segunda-feira, 30 de maio de 2022

Irmãos Grimm: O Sol Brilhante Há de Trazê-lo à Luz do Dia

Este é mais um continho em que os Irmãos Grimm parecem ter intervido pouco ou nada, uma daquelas histórias que provavelmente saltaram quase sem alterações da voz do contador para as páginas deste livro. E é curioso por um motivo: é um conto com um judeu como personagem, mas onde este não assume o papel de vilão e sim de vítima.

O Sol Brilhante Há de Trazê-lo à Luz do Dia é a maldição que o judeu roga ao homem que o assassina por dinheiro que ele não tem, as últimas palavras da sua vida. E o conto narra muito rapidamente (tem pouco mais que uma página) esse assassinato e o que acontece depois. Traça-se em rápidas pinceladas a vida do assassino e narra-se com um pouco mais de detalhe como este acaba por ser descoberto.

Há mais um motivo para esta história ser curiosa: é que não existe nela o maravilhoso que tantas vezes se encontra nas histórias populares, mas não deixa por isso de ser uma história fantástica, pois fica a pairar a dúvida sobre se existe ou não alguma subtil magia na concretização da maldição. Todorov chamar-lhe-ia um figo.

Mas tirando esses detalhes, o conto não é nada de especial. Os detalhes chegam para lhe conferir algum interesse, mas só para isso.

Contos anteriores deste livro:

Vítor Frazão: O Pacto

Será O Pacto um conto? Tem formato de conto, ou antes, de vinheta, mas será mesmo a vontade de contar uma história aquilo que esteve na sua génese? Podem parecer perguntas descabidas, uma vez que esta história tem formato de conto e é apresentada como tal, mas não são, pois este continho de Vítor Frazão é, sobretudo e acima de tudo, publicidade. Uma publicidade bem-humorada, mas publicidade.

Parece estarmos nos domínios de um pacto faustiano, e o demónio aparece para levar a sua vítima. Mas esta está embrenhada na leitura e pede mais dez minutos para acabar de ler o livro que tem nas mãos. Que livro? Uma antologia de FC&F portuguesa publicada em 2012, na qual Frazão, curiosamente, não participou. E o demónio cede. É um bom tipo, o demónio.

Já o conto não é grande coisa. Tem a sua piada, é certo, mas não passa disso: uma piada.

Este conto, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser obtido aqui.

Leiturtugas #155

E não é que não há fome que não dê em fartura?

Passámos uns tempos, aqui nas Leiturtugas, com muito pouco movimento. E de repente, temos um post deste tamanho.

Graças em parte a um tal Jorge Candeias, que resolveu finalmente começar a publicar opiniões relevantes para o projeto, e já não era sem tempo! A opinião de arranque recaiu sobre O Lago, um conto de Pedro Cipriano publicado em 2015 pela Fantasy & Co. É fantasia, sem nenhuma FC, pelo que o Jorge começa o ano com 0c1s.

E de oficiais é só. Mas os oficiosos estiveram positivamente hiperativos.

Começou pela Andreia Ferreira, que publicou logo na segunda-feira a sua opinião sobre o romance de fantasia A Última Feiticeira, que Sandra Carvalho publicou em 2005 pela Presença. Nada de FC por aqui.

Também na segunda-feira, a Ana C. Nunes resolveu deitar ao mundo uma autêntica explosão de opiniões, pois falou (brevemente, é certo) de SEIS obras de autores portugueses. Ajudou que a maioria fossem contos, imagino, e parece não haver FC em nenhuma delas, mas o certo é que este post de hoje fica a dever muito à Ana.

Há na lista quatro obras publicadas pela Fantasy & Co. O Lago de Pedro Cipriano, curiosamente, é uma delas, e as outras são O Muro, de Pedro Pereira, O Vizinho do 4-B, de Ricardo Dias, e Soltem o Kraken!, de Inês Montenegro. Tal como O Lago, todos os outros contos foram editados em 2015.

Verum, de Mário Coelho, também é um conto mas este foi publicado pela Imaginauta em 2016, e em papel, e não percebi ao certo em que género melhor se enquadra mas as referências à mitologia levam-me a supor fantasia.

Por fim, pelo menos no que toca à Ana, ela também falou de A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, de Gonçalo M. Tavares, um livro fantástico que não conheço e parece ser algo de misto entre romance e coleção de contos. Trata-se de uma edição de 2017 da Bertrand.

