da revista Em Cena (parece-me que é consensual que este foi o melhor número de Em Cena até à data, e eu, ao menos neste caso, estou de acordo com os consensos). Para substituir estes dois títulos, chegaram:

- Um Vulto nas Trevas, de Simone Saueressig, é uma ficção juvenil onde tem relevo um casarão assombrado. Edição da autora, que pretende prosseguir com a edição destas pequenas ficções numa colecção própria (2004), 77 páginas.
- A Viagem, editada por Silvana Moreira e António de Macedo, é a última das antologias bilingues de FC&F, lançadas pela Simetria por ocasião dos encontros de Cascais. São 11 contos de outros tantos autores, em português e em inglês. Edição da Simetria (2000), 164 páginas na parte portuguesa.

sábado, 25 de setembro de 2004

Mais uma coisa que eu gostei de ler

Foi esta. Es-pe-cta-cu-lar! E tu? Votas no Hugo ou não votas?

quinta-feira, 23 de setembro de 2004

Outra coisa que eu gostei de ler

Foi esta. Uma belíssima peça de sarcasmo, para a compreensão plena da qual se aconselha a leitura (prévia ou póstuma) do post anterior.

E viva a RTP-M!

Sobre "Relatório de Activos do Sistema de Epsilon Indi"

OK, este spam fiction tem muito de que falar. Para começar, não é um conto: é uma carta comercial ficcionada. Este tipo de experiências não costuma resultar particularmente bem quando isoladas, mas integram-se muitas vezes perfeitamente em trabalhos mais longos. Esta não é excepção quanto à primeira parte (penso eu de que), e quanto à segunda, é possível que acabe por ser esse o seu destino.

Depois, que raio vem a ser Epsilon Indi? Trata-se de uma estrela anã laranja, uma das estrelas que ficam mais perto do Sistema Solar, a apenas 11,8 anos-luz de distância. Já se lhe conhecem dois companheiros substelares que, no entanto, não são planetas: são anãs castanhas. Aqui, ganha não só mais alguns planetas mas vida indígena e uma exploração comercial terrestre que obedece a todas as regras do capitalismo ultraliberal.

Depois, que é isso do "ansible"? O ansible é um aparelho "inventado" pela escritora americana Ursula LeGuin numa série de romances de FC, que permite a comunicação instantânea em distâncias interstelares. Partindo do pressuposto de que a matéria se pode reduzir a um estado especial de informação, eu tomo algumas liberdades com o venerável aparelho da não menos venerável Ursula, utilizando-o como um meio de transporte.

Quanto ao resto, acho que ou é compreensível pelo contexto, ou não interessa particularmente saber-se o que é.

Spam fiction (9)

Relatório de Activos do Sistema de Epsilon Indi


Baseado num spam intitulado "Stellar Stock Report"


De: Companhia Import-Export Ansibilina (CIEA), delegação de Epsilon Indi
Para: Sociedade Interestelar de Exploração e Transporte
Assunto: Relatório de Activos do Sistema de Epsilon Indi e Expectativas de Crescimento Futuro
REF: Comunicação Ansible nº 45552 - R - 77231 SIET



Em resposta à vossa solicitação datada de 235/2331, Calendário Padrão Universal, temos a informar o seguinte:

O relatório de activos armazenados nos porões do terminal Ansible do sistema de Epsilon Indi, em situação de pré-trânsito para o sistema Sol é o seguinte:

- Trinta e duas toneladas de bulbos optico-faríngicos de quimera-prateada em estado de preservação criogénica, com prazos de validade variáveis entre 21/2332 e 180/2335 CPU;
- Três gemas azuis de grandes dimensões, totalizando setecentas e vinte e quatro toneladas;
- O Circuito Central de Reprogramação de um robot exploratório Mitsudai. Este item tem reservada passagem de ida e volta;
- Oitenta e cinco painéis de dados pessoais, de peso padrão;
- Sete painéis de dados pessoais com protecção tipo 1 (metapersonalidades) de peso padrão;
- Cento e noventa e nove painéis de dados administrativos de peso padrão;
- Vinte e quatro painéis de dados científico-técnicos de peso padrão;
- Dois contentores com carga classificada, à responsabilidade da Central Interestelar de Alimentação. Os contentores são propriedade da CIEA e têm também reservadas passagens de ida e volta. Têm ainda restrições ao manuseio de tipo 2. O peso total é de duas toneladas e meia;
- Dois exemplares de Heptapedia indiea em hibernação induzida, armazenados em dois Recipientes de Bioamostragem EI 2 com respectivos sistemas de apoio de vida, cápsulas de emergência e técnicos agregados. Os técnicos agregados, em número de quatro e de espécie humano-terrestre, encontram-se em estado de armazenamento para fins de inventário e optimização de carga, mas na realidade estão sujeitos ao sistema-padrão de prontidão de 100 impulsos. Levando em conta a carga pessoal dos técnicos agregados, este item totaliza sete toneladas;
- Duzentos e quarenta e três carregamentos-padrão de biopetróleo;

Mais se informa que é expectável que a quantidade de activos em situação de espera nos porões do terminal Ansible de Epsilon Indi sofra um aumento de 5,8% durante o próximo ano-padrão (4,9% em volume e 6,4% em massa), o que causa preocupações quanto à logística futura do armazenamento, tendo em conta que, segundo o relatório nº 23/2331 SIET, os porões se encontram com 87% da sua capacidade ocupada e os nossos concorrentes, segundo dados do mercado, prevêm taxas de crescimento semelhantes às nossas.
Tem-se entretanto assistido a algumas situações que nos causam preocupação, nomeadamente nas prioridades atribuídas aos produtos perecíveis. Chegou ao conhecimento da nossa empresa que um grifo-de-membranas, propriedade da Indianacom, foi transmitido a 211/2331 CPU, dia em que o transmissor estava em manutenção, de acordo com a comunicação Ansible nº 43687 - T - 12596 SIET, que nos dava conta do adiamento sine die da transmissão de uma remessa dos nossos bulbos de quimera-prateada, transmissão essa já devidamente paga através dos canais oficiais. Há rumores não confirmados de outras situações do mesmo género envolvendo não só a Indianacom, mas também a Intersol e a Companhia de Desenvolvimento das Anãs Vermelhas. Ao certo sabemos que o número de impulsos em que o terminal de Epsilon Indi esteve oficialmente encerrado devido a problemas técnicos subiu 10,2% este ano, o que é um valor muito elevado em condições normais de operacionalidade.
Gostaríamos de solicitar a máxima atenção e o máximo cuidado com este tipo de situação, visto que a fiscalização se tem revelado permeável. Lembramos que temos sido desde sempre o principal cliente da SIET, e faremos todos os possíveis para manter essa condição, no respeito escrupuloso, claro está, das leis da concentração empresarial. Para tal contamos com a vossa compreensão e solicitamos a transmissão prioritária, de preferência durante os próximos três dias, dos Heptapedia que se encontram em armazém. Um prémio de boa vontade já se encontra, para o efeito, depositado na vossa conta no off-shore do Habitat Lagrange Vénus-2.
Caso nos seja fornecida uma compensação adequada para os prejuízos decorrentes do caso Indianacom, estamos preparados para fornecer um novo prémio de igual valor, a depositar noutra das vossas contas off-shore. Sabemos da existência, nos armazéns de Epsilon Indi, de um contentor funerário em más condições, pertencente à Indianacom, cujo nível de prioridade é urgente. Sem querer sugerir um adiamento, por respeito à dor da família, sem queremos contribuir para a degradação da imagem da Indianacom junto dos seus clientes, por uma questão de lealdade comercial, e no respeito absoluto pelo princípio do tempo de espera para prioridades iguais, gostaríamos, todavia, de ver pelo menos duas das nossas gemas azuis, que já estão em depósito há bastante tempo, tratadas com o mesmo nível de prioridade do contentor da Indianacom.
Sem mais de momento, e na esperança da continuação de uma relação comercial que vem sendo mutuamente benéfica, subscrevo-me,
Nicolao Han
director-executivo da CIEA, delegação de Epsilon Indi

terça-feira, 21 de setembro de 2004

A monumental gargalhada

A ministra (hahahaha) da educação (hehehehe) convocou a imprensa para produzir esclarecimentos (hihihihi) sobre o caso dos atrasos no concurso (huhuhuhu) de colocação (hahahaha) dos professores. Directo após directo, as televisões esperaram... e a ministra não apareceu. Atrasou-se...

