Sempre me fez confusão a forma como se classifica de "crónica" coisas que nunca me pareceram sê-lo. Para mim, e excluindo a aceção histórica da palavra (crónicas do reino ou do reinado tal, por exemplo), uma crónica é um texto breve de caráter opinativo, mesmo quando a sua componente literária é forte. Não é um texto de ficção, mesmo quando dão esse nome a pequenos contos. Eu cá chamo-lhes precisamente isso: contos. E é assim que tenho vindo a chamar contos às histórias que Mia Couto tem vindo a contar neste livro que intitulou Cronicando. Já ficaram para trás dezassete.
Pois bem, não é isso o que chamo a este Natural da Água. A este texto chamo realmente crónica, pois aqui Mia Couto divaga sobre a água e os rios e as águas e rios da sua memória. É quase um poema em prosa, magnificamente bem escrito, mas não é uma história, portanto não lhe chamo conto. Até o tamanho é diferente do dos outros, que rondavam as 3-4 páginas cada; aqui são duas.
Mas isso que importa? O que importa é se é boa, a crónica. É? É. Bastante.
Textos anteriores deste livro:
domingo, 31 de janeiro de 2021
Leiturtugas #87
Mais uma semana que passou, e mais um conjunto de Leiturtugas a divulgar, que este ano está a começar com grande movimentação. Mas antes, uma nota.
Como certamente terão reparado, tenho vindo a divulgar coisas que foram sendo comentadas por aí desde o fim do Ficção Científica Literária. Tenho-o feito seguindo mais ou menos a ordem alfabética dos títulos dos blogues e sites, ainda que a frequência de atualização e a abundância de material relevante em cada um cause variações nessa ordem que podem ser significativas. A ideia inicial era que no fim de janeiro já todos estivessem em dia, ou quase, mas subestimei a quantidade de material existente, pelo que embora alguns já estejam em dia, nomeadamente os do topo do alfabeto, muitos ainda não estão. Acabarão por ficar, mas só ao longo de fevereiro. Quando ficarem eu aviso. Para já, vamos ao que há a divulgar esta semana. E é muita coisa.
Quem iniciou desta vez as hostilidades foi o Artur Coelho, debruçando-se detalhadamente sobre a antologia A Dança dos Ossos, organizada por Ricardo Lourenço e publicada no primeiro trimestre do ano passado pela E-Primatur. Trata-se de uma antologia de conto gótico luso-brasileiro e um desses contos pode ser lido como proto-FC, pelo que o Artur passa a 1c1s.
Depois, veio a Cristina Alves e trouxe o seu olhar sobre mais um texto do João Barreiros. Intitulado Um Gosto a Céu no Lago do Breu, trata-se desta vez de uma novela de fantasia, talvez com uns toques de horror, e foi publicada no ano passado pela Universidade do Porto. Não parece haver aqui nenhum sinal de FC, pelo que a Cristina passa a 1c3s.
E é tudo, no que toca aos participantes oficiais do projeto. Mas também temos os oficiosos.
Como, por exemplo, a Edite, que publicou a sua opinião sobre A Balada do Medo, romance de Norberto Morais publicado pela Relógio d'Água em 2019, que parece perfeitamente integrado no realismo mágico. Fantasia, portanto.
Ou a Andreia Silva, que escreveu sobre um livro já aparecido várias vezes por aqui desde que foi publicado no ano passado pela Desassossego: a obra de Vanessa Fidalgo Pelos Caminhos Assombrados de Portugal. Também não parece ter FC alguma.
Ou a Célia, que leu e comentou O Evangelho Segundo Jesus Cristo, famosíssimo romance de José Saramago que lhe valeu a censura de um homenzinho medíocre que era à época secretário de estado, o que foi a principal causa de ele se ter mudado para Lançarote. A Célia leu-o numa das reedições recentes da Porto Editora. E também este livro não tem qualquer sinal de FC.
Ou, por fim, a Katrina, que publicou uma breve opinião sobre A Revolta de Tuong, romance de FC de Fernando Frazão que o autor autoeditou no final do ano passado via Amazon. E pela primeira vez aparece FC por aqui.
Para terminar, temos também um grupinho catita de opiniões atrasadas:
Em maio, o Carlos Faria opinou sobre a (ótima) novela fantástica de Jorge de Sena, O Físico Prodigioso.
Em junho, o Pedro Miguel Silva opinou sobre o número 4 da Granta em Língua Portuguesa, dedicada ao cinema, que parece incluir alguma ficção fantástica.
Também em junho, alguém na Biblioteca de Arganil falou opinativamente sobre A Estrela, um conto fantástico de Vergílio Ferreira.
E ainda em junho, o António Bizarro falou sobre O Último Extraterrestre, conto de FC de Jorge Borbinha.
No mês seguinte, em julho, a Andreia Silva opinou (em vídeo) sobre um romance de Catarina Janeiro intitulado Outubro Negro. Parece ser horror ou fantasia sombria, por aí.
Ainda em julho, a Tânia Oliveira opinou sobre O Naturalista, novela de Miguel Peres que parece ter algum parentesco com a FC.
Hesitei em incluir esta, pois uma frase de comentário factual sobre o conteúdo dificilmente conta como opinião, mas siga. Em setembro, o LV Paulo escreveu uma frase sobre Regiana Magna, organizada por Marcelina Gama Leandro e Álvaro de Sousa Holstein.
Por fim (por esta semana), e também em setembro, o José Malta escreveu uma longa crítica a A Conspiração da Atlântida, romance de FC de Rogério Colaço.
Para a semana haverá mais? Com toda a certeza. Das atrasadas e das não atrasadas. Até lá.
Como certamente terão reparado, tenho vindo a divulgar coisas que foram sendo comentadas por aí desde o fim do Ficção Científica Literária. Tenho-o feito seguindo mais ou menos a ordem alfabética dos títulos dos blogues e sites, ainda que a frequência de atualização e a abundância de material relevante em cada um cause variações nessa ordem que podem ser significativas. A ideia inicial era que no fim de janeiro já todos estivessem em dia, ou quase, mas subestimei a quantidade de material existente, pelo que embora alguns já estejam em dia, nomeadamente os do topo do alfabeto, muitos ainda não estão. Acabarão por ficar, mas só ao longo de fevereiro. Quando ficarem eu aviso. Para já, vamos ao que há a divulgar esta semana. E é muita coisa.
Quem iniciou desta vez as hostilidades foi o Artur Coelho, debruçando-se detalhadamente sobre a antologia A Dança dos Ossos, organizada por Ricardo Lourenço e publicada no primeiro trimestre do ano passado pela E-Primatur. Trata-se de uma antologia de conto gótico luso-brasileiro e um desses contos pode ser lido como proto-FC, pelo que o Artur passa a 1c1s.
Depois, veio a Cristina Alves e trouxe o seu olhar sobre mais um texto do João Barreiros. Intitulado Um Gosto a Céu no Lago do Breu, trata-se desta vez de uma novela de fantasia, talvez com uns toques de horror, e foi publicada no ano passado pela Universidade do Porto. Não parece haver aqui nenhum sinal de FC, pelo que a Cristina passa a 1c3s.
E é tudo, no que toca aos participantes oficiais do projeto. Mas também temos os oficiosos.
Como, por exemplo, a Edite, que publicou a sua opinião sobre A Balada do Medo, romance de Norberto Morais publicado pela Relógio d'Água em 2019, que parece perfeitamente integrado no realismo mágico. Fantasia, portanto.
Ou a Andreia Silva, que escreveu sobre um livro já aparecido várias vezes por aqui desde que foi publicado no ano passado pela Desassossego: a obra de Vanessa Fidalgo Pelos Caminhos Assombrados de Portugal. Também não parece ter FC alguma.