Mas isto está longe ainda de acabar. Antes, fica a menção ao livro infantil da semana, que nos foi trazido pelo Paulo Nóbrega Serra. Pequeno e Precioso, escrita por Joana Bértholo e ilustrada por Mariana Malhão, é uma fábula sobre cavalos-marinhos publicada em dezembro do ano passado pela Imprensa Nacional. Nada aqui existe de FC, claro.

Andreia Ferreira regressou dias depois para falar de outro dos romances de fantasia de Sandra Carvalho. Parece que se prepara para percorrer toda a série das Pedras Mágicas, pois o romance de que fala aqui é O Guerreiro Lobo, o segundo volume, publicado também pela Presença e também em 2005. FC? Nada.

A semana ainda deu tempo à Isabel Daires para opinar sobre Assim Falou a Serpente, a mais recente coletânea de Luís Corte-Real, publicada em abril pela Saída de Emergência, e de novo não há cá qualquer sinal de FC.

E termina este longo post com mais uma coletânea, que nos chega através da opinião da Ladyxzeus. O autor é Mário de Carvalho, o título é A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, a editora que pôs este livro cá fora em 1983, visto que a edição lida parece ter sido a original, foi a Caminho, e as histórias têm pelo menos alguns elementos fantásticos. FC é que não têm nenhuma.

E termina finalmente a relação das leituras da semana. E que relação! A única parte de que não gostei foi a total ausência de ficção científica. Isso tá mal! Já o resto tá bastante bem.

Até para a semana.

sábado, 28 de maio de 2022

Ricardo Tinoco: Mais Um Quixote...

Há muito de Mário de Sá-Carneiro neste conto de Ricardo Tinoco, ainda que um título como Mais Um Quixote... (bibliografia) não deixe à imaginação a tarefa de descortinar outras influências. Quem tenha lido os contos fantásticos de Sá-Carneiro depressa os reconhece nesta história escrita em jeito de depoimento pelo amigo de um homem que enlouquece e que o cita, um estilo bastante em voga no virar do século XIX para o XX. O pastiche é, julgo, perfeitamente assumido, pois chega ao tema, ao enredo e ao estilo, e é complementado por referências literárias variadas, das quais, curiosamente, Sá-Carneiro está ausente. O que não belisca esta minha interpretação; afinal, Sá-Carneiro não se citaria a si próprio.

O louco sofre de paranoia, pelo menos de acordo com os médicos que acabam por interná-lo. Ele, naturalmente, não concorda. Sabe que está a ser perseguido por uns "eles" que nunca chega a concretizar, até porque não sabe ao certo quem ou o que são, e por isso fecha-se em casa a sete chaves, acompanhado apenas pelos seus fiéis livros. Poderão perguntar: onde está aqui o fantástico? Está na forma como Tinoco deixa no ar a possibilidade de o louco não ser louco, de estar realmente a ser perseguido por uns "eles" quaisquer. É um fantástico à Todorov, baseado na insegurança sobre a natureza (real ou imaginária) daquilo que é narrado.

É um conto bem feito, bem escrito, embora eu tenha de confessar o fraco interesse que me desperta este tipo de pastiche. A pulsão pela citação dos mestres que está na sua génese resulta em obras anacrónicas que tendem a não me interessar muito. No caso deste conto, a avaliação melhora por haver nele um elemento curioso: há, implícito na relação do protagonista com os seus livros, um certo elemento de análise literária, e é interessante utilizar-se a ficção para esse fim. Mas mesmo assim não posso dizer que o conto me tenha agradado muito. São gostos...

Textos anteriores desta publicação:

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Pedro Cipriano: O Lago

Às vezes, já ter lido muitas coisas funciona quase como uma maldição. Quando a leitura de uma história faz lembrar a leitura de outra, muitas vezes acontece que o desfrute que a leitura da segunda a ser lida poderia causar se perde, parcial ou totalmente, porque ela fica aquém na comparação com a primeira. E foi precisamente isso o que aconteceu com esta história de Pedro Cipriano.

Ainda por cima, O Lago é o título de ambas as histórias, como que para sublinhar as parecenças. E Cipriano, apesar de ser um dos autores com certo interesse que surgiram do grupo que criou o Fantasy & Co., está muito, muito longe de se poder comparar com o autor da outra história: Ray Bradbury.

Não estou a falar aqui em plágio, atenção. Estou apenas a dizer que são histórias que nasceram de ideias muito semelhantes, desenvolvidas de forma também semelhante, o que pode acontecer a qualquer pessoa que escreva mesmo sem conhecer as obras com que as suas são comparáveis. E além disso, as histórias são semelhantes, não iguais.