Acho que desta vez até os professores se riram à gargalhada. Até os que ainda estão à espera dos resultados, os que já devem estar a roer os cotovelos de ansiedade, os que têm a vida no arame por causa de tamanha incompetência. Até esses devem ter ficado agarrados às barrigas respectivas de tanto rir.

Sempre se salva alguma coisa.

segunda-feira, 20 de setembro de 2004

Testicles on Waives

Bute lá disparatar um bocadinho, com mais uma coisa que recebi via email (erros de português incluídos no pacote - não tive paciência para correcções)...

O barco tripulado pela organização portuguesa Testicles On Waives abandonou hoje a sua missão na Holanda. Tendo chegado, uma semana antes, ao limite das águas territoriais Holandesas, este grupo de homens portugueses pretendia libertar as mulheres holandesas, sendo que neste pais elas engravidam muito pouco e existe um enorme número de lésbicas. O presidente da organização, Zézé Camarinha, falara-nos da sua missão "Epá, eu adoro lésbicas... daa-se, quem é que não adora? Mas agora, desde que um gajo depois possa entrar no meio, duas mulas suecas aos pinotes e estes frouxos não entram na brincadeira? É uma vergonha pá, é o terceiro mundo. Isto lá na pátria não é assim".
O governo holandês não permitiu a entrada do barco nas suas águas territoriais, alegando que havia intenção copulatória por parte dos seus tripulantes, usando como prova o elevado nível de testosterona, evidente na cobertura em pêlo do calcanhar até aos ombros de todos os tripulantes. O Ministro da Defesa enviou mesmo uma fragata para defender o direito das mulheres holandesas ao lesbianismo. Após uma semana de intensa polémica, Zézé Camarinha, bem como os restantes membros dos Testicles on Waives, mostravam-se conformados. "Epá, que posso fazer?" perguntava Zézé "Já deixámos no nosso site informações sobre em que praias do Algarve as holandesas podem vir arranjar um macho latino. Temos pena que a deslesbianização seja criminalizada neste país. È o terceiro mundo, que mais posso dizer. Lá na praia da Rocha nenhuma lésbica dura mais de dez minutos...heh, ai não, que não...!"


Isto fez-me lembrar o defunto MacJête, não sei bem porquê...

Quarenta mil

Hoje, a Lâmpada amanheceu com o sitemeter a dar conta de um total de quarenta mil visitas desde que foi instalado em Maio do ano passado. É uma cidade média. A todos, espero que tenham gostado da visita, mesmo que saiba perfeitamente que o terço que cá chegou à procura de uns minutos de masturbação com fotografias da Carla se foi embora muito desapontado.

Foi também hoje que acabou a ligação da Lâmpada ao Enetation. A partir de agora há só um sistema de comentários, e todos os antigos desapareceram, puf. A intangibilidade dos blogues é assim.

domingo, 19 de setembro de 2004

Impostos

Há dias recebi uma mensagem por email, sem informação sobre a sua autoria, que não resisto a reproduzir aqui:

Em cada 100 EUR que o patrão paga pela minha força de trabalho, o Estado, e muito bem, tira-me 20 EUR para o IRS e 11 EUR para a Segurança Social.
O meu patrão, por cada 100 EUR que paga pela minha força de trabalho, é obrigado a dar ao Estado, e muito bem, mais 23,75 EUR para a Segurança Social.
E por cada 100 EUR de riqueza que eu produzo, o Estado, e muito bem, retira ao meu patrão outros 33 EUR.
Cada vez que eu, no supermercado, gasto os 100 EUR que o meu patrão pagou, o Estado, e muito bem, fica com 19 EUR para si.

Em resumo:
- Quando ganho 100 EUR, o Estado fica quase com 55;
- Quando gasto 100 EUR, o Estado, no mínimo, cobra 19;
- Quando lucro 100 EUR, o Estado enriquece 33;
- Quando compro um carro, uma casa, herdo um quadro, registo os meus negócios ou peço uma certidão, o Estado, e muito bem, fica com quase metade das verbas envolvidas no caso.

Eu pago e acho muito bem, portanto exijo:
- Um sistema de ensino que garanta cultura, civismo e futuro emprego para o meu filho;
- Serviços de saúde exemplares. Um hospital bem equipado a menos de 20 km da minha casa;
- Estradas largas, sem buracos e bem sinalizadas em todo o País;
- Auto-estradas sem portagens;
- Pontes que não caiam;
- Tribunais Com capacidade para decidir processos em menos de um ano;
- Uma máquina fiscal que cobre equitativamente os impostos.

Eu pago, e por isso quero ter:
- Quando lá chegar, a reforma garantida;
- Jardins públicos e espaços verdes bem tratados e seguros;
- Polícia eficiente e equipada;
- Os monumentos do meu País bem conservados e abertos ao público, uma orquestra sinfónica;
- Filmes criados em Portugal;
- E, no mínimo, que não haja um único caso de fome e miséria nesta terra.

Na pior das hipóteses, cada 300 EUR em circulação em Portugal garantem ao Estado 100 EUR de receita.
Portanto Sr. Primeiro-ministro, governe-se com o dinheirinho que lhe dou porque eu quero e tenho direito a tudo isto.

Um português contribuinte.

quinta-feira, 16 de setembro de 2004

Mais uma coisa que gostei de ler

Foi esta. Mas mais do que ter gostado de ler este texto o que realmente importa foi o que gostei de relembrar uma magnífica canção do Rui Veloso, esquecida num dos seus álbuns, e que sempre me fascinou pela maneira como foge dos padrões habituais das canções e pela maneira como a música se adapta ao texto.

A vida também é feita destes nadas.

Outra coisa que gostei de ler

E desta devo dizer que gostei mesmo muito. Aliás, a verdade verdadinha é que se eu fosse editor este blog era um grande candidato a passar ao estado-papel. Não sei se o Pedro vai mandar coisas ao Luís, mas sinceramente espero que o faça.

terça-feira, 14 de setembro de 2004

Coisas que gostei de ler

De vez em quando há coisas que um tipo gosta de ler nas viagens pela blogosfera. Mas normalmente são pequenos prazeres egoístas que se têm em solitário e não se transmitem a ninguém. É má onda. Se a blogosfera permite fazer links, mais vale que eles se façam. E eu acho que vou passar a fazê-los.

Pois eu cá gostei de ler isto.

Resposta à pergunta feita ao meu umbigo

Logo vi que os gajos tinham a dizer qualquer coisa sobre o tal assunto...

segunda-feira, 13 de setembro de 2004

Uma pergunta ao meu umbigo

Pergunto ao meu umbigo (olá umbigo!) se estes gajos não terão qualquer coisa a dizer sobre isto... eu se fosse a eles, tinha. Ai tinha, tinha!...

Sobre "Caio"

A oitava (ou sexta) Spam Fiction é também a mais curta até agora, mas tem umas coisinhas a comentar, nomeadamente sobre o atravessa-rua. A história do atravessa-rua começa há muitos anos, quando eu andava na escola secundária, no princípio do caminho que iria levar ao 12º ano. O livro de português desse ano foi o mais divertido do meu percurso escolar, porque parte do programa tinha a ver com a aprendizagem da capacidade de reconhecer diferentes tipos de texto e havia lá de tudo: contos e extractos em prosa, poemas, letras de canções, artigos de jornal, e até BDs.

Uma das BDs era uma coisa curta e divertida, na qual uns tipinhos azuis, obviamente extraterrestres, tinham uma maneira curiosa de atravessar a rua: subiam até ao telhado dos edifícios onde estava um revólver gigante, calçavam uns sapatos com ventosas, subiam para o revólver, metiam-se numa câmara vazia, esperavam pela sua vez e PUM! lá iam eles.