Ou a Célia, que leu e comentou O Evangelho Segundo Jesus Cristo, famosíssimo romance de José Saramago que lhe valeu a censura de um homenzinho medíocre que era à época secretário de estado, o que foi a principal causa de ele se ter mudado para Lançarote. A Célia leu-o numa das reedições recentes da Porto Editora. E também este livro não tem qualquer sinal de FC.
Ou, por fim, a Katrina, que publicou uma breve opinião sobre A Revolta de Tuong, romance de FC de Fernando Frazão que o autor autoeditou no final do ano passado via Amazon. E pela primeira vez aparece FC por aqui.
Para terminar, temos também um grupinho catita de opiniões atrasadas:
Em maio, o Carlos Faria opinou sobre a (ótima) novela fantástica de Jorge de Sena, O Físico Prodigioso.
Em junho, o Pedro Miguel Silva opinou sobre o número 4 da Granta em Língua Portuguesa, dedicada ao cinema, que parece incluir alguma ficção fantástica.
Também em junho, alguém na Biblioteca de Arganil falou opinativamente sobre A Estrela, um conto fantástico de Vergílio Ferreira.
E ainda em junho, o António Bizarro falou sobre O Último Extraterrestre, conto de FC de Jorge Borbinha.
No mês seguinte, em julho, a Andreia Silva opinou (em vídeo) sobre um romance de Catarina Janeiro intitulado Outubro Negro. Parece ser horror ou fantasia sombria, por aí.
Ainda em julho, a Tânia Oliveira opinou sobre O Naturalista, novela de Miguel Peres que parece ter algum parentesco com a FC.
Hesitei em incluir esta, pois uma frase de comentário factual sobre o conteúdo dificilmente conta como opinião, mas siga. Em setembro, o LV Paulo escreveu uma frase sobre Regiana Magna, organizada por Marcelina Gama Leandro e Álvaro de Sousa Holstein.
Por fim (por esta semana), e também em setembro, o José Malta escreveu uma longa crítica a A Conspiração da Atlântida, romance de FC de Rogério Colaço.
Para a semana haverá mais? Com toda a certeza. Das atrasadas e das não atrasadas. Até lá.
Murilo Rubião: Teleco, o Coelhinho
Há pessoas que leem um livro de cada vez. Outras leem dois ou três. Eu tendo a ler muitos, a maioria de contos, em parte porque não deixam de ser engraçadas as sincronicidades que às vezes acontecem quando me aparecem em livros diferentes contos com pontos de contacto evidentes. Agora, calhou estar a ler ao mesmo tempo esta antologia brasileira e os contos de FC surrealista do Mário-Henrique Leiria. E há paralelos claros entre o nosso Mário-Henrique e esta história de Murilo Rubião.
Não que Teleco, o Coelhinho (bibliografia) tenha alguma coisa a ver com ficção científica. Mas a forma de usar o surrealismo para criar situações insólitas profundamente ancoradas no quotidiano é basicamente a mesma em Rubião (ou pelo menos neste Rubião) e em Leiria.
Esta é a história de Teleco, o coelhinho. De Teleco e do homem que o acolhe em casa, sem propriamente um motivo claro. Por impulso. Sabendo que Teleco pode ser um coelhinho mas não é propriamente um coelhinho, pois não só fala como é capaz de se metamorfosear no que lhe apeteça. E isso gera um sem-número de problemas que vão servir de motor à narrativa.
Este é um conto divertido e bem feito, que a meu ver peca um pouco por se limitar a ser divertido e bem feito. Ou seja, a criação que Rubião aqui cria dava pano para mangas mais vastas, que ele parece não ter querido explorar, preferindo enfiá-la na via relativamente estreita da convivência interpessoal, com os seus amores e ciúmes velhos como o mundo. Parece-me que a ideia do coelho falante metamorfo dava para muito mais do que isso. Mas a verdade é que o que Rubião fez ficou bem feito, pelo que não me posso realmente queixar.
Textos anteriores deste livro:
Não que Teleco, o Coelhinho (bibliografia) tenha alguma coisa a ver com ficção científica. Mas a forma de usar o surrealismo para criar situações insólitas profundamente ancoradas no quotidiano é basicamente a mesma em Rubião (ou pelo menos neste Rubião) e em Leiria.
Esta é a história de Teleco, o coelhinho. De Teleco e do homem que o acolhe em casa, sem propriamente um motivo claro. Por impulso. Sabendo que Teleco pode ser um coelhinho mas não é propriamente um coelhinho, pois não só fala como é capaz de se metamorfosear no que lhe apeteça. E isso gera um sem-número de problemas que vão servir de motor à narrativa.
Este é um conto divertido e bem feito, que a meu ver peca um pouco por se limitar a ser divertido e bem feito. Ou seja, a criação que Rubião aqui cria dava pano para mangas mais vastas, que ele parece não ter querido explorar, preferindo enfiá-la na via relativamente estreita da convivência interpessoal, com os seus amores e ciúmes velhos como o mundo. Parece-me que a ideia do coelho falante metamorfo dava para muito mais do que isso. Mas a verdade é que o que Rubião fez ficou bem feito, pelo que não me posso realmente queixar.
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sábado, 30 de janeiro de 2021
José Manuel Sánchez: Buscando la Paz Interior
Antes de mais, há que explicar como este livro me veio parar às mãos. É que eu nunca compraria um livro destes, muito menos em espanhol, por motivos que adiante ficarão claros. O caso é que desde há já uns anos razoáveis tenho o hábito de mandar fazer à lulu.com livros de exemplar único, contendo textos vários. A princípio era aquilo que eu ia escrevendo e também coisas obtidas na internet, para o meu pai ler; depois da morte dele são só os meus textos, a fim de ficar com um arquivo deles em papel. Ora, de uma das vezes que fiz uma compilação de textos obtidos na internet, o livro que me chegou vinha com a capa que eu tinha criado (não é esta aqui ao lado, evidentemente; esta é a capa verdadeira do livro)... e com este Buscando la Paz Interior no miolo.
Passei mais de uma década com este livro híbrido cá por casa. De vez em quando reencontrava-o e pensava com os meus botões «um dia leio esta coisa», mas ia sempre adiando porque desconfiava que se a lesse a iria detestar. Afinal, o caráter místico do texto era claro com a mera leitura das gordas e, embora eu não faça a mais pequena ideia de quem é, ao certo, este José Manuel Martínez Sánchez, também fica facilmente clara a sua condição de candidato a guru.
Bem, foi agora. E o livro é, realmente, muito mau.
Trata-se de um livro de autoajuda escrito sob uma perspetiva taoísta. Há nele elementos de filosofia, um certo sincretismo que tenta integrar partes do cristianismo na mundovisão taoísta (provavelmente para melhor atrair cristãos) e muito, muito palavreado oco. Não surpreende que assim seja, pois tudo o que dependa da fé só se sustenta na medida da crença. Mas neste caso, a completa ausência da mais pequena prova ou demonstração de realidade daquilo que o autor etiqueta como a verdade, comum neste tipo de textos, os quais tendem a apoiar-se exclusivamente (ou quase) na velha falácia lógica do apelo à autoridade, consegue ser suplantada pela imensa incongruência que é alguém tentar argumentar em favor de uma mundovisão taoísta.
É que o taoísmo, especialmente na versão que aparece neste livro, se baseia no vazio. Na inação. Na noção de que a verdade só se alcança quando se esvazia o cérebro de ideias. Ora, poucas coisas podem ser mais contraditórias com esse princípio do que um livro que procura argumentar em favor dele, um livro que tenta convencer terceiros de que é esse o Caminho (com maiúscula, pois Tao quer dizer precisamente isso, caminho), recorrendo a argumentos, a citações escolhidas a dedo e descontextualizadas (claro), a arremedos de lógica, e não se esquecendo, obviamente, de atacar com violência o espírito científico que exige provas para a aceitação de algo como verdade.