O certo é que ambas as histórias giram em torno de um lago onde algo de mágico acontece e onde o afogamento de uma personagem vai ter um impacto muito forte noutra. Mas Cipriano não é o contista de mão cheia que Bradbury era nem tem a mesma capacidade para desenvolver uma narrativa e manipular a linguagem ao serviço de uma história destas. Consequentemente, o seu conto é muito inferior, ao ponto de parecer pior do que é em virtude da comparação.

Esta é uma história de que eu muito provavelmente teria gostado se não tivesse antes lido a história de Bradbury.

Mas li.

Este conto, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser obtido aqui.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

H. P. Lovecraft: A Música de Erich Zann

Embora por vezes pareça, a verdade é que H. P. Lovecraft não se limitou a escrever o seu horror cósmico protagonizado por Cthulhu e compinchas. Não só escreveu também poemas com fartura (alguns deles muito racistas, diga-se de passagem), como escreveu também muitos outros contos que não pertencem ao mythos, quase sempre de horror, tanto isolados como pertencentes a outras séries.

A Música de Erich Zann é um dos contos isolados, embora outros autores tenham mais tarde pegado na personagem e construído uma série a várias vozes a partir dela. É um conto de horror razoavelmente típico da viragem do século (XIX para XX, evidentemente), escrito em forma de depoimento e na primeira pessoa, por um narrador que conta a quem quiser saber um conjunto de acontecimentos que teria testemunhado nos tempos de juventude.

Lá se encontra o velho tema das ruas que como que se perdem misteriosamente da cidade (ainda recentemente aqui apareceu um exemplo português, embora com uma atmosfera bem diferente: o Beco das Sardinheiras), e nas quais se passam coisas prodigiosas. No caso, a coisa prodigiosa é um velho tocador de viola (a clássica, o violino grande) que mora no sótão da casa onde o narrador se hospeda e onde se deixa fascinar pela música que o outro toca. Mas homem e música estão envoltos em mistério, um mistério que é revelado no final da história, ainda que não por completo. Há entidades demoníacas envolvidas no assunto, naturalmente.

E eu, que me farto de dizer que não gosto de Lovecraft, até gostei deste conto. Não sofre daquela hiperadjetivação tão comum nos escritos deste autor, e que eu simplesmente detesto, não há propriamente daqueles paroxismos de horror inexplicável a acometer as personagens, que tendem a fazer-me revirar os olhos. É um conto relativamente despretensioso, com uma atmosfera opressiva bem esgalhada e um mistério que funciona, mesmo ficando incompletamente resolvido.

Não posso dizer que tenha gostado muito, mas gostei o suficiente para não dar por mal empregue o tempo de leitura.

Este conto foi obtido em PDF no Site Lovecraft, motivo pelo qual vai ilustrado com uma foto do sr. Howard e não com a imagem de capa, que não existe. Querendo, podem obtê-lo também, em ZIP, clicando aqui.

domingo, 22 de maio de 2022

Leiturtugas #154

Sim, hoje temos Leiturtugas.

Não graças aos participantes oficiais, no entanto. Nós, os preguiçosos, não produzimos nenhum material relevante, e o único que o fez, o Artur, falou de uma tradução de Aquilino. E eu acho que incluir traduções será esticar um pouco demais o âmbito desta coisa, pelo que vou fazer de conta que não vi. Sorry, mate.

Felizmente há os oficiosos.

Nomeadamente a Andreia Ferreira, que opinou sobre Segredo Mortal, o romance de Bruno M. Franco que já por aqui apareceu numerosas vezes. Continua a ser edição do ano passado da Cultura, e continua a incluir alguma FC.

Talvez mais interessante porque muito mais incomum é a opinião que nos chega do Paulo Nóbrega Serra. De facto, José Saramago: A Escrita Infinita, publicado já este ano pela Tinta-da-China, não é uma obra de ficção, como são quase todas as que por aqui aparecem, mas uma coleção de ensaios de vários autores sobre algumas obras de Saramago, organizada por Carlos Nogueira. E uma das obras analisadas tem FC (o Ensaio Sobre a Cegueira), pelo que este livro vai-se-lhe juntar.

E é isto. A semana foi assim. Como será a próxima? Venham cá ver.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Sara Farinha: A Noite de Todas as Sombras

Este conto pouco tem a ver com o Halloween, o que talvez seja uma vantagem, fora o facto de se desenrolar n'"A Noite de Todas as Sombras", i.e., a noite de Halloween. Mas fora uma menção rápida ao barulho daqueles que andam pela noite a celebrar a festa, tudo o resto poderia passar-se em qualquer outra noite fria do ano.

A propósito, vai haver spoilers? Sim, vai haver spoilers.