Ao escrever este pequeno conto, essa BD veio-me à memória, por qualquer motivo, e daí até recauchutar o aparelhómetro foi um pequeno passo.

Spam fiction (8)

Caio


Baseado num spam intitulado "Try again.........."


Caio está de novo no apartamento. Caio abre a porta para a rua com violência (blã!). Caio sai. Caio corre pela calçada neoclássica o mais rápido que consegue (tump-tump-tump-tump-tump-tump). Caio chega ao atravessa-rua. Caio entra no atravessa-rua e fecha a porta com violência (cltung!). Caio é soprado para o outro lado da rua (fuuch!) respirando com difuculdade. Caio cai do atravessa-rua já a correr. Caio corre, calçada fora o mais rápido que consegue. Enquanto corre, caio só tem um pensamento (mais rápido! Tenho de ser mais rápido! Tenho de ser). Caio chega à escadaria. Caio sobe as escadas quatro a quatro. Caio chega ao topo exausto (auch!) sem saber como conseguiu. Caio tem de parar dois segundos porque o coração parece querer saltar-lhe do peito. Mas não pode (não posso!) descansar e põe-se de novo em movimento. Caio penetra no parque, já em corrida. Caio corre pela relva o mais rápido que consegue (flut-flut-flut-flut-flut-flut). Caio esbarra contra a velha que sai de repente de trás duma árvore. Caio cai. A velha grita. Caio rebola. A velha grita e gritam as pessoas que rodeiam a velha. Caio levanta-se num salto. As pessoas no parque começam a correr atrás dele (agarra que é ladrão!). Caio é forçado a fintar uma floresta de mãos que se erguem para si (agarra que é gatuno!) e escudos pessoais que se erguem em defesa. Mas Caio corre, corre sempre. Caio penetra mais fundo no parque, deixando os perseguidores para trás. Caio já está com a cara muito vermelha do esforço e a camisa empapada de suor. Caio chega ao topo do parque. Caio desce as escadas seis a seis. Caio chega à avenida. Caio não sabe como não torceu um tornozelo vinte vezes. Caio corre pelo passeio. Caio vê-a, lá ao fundo, na paragem do jactocarro. Caio vê o assassino que se aproxima, com as mãos enfiadas nos bolsos do blusão. Caio grita (Susana!), mas ela não o escuta. Caio corre pelo passeio o mais rápido que consegue (tomp-tomp-tomp-tomp-tomp-tomp). Caio tropeça numa raiz que tenta furar o revestimento de cimento do passeio. Caio desequilibra-se e falha um passo. Caio cai (ai!) batendo com o joelho no chão. Caio levanta-se com uma faca espetada no joelho. Pelo menos é o que parece. Caio tenta correr, mas só coxeia. Caio vê o assassino que se aproxima, começando a retirar as mãos dos bolsos do blusão. Caio grita de novo (Susana!), mas ela não o ouve. Caio percebe que ela está ligada ao canal e só os olhos funcionam como interface com o mundo exterior. Caio tenta correr, mas só coxeia. Caio chega ao último (o único) cruzamento. Caio vê que o assassino já tem a arma apontada para a cabeça dela. Caio procura o atravessa-rua. Está muito longe, Caio não tem tempo. Caio tenta atirar-se a correr por entre o tráfego, mas só coxeia. Caio grita (Susana!), mas ela não repara nele. Caio é atingido pelo jactocarro. Caio pressiona o botão da máquina do tempo. O assassino dispara. Ela morre. Caio morre, atropelado.
Caio está de novo no apartamento.

Chegou a guerra a Portimão!

Ah, não. Afinal é fogo de artifício. Ganda pinta! Morteiros à 1 da manhã!

domingo, 12 de setembro de 2004

Mais um spamema na Em Cena

Rima e é verdade.

Saiu há dias o número 9 da revista Em Cena, cuja capa podem ver aqui ao lado, contendo mais um dos meus spamemas, o segundo a transitar do mundo dos bits e bytes para o mundo da celulose e dos corantes. Chama-se Olhe pela janela e é um dos primeiros spamemas a sair na Lâmpada, ainda o nome genérico da coisa não tinha sido inventado. Na Em Cena, está ilustrado pela Gabriela Soares.

Desta vez, tenho como colegas de revista, na parte escrita, Luís Ene, Isa Catarina Mateus, Danylo Americano, Isaías Fanlo, Patrícia Oliveira, Dr. Sibelius, Paulo Penisga, Prudência, Yoannan, Ana Soares, Joaquim Ferreira Morgado, Mirian Tavares, Vítor Reia, "Tuxa Vairada", Luís Arenas, "D. Raquel Cócó" e Paulo Rodrigues, entre contos, poemas (ou, no meu caso, spamema), crónicas, artigos e outros textos de mais difícil identificação.

sábado, 11 de setembro de 2004

<-------- Os livros que estão ali

Os livros que estão ali ao lado mudaram muito pouco ao longo do verão, por vários motivos. Basicamente, limitei-me a acabar O Romance de Nostradamus — O Abismo, de Valerio Evangelisti (razoável, tal como os dois volumes anteriores, muito embora seja neste que o elemento fantástico mais se acentua. Mas não é um grande livro) e a Antologia do Esquecimento, do Henrique (poesia? Eu não percebo nada disso. Mas achei irregular: gostei bastante de alguns poemas, pouco de outros e não gostei de outros, valendo a minha opinião coisa nenhuma).

Para substituir estes dois livros, chegou um livro e uma revista:

- Casos de Direito Galáctico, de Mário-Henrique Leiria, é uma compilação de... bem... casos de estudo de direito galáctico, a que se acrescentam pequenas histórias sobre o inquietante mundo de Josela. Edição da Editorial República (sem data), 83 páginas.
- Em Cena, nº 8 é uma revista de artes editada pela Sociedade Recreativa Artística Farense na Primavera de 2004. São 102 páginas de contos, poemas, crónicas, artigos, etc., tudo profusamente ilustrado.

E viva a cóltura!

Estes gajos, tudo o indica, estão marafados com a (in)existência de uma coisa chamada Faro, Capital da Cultura 2004. Deixem-se disso, meus. Que se lixe a cultura. A malta quer é cóltura! Cóltura!

Além disso, quanto pior for a cena em Faro, mais gozo terá fazer uma cena melhor em Portimão, daqui a uns anos... ;)

quarta-feira, 8 de setembro de 2004

Sobre "Avaria"

Aqui está a sexta Spam Fiction (ou a quinta, dependendo do método usado para as contar). De regresso aos contos mais curtos, este é um conto que não passa de uma sucessão de mensagens deixadas num atendedor de chamadas, o que é bastante claro para quem o ler. É, além disso, a minha primeira incursão neste tipo de história, no fundo pouco mais do que uma actualização de um velho tema. O disclaimer é o de sempre: trata-se de um primeiro esboço, etc., etc.