Mas o autor não parece dar-se conta da contradição inerente ao que está a tentar fazer. E eu, confesso, diverti-me com isso.
No fundo, tendo detestado a leitura deste livrinho, até a achei útil. É bom conhecer os mecanismos mentais de quem envereda por este tipo de caminhos: não só dão boas personagens como ajudam a contextualizar os mecanismos mentais de gente que sofre das mesmas cegueiras seletivas em versão mais suave. Ou seja: de todos nós, pois todos temos uma certa queda para cair neste tipo de falha. Isto, no entanto, é a minha faceta de escritor a falar. A de leitor arrastou-se pela leitura, carregada com um tédio imenso, intercalado de vez em quando por algum divertimento com esta ou aquela afirmação particularmente estapafúrdia.
E no fim há uns "poemas espirituais", também muito mauzinhos, mas sendo se calhar o melhor que o livro tem.
Em suma: eis um sério candidato à pior leitura do ano.
Passei mais de uma década com este livro híbrido cá por casa. De vez em quando reencontrava-o e pensava com os meus botões «um dia leio esta coisa», mas ia sempre adiando porque desconfiava que se a lesse a iria detestar. Afinal, o caráter místico do texto era claro com a mera leitura das gordas e, embora eu não faça a mais pequena ideia de quem é, ao certo, este José Manuel Martínez Sánchez, também fica facilmente clara a sua condição de candidato a guru.
Bem, foi agora. E o livro é, realmente, muito mau.
Trata-se de um livro de autoajuda escrito sob uma perspetiva taoísta. Há nele elementos de filosofia, um certo sincretismo que tenta integrar partes do cristianismo na mundovisão taoísta (provavelmente para melhor atrair cristãos) e muito, muito palavreado oco. Não surpreende que assim seja, pois tudo o que dependa da fé só se sustenta na medida da crença. Mas neste caso, a completa ausência da mais pequena prova ou demonstração de realidade daquilo que o autor etiqueta como a verdade, comum neste tipo de textos, os quais tendem a apoiar-se exclusivamente (ou quase) na velha falácia lógica do apelo à autoridade, consegue ser suplantada pela imensa incongruência que é alguém tentar argumentar em favor de uma mundovisão taoísta.
É que o taoísmo, especialmente na versão que aparece neste livro, se baseia no vazio. Na inação. Na noção de que a verdade só se alcança quando se esvazia o cérebro de ideias. Ora, poucas coisas podem ser mais contraditórias com esse princípio do que um livro que procura argumentar em favor dele, um livro que tenta convencer terceiros de que é esse o Caminho (com maiúscula, pois Tao quer dizer precisamente isso, caminho), recorrendo a argumentos, a citações escolhidas a dedo e descontextualizadas (claro), a arremedos de lógica, e não se esquecendo, obviamente, de atacar com violência o espírito científico que exige provas para a aceitação de algo como verdade.
Mas o autor não parece dar-se conta da contradição inerente ao que está a tentar fazer. E eu, confesso, diverti-me com isso.
No fundo, tendo detestado a leitura deste livrinho, até a achei útil. É bom conhecer os mecanismos mentais de quem envereda por este tipo de caminhos: não só dão boas personagens como ajudam a contextualizar os mecanismos mentais de gente que sofre das mesmas cegueiras seletivas em versão mais suave. Ou seja: de todos nós, pois todos temos uma certa queda para cair neste tipo de falha. Isto, no entanto, é a minha faceta de escritor a falar. A de leitor arrastou-se pela leitura, carregada com um tédio imenso, intercalado de vez em quando por algum divertimento com esta ou aquela afirmação particularmente estapafúrdia.
E no fim há uns "poemas espirituais", também muito mauzinhos, mas sendo se calhar o melhor que o livro tem.
Em suma: eis um sério candidato à pior leitura do ano.
João B. Castrado: Síndroma das Prostitutas do Porto de Amesterdão
O senhor autor teve vergonha e vai daí inventou um pseudónimo. Não é caso único, há até antecedentes abundantes, mas este caso é curioso porque o autor por detrás do pseudónimo se revela rapidamente no próprio livro em que o pseudónimo aparece (não sei se por vontade própria se por algum daqueles acidentes que às vezes acontecem nestas andanças da edição). João B. Castrado, claro, é o pseudónimo, e o motivo da vergonha torna-se claro quando se percebe que a Síndroma das Prostitutas do Porto de Amesterdão (bibliografia) é uma doença inventada de cariz absolutamente sexual.
É das tais histórias que se integram na perfeição no espírito da coisa. Basicamente, estamos perante uma doença sexualmente transmissível cujos sintomas são francamente embaraçosos: os órgãos genitais (ou, em geral, os órgãos usados em atividades sexuais) ganham consciência e vontade próprias. E voz. Que não se acanham em usar, para grande embaraço dos pacientes. Talvez seja por isso que o Dr. João B. é Castrado?...
De resto, a história está bem escrita, estruturada como é da praxe, pelo menos no que toca à vasta maioria das histórias/doenças que constam destas páginas, e tem alguma piada. Talvez não seja das histórias de topo, em termos absolutos, mas está bem colocada numa segunda linha de textos bons e interessantes, elaborados com base em boas ideias bem exploradas. Gostei.
Textos anteriores deste livro:
É das tais histórias que se integram na perfeição no espírito da coisa. Basicamente, estamos perante uma doença sexualmente transmissível cujos sintomas são francamente embaraçosos: os órgãos genitais (ou, em geral, os órgãos usados em atividades sexuais) ganham consciência e vontade próprias. E voz. Que não se acanham em usar, para grande embaraço dos pacientes. Talvez seja por isso que o Dr. João B. é Castrado?...
De resto, a história está bem escrita, estruturada como é da praxe, pelo menos no que toca à vasta maioria das histórias/doenças que constam destas páginas, e tem alguma piada. Talvez não seja das histórias de topo, em termos absolutos, mas está bem colocada numa segunda linha de textos bons e interessantes, elaborados com base em boas ideias bem exploradas. Gostei.
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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
Outro dos "meus"
Depois da pausa aqui na Lâmpada causada pela queda da minha mãe, tenho passado os últimos meses a recuperar o tempo perdido primeiro no que toca às leiturtugas, depois às leituras que fui fazendo entretanto e não tive oportunidade de comentar atempadamente. As leiturtugas já estão em dia há mais de um mês; as leituras estão quase, pois já só um livro mantém um atraso considerável. Está na altura, portanto, de regressar a outros tipos de conteúdo do blogue. Por exemplo, às minhas traduções que foram sendo publicadas entretanto.
A bibliotecária de Auschwitz está na moda. Na verdade está tão na moda que gerou toda uma panóplia de personagens de Auschwitz, incluindo até aquele livreco que deu oportunidade ao José Rodrigues dos Santos para sugerir que os fornos crematórios tinham sido criados pelos nazis por caridade, pois os coitadinhos dos judeus sofriam muito no gueto de Varsóvia.
Tudo isto tem muito de edição oportunista, evidentemente, tentando aproveitar um sucesso de vendas através da edição de uma série de livros que, pelo menos na aparência, seguem a mesma fórmula geral. É o mercado livreiro que temos: incapaz de arriscar em coisas diferentes, ansioso por seguir qualquer fórmula que pelo menos dê algumas garantias, por mais fantasmagóricas que elas sejam, de retorno financeiro. É o mercado livreiro que temos e, muito provável e infelizmente, é o reflexo do público leitor que temos, avesso a arriscar o desconhecido. Se assim não fosse, estas modas rapidamente morreriam de morte natural.