Trata-se de um conto de horror muito curto e também muito fantasmagórico. E feminino, também; há uma enorme desproporção entre os contos sobre questões de maternidade escritos por mulheres e aqueles cujos autores são homens. Estes, quase não existem; aqueles, de forma mais clara ou mais velada, são bastante comuns.

Sara Farinha é clara, embora essa clareza só surja realmente no fim. Uma mãe que não o foi está sozinha em casa e é assombrada (fatalmente) pelo fantasma do nado-morto. Não sei é se resulta. Isto é, sei que comigo não resultou, tudo me pareceu demasiado apressado para que o conto chegasse a ter algum impacto. Mas eu não sou mulher, pelo que me falta a relação umbilical que só alguém com útero pode ter com este tema. Especialmente alguém que tenha passado por algo de semelhante. Portanto não sei como, ou sequer se, a condição feminina poderá afetar as opiniões sobre uma história que lhe diz tão diretamente respeito.

Não gostei muito? Não, não gostei muito. Achei o conto razoavelmente bem escrito, mas pouco mais. Porque esta é uma história que vive de uma emoção que não me conseguiu despertar. Mas tenho de me reconhecer incompetente para saber se será capaz de a despertar noutras pessoas. Ou seja, se é ou não um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 17 de maio de 2022

Ângelo Brea: Um Pôr do Sol Vermelho

O título já o sugere, e a leitura do conto confirma. Em Um Pôr do Sol Vermelho voltamos a Marte, que Ângelo Brea imagina aqui nas fases iniciais do processo de terraformação, povoado por uma colónia de alguns milhares de pessoas e com uma base industrial composta em boa medida de grandes fábricas de CO2, fabricado a partir das rochas marcianas com o objetivo de aumentar a densidade da atmosfera marciana e criar um efeito de estufa no planeta.

O protagonista trabalha numa dessas fábricas, e o pouco enredo que a história tem gira em volta de uma avaria, a qual degenera num acidente que envia o pobre para o hospital. Mas não é esse, claramente, o interesse de Brea. O autor parece ter tido a ideia para o ambiente, para o worldbuilding, e limitou-se praticamente a isso, abdicando de criar sobre esse alicerce uma história propriamente dita. Como resultado, este texto até poderia funcionar razoavelmente bem como início de uma história mais longa, um daqueles inícios de romance ou novela em que os autores estabelecem os parâmetros do seu mundo ficcional e apresentam as personagens, mas enquanto texto independente sabe a muito pouco. Termina-se a leitura e a interrogação de "então e o resto? É só isto?" torna-se inevitável.

Ângelo Brea tem alguns contos bons, mas este não é um deles.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Leiturtugas #153

O que é um diazinho de atraso entre amigos? Nada, não é? Rigorosamente nada. Especialmente quando as coisas acabam por aparecer feitas, como esta nota de divulgação das Leiturtugas da semana passada.

E não houve muitas. Voltou a ser uma semana de duas leituras, tal como a anterior, ainda que desta feita só uma tenha vindo dos participantes oficiais.

Nomeadamente do Artur Coelho, que continua a debruçar-se sobre coisas antigas, as quais nem sempre trazem consigo elementos de FC ou de fantástico. Foi o caso da desta semana. O livro lido e comentado pelo Artur foi Fumos da Índia, um conjunto de histórias histórico-patrioteiras de Henrique Lopes de Mendonça, publicado pela Portugal-Brasil em 1922. Nada de FC, claro, e o Artur passa a 1c8s.

A oficiosa foi a Inês Santos, que comentou um livro de fantasia intitulado Shore - Desvendado, parte da série de Aquorea de M. G. Ferrey. A edição é da Suma de Letras e a data de abril último. Coisa bem recente, portanto.

E por esta semana é o que temos. Até à próxima.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

João Barreiros: Somewhere Under the Rainbow

Senhoras e senhores, convosco Clara de Sousa. Não a da TV, atenção, ainda que eu não possa excluir a possibilidade de haver alguma relação entre as duas algures na cabeça do João Barreiros. A jornalista apareceu nos écrans de forma regular em 1993, e esta Clara de Sousa anda por aí há quase tanto tempo como a jornalista, apesar de ser significativamente mais nova... na verdade, é capaz de ainda nem ter nascido. Ou até pode já andar por aí algures, anónima. Não sei. Certo é que vamos encontrá-la não propriamente Somewhere Under the Rainbow (bibliografia) mas na Lua, algures no futuro, e que ostenta o pomposo título de Agente Criativa para a Sociedade do Anacronismo Literário. Uma espécie sui generis de designer de interiores, chamada à Lua para uma reunião de trabalho. Para grande aborrecimento seu e de João, o furão geneticamente modificado e semi-inteligente que a acompanha fazendo as vezes de assistente pessoal. E ela é especialista em aborrecimentos, ou a sua personalidade não fosse uma arquetípica dondoca de Cascais, cheia de não-me-toques e ai-que-horrores.