Spam fiction (6)

Avaria


Baseado num spam intitulado "Urgent - Call me"


Por favor, telefona-me quando chegares a casa. O carro avariou. Estou aqui perdido no meio do nada e sem dinheiro para o reboque. Não sei a quem ligar. Um beijo.
Olá, sou eu outra vez. É só para te pedir que telefones ao Zé, o de Serpa, antes de me telefonares a mim. Diz-lhe que tenho o carro avariado e não vou chegar a tempo. Ele que me ligue mais tarde, se quiser. Eu telefonava-lhe, mas esqueci-me de memorizar o número aqui no telelé. Merda de cabeça a minha. Enfim... já sabes como é. Olha, não demores em chegar a casa, ok? Um beijo.
Tou? Não acredito! Ainda o atendedor? Era só para ver se não te tinhas esquecido de ver as mensagens, mas estou a ver que ainda não chegaste a casa. Bolas. Bom, olha, não tem nada a ver com nada, mas o céu está-se a pôr feio. Ainda chove. Até logo.
Bolas! Quando voltar a casa, a primeira coisa que faço é mudar essa mensagem. Onde te meteste, Joana? Preciso de ti. Telefona-me. Chau. Ah, começou a chover, e o céu está a ficar preto. Mas preto. É só isso.
Tá? Tás-me a ouvir? Tás a ouvir esta barulheira? Trovoada. Tou com o sacana do carro avariado no meio duma trovoada enorme. Não sei se saia se fique cá dentro. E não passa ninguém por aqui, parece uma estrada fantasma. Telef... (ouviste? Este ainda foi longe)... Telefona-me com urgência. Até já.
Foda-se, Joana! Atende-me essa merda, se fazes favor! Tenho de falar contigo com urgência! Com urgência! Ur-gên-ci-a! E desculpa estar a gritar, mas começou a cair granizo há bocado. Isto está muito feio. E acho que o sol se está a pôr, mas não consigo ter certeza com este tempo. Merda!
Olha, Joana, é só para te dizer que já não é preciso telefonares-me. Resolvi ligar ao 112 e eles dizem que vem uma viatura a caminho. Ah, o granizo parou entretanto. É isso.
Tou? Sou eu outra vez. A tal viatura do 112 não há meio de chegar. Se calhar é melhor telefonares na mesma. Mas onde diabo te meteste? Começo a ficar seriamente preocupado contigo, sabias? E acho que a trovoada vem de volta. Bom. É melhor poupar bateria. Até logo.
Joana, por favor telefona-me! Estou no banco de trás do carro depois de ser corrido do banco da frente por uma granizada tão grande que partiu o pára-brisas. Agora está mais calmo, mas ainda se ouvem trovões ao longe, e o céu está cheio de clarões. Estou ensopado e cheio de vidrinhos e de frio. Não estou ferido, felizmente, mas ainda apanho uma pneumonia aqui. Ninguém atende do 112, por qualquer motivo que não consigo perceber. Começo a ficar com medo, Joana. Medo. Que raio de viagem! Telefona-me.
Nada? Continuas sem chegar a casa? Raios partam! Se tivesse aqui uma lista telefónica, era agora que começava a telefonar para os hospitais. Se tivesse uma lista telefónica ou então se alguém atendesse do 112. Que país, este, em que nem os números de emergência funcionam! Porra pra isto!
Pois, já esperava. Nem sei porque continuo a tentar... olha, agora só à meia-noite.
Joana? Joana? Atende o telefone. Merda! Será que vou ter de passar a noite aqui? Olha, ao menos já não chove. Este é o último telefonema que faço, que já percebi que isto é perda de tempo. Se ainda ouvires isto hoje, até amanhã. Não! Que raio estou eu práqui a dizer? Se ainda ouvires isto hoje, telefona-me logo, por favor. O telemóvel vai ficar ligado. Até logo.
Não é nada. Precisei de ouvir uma voz humana, mesmo gravada, foi só isso. Passar uma noite sozinho no meio de coisa nenhuma é muito esquisito. A cabeça começa a pregar partidas. Amanhã logo te conto. Agora vou desligar.
Se tiveres alguma coisa ligada, a televisão ou a aparelhagem, uma coisa dessas, desliga-a. Agora escuta. Parou. Ah! Ouviste? Um som que parecem gritos ao longe? Ali está outra vez. Ouviste? Sempre gostava de saber que animal faz um som daqueles. É de pôr os cabelinhos da nuca em pé. Começa-me a parecer que não vou conseguir pregar olho a noite inteira. Ao menos parou de chover. Lá está. Ouviste? Estranhíssimo. Vou desligar.
Tou. Olha, mudei de ideias quanto à compra de um rádio para o carro. Tinhas razão: devíamos ter um. Queria só dizer-te isso. Chau.
Sim. Espero que me consigas ouvir. Estou a falar baixinho porque anda qualquer coisa lá fora. Ouço-a a remexer nos arbustos da berma da estrada. Parece... ouviste? Agora ouviste o guincho, de certeza. Tem vindo a tornar-se mais forte ao longo da última hora e agora parece que está mesmo aqui ao lado. Acho que vou sair do carro. Estou-me a sentir encurralado aqui dentro. Só consigo ver alguma coisa de jeito através do vidro partido, que os outros estão todos embaciados. Além do mais, agora não chove. Vou sair. E vou pôr o telemóvel em modo silêncio, também. Sim, é isso mesmo que eu vou fazer.
A Lua nasceu, e de vez em quando espreita entre as nuvens, como agora. Não acreditas no que eu estou a ver. Nem eu acredito. É um... acho que olhou para cá. Desligo.
Olá, Joana. Se chegares algum dia a ouvir isto, fica sabendo que te amo. Eu sei, eu sei, sempre disse que estas conversas são lamechices inúteis, mas olha, hoje deu-me para aqui. Ver certas coisas muda um bocado as perspectivas das pessoas, sabes? Ver ou sentir, que agora que aquilo se foi embora não consigo ter a certeza de não ter sido um delírio qualquer. Não sei o que será mais assustador, aquilo ser real ou não ser. Ser ou não ser, que pensamento tão original! Chiu! É aquilo outra vez. Desligo.
Bem, são quase cinco da manhã. Provavelmente vou conseguir ver a luz do dia, mas caso não consiga, aqui vai. Tenho de aproveitar enquanto ainda tenho bateria no telemóvel, agora que aquilo se foi embora, para te dizer algumas coisas. Vi esta noite uma coisa inacreditável. Um monstro. É a única palavra possível: monstro. Nem sei descrevê-lo (até porque nunca o consegui ver bem - só um vulto escuro num luar fraco). Mas é enorme. Como um cruzamento entre um dinossauro e uma rã, ou coisa do género. Enorme. Anda pelos montes soltando aquele guincho que deves ter ouvido. Nunca percebi tão bem o velho cliché de "fazer gelar o sangue" como esta noite. Passou a noite inteira dum lado para o outro (ou então eram vários, não faço ideia), e fez várias visitas ao carro. Tenho a certeza de que se não me tivesse escondido nesta moita, não estaria agora a falar para ti. Aquilo chegou até a pegar no carro e a metê-lo na boca! Acho que tem andado à minha procura, mas nunca se aproximou muito, felizmente. Acho que não ia aguentar. Ia desatar a correr, e provavelmente a coisa apanhava-me com toda a facilidade. Claro, há a hipótese de eu estar a imaginar tudo isto. Se não ouviste guincho nenhum nas gravações, é provável que seja isso mesmo que se... olha... lá está ele outra vez. Agora está longe, se calhar não ouves. Por que gritará aquilo daquela maneira? Olha... outra vez, mais alto. Deve estar a aproximar-se. Queria dizer-te... queria dizer-te qualquer coisa, mas esqueci-me. Qualquer coisa importante. Bolas! Que... lá está ele. Esta já deves ter ouvido. Deve vir fazer outra verificação ao carro. É metódico. Até quase parece inteligente, mas provavelmente não é, é só um animal. Isto não tem importância nenhuma, eu sei. Estou aqui a falar só para ver se me lembro do que te queria dizer. Não consi... olha... está mesmo mais próximo... acho que vou calar-me.
Ele viu-me! Ele viu-me! Joana, ele viu-me! Fugi e consegui esconder-me melhor noutro sítio, mas aquilo quer mesmo apanhar-me. Veio atrás de mim. Agora está a bater o terreno com todo o cuidado. É por isso que estou a segredar. Tenho tanto medo! Porra! Isto não é hora de ser cobarde, mas tenho tanto m... merda! A bateria apitou! Espero que o monstro não tenha ouvido! Espero que... isto vai... isto vai desligar a qualquer momento. Joana, desculpa-me por tudo o que de mal te possa ter f...

terça-feira, 7 de setembro de 2004

Pesquisas

O que se escreve e põe online tem consequências curiosas. Hoje, ao ver que alguém chegou à Lâmpada através de uma pesquisa no Google por "Taiwan- venda de fetos", fiquei um bom bocado estupefacto, confesso. Depois de ano e meio, muito do conteúdo dos arquivos da Lâmpada mais não é do que vaga lembrança, e tinha-me esquecido por completo deste post indignado, no qual a expressão aparece. E assim se fecha um círculo. E com este post se fechou outro. Plop.