No entanto, este livro é um pouco diferente dos restantes. Para começar, Dita Kraus é a própria "bibliotecária de Auschwitz". E para terminar, este Uma Vida Adiada é a história dela, da vida dela, contada na primeira pessoa.
E parece ter sido mesmo na primeira pessoa. Não parece ter havido aqui qualquer espécie de ghost-writer a dourar a prosa ou a estruturar melhor o volume (embora os episódios que Dita Kraus conta não tenham sido organizados por ela), até porque este é mais estruturado no início e no meio do que mais para o fim, onde como que se dissolve numa série de episódios mais ou menos desconexos. Começa por ser a história de uma rapariguinha checa banalíssima, nascida no seio da burguesia judaica, mas laica, do país. Uma rapariguinha que não se distingue em nada, realmente. Não parece ser particularmente inteligente, ou talentosa, não parece passar de uma miudinha preocupada sobretudo com as coisas da infância e do início da adolescência, até um bom bocado pateta.
E de repente cai-lhe a História em cima.
Mas não. A frase acima é mentirosa. A História não lhe cai de repente em cima; vai caindo aos poucos, insidiosa, porque é aos poucos, insidiosamente, que o fascismo se instala, que os monstros deixam de estar camuflados no seio de todos nós e se dão a conhecer, que a vida se vai tornando cada vez mais insuportável até, tantas vezes, deixar de existir. É essa a grande força e a grande relevância deste livro, agora que estamos de novo num mundo em que os monstros vão saindo das suas tocas, ansiosos por dar rédea solta à sua ânsia por um novo Holocausto. É a história em primeira pessoa de alguém que os conheceu de perto, de alguém que lhes sobreviveu graças à juventude, a alguma manha e a muita, muita sorte, de alguém que perdeu quase toda a família, assassinada em várias fases do enorme crime nazi.
Não é livro isento de problemas. Basta dizer que Kraus acaba por casar com um sionista convicto, também ele sobrevivente dos campos de extermínio e, embora não pareça partilhar integralmente das convicções do marido, parte para Israel, onde as imagens das aldeias árabes abandonadas não parecem despertar-lhe qualquer espécie de imagem de pessoas expulsas das suas casas nalguma das várias fases da limpeza étnica que deu lugar ao estado moderno. Mas é um livro tristemente necessário. Porque sim, o crime existiu, e foi hediondo, e os seus responsáveis foram os antepassados diretos daqueles que hoje em dia ensaiam de novo a mesma espécie de retórica muitas vezes (mas nem sempre) contra outros grupos de pessoas. Na época em que Dita Kraus era criança foram os judeus; hoje são os muçulmanos, ou os árabes, ou de novo os judeus, ou os ciganos, ou, ou, ou. A retórica é a mesma, os seus objetivos são idênticos, e o resultado final será uma cópia a papel químico se deixarmos essa peçonha alastrar.
É para sabermos de que forma e porquê a peçonha alastra que livros destes são fundamentais.
Mesmo quando não dão grande gosto ao tradutor.
A bibliotecária de Auschwitz está na moda. Na verdade está tão na moda que gerou toda uma panóplia de personagens de Auschwitz, incluindo até aquele livreco que deu oportunidade ao José Rodrigues dos Santos para sugerir que os fornos crematórios tinham sido criados pelos nazis por caridade, pois os coitadinhos dos judeus sofriam muito no gueto de Varsóvia.
Tudo isto tem muito de edição oportunista, evidentemente, tentando aproveitar um sucesso de vendas através da edição de uma série de livros que, pelo menos na aparência, seguem a mesma fórmula geral. É o mercado livreiro que temos: incapaz de arriscar em coisas diferentes, ansioso por seguir qualquer fórmula que pelo menos dê algumas garantias, por mais fantasmagóricas que elas sejam, de retorno financeiro. É o mercado livreiro que temos e, muito provável e infelizmente, é o reflexo do público leitor que temos, avesso a arriscar o desconhecido. Se assim não fosse, estas modas rapidamente morreriam de morte natural.
No entanto, este livro é um pouco diferente dos restantes. Para começar, Dita Kraus é a própria "bibliotecária de Auschwitz". E para terminar, este Uma Vida Adiada é a história dela, da vida dela, contada na primeira pessoa.
E parece ter sido mesmo na primeira pessoa. Não parece ter havido aqui qualquer espécie de ghost-writer a dourar a prosa ou a estruturar melhor o volume (embora os episódios que Dita Kraus conta não tenham sido organizados por ela), até porque este é mais estruturado no início e no meio do que mais para o fim, onde como que se dissolve numa série de episódios mais ou menos desconexos. Começa por ser a história de uma rapariguinha checa banalíssima, nascida no seio da burguesia judaica, mas laica, do país. Uma rapariguinha que não se distingue em nada, realmente. Não parece ser particularmente inteligente, ou talentosa, não parece passar de uma miudinha preocupada sobretudo com as coisas da infância e do início da adolescência, até um bom bocado pateta.
E de repente cai-lhe a História em cima.
Mas não. A frase acima é mentirosa. A História não lhe cai de repente em cima; vai caindo aos poucos, insidiosa, porque é aos poucos, insidiosamente, que o fascismo se instala, que os monstros deixam de estar camuflados no seio de todos nós e se dão a conhecer, que a vida se vai tornando cada vez mais insuportável até, tantas vezes, deixar de existir. É essa a grande força e a grande relevância deste livro, agora que estamos de novo num mundo em que os monstros vão saindo das suas tocas, ansiosos por dar rédea solta à sua ânsia por um novo Holocausto. É a história em primeira pessoa de alguém que os conheceu de perto, de alguém que lhes sobreviveu graças à juventude, a alguma manha e a muita, muita sorte, de alguém que perdeu quase toda a família, assassinada em várias fases do enorme crime nazi.
Não é livro isento de problemas. Basta dizer que Kraus acaba por casar com um sionista convicto, também ele sobrevivente dos campos de extermínio e, embora não pareça partilhar integralmente das convicções do marido, parte para Israel, onde as imagens das aldeias árabes abandonadas não parecem despertar-lhe qualquer espécie de imagem de pessoas expulsas das suas casas nalguma das várias fases da limpeza étnica que deu lugar ao estado moderno. Mas é um livro tristemente necessário. Porque sim, o crime existiu, e foi hediondo, e os seus responsáveis foram os antepassados diretos daqueles que hoje em dia ensaiam de novo a mesma espécie de retórica muitas vezes (mas nem sempre) contra outros grupos de pessoas. Na época em que Dita Kraus era criança foram os judeus; hoje são os muçulmanos, ou os árabes, ou de novo os judeus, ou os ciganos, ou, ou, ou. A retórica é a mesma, os seus objetivos são idênticos, e o resultado final será uma cópia a papel químico se deixarmos essa peçonha alastrar.
É para sabermos de que forma e porquê a peçonha alastra que livros destes são fundamentais.
Mesmo quando não dão grande gosto ao tradutor.
Mia Couto: Mulher Roxa em Vestido Laranja
Mais um conto sem fantástico dentro, este Mulher Roxa em Vestido Laranja é uma daquelas histórias que Mia Couto usa para criticar coisas da sociedade moçambicana do tempo em que as escreveu: a burguesia emergente, os novos-ricos enriquecidos à sombra do partido dominante, dos cargos e da corrupção que com eles chega, etc.
A protagonista, a "mulher roxa em vestido laranja" é mulher de um homem importante. E ser mulher de um homem importante tem duas consequências: ele traz-lhe sempre presentes quando regressa de alguma das suas múltiplas viagens e ela própria é uma mulher importante. Tudo bem enquanto está bem. O problema é que ele um dia regressa com um lindo vestido cor de laranja, que ela rapidamente enverga, vaidosa, e sai porta fora para o mostrar à vizinhança. E o problema é?, perguntarão. Bem...