É esse o ponto de partida para uma movimentada novela onde se vai juntar um grupo heterogéneo de personagens que partem, não para Oz em busca do Feiticeiro, apesar das óbvias semelhanças com o grupo da Dorothy, mas para uma nave condenada de uma certa espécie caída em desgraça, onde existe um maná de artefactos alienígenas que há quem esteja aflito por recuperar.

Soa familiar, não soa? Pois, são os mesmos da história anterior.

Mas mais uma vez estamos numa história escrita por João Barreiros, portanto já se sabe que tudo corre mal.

Começa por todo o empreendimento ser secreto e ilegal, passa por Clara e o seu furão serem vítimas de um desagradável acidente que os vai contaminar com um fluido dourado muito especial, muito proibido, muito alienígena e muito incontrolável, passa por cada um dos elementos do grupo, quase todos alienígenas, ter os seus próprios interesses e muito pouca amizade ou respeito pelos demais, e acaba no facto de as potestades continuarem a andar por aí, à procura umas das outras e de toda a tecnologia que não deviam ter trazido consigo e muito menos deixar em lugares onde criaturas inferiores conseguissem deitar-lhe a mão.

É, claro está, mais uma história muito boa, que só sofre de dois pecadilhos menores: a dondoquice da Clara que muito rapidamente a torna insuportável e a Triste Judite, uma espécie de versão do Marvin do Douglas Adams, uma bomba humanoide permanentemente deprimida e ansiosa por obter autorização para se explodir, e cuja intervenção na história é demasiado repetitiva durante a maior parte da novela (deixem-me rebentar / não / mas deixem! / já disse que não!). Até acabar por se tornar fulcral, numa explosão que desde o início era evidente que mais tarde ou mais cedo aconteceria.

A novela em si consiste de uma série de episódios em que tudo corre mal ao mesmo tempo que até vai correndo bem, de certa forma, e tem o seu auge numa violenta cena de batalha, numa nave em ruínas que orbita a Terra numa órbita instável e vai lentamente espiralando de encontro ao planeta, entre o grupo, desfeito pela cobiça e pelos interesses antagónicos dos elementos que o compunham, e uma potestade que tenta destruí-lo, ou talvez apenas perceber o que ali se passa, só conseguindo com isso causar danos irreparáveis a si própria... ou pelo menos a um seu avatar. Uma boa cena de batalha como não é comum encontrar na FC portuguesa, onde a pancadaria, muitas vezes, é tratada de uma forma um tanto ou quanto ridícula (o que de resto está longe de ser específico da FC portuguesa).

Já disse que isto é bom? Já? OK, então repito: isto é bom.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 10 de maio de 2022

Inês Montenegro: Vinho Fino

Cuidado aos alérgicos: este texto vai conter spoilers quase desde o início.

É bastante interessante, este conto de Inês Montenegro, mesmo apesar de não ter conseguido evitar despertar neste leitor em concreto ressonâncias com outras coisas lidas (e vistas) anteriormente. Com efeito, o tema da invasão da Terra por criaturas parasíticas vindas do espaço é um tema muito batido, tanto na literatura como em filme ou na TV (só para dar dois exemplos entre muitos possíveis temos na literatura Heinlein, com The Puppet Masters, e no cinema o filme It Came from Outer Space, de Jack Arnold, com história de Ray Bradbury). Mas em Vinho Fino Montenegro trata-o bem, produzindo uma história eficaz e bem escrita sobre uma espécie inteligente de parasitas que se espalha pelo universo viajando de mundo em mundo e colonizando-os. FC misturada com horror, como a generalidade deste tipo de história.

E, claro, chegam à Terra. Ou mais especificamente a um ponto qualquer do Douro vinhateiro, onde os parasitas decidem instalar-se nas uvas à espera de serem ingeridos pelo próximo hospedeiro. Mas as coisas a princípio não lhes correm bem — os alienígenas (i.e., os animais da nossa biosfera) são-lhes demasiado alienígenas e têm dificuldade em controlá-los, acabando por revelar a sua presença, de certa forma, cedo demais. Como consequência por pouco não são exterminados. Mas pode-se sempre contar com a inconsciência e a chico-espertice das pessoas, e no fim tudo se salva.