Às vezes, a internet parece uma imensa fábrica de bolhas de sabão.

Aviso à navegação

Num dos próximos updates ao template, vou remover duma vez por todas o link para os comentários da Enetation. Serviram (mal) este blog ao longo de um ano, mas agora só servem para dificultar a navegação e atrasar o carregamento das páginas, de modo que chegou a hora de os mandar dar uma volta ao bilhar grande. Se alguém tiver algum comentário que queira guardar, é agora ou nunca.

segunda-feira, 6 de setembro de 2004

Sobre "O teu dia"

Eis o regresso anunciado da Spam Fiction, com o mais longo dos contos até agora concluídos, o que explica uma parte (pequena) do atraso. Além de vos desejar paciência para ler tudo isto no écran, ou então tinta no tinteiro da impressora, o único comentário que é mesmo necessário é dizer que este conto, muito definitivamente, não é de FC. E o resto, claro: que é um esboço, que até estar mesmo publicável precisa de repouso e depois de trabalho, patati, patata. Vocês sabem.

Spam fiction (5)

O teu dia


Baseado num spam intitulado "Your day"


Acordas com o sol a bater-te na cara. É sempre a mesma coisa, pensas, farto de levar estaladas com mãos onde os dedos se escoam em labaredas. Dás um grito que ecoa nas vidraças. O sol assusta-se e foge, amarelo de medo.
Voltas-te para o outro lado. A tua mulher ressona, de boca aberta, fazendo estremecer as orelhas que se enrolam na cabeceira da cama, como todas as noites. Nunca conseguiste entender, nem nunca conseguirás (digo-to eu, que sei), como é possível que ela se sinta confortável com as orelhas naquela posição. Mas anos de ressonar em harmonia e uma série de conversas sobre o assunto ensinaram-te que sente. Fazer o quê?
Resmungas qualquer coisa que nem tu entendes. Depois suspiras tão profundamente que da boca te saem mosquinhas pequeninas. Esticas um olho, no topo de um pedúnculo, até conseguires espreitar o relógio despertador que se esconde por trás da massa cinzenta da tua mulher. Consegues assim apanhá-lo desprevenido, sem lhe dar tempo para fugir. Fixas o olho no despertador, tão frio que congela o ar em volta em flocos de neve que esvoaçam em direcção da janela, soltando trinadozinhos quase inaudíveis de tão agudos. O despertador faz estremecer a sua cara de números vermelhos, e murmura:
— São horas menos dez — acrescentando depois, em baixo volume — palerma! — pensando que tu não o ouvirias.
Ouves, mas não ligas. Suspiras de novo. Pensas, como todas as manhãs, se o que se segue valerá o esforço de saíres da cama. Não chegas a nenhuma conclusão. Nunca chegas. Mas tomas duas drageias.
O sol, entretanto, volta a espreitar da janela, com sorrisos tímidos pendentes dos raios.
— O senhor dá licença? — pergunta-te.
Encolhes os ombros numa indiferença tão grande que os braços se te recolhem e ficas com duas mãos agitadas a sair directamente do pescoço. Custa-te respirar. O ar sabe-te a gelatina de morango e estremece quando lhe tocas, espalhando raios de luz distorcida em todas as direcções. É assim que reparas que o sol continua à espera de uma resposta, meio escondido por trás do reposteiro.
— Ó homem, entre duma vez, não fique aí especado! Tenha só cuidado para não acordar a minha mulher. Ela teve uma noite má. A cabeça até dormiu bem, mas as pernas andaram a passear pela casa a noite inteira.
— Muito obrigado. Com licença. — diz-te o sol, entrando, mas afastando-se com cuidado da tua cara. — Desculpe lá aquilo de há pouco. Foi uma distracção.
Tentas não voltar a encolher os ombros (precisas das mãos) mas é mesmo isso que te apetece fazer.
— Tá bem — dizes apenas.
Com alguma dificuldade, levantas-te da cama. Está calor, e suor irrompe-te de todos os poros, juntando-se num pequeno charco em volta do teu umbigo. Minúsculas rãs saltitam em torno do charco, coaxando alto demais.
— Calem-se — resmungas, arriscando uma palmada na barriga.
As rãs, com a palmada, ganham asas repletas de furúnculos, e erguem-se no ar, coaxando impropérios. Não ligas. Nunca ligas. Se não fosse essa impenetrável indiferença, a tua vida seria um inferno, por isso, todos os dias de manhã, tomas duas drageias de impenetrável indiferença que te duram o resto do dia. Só à noite passas a sentir uma penetrável diferença, mas isso é porque quando o sol se põe te crescem uns bigodes muito longos e fininhos.
Olhas para o espelho, na casa de banho. Os bigodes muito longos e fininhos pendem, com ar triste, das narinas. Ainda pensas em perguntar-lhes o porquê de tamanha melancolia, mas desistes. Impenetrável indiferença.
Fechas o ralo, pões água a correr, mostras ao espelho um esgar. O espelho estremece, principalmente os dentes. Será susto? Não te interessa. Também os teus estremecem nos alvéolos, gerando tornados de comichão por toda a tua boca. Abre-la. Deixa-los sair.
Os dentes mergulham na bacia, um a um, em trajectórias acrobáticas. Os azulejos aplaudem, fazendo soar trombetas numa estridência de piscina coberta. Depois, lavam-se uns aos outros, percorrendo atentamente raízes e coroas, removendo com cuidado os mais ínfimos sinais de tártaro. Só um fica de lado, um molar cariado que é ostensivamente ignorado pelos demais.
Não sabes porquê, nunca saberás porquê, mas gostas muito daquele molar. Se não estivesses desdentado, terias dito isso mesmo naquele instante.
Quando achas que já chega, deixas cair o maxilar, que entra na água com um ploft satisfatório. É o teu oráculo quotidiano, aquele ploft. Pela sua intensidade, duração e harmonia, e pelo número de gotinhas que levanta, sabes como vai ser o teu dia. Os teus dias só existem por via daquele ploft. Aprendeste isso da pior maneira, num dia em que te esqueceste de deixar cair o maxilar com um ploft, não tiveste dia e passaste directamente para o seguinte. Foi mau. Tiveste falta no serviço e um processo disciplinar que, para tua sorte, acabou por se revelar tão indisciplinado que o despediram duas semanas mais tarde.
Esperas, com o maxilar em baixo, que os dentes se acomodem, os de baixo nos alvéolos respectivos, os de cima sobre a língua, em duas longas filas. Recolhes o maxilar, e ao longo da subida os dentes entoam um canto alentejano, oscilando uns de encontro aos outros, criando assim um insólito acompanhamento de rangidos.
Canto alentejano acompanhado a ranger de dentes...
É assim todas as manhãs. Já conheces de cor aquele coro. Já esperas cada uma das desafinações. O friso de baixos não é mau, mas o tenor — um canino, por estranho que possa parecer — é esganiçadíssimo. Um horror.
Em todo o caso, se não estivesses com atenção e cuidado terias encolhido de novo os ombros.
Impenetrável indiferença.
Depois da cara recomposta, ordenas aos cabelos que se ajeitem e acomodem e sais da casa de banho. Já sabes que os quinze minutos seguintes da tua cabeça serão passados em gritaria, enquanto os cabelos se desempeçam sozinhos, insultando-se uns aos outros, por vezes envolvendo-se em breves cenas de pancadaria, que terminam abruptamente assim que os nós de desfazem ou um cabelo se solta ou se parte. Como todas as manhãs, os bigodes muito longos e fininhos vão-se embora, ofendidos, insurgindo-se em francês contra aquela vulgaridade, oh-là-là, sacré bleu! Suspiras. O tédio é tanto que te envolve como um casulo de seda. Já estavas preparado para ele, e sacas da tesoura que tinhas escondida numa cova da pele que te cresce como um coldre, à ilharga. Em gestos hábeis, recortas a seda do casulo, transformando-a numa camisola e numa espécie de calças sem aberturas para os pés. Não há costuras. A seda de tédio tem por supremo valor de existência envolver-te o melhor que é capaz, e és por isso forçado a enrolar as extremidades das duas peças para que a seda não continue a crescer até te cobrir por completo outra vez.