O problema é que a cor do vestido é precisamente a mesma da das batas das limpadoras de ruas e a mulher vê-se confundida com elas. Caldo entornado, raios, coriscos, trovões, evidentemente. E o conto lá vai, divertido e irónico em variante corrosiva. Eu prefiro quando Mia Couto mergulha no fantástico, é certo. Mas isso não quer dizer que desgoste de quando não o faz.
Contos anteriores deste livro:
A protagonista, a "mulher roxa em vestido laranja" é mulher de um homem importante. E ser mulher de um homem importante tem duas consequências: ele traz-lhe sempre presentes quando regressa de alguma das suas múltiplas viagens e ela própria é uma mulher importante. Tudo bem enquanto está bem. O problema é que ele um dia regressa com um lindo vestido cor de laranja, que ela rapidamente enverga, vaidosa, e sai porta fora para o mostrar à vizinhança. E o problema é?, perguntarão. Bem...
O problema é que a cor do vestido é precisamente a mesma da das batas das limpadoras de ruas e a mulher vê-se confundida com elas. Caldo entornado, raios, coriscos, trovões, evidentemente. E o conto lá vai, divertido e irónico em variante corrosiva. Eu prefiro quando Mia Couto mergulha no fantástico, é certo. Mas isso não quer dizer que desgoste de quando não o faz.
Contos anteriores deste livro:
segunda-feira, 25 de janeiro de 2021
Mário-Henrique Leiria: sem título
Mário-Henrique Leiria decidiu deixar sem título este conto (ou fragmento) da vida extraordinária de Josela, mas facilmente podia ter-lhe chamado O Amigo Inconveniente ou A Cabeça da Madame, algo assim. Para efeitos de Bibliowiki chamei-lhe simplesmente "2º fragmento", há já bastante tempo, mas se calhar acabarei por fazer o que realmente é mais adequado e juntá-lo à longa lista de textos sem título que o site contém. Mas divago.
Sobre o primeiro conto da Josela disse que era mais surrealismo que FC, ainda que tivesse FC lá dentro. Aqui há bastante mais FC; a suficiente para quase se poder categorizar esta história como FC surrealista. Tudo começa quando, na véspera da família de Josela se meter no foguetão para umas bem merecidas férias, decide convidar uns amigos para jantar. A ideia parece boa. O problema é quem a Josela convida.
Os convivas são quatro. Uma tal Madame, o casal Grink O'Tork, cujo nome tem um ar meio irlandês mas que também podem perfeitamente ser ETs, e o Zeca Bubastis. Ora, o Zeca Bubastis é um bom amigo mas também é maluco, imprevisível. E, sem que se perceba porquê, trata de decapitar a Madame.
O resto do conto é, basicamente, a história de como aquela maçada é abafada, graças aos contactos da família e à cobrança de favores, claro. Sim, que Leiria escrevia sobretudo sobre o salazarismo e o marcelismo, a sociedade em que vivia e, embora estes contos só tenham sido publicados em 1975, tudo indica que foram escritos antes do 25 de Abril, época de todas as corrupções quase sempre bem abafadas pelos lápis azuis da censura. Tudo bem regado a humor, evidentemente tão negro como os tempos. E tudo muito bom.
Textos anteriores deste livro:
Sobre o primeiro conto da Josela disse que era mais surrealismo que FC, ainda que tivesse FC lá dentro. Aqui há bastante mais FC; a suficiente para quase se poder categorizar esta história como FC surrealista. Tudo começa quando, na véspera da família de Josela se meter no foguetão para umas bem merecidas férias, decide convidar uns amigos para jantar. A ideia parece boa. O problema é quem a Josela convida.
Os convivas são quatro. Uma tal Madame, o casal Grink O'Tork, cujo nome tem um ar meio irlandês mas que também podem perfeitamente ser ETs, e o Zeca Bubastis. Ora, o Zeca Bubastis é um bom amigo mas também é maluco, imprevisível. E, sem que se perceba porquê, trata de decapitar a Madame.
O resto do conto é, basicamente, a história de como aquela maçada é abafada, graças aos contactos da família e à cobrança de favores, claro. Sim, que Leiria escrevia sobretudo sobre o salazarismo e o marcelismo, a sociedade em que vivia e, embora estes contos só tenham sido publicados em 1975, tudo indica que foram escritos antes do 25 de Abril, época de todas as corrupções quase sempre bem abafadas pelos lápis azuis da censura. Tudo bem regado a humor, evidentemente tão negro como os tempos. E tudo muito bom.
Textos anteriores deste livro:
Isaac Asimov: Azazel
A história de Azazel (bibliografia) tem o seu quê de curioso. Batizado com o nome de um demónio bíblico, o que torna clara a inspiração de Isaac Asimov, entre as primeiras aparições da personagem ele foi alternativamente um demónio e um extraterrestre, caso em que as coisas fabulosas que conseguia fazer eram explicadas, provavelmente, com a velha máxima de «qualquer tecnologia suficientemente avançada ser indistinguível da magia». O motivo, como o próprio Isaac Asimov explica na introdução, foi editorial: as fantasias não eram publicáveis numa revista de ficção científica pelo simples facto de serem fantasias e não ficção científica, pelo que o demónio se converteu em ET para que a venda se efetuasse. Mas claro que o ET nunca deixou de ser demónio e, quando as histórias foram coligidas em livro, a máscara de FC caiu de vez, ainda que algumas destas histórias conservem alguns elementos do género.
Nestas histórias Asimov pretende ser espirituoso. Tudo é escrito com esse objetivo em mente, desde o facto de se introduzir a si próprio como personagem (o narrador, alvo constante dos insultos e menosprezos do homem que consegue invocar o demónio, é ele próprio) até ao facto de nenhum dos estratagemas do Azazel dar o resultado pretendido, umas vezes por defeito, outras por excesso. Não tenho qualquer dúvida de que ele se terá divertido bastante a escrever cada um destes contos, e também não me custa a crer que eles também divertiram muitos dos seus leitores, caso contrário não teriam sido tantos. Mas a mim?...
Infelizmente, e salvo algumas exceções, a mim não me divertiram por aí além. Asimov foi um bom escritor, à sua maneira, e é responsável pela criação de algumas histórias e conceitos realmente memoráveis, entre as quais se destacam as da Fundação com a sua psico-história e as dos robôs positrónicos com os seus dilemas lógicos. Mas todos os artistas têm pontos fortes e pontos fracos, e creio que o humor, decididamente, não é um dos pontos fortes de Asimov.
Até porque através do humor vêm mais claramente ao de cima alguns dos aspetos mais problemáticos da personalidade do autor, pois aquilo que nos diverte, e o modo como nos diverte, é uma janela bastante cristalina para quem somos. Há nestes contos algumas histórias francamente desagradáveis de ler e outras que combinam aspetos desagradáveis com outros em que as qualidades do autor surgem à superfície. E há algumas histórias realmente boas, o que impede o livro de ser mau.
Mas é fracote. É de longe o pior livro de Asimov que eu li, e estou aqui a contar com algumas das sequelas tardias e (muito) menores da série da Fundação.
Eis o que achei de cada um dos contos que compõem estes livros:
Nestas histórias Asimov pretende ser espirituoso. Tudo é escrito com esse objetivo em mente, desde o facto de se introduzir a si próprio como personagem (o narrador, alvo constante dos insultos e menosprezos do homem que consegue invocar o demónio, é ele próprio) até ao facto de nenhum dos estratagemas do Azazel dar o resultado pretendido, umas vezes por defeito, outras por excesso. Não tenho qualquer dúvida de que ele se terá divertido bastante a escrever cada um destes contos, e também não me custa a crer que eles também divertiram muitos dos seus leitores, caso contrário não teriam sido tantos. Mas a mim?...