Para os parasitas alienígenas, não necessariamente para nós.

O conto é bom, mesmo apesar da fraca originalidade da ideia base. E lê-lo agora, nesta fase da epidemia de covid, deixa um gosto bem amargo na boca porque é impossível não constatar até que ponto é acertada a ideia de que alguém, algures, há de arranjar forma de lixar o esforço de todos os outros.

Deprimente, dizem? Ná! Impressão vossa.

Conto anterior desta publicação:

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Irmãos Grimm: O Alfaiatinho Esperto

Se chegados a este post forem assaltados por uma sensação de déjà vu, já andam por aqui há muito tempo e têm boa memória. E não estão sozinhos, que eu também achei que esta coisa de alfaiatinhos (e porquê o diminutivo? Ignoro) já tinha por aqui passado num contexto muito semelhante a este. E tinha, mas se aqui falamos d'O Alfaiatinho Esperto, no primeiro post, com data de há mais de cinco anos, falava-se de um alfaiatinho valente, apesar de ele ser, mais que valente, um chico esperto de primeira. E se esse conto foi dos construídos pelos Irmãos Grimm, este não parece ter sido, chegando a este livro, inclusive, com algumas marcas de história contada.

Além disso, pese embora a evidência da semelhança, os contos são diferentes. Neste, o alfaiate é mais apresentado como inteligente do que como intrujão, e se o desfecho da história é idêntico — o alfaiate casa com a princesa —, a verdade é que é desfecho partilhado com largas dezenas de outros contos em que alguém é forçado a mostrar de alguma forma o seu valor, tendo a mão da princesa como derradeiro prémio. São muito cobiçadas, as mãos das princesas do mundo das histórias populares.

Não o achei particularmente interessante, em parte por já ter visto tantas vezes a quase totalidade dos elementos que o constituem, mas há nestes livros contos piores.

Contos anteriores deste livro:

Robert Silverberg: A Dança do Sol

É curioso, e eu constato-o com frequência, como tantas vezes acontece uma obra de ficção científica, esse género supostamente escapista e desligado do ambiente cultural que o rodeia, estar indissociavelmente ligada à época em que foi escrita. E não me refiro aqui ao movimento literário a que pertence, ainda que isso também tenha a sua influência; afinal de contas, o ciberpunk não poderia ter nascido na época da new wave e vice-versa. Refiro-me a características mais fundamentais da obra em si.

Finais dos anos 60, início dos 70. "Cá fora", no mundo americano exterior à FC, era a época dos hippies e do LSD e da guerra do Vietname. E na FC, que supostamente nada tem a ver com nada disso? Bem, foi a época em que o género mais se ocupou dos limites da realidade, mais explorou experiêncuas alucinatórias, mais questionou a guerra e o expansionismo do homem branco e, por extensão, do homem terrestre. Quem acredita em coincidências talvez explique assim que um género que supostamente nada tem de político e nada tem a ver com crítica social se mostre tão sintonizado com a política e as convulsões sociais do seu tempo. Talvez se escape com essa explicação que nada explica.

Mas engana-se e engana. A verdade é outra. A verdade é que o género nunca foi nada disso. E este A Dança do Sol (bibliografia), de Robert Silverberg, é apenas mais uma das muitas provas.

Silverberg leva-nos a um planeta distante, onde a humanidade se dedica a exterminar uma espécie alcunhada de "comedores", a fim de abrir caminho para a colonização. Mas o protagonista, um homem com sangue ameríndio, começa a nutrir dúvidas sobre a natureza dos "comedores" e a necessidade do extermínio, e decide estudá-los, mergulhando no seu mundo. O que descobre estarrece-o: o que estão a fazer é um crime. E os paralelos com o que os EUA estavam a fazer na época em que o conto foi escrito, 1969, são tão óbvios que me escuso de os explicar. Vocês não são parvos nenhuns e compreendem.

E no fim do conto é a própria realidade a ser posta em causa, de uma forma francamente dickiana.

Este não é conto de grande extrapolação científica ou tecnológica; não é isso o que interessa aqui a Silverberg (na verdade, raramente foi isso o que interessou a Silverberg ao longo de toda a carreira). É conto de extrapolação social e de comentário social. E é bom.

Contos anteriores desta publicação:

Leiturtugas #152

Esta foi mais uma semana pouco movimentada no reino das Leiturtugas, como podem constatar pela extensão deste post. Só há registo de duas opiniões, ambas vindas de participantes oficiais, o que tem sido raro.