A seda hoje é esverdeada, com minúsculas risquinhas negras. Não gostas, mas não podes fazer nada. Não é como se pudesses substituir tédio verde às risquinhas pretas por tédio branco às florinhas, ou tédio liso azul-metálico. O teu tédio é o que é, embora mude todos os dias.
Regressas ao quarto. A tua mulher já começou a acordar, e tu atiras-lhe um beijo com força e boa pontaria. O beijo vai esmagar-se sobre a boca dela, um pouco descaído para o lado direito, e depois escorre devagar para a almofada.
— Ai! — grita ela, assustada, mas depois a expressão suaviza-se e as orelhas enrolam-se-lhe sobre a testa — Oh, és tu, querido? — um bocejo, devidamente acompanhado pelo sol que estende dois raios e lhe faz tilintar a úvula.
— Sou. Acorda, que está na tua hora.
A tua mulher aninha-se melhor na cama, recobrindo-se de gravetos e pedacinhos de terra, e chilreia:
— Ãin, que não me apetece nada levantar...
— Eu sei — respondes. Tu sabes. Aquele "ãin, que não me apetece nada levantar" é a frase mais típica das manhãs da tua mulher, e reverbera nas paredes daquele quarto em três quartos das manhãs. O quarto restante, a que tu chamas com ironia "quarto minguante", é composto por variações mais ou menos imaginativas da mesma ideia-base. Só uma vez, que te lembres, em todos os anos de acordar no mesmo sítio, mas em separado, a tua mulher acordou cheia de vontade de se levantar.
Foi um dia inesquecível, esse dia. Ainda hoje, tantos anos passados, sentes uma pontada de pânico quando o recordas.
— Vou comer — anuncias. — Vê se te levantas. — E sais, direito à cozinha. O nariz já tinha seguido à frente, enviado pelo estômago vazio que se procurava atapetar de odores antes de receber a sanduíche.
É mais ou menos por esta altura que o teu dia começa a parecer-se mais com o dia de uma pessoa que não tem uma vida surrealista. Sentas-te placidamente à mesa da cozinha a comer a sanduíche com um olhar contemplativo de bovino no rosto. Contrariamente ao que talvez fosse de esperar, não te crescem cornos nem manchas pretas na pele branca e as costas não se te encurvam num garrote. A comida não protesta, nem se transforma em sinais de tempo. Só os cabelos continuam a sua guerrilha, embora cada vez mais compostos e cada vez mais sossegados.
A dada altura, chega o silêncio, interrompido pelo tic tac do relógio na parede e por um monumental bocejo da tua mulher, no quarto. É nessa altura que os cabelos finalmente se aquietam, dispostos em risca ao meio e atirados para trás. Passas a mão por eles, num agradecimento, que eles recebem com sussurros de prazer, depois de acabares a sanduíche e de limpares as mãos a um guardanapo. Levantas-te, vais até à sala, à procura da maleta. Quando chegas, estás vestido de fato e com uma gravata de dez metros pendurada do pescoço. Pensas, como todas as manhãs, que tens de comprar uma gravata nova, enquanto enrolas no pulso a porção em excesso. Sentes-te como um cão que segura a sua própria trela e o teu focinho subitamente distendido capta com absurda nitidez todos os cheiros dos dois quarteirões mais próximos. Soltas um leve ganido, mas depressa regressas à tua forma habitual de funcionário.
É tempo de sair de casa.
Sais de casa aos poucos, peça a peça, com cada bocadinho a integrar-se na longa fita que é o tempo no mundo lá fora. A fita leva-te, sem sobressaltos, directamente até à porta do escritório, e deposita-te aí, na ordem exacta em que nela entraste. É um pouco estranho ver surgir no passeio primeiro um dedo da mão direita, depois outro, e de seguida mais três, e depois ver um braço construir-se no chão e depois erguer-se quando o tronco aparece, quase de repente (e assim voltas a ter braços, o que é sempre boa notícia), e continuarem a juntar-se órgãos àquele corpo em crescimento até estares de novo inteiro e imaculado, com maleta e tudo. Só a gravata fica presa da fita, como todos os dias, e és obrigado a puxá-la ou a deixá-la ficar. Pensas em desistir duma vez por todas de tão incómoda peça de vestuário, mas acabas por desistir da desistência e puxas. Desistir para quê?, pensas, com um abanão de cabeça.
Impenetrável indiferença. O que é preciso é impenetrável indiferença.
Recomposto, entras no escritório na hora exacta, sentas-te, abres a maleta e a janela e pões-te a trabalhar.
Contas pássaros a manhã inteira.
É para isso que te pagam: contar pássaros.
À hora de almoço interrompes o trabalho. Sabes disso apenas porque num momento o relógio marca meio dia e trinta e um minutos e no momento seguinte já marca uma hora e cinquenta e oito. Poderias pensar que era o relógio que resolvera que era tempo de adiantar o tempo, não fora também o sol se ter deslocado no céu (não o sol que deixaste em casa a acordar melhor a tua mulher; outro), e não fora aquilo te acontecer todos os dias. Os almoços são-te sempre retirados da experiência de vida. É como se o teu corpo abandonasse o cérebro à secretária, no meio dos pássaros, e se fosse alimentar sozinho, regressando depois pelo mesmo caminho. Na verdade é isso mesmo que acontece: chegada a hora de almoço, o cérebro esgueira-se pelos olhos, ouvidos e boca como uma névoa cinzenta, deixando o corpo livre para fazer o que bem entenda. O tempo parece não passar porque, na verdade, não passa. Para um cérebro, o tempo só passa quando existe maneira de medir essa passagem (olhos, ouvidos, sensores de movimento, enfim, sentidos). E como tu és, basicamente, um cérebro agregado a um corpo, o tempo que não passa para o teu cérebro não passa para ti.
Percebeste?
Encolhes os ombros com cuidado, para evitar ficar sem braços outra vez. Não te interessa. Nada te interessa. Explicações e pormenores esbarram na tua impenetrável indiferença como num muro sem alicerces nem ameias. Só te interessas, e mesmo isso vagamente, pelo teu trabalho.
É para isso que te pagam: contar pássaros.
Contas pássaros a tarde inteira.
O fim do dia de trabalho vai encontrar-te na mesma posição de todos os dias. O fim do dia de trabalho não te tem em grande conta, e tu sabes disso porque ele nem tenta escondê-lo. Enxota-te para fora do escritório com um desprezo mal contido. E é já depois de te virar as costas que te diz até amanhã, fazendo acompanhar esta frase do blã da porta a bater, e transformando-a, portanto, em até amablã, coisa que não tem qualquer significado. Nunca chega a olhar-te, o fim do dia de trabalho. Acompanha-te fazendo os possíveis por não dar pela tua consistência.
Verdade seja dita, a tua consistência àquela hora já não é muita. Todo o teu corpo estremece, em equilíbrio precário, gotejando no passeio como manteiga derretida. Sentes-te papo-seco antes de ir ao forno, informe, tosco e vagamente amarelado.
Bem sabes que é do cansaço. Ou então é da massa.
E por isso desfazes-te na fita do tempo no mundo lá fora, onde entras agora de repente, como quem mergulha ou se deixa cair.
E é assim mesmo que sais dela, à porta de tua casa, um jorro líquido que se aglomera num charco multicolorido no passeio. Às vezes, quando queres ficar ainda um pouco a beber a luz do entardecer em copos cheios de cor de laranja, recompões-te ainda cá fora, sentas-te no lancil e fechas os olhos, à espera. Mas hoje não te apetece ganhar tempo perdendo-o, e esgueiras-te por baixo da porta. A casa ainda está vazia a esta hora, a tua mulher só chega mais tarde, e tu passeias por todas as divisões ainda em charco, recolhendo o pó e as migalhas do dia. Essa descamação da realidade que todos os dias deixam cair ao passarem pela tua casa como uma rajada é o teu lanche e tens de admitir, embora relutes fazê-lo em público, que é a refeição que consomes com mais volúpia. Adoras o sabor dos ácaros que se agarram a cabelos perdidos como se eles lhe pusessem proteger as minúsculas vidas. Deliciam-te as colónias de bactérias e bolores que tentam instalar-se nas migalhas de papo-seco que a tua mulher espalhou pela casa toda de manhã. Estalas a língua (pelo menos fazes o equivalente líquido de estalar a língua) com os restos se sol e de vento e de tempo que ficaram esquecidos pelos cantos desde o dia anterior.