Infelizmente, e salvo algumas exceções, a mim não me divertiram por aí além. Asimov foi um bom escritor, à sua maneira, e é responsável pela criação de algumas histórias e conceitos realmente memoráveis, entre as quais se destacam as da Fundação com a sua psico-história e as dos robôs positrónicos com os seus dilemas lógicos. Mas todos os artistas têm pontos fortes e pontos fracos, e creio que o humor, decididamente, não é um dos pontos fortes de Asimov.
Até porque através do humor vêm mais claramente ao de cima alguns dos aspetos mais problemáticos da personalidade do autor, pois aquilo que nos diverte, e o modo como nos diverte, é uma janela bastante cristalina para quem somos. Há nestes contos algumas histórias francamente desagradáveis de ler e outras que combinam aspetos desagradáveis com outros em que as qualidades do autor surgem à superfície. E há algumas histórias realmente boas, o que impede o livro de ser mau.
Mas é fracote. É de longe o pior livro de Asimov que eu li, e estou aqui a contar com algumas das sequelas tardias e (muito) menores da série da Fundação.
Eis o que achei de cada um dos contos que compõem estes livros:
- O Demónio de Dois Centímetros
- Uma Noite de Canto
- O Sorriso que Rouba
- Ao Conquistador
- O Surdo Ribombar
- A Salvação da Humanidade
- Tempo Para Escrever
- Irrompendo Pela Neve
- Lógica é Lógica
- Viaja Mais Depressa
- O Olhar de Quem Vê
- Há Mais Coisas no Céu e na Terra
- A Construção do Espírito
- As Lutas de Primavera
- Voo de Fantasia
domingo, 24 de janeiro de 2021
Leiturtugas #86
Cá estamos nós em mais uma semana de Leiturtugas, e de novo temos material a mencionar.
Começou pelo Marco Lopes, ainda no domingo (na verdade foi minutos depois de eu ter posto online a nota anterior), através de mais uma opinião sobre um livro do Filipe Faria. Ele está, aparentemente, a tratar de toda a série de Allariya e agora falou do segundo volume, Os Filhos do Flagelo, publicado em 2002 pela Presença. Nada de FC, claro, que isto é fantasia épica, e o Marco passa a 0c2s.
Depois foi o Artur Coelho, desta vez numa viagem aos clássicos, a opinar sobre o Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro. Há múltiplas edições desta obra inspirada nas fábulas tradicionais, mas a que o Artur leu foi publicada pela Bertrand em 1982. FC? Não tem. O Artur arranca o ano com 0c1s.
Depois chegou a Cristina Alves com mais uma opinião, desta feita sobre um livro de FC. Trata-se de uma noveleta de Luís Filipe Silva intitulada Herr Prosit Lê o Cardápio, publicada em ebook pela Universidade do Porto em finais do ano passado. E a Cristina inaugura o seu ano de FC, passando a 1c2s.
Quanto a coisas antigas, esta semana fui cavar e trago-vos uma porção delas.
A Delinha publicou, ainda em maio, um vídeo com a sua opinião sobre Alçapão, um romance de fantasia de fundo cristão de João Leal.
Também em maio, a Katarina publicou a sua opinião sobre a antologia de gótico lusófono organizada pelo Ricardo Lourenço, A Dança dos Ossos.
Em junho, o Pedro Miguel Silva publicou a sua opinião sobre uma coletânea de contos infantis, vertente maravilhoso, de Ana de Castro Osório, intitulada O Esperto e Outras Histórias.
Ainda em junho, o LV Paulo publicou uma brevíssima opinião sobre a antologia Lisboa no Ano 2000, organizada pelo João Barreiros.
Em agosto, a Daniela publicou a sua opinião sobre o romance de Rita Garcia Fernandes, intitulado Quem Chama Pelo Senhor Aventura?
Começou pelo Marco Lopes, ainda no domingo (na verdade foi minutos depois de eu ter posto online a nota anterior), através de mais uma opinião sobre um livro do Filipe Faria. Ele está, aparentemente, a tratar de toda a série de Allariya e agora falou do segundo volume, Os Filhos do Flagelo, publicado em 2002 pela Presença. Nada de FC, claro, que isto é fantasia épica, e o Marco passa a 0c2s.
Depois foi o Artur Coelho, desta vez numa viagem aos clássicos, a opinar sobre o Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro. Há múltiplas edições desta obra inspirada nas fábulas tradicionais, mas a que o Artur leu foi publicada pela Bertrand em 1982. FC? Não tem. O Artur arranca o ano com 0c1s.
Depois chegou a Cristina Alves com mais uma opinião, desta feita sobre um livro de FC. Trata-se de uma noveleta de Luís Filipe Silva intitulada Herr Prosit Lê o Cardápio, publicada em ebook pela Universidade do Porto em finais do ano passado. E a Cristina inaugura o seu ano de FC, passando a 1c2s.
Quanto a coisas antigas, esta semana fui cavar e trago-vos uma porção delas.
A Delinha publicou, ainda em maio, um vídeo com a sua opinião sobre Alçapão, um romance de fantasia de fundo cristão de João Leal.
Também em maio, a Katarina publicou a sua opinião sobre a antologia de gótico lusófono organizada pelo Ricardo Lourenço, A Dança dos Ossos.
Em junho, o Pedro Miguel Silva publicou a sua opinião sobre uma coletânea de contos infantis, vertente maravilhoso, de Ana de Castro Osório, intitulada O Esperto e Outras Histórias.
Ainda em junho, o LV Paulo publicou uma brevíssima opinião sobre a antologia Lisboa no Ano 2000, organizada pelo João Barreiros.
Em agosto, a Daniela publicou a sua opinião sobre o romance de Rita Garcia Fernandes, intitulado Quem Chama Pelo Senhor Aventura?
Em novembro, a Jéssica publicou uma extensa opinião sobre uma antologia de quatro autoras e outros tantos contos, alguns dos quais têm elementos fantásticos, intitulada Promessas de Sonhos.
Para a semana? Há mais.
Félix Augusto: Síndroma de Intrínseca Inversão de Princípios
Embora haja por aí a ficção de que a cultura é de esquerda, ficção essa provavelmente motivada pelas vistas curtas de muita gente que acha as atividades artísticas inúteis por contraponto às que são realmente úteis, o empresariado, a realidade é que eu conheço, pessoalmente ou não, vários autores muito reaças. Uns são bons, outros nem por isso, como os autores de outras ideologias, mas numa coisa eles tendem a diferenciar-se dos de esquerda: embora muitos tentem ter piada são muito poucos os que conseguem realmente tê-la. Ao contrário da cultura em geral, o humor parece ter mesmo um certo pendor esquerdista.
Mas serem poucos os que têm piada não quer dizer que não existam. E, ajuizando por este conto, tudo me leva a crer que Félix Augusto é um deles. É que Síndroma de Intrínseca Inversão de Princípios (bibliografia) é apenas um dos nomes da doença que inventou. Os outros? Pé Proletário, que tal? Ou Mal do Comunista?
Sim, Félix Augusto deve ser reaça. O primeiro parágrafo da sua história sobre o "mal do comunista" é bastante sugestivo quanto a isso, aliás, afirmando que a doença, segundo "vários antropólogos", "acompanha a humanidade desde que esta aprendeu a mentir". Por outro lado, também pode não ser, pois os alvos do seu sarcasmo não são os comunistas propriamente ditos, aqueles coerentes e firmes nas suas ideias, mas os que se tornam comunistas assim que a mudança de regime passa a aconselhar a mudança ideológica. E também os que fazem o trajeto inverso quando o vento muda de direção. Os oportunistas, em suma. Que não pareça fazer grande distinção entre uns e os outros é mais uma semente de dúvida que deixa no ar.