Começou pela Cristina Alves, que nos trouxe a sua opinião sobre O Deus das Moscas Tem Fome, a coletânea de Luís Corte Real que a Saída de Emergência publicou no ano passado. É a primeira leitura da Cristina, o que também não é frequente — ela costuma arrancar bem mais cedo. Quanto ao livro, não tem FC, pelo que a Cristina começa com 0c1s.

E terminou com o Artur Coelho, que nos trouxe a sua opinião sobre um romance de Reinaldo Ferreira, que talvez tivesse sido o nosso maior escritor pulp se nós tivéssemos tido pulps. Reeditado em 2018 pela PIM! (uma editora que não gosta do Dantas, imagino), o romance intitula-se Punhais Misteriosos e também não tem nada de FC. E o Artur passa assim a 1c7s.

E é só. Para a semana deverá haver mais. Venham daí.

domingo, 8 de maio de 2022

Luiz Bras: A Última Árvore

Há muito quem diga, sem se rir, que ficção científica não é literatura, mesmo quando surge em livros e outras publicações que dão ao texto primazia. Dizem-no, geralmente, sem nunca terem lido uma linha de ficção científica ou sem nunca terem passado para lá dos exemplos mais caricaturais do género, arvorando aquele ar douto de quem tudo ignora convictamente. Luiz Bras, imagino, ri-se dessas pessoas em longas gargalhadas e depois, assim que lhe passa a hilariedade, põe-se a mostrar que sim, caríssimos, ficção científica é literatura. Mais: que ficção científica não só é literatura como pode por vezes ser ótima literatura.

Não é o único, longe disso. Mas Bras parece fazer disso uma forma de ativismo. Em alguns dos seus livros a ficção científica chega-nos repleta de experimentalismo, por vezes de uma forma que se aproxima muito de algumas vertentes da poesia, como quem faz FC para mostrar a poetas o que a FC pode ser. Em outros, como neste A Última Árvore, aparece uma ficção científica mais tradicional, mas escrita com todo o rigor literário de quem escreve contos para leitores de contos que nunca leram FC na vida. É como se estivesse a dizer a quem preconceitua o género "deixem-se de tacanhices e avaliem as coisas com base naquilo que elas são, não no nome que lhes dão".

Não sei até que ponto será eficaz nesse trabalho. Tampouco sei até que ponto será aceite pelos leitores mais limitados do género, que também os há, aqueles que também julgam que FC é aquela literatura que não precisa de literatura para nada, bastando-lhe um enredo interessante e palavreado de ar tecnológico. Mas sei o que mais me interessa enquanto leitor: sei que a abordagem comigo funciona em pleno. Sei que nos seus contos encontro quase sempre muito daquilo que procuro na ficção científica: literatura, sim, literatura, extrapolação rigorosa que no entanto não deixa que o rigor estorve a história, ideias estimulantes, inteligência, subtileza, quase todas essas coisas boas que tanto me atraem para o género.

A Última Árvore é um ótimo livro. Como em qualquer compilação de contos há alguns que me parecem mais bem conseguidos do que outros, mas o nível geral é muito alto. Contos como Aço Contra Osso, Mecanismos Precários ou O Índio no Abismo Sou Eu são do melhor que tenho lido nos últimos tempos e a maioria dos restantes não lhes fica muito atrás.

E o melhor de tudo é estar disponível gratuitamente no site dos Livros Fantasma. Só em PDF, infelizmente, mas está. Deverão poder descarregá-lo clicando simplesmente aqui. É só desfrutar.

Eis o que achei de cada uma das histórias:

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Irmãos Grimm: O Príncipe e a Princesa

Este é dos tais contos que, se fosse lido isoladamente, sem estar englobado numa grande compilação onde já anteriormente surgiram vários contos com bastantes elementos em comum com ele, seria bem mais interessante do que aqui parece.

O Príncipe e a Princesa, sem surpresa, narra a história de um príncipe e de uma princesa. E, apesar de parecer não ter sofrido muitas alterações por parte dos Irmãos Grimm, narra-a bem, de forma desenvolvida (com 8 páginas muito densas, é um conto bastante longo para o que é hábito aqui) e bem concebida. Claro, não dispensa os truques habituais neste tipo de história, encontrados em tantas outras. Há nele o seu quê de lengalenga, episódios com muito de repetitivo, há a sempiterna mania de agrupar tudo em grupos de três. Mas há também uma história convoluta e cheia de peripécias, que parece estar a pedir que alguém a desenvolva num texto de fantasia mais elaborado.