Quanto a tua mulher chega, a casa está impecavelmente limpa e tu dormes a sesta dentro de um balde com o fundo coberto por uma espessa mistura de tintas de água, tintas de areia e tintas de esmalte. Gostas do cheiro, e o balde envolve-te como as muralhas de um forte, tapando-te os ouvidos já menos líquidos, já gelificados, pondo os sons de castigo fora de ti. Ficam irritadíssimos, os sons, quando os pões fora de ti, mas tu estás-te nas tintas e encostas-te ao cabo da esfregona, ronronando como um gato.
Impenetrável indiferença.
Ainda resiste, a impenetrável indiferença. Ainda se mantém impenetrável. Indiferença.
A tua mulher chega, ruidosa, arrastando as orelhas atrás de si como um véu. Quando estás acordado, gostas de assistir à sua entrada triunfal, gostas de ver o seu corpo balofo a tentar por todos os meios sair de dentro do vestido às florinhas, gostas de olhar para a nuvem de cheiros que ela carrega sempre consigo, presa às orelhas, adejante na aragem que é ela própria que provoca. É quase o único verdadeiro prazer que resta à tua vida de casado. E só funciona quando estás acordado.
Quando dormes a sesta, nas tintas dentro do balde, os trinados que dela vêm irritam-te profundamente.
— Queridinhoooo! — e tu ranges os dentes que se começam enfim a solidificar, embora os rangidos ainda saiam moles, com o som que melaço faz ao discutir com leite-creme.
— Chegueiiiiiiii! — e os punhos encerram-se em torno do teu tronco, espremendo-o como a uma laranja respingosa.
— Onde estááááááás? — e o cérebro acorda, sacode-se da tinta e aglomera-se no topo da massa gelatinosa em que te transformaste, enrolado à volta do cabo da esfregona, esculpindo-se devagar em circunvoluções, circunvalações e neurocircuncisões, bocadinhos de pele neurológica cortados e desencarapuçados.
— Ah, estás na tua sesta? — e é então que regressas à tua forma habitual de todas as noites (o sol já se pôs, bem mais discreto na partida do que na chegada), um homem de cabelos revoltos e um bigode fininho deitado sobre os lábios, molhado, coberto de pedacinhos de tintas de todas as cores, que tentas sacudir para dentro do balde sem mais sucesso que o de um lançador do disco a correr os 100 metros.
— Estava — resmungas, mal humorado, de cenho carregado como uma camioneta das mudanças, a testa orlada de mesas e cadeiras, uma cama de espaldar onde as tuas ideias dormem a sesta e uma estante coberta de bibelôs e com uma televisão desligada a um canto.
— Dá cá um beijo — exige a tua mulher, pondo-se em bicos dos pés à tua frente. Tu dás-lhe o beijo. Pegas nele com um esgar de asco (nunca gostaste de pegar em beijos, sempre os achaste vagamente asquerosos ao toque) e colocas-lho com indiferença sobre os lábios.
— Bem podias dar-me um beijo com um bocado mais de alma, que diabo! — queixa-se ela, tricotando um beicinho amuado. Era rápida: ficou pronto num instante.
— Desculpa — desculpas-te — tenho andado um bocado seco de alma ultimamente. Deve ser do calor. A alma evapora.
— E por falar nisso — acrescentas, depois duma pequena pausa — vou tomar banho.
Tomas um banho longo e fumegante, a água tão quente que a pele se te encaracola e desprende, deixando-se erodir como areia debaixo de chuva, cavando longos regos, cada vez mais profundos, até cair no fundo do poliban, rodopiar duas ou três vezes como bailarinas, envoltas em tutus de pele de bactéria, e mergulhar ralo abaixo soltando gritinhos de excitação e volúpia.
A lavagem é profunda. Chega-te aos ossos, especialmente os do crânio, que são os que estão normalmente mais próximos do mundo exterior, e em breve estás exangue e branco como uma caveira. Mas manténs o bigode fininho, não já deitado sobre os lábios, mas deitado sobre os dentes do maxilar superior, enroscando as pontas no arco zigomático.
Depois, submerges por completo, esqueleto e fiapos de carne, para que o corpo se te reconstitua envolto em sabonetes e loções. Acabas o banho como novo, limpo e perfumado como um bebé. Bolsas um bocadinho e sentes-te triste e alegre ao mesmo tempo.
É nessa altura que a tua impenetrável indiferença se deixa penetrar por uma penetrável diferença, e recolhes-te em ti mesmo, presa de todos os sentimentos que não tiveste ao longo do dia. Irritas-te ao mesmo tempo que te ris, deliciado, das coisas divertidas que te disseram ou fizeram, choras de tristeza enquanto tentas sem sucesso reprimir um bocejo do mais completo tédio (contar pássaros é uma seca) e ficas de boca aberta durante longos minutos, as cordas vocais em funcionamento contínuo num longo, looongo, looooooongo som, mais semelhante a um urro do que propriamente a um bocejo, que ainda por cima resolve andar a passear de parede em parede como macaco entre ramos, ampliando-se em ecos e reverberações que te põem as orelhas a abanar
Dura algum tempo, o teu momento de penetrável diferença, e quando enfim termina és apenas mais um homem, miserável como todos os homens, rodeado de silêncio, como todos os homens, ainda que no teu caso esse silêncio seja cortado por um zumbido grave, quase inaudível, o zumbido que fazem as tuas orelhas a abanar.
Mas é limpo e rosado que sais da casa de banho. Ouves os ruídos de cozinha que a tua mulher faz na cozinha, presa de um papel feminino que as outras mulheres recusam mas a tua desempenha com vontade e alegria, o de proporcionar ao seu homem bem-estar e segurança à custa do seu próprio bem-estar e segurança. Abanas a cabeça e ela protesta abanando-te a ti e é todo sacudido que pensas, como todos os dias, que não sabes bem se hás-de agradecer-lhe se de sentir pena dela, das barras que a rodeiam sem que ela as veja, uma gaiola em que ela, ave canoira, lança trinados saltitando de poleiro de mármore em poleiro de mármore, entre a bancada, o frigorífico e o fogão.
O pior de tudo ainda são os trinados.
Arrastas-te até à cozinha com dificuldade, deixando um rasto de chão molhado atrás de ti e sentindo-te caracol, com as costas enrugadas numa sugestão de espiral. Paras à porta e respiras fundo. A tua mulher chilreia num espanejar de orelhas, fazendo movimentos ritmados com as penas da crista. No fogão, algo frita, atirando ao ar uma mão-cheia de cheiros que convergem sobre ti como setas. Não resistes. Já aprendeste à tua custa que ao lidar com cheiros agressivos o melhor é não fazer ondas, deixar o soalho liso e fazer tudo o que os cheiros ordenarem. Até porque raramente ordenam coisas mais complicadas do que "senta-te!" ou "aqui!" ou "come!" ou, no fim, "arrota!", e tu estás quase sempre de acordo em fazer precisamente essas coisas. Deixas-te ir. Em breve estás sentado à mesa, de garfo na mão e um relógio a dar horas no estômago (ao segundo sinal serão dezanove horas, vinte e cinco minutos e quarenta e três segundos, piip, piip), enquanto a tua mulher pára de imitar uma sinfonia de melros (finalmente!), perde a penugem, deixa cair o bico na sopa como tempero final, mexe a panela mais um pouco e dá por terminado o trabalho, com um sorriso satisfeito a estender-se pelas bochechas em espirais iridiscentes.