Seja como for, tem piada. A doença que arranja é mais uma das doenças de metamorfose que aparecem tão frequentemente neste livro, mas ele explora-a bastante bem, de forma bastante divertida, debruçando-se sobre os problemas que advêm do facto de órgãos direitos ou situados à direita se tornarem órgãos esquerdos ou mudarem para a esquerda e vice-versa. Este é um bom conto, perfeitamente integrado no espírito da coisa. Seja ou não o seu autor reaça.
Textos anteriores deste livro:
Mas serem poucos os que têm piada não quer dizer que não existam. E, ajuizando por este conto, tudo me leva a crer que Félix Augusto é um deles. É que Síndroma de Intrínseca Inversão de Princípios (bibliografia) é apenas um dos nomes da doença que inventou. Os outros? Pé Proletário, que tal? Ou Mal do Comunista?
Sim, Félix Augusto deve ser reaça. O primeiro parágrafo da sua história sobre o "mal do comunista" é bastante sugestivo quanto a isso, aliás, afirmando que a doença, segundo "vários antropólogos", "acompanha a humanidade desde que esta aprendeu a mentir". Por outro lado, também pode não ser, pois os alvos do seu sarcasmo não são os comunistas propriamente ditos, aqueles coerentes e firmes nas suas ideias, mas os que se tornam comunistas assim que a mudança de regime passa a aconselhar a mudança ideológica. E também os que fazem o trajeto inverso quando o vento muda de direção. Os oportunistas, em suma. Que não pareça fazer grande distinção entre uns e os outros é mais uma semente de dúvida que deixa no ar.
Seja como for, tem piada. A doença que arranja é mais uma das doenças de metamorfose que aparecem tão frequentemente neste livro, mas ele explora-a bastante bem, de forma bastante divertida, debruçando-se sobre os problemas que advêm do facto de órgãos direitos ou situados à direita se tornarem órgãos esquerdos ou mudarem para a esquerda e vice-versa. Este é um bom conto, perfeitamente integrado no espírito da coisa. Seja ou não o seu autor reaça.
Textos anteriores deste livro:
sábado, 23 de janeiro de 2021
João Guimarães Rosa: Um Moço Muito Branco
Com umas sugestões de objetos voadores não identificados ou de outros objetos tecnológicos, que ultrapassem a mera menção a uma "geringonça", este conto de João Guimarães Rosa seria de ficção científica. Julgo, no entanto, que não terá sido essa a intenção do autor e a inspiração foi outra: a mitologia cristã.
É que, de facto, Um Moço Muito Branco (bibliografia) é sobre... um moço muito branco que aparece de repente numa cidadezinha brasileira no meio de muito fogo e destruição. Um moço muito branco e um moço muito estranho também, uma vez que parece ter poderes e não se rege pelas convenções sociais dos seres humanos. Um extraterrestre, portanto? Quase, quase. De facto não se distingue muito de vários ETs da ficção literária e cinematográfica. Mas talvez seja mais um anjo.
O que faz mover o conto é sobretudo a tensão entre o estranho protagonista e as normas sociais e morais da terreola conservadora onde ele vai parar. A prosa, essa, é um pouco estranha, pois apesar da sua grande qualidade parece algo anacrónica tanto em relação ao tema e enredo do conto, quanto, ou sobretudo, em relação à época em que este foi escrito. Nunca tinha lido Guimarães Rosa, pelo que não sei se se trata de estilo do autor ou artifício escolhido para esta história concreta, talvez para sublinhar a sua estranheza. E de facto é isso o que mais fica desta leitura: um conto bom, mas estranho, com uma história que não será nenhum prodígio de originalidade mas não deixa de ser interessante.
Textos anteriores deste livro:
É que, de facto, Um Moço Muito Branco (bibliografia) é sobre... um moço muito branco que aparece de repente numa cidadezinha brasileira no meio de muito fogo e destruição. Um moço muito branco e um moço muito estranho também, uma vez que parece ter poderes e não se rege pelas convenções sociais dos seres humanos. Um extraterrestre, portanto? Quase, quase. De facto não se distingue muito de vários ETs da ficção literária e cinematográfica. Mas talvez seja mais um anjo.
O que faz mover o conto é sobretudo a tensão entre o estranho protagonista e as normas sociais e morais da terreola conservadora onde ele vai parar. A prosa, essa, é um pouco estranha, pois apesar da sua grande qualidade parece algo anacrónica tanto em relação ao tema e enredo do conto, quanto, ou sobretudo, em relação à época em que este foi escrito. Nunca tinha lido Guimarães Rosa, pelo que não sei se se trata de estilo do autor ou artifício escolhido para esta história concreta, talvez para sublinhar a sua estranheza. E de facto é isso o que mais fica desta leitura: um conto bom, mas estranho, com uma história que não será nenhum prodígio de originalidade mas não deixa de ser interessante.
Textos anteriores deste livro:
David Soares: Rei Assobio
Na organização de antologias e coletâneas a arrumação das histórias, não sendo decisiva, tem a sua importância mesmo quando estas não têm nenhuma ligação entre si. Embora nem todos os leitores o façam, a maioria lê-as sequencialmente, da primeira até à última, o que faz com que as histórias inaugural e final acabem por se tornar mais relevantes do que as demais para a experiência global de leitura, a primeira porque ajuda a estabelecer um tom e a última porque fornece ao leitor a parcela mais duradoura da impressão geral que a leitura lhe irá deixar.
David Soares não parece ser desta opinião, ou então é a sua ideia do que é mais ou menos interessante que é oposta à minha. Certo é que a história cujo título utilizou para intitular o livro, o que costuma indicar ser essa a história que o autor (ou o editor; nem sempre os títulos são da responsabilidade dos autores) considera mais impactante, é a do meio. Para o fim deixou esta Rei Assobio (bibliografia), de longe a mais extensa das três histórias mas também a que me pareceu menos bem conseguida.
Apesar disso, é uma boa história, ou pelo menos situa-se algures entre o razoável mais e o bom menos. E é possível que eu tivesse gostado mais dela se não tivesse vindo na sequência de A Luz Miserável porque esta segunda história não só é melhor como se debruça sobre temas parcialmente semelhantes, uma vez que em ambas a vingança é um dos principais motores do enredo. N'A Luz Miserável trata-se da vingança de um feiticeiro africano contra os soldados portugueses que cometeram um massacre durante a guerra; aqui, é a vingança do Rei Assobio contra uma aldeia e, na verdade, o mundo.
O protagonista é uma daquelas personagens de que o horror tanto gosta: o jovem inadaptado, muitas vezes com uma deficiência qualquer, que sofre a crueldade do mundo até acabar por se transformar num monstro. O conto narra em parte a forma como esse jovem se transforma em monstro e os porquês de o fazer, num longo regresso ao passado que ocupa a maior parte da história. Tudo tem a ver com um defeito na fala que o faz assobiar ao falar, e com um padre e um professor que o convencem a participar numa representação teatral natalícia. Corre mal. E ele acaba por ser vítima de uma tragédia causada em parte por estranhas criaturas que assombram as redondezas
O resto do conto mostra-o, anos mais tarde (e com outro defeito na fala), a tentar convencer um grupo de jovens delinquentes a colaborar com ele numa vingança contra as criaturas, e o que acontece quando o confronto final tem lugar. O final... bem, o final não faz qualquer sentido. É certo que é sempre possível que me tenha escapado qualquer coisa, mas não é menos certo que há ali uma inversão de papéis que me pareceu absolutamente gratuita e não menos absurda. Um deus ex machina algo sui generis, mas deus ex machina na mesma, com tudo o que o artifício tem de desagradável para a experiência de leitura. É em parte por esse motivo por que esta me pareceu ser a pior das três histórias. O facto de ser a que tem mais gralhas também não ajudou.