A história é a de um príncipe que é capturado por um rei cruel que lhe promete a mão de uma filha caso consiga ultrapassar certas provas, e matá-lo se não conseguir. Com as dificuldades previsíveis, e muito auxiliado pela princesa, que não tem a crueldade dos pais, o príncipe consegue. Mas de nada lhe serve e os jovens acabam por fugir, o que os leva a ser perseguidos. Não vou contar o resto do enredo; ele é extenso e convoluto e isto basta para ficarem com uma ideia. As peripécias são muitas e o final feliz que, sendo o conto como é, nunca está realmente em dúvida, parece muitas vezes praticamente inalcançável. Mas ele lá aparece, com a punição dos vilões e a recompensa dos heróis. E com uma protagonista feminina que não desempenha o papel de patética marioneta de vontades alheias, como com demasiada frequência acontece nestas histórias, o que é mais um fator a torná-lo interessante.

Sim, a palavra certa é interessante. Este conto não é um clássico, não sofreu o tratamento Disney, não é dos que foram parar de forma perene ao imaginário popular de várias gerações, mas não deixa de ser das histórias mais interessantes destes livros.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Pedro Pereira: Bruxaria

Não, este não me convenceu.

A ideia de Pedro Pereira, não sendo propriamente original (longe disso, na verdade), até podia resultar numa história interessante. Mas Bruxaria não é essa história. Em parte por ser demasiado breve, não dando tempo ao leitor para se interessar minimamente por nenhuma das personagens, o que faz com que o seu destino lhe seja indiferente, em parte por não estar particularmente bem escrita, e em parte devido a algumas inconsistências que leva quem lê a sentir-se manipulado assim que se dá conta delas. E facilmente se dá conta delas.

A ideia é fazer um conto juvenil, daqueles em que raparigas resolvem brincar com as coisas do sobrenatural. Para isso, usam um tabuleiro de ouija e muito rapidamente a brincadeira descamba numa orgia de sangue. Muito rapidamente: o conto nem mil palavras tem. Cliché? Sim, claro, mas ver a conversa acima sobre a originalidade; se a execução fosse realmente boa, o resultado também o seria, com clichés ou sem eles. Mas não é.

Este não será propriamente um conto mau. Mas é um conto fraco.

Contos anteriores deste livro:

Leiturtugas #151

Olha, e foi mesmo. Depois de ter ontem publicado a nota sobre as Leiturtugas da semana anterior, aqui estamos hoje com mais uma nota sobre Leiturtugas, agora relativa às desta semana.

Ajudou que a malta tivesse estado de descanso. Nenhum dos participantes oficiais escreveu nenhuma opinião e entre os oficiosos só apareceu uma.

Quem no-la trouxe foi o Nuno Coelho, que comentou uma distopia que já tinha aparecido por aqui em abril. Cadernos da Água, romance de João Reis, foi publicado pela Quetzal em março último. E eu, que não gosto de repetir imagens nestas notas sobre Leiturtugas, desta vez vou ter de o fazer.

Até para a semana.

domingo, 1 de maio de 2022

Leiturtugas #150

Como assim, já é sábado?! Ou melhor, domingo, que se é certo que neste momento em que escrevo é sábado, não é menos verdade que quando acabar finalmente de escrever isto e publicar já passará da meia-noite.

Enfim, sim, pronto, atrasei-me. Mais do que tem sido hábito. Coisas que acontecem. Mas sim, isto é mais uma nota sobre Leiturtugas, sobre aquelas que apareceram por aí durante a semana passada. Aquela que terminou no domingo último. Não amanhã. Ou hoje, vá. O último. O de há uma semana. Oh, vocês percebem.

Não foram muitas, valha-nos isso. Foram apenas duas, uma oficial e uma oficiosa.

A oficial veio pela mão do Artur Coelho, que finalmente leu e comentou um livro de ficção científica, apropriadamente intitulado Futuro. Trata-se de um romance publicado no ano passado pela Divergência e escrito não sei quando (mas costuma ser antes) por Lívia Borges. E o Artur passa a marcar 1c6s.

Quanto à oficiosa, chegou-nos por intermédio da Diana, que opinou sobre um livro de Mário de Carvalho já com uns aninhos. A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho é uma novela fantástica sobre enovelamentos temporais, publicada originalmente em 1983 na Caminho, mas que a Diana parece ter lido numa das reedições recentes da Porto Editora. Há na ideia um levíssimo cheiro a FC, na medida em que a FC também tratou temas semelhantes, mas o autor leva-a por caminhos mitológicos, pelo que vou pôr o livro na coluna dos "sem".

E por esta semana... digo... pela semana pass... ora, não vou voltar a isto.

E é só. Até à próxima. Que não deve demorar tanto como esta, espero.