Comes em silêncio, fazendo grandes pausas entre as garfadas e as colheradas, para dar tempo a que os alimentos se te aquietem no estômago. Costuma ser uma regatice pegada sempre que uma nova colherada ou garfada cai do esófago e aterra em cima das garfadas e colheradas que já se encontravam no estômago, indo lá encontrar resmungos, impropérios, aquilo que para o bolo alimentar faz as vezes de cotoveladas e muitos empurrões enquanto não se descobre, algures, um lugar para os recém-chegados que não incomode os que já lá estavam, satisfeitos nas suas saunas de ácido.
Comes em silêncio, salvo a barulheira que vai pelo teu estômago. A tua mulher, por sua vez, come também em silêncio, depenicando a comida como só ela sabe fazer, com uma delicadeza de grou. Em tempos, as perguntas sobre "o teu dia" entrecruzavam-se, abraçando-se no ar que vos separava, soltando gritinhos de reconhecimento (há tanto teeempo!) e apertando as bochechas aos pequerruchos. Mas vocês fartaram-se de ouvir sempre as mesmas respostas, de dar sempre as mesmas respostas, da barulheira cada vez mais falsa, mais postiça, mas irrealista que as perguntas faziam ao se encontrarem, e agora comes em silêncio com o longo bigode fininho a roçar, tristonho, as bordas do prato, ao lado da tua mulher, que come em silêncio, as longas orelhas acachapadas sobre a cabeça como um véu muçulmano.
Allahu akbar.
É ainda em silêncio que acabas de comer, levantas a mesa e segues com ela até à máquina de lavar, onde a sacodes, fazendo cair nos receptáculos respectivos pratos, copos e talheres e enchendo tudo de lixo. Nada se parte. Nada nunca se parte na tua casa, a não ser que seja acidentalmente que o desequilíbrio e a queda acontecem. Se por acaso dás um encontrão num copo, por mais fraco que seja, ele imediatamente se atira da mesa abaixo, guinchando ao longo da queda (ooooooh nãããuuuuuu!) e estilhaçando-se no chão em mil cacos que ficam a ralhar-te, estendidos de costas, esperneando espículas de vidro, enchendo-te os ouvidos com acusações de desastradodesastradodesastrado. Até com os talheres acontece o mesmo: se apanham um encontrão atiram-se para o chão e aí se espatifam numa miríade de bocadinhos quase invisíveis de aço inoxidável. Houve um tempo em que isto te afligia, mas aprendeste a não ligar importância e a voltar costas quando um dia em que algo te chamou a atenção para longe destes pequenos dramas reparaste que bastou deixarem de ser o alvo das tuas dores de cabeça para que as coisas partidas se recompusessem, os cacos maiores a passear dum lado para o outro a agarrar nos mais pequenos e a engoli-los atirando-te impropérios de encontro às costas (cabrão! Tanto que fazemos por ele, e não nos liga nenhuma! Cabrão!). Mas, se é de propósito que as coisas são atiradas ou deixadas cair, permanecem inteiras como se nada fosse.
Na tua vida, é assim que as coisas são.
Quando acabas de tratar da cozinha a tua mulher pendura-se a ti como um badalo e seguem os dois até à sala, tu em passos arrastados e ela a badalar (bloing bloing) de encontro às tuas pernas ao mesmo tempo que te vai lambuzando a cara. Às vezes dá-lhe assim para a ternura e enrola as orelhas no teu pescoço como se se quisesse transformar numa gravata. Tu vais protestando com suavidade (querida... não... vá lá... não... ouve... uff... espera...) enquanto começas a encurvar as costas por acção do peso que carregas. Chegas à sala corcunda e um pouco vesgo, com uma crista dorsal feita de vértebras cuja substância óssea se deslocou para o exterior do teu corpo, por falta de lugar livre de pressão no interior.
Derramas-te depois no sofá numa onda de espuma sólida na qual a tua mulher flutua. Procuras o telecomando às apalpadelas. O telecomando esquiva-se, rindo baixinho o seu riso escarninho. Consegues raspar por ele um par de vezes até que, finalmente um dedo que fizeste crescer desproporcionalmente ao tamanho não só de ti ou do sofá, mas da própria sala, logra apertar num botão, qualquer botão. De súbito obediente, o telecomando aquieta-se e ordena à televisão que se acenda. A atenção da tua mulher sofre uma viragem que já esperavas e ela murmura um que liiindo! e abranda o seu enlace, embora continue deitada sobre ti. Começas então a recompor-te, solidificando na tua forma verdadeira, ou pelo menos naquilo que em ti passa por uma forma verdadeira, meio reclinado sobre o sofá, com os pés assentes na pequena mesa que está no meio da sala precisamente para que tu lá abandones os pés enquanto o teu cérebro se vai apagando devagarinho à medida que as imagens da noite se vão sucedendo no écran.
Começa assim a parte menos surrealista do teu dia.
São três as horas que ficam os dois despejados no sofá, estáveis na forma e nas posições que vão mudando só de longe a longe, como se estivessem na cama, a sonhar com calma, e se virassem de vez em quando de barriga para cima ou de barriga para baixo. Mas para ti é como se fossem quinze minutos, porque desde que se te apaga o cérebro tu desapareces para qualquer lado e o tempo dá um salto sem que nele existas, propriamente. Com a tua mulher, passa-se o mesmo, tanto quanto saibas, e é como se a televisão enchesse a sala de pixels azulados em permanente frenesi de mudança, desalojando de lá tudo o que não fosse feito de pixels azulados em permanente frenesi de mudança. Se calhar, é mesmo isso que acontece. Tu não sabes, e nem tens como saber. A verdade é que nem quererias saber, se pudesses. Simplesmente, não te interessa.
É o regresso da impenetrável indiferença.
O feitiço, se feitiço é, quebra-se com o primeiro grande bocejo da noite. Solta-o um dos dois, nunca se sabe bem qual, mas a esse primeiro sucedem-se outros em cascata, cada vez mais dissonantes, cada vez mais volumosos, cada vez mais absolutos. E a sala, cada vez mais incomodada, começa a rebelar-se contra tal enlouquecimento (enrouquecimento?) de bocejos. Primeiro é o sofá, que desata em ondulações cada vez mais enjoativas; logo depois é a mesa que se esgueira de debaixo dos vossos pés, deixando-os cair e bater no chão com um poft mole. Depois são todos os objectos que cobrem a sala de uma camada de habitação que começam a vibrar, a ranger, a raspar, tentando contrariar dessa forma o vosso ruidoso ataque de tédio. E por fim, é a televisão, que se apaga, obedecendo com relutância às ordens do telecomando, até ele já farto dos vossos bocejos.
É então que a tua mulher se levanta, resmungando:
— Ai, que dor de cabeça! Acho que vou tomar um comprimido.
E se arrasta até à casa de banho, onde ficam as tocas de quase todos os seus comprimidos. Tu ainda ficas mais um pouco em frente da televisão, observando o modo como o écran negro reflecte o contentamento da sala, recém-regressada à sua placidez habitual. Mas também acabas por te levantares e seguires, cambaleante, o caminho do quarto.
Aí chegado, esperas que a roupa se te dissolva num pijama com aspecto velho e muito coçado e deixas-te cair sobre a cama. A tua mulher chega pouco depois, e tu ficas a observá-la pelo único canto de olho que ainda permanece livre de pálpebra, enquanto a roupa dela se dissolve num pijama não menos velho e coçado do que o teu, apenas mais florido. Há muitos anos que aquela visão não te desperta vontade de a ver nua, talvez pelo que vislumbras por baixo do pijama, talvez porque já sabes que não vale a pena, ainda que o teu pénis acorde e te pergunte o que se passa ao que tu respondes que não se passa nada. O teu pénis vira-te as costas, resmungando que nunca se passa nada e libertando depois um par de impropérios contra a puta da vida que lhe havia de calhar, caralho, enquanto que tu encolhes os ombros, segurando bem neles para que os braços não se encolham também.
A tua mulher murmura então um até amanhã e fecha a luz como quem fecha a porta. Tu revês o teu dia durante cinco minutos, pensas ociosamente que foi um dia menos mau e soltas um suspiro, não sabes se de resignação se de desalento.
Depois, deixas-te dormir.