Mas está muito longe de ser uma má noveleta.
Contos anteriores deste livro:
David Soares não parece ser desta opinião, ou então é a sua ideia do que é mais ou menos interessante que é oposta à minha. Certo é que a história cujo título utilizou para intitular o livro, o que costuma indicar ser essa a história que o autor (ou o editor; nem sempre os títulos são da responsabilidade dos autores) considera mais impactante, é a do meio. Para o fim deixou esta Rei Assobio (bibliografia), de longe a mais extensa das três histórias mas também a que me pareceu menos bem conseguida.
Apesar disso, é uma boa história, ou pelo menos situa-se algures entre o razoável mais e o bom menos. E é possível que eu tivesse gostado mais dela se não tivesse vindo na sequência de A Luz Miserável porque esta segunda história não só é melhor como se debruça sobre temas parcialmente semelhantes, uma vez que em ambas a vingança é um dos principais motores do enredo. N'A Luz Miserável trata-se da vingança de um feiticeiro africano contra os soldados portugueses que cometeram um massacre durante a guerra; aqui, é a vingança do Rei Assobio contra uma aldeia e, na verdade, o mundo.
O protagonista é uma daquelas personagens de que o horror tanto gosta: o jovem inadaptado, muitas vezes com uma deficiência qualquer, que sofre a crueldade do mundo até acabar por se transformar num monstro. O conto narra em parte a forma como esse jovem se transforma em monstro e os porquês de o fazer, num longo regresso ao passado que ocupa a maior parte da história. Tudo tem a ver com um defeito na fala que o faz assobiar ao falar, e com um padre e um professor que o convencem a participar numa representação teatral natalícia. Corre mal. E ele acaba por ser vítima de uma tragédia causada em parte por estranhas criaturas que assombram as redondezas
O resto do conto mostra-o, anos mais tarde (e com outro defeito na fala), a tentar convencer um grupo de jovens delinquentes a colaborar com ele numa vingança contra as criaturas, e o que acontece quando o confronto final tem lugar. O final... bem, o final não faz qualquer sentido. É certo que é sempre possível que me tenha escapado qualquer coisa, mas não é menos certo que há ali uma inversão de papéis que me pareceu absolutamente gratuita e não menos absurda. Um deus ex machina algo sui generis, mas deus ex machina na mesma, com tudo o que o artifício tem de desagradável para a experiência de leitura. É em parte por esse motivo por que esta me pareceu ser a pior das três histórias. O facto de ser a que tem mais gralhas também não ajudou.
Mas está muito longe de ser uma má noveleta.
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021
Irmãos Grimm: A Margarida Esperta
No mundo dos contos populares, há dois géneros bem distintos. Um, o mais conhecido, é o dos contos carregados de magia, de animais que falam, de reis e princesas e bruxas e feitiços. O outro, menos conhecido mas talvez não menos abundante, é o dos casos mais ou menos burlescos acontecidos com personagens que poderiam ser vizinhas do contador da história. Este A Margarida Esperta, que os Irmãos Grimm não parecem ter alterado grandemente, pertence ao segundo grupo. Quase por completo.
A Margarida era uma cozinheira vaidosa que gostava de comer e de beber, não necessariamente por essa ordem, além de também gostar de se empinocar. A história conta como um belo dia em que o patrão esperava um convidado para jantar a boa da Margarida enfiou goela abaixo o jantar inteiro (o único elemento que se pode considerar prodigioso em todo o conto), acompanhado por fartura de vinho, porque o convidado se atrasou e a comida "não se podia desperdiçar". Mas eis que o homem aparece e o jantar está aconchegadinho na barriga da Margarida. Ops! Que fazer?
Mentir, claro. Enganar um, enganar o outro e tirar o rabinho de perigo. Mais uma vez, um conto alemão mostra uma diferença significativa face aos contos portugueses equivalentes, pois nestes, embora exista por vezes um grau elevado de irreverência face aos poderosos, é raro ver-se uma tão clara compreensão com a fraude. Sem que o conto inclua propriamente uma história de maus-tratos ou exploração patronais, a Margarida Chica-Esperta exibe gula, preguiça e desonestidade e safa-se de qualquer espécie de censura e castigo. Não me lembro de ver nada de semelhante nos contos portugueses que li, e nos dos Grimm já não é a primeira vez que vejo. Fascinante.
A Margarida era uma cozinheira vaidosa que gostava de comer e de beber, não necessariamente por essa ordem, além de também gostar de se empinocar. A história conta como um belo dia em que o patrão esperava um convidado para jantar a boa da Margarida enfiou goela abaixo o jantar inteiro (o único elemento que se pode considerar prodigioso em todo o conto), acompanhado por fartura de vinho, porque o convidado se atrasou e a comida "não se podia desperdiçar". Mas eis que o homem aparece e o jantar está aconchegadinho na barriga da Margarida. Ops! Que fazer?
Mentir, claro. Enganar um, enganar o outro e tirar o rabinho de perigo. Mais uma vez, um conto alemão mostra uma diferença significativa face aos contos portugueses equivalentes, pois nestes, embora exista por vezes um grau elevado de irreverência face aos poderosos, é raro ver-se uma tão clara compreensão com a fraude. Sem que o conto inclua propriamente uma história de maus-tratos ou exploração patronais, a Margarida Chica-Esperta exibe gula, preguiça e desonestidade e safa-se de qualquer espécie de censura e castigo. Não me lembro de ver nada de semelhante nos contos portugueses que li, e nos dos Grimm já não é a primeira vez que vejo. Fascinante.
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021
Mia Couto: A Lição do Aprendiz
Neste livro, e na verdade em tudo o que escreve, Mia Couto ora mergulha no seu fantástico cheio de poesia, ora sai dele para um realismo igualmente cheio de poesia. Sendo eu quem sou, costumo gostar mais de quando mergulha no fantástico do que de quando não o faz, mas isso não quer dizer que não goste destas últimas histórias.
Histórias como A Lição do Aprendiz. Uma história sobre a guerra civil moçambicana, cujo protagonista é um miúdo que chega um dia a casa de um tio trazendo a notícia de que a guerra o deixara órfão. O tio, barbeiro, acolhe-o e põe-no a aprender o seu ofício. Mas o miúdo não se interessa. O que lhe chama a atenção, como o barbeiro acaba por perceber, são as coisas estragadas. Chamam-lhe a atenção e a vontade de as consertar, e o talento que ele tem para o fazer é óbvio.
O tio entusiasma-se, vê uma oportunidade de negócio, propõe sociedade ao rapaz, uma oficina de consertos. Mas a lição que este lhe dá é a recusa, pois o que ele quer é consertar o que está mal na terra de onde viera. O que está mal o suficiente para o ter deixado sozinho no mundo. A guerra, no fundo.
Sim, é outro conto muito bom de Mia Couto.
Contos anteriores deste livro:
Histórias como A Lição do Aprendiz. Uma história sobre a guerra civil moçambicana, cujo protagonista é um miúdo que chega um dia a casa de um tio trazendo a notícia de que a guerra o deixara órfão. O tio, barbeiro, acolhe-o e põe-no a aprender o seu ofício. Mas o miúdo não se interessa. O que lhe chama a atenção, como o barbeiro acaba por perceber, são as coisas estragadas. Chamam-lhe a atenção e a vontade de as consertar, e o talento que ele tem para o fazer é óbvio.
O tio entusiasma-se, vê uma oportunidade de negócio, propõe sociedade ao rapaz, uma oficina de consertos. Mas a lição que este lhe dá é a recusa, pois o que ele quer é consertar o que está mal na terra de onde viera. O que está mal o suficiente para o ter deixado sozinho no mundo. A guerra, no fundo.
Sim, é outro conto muito bom de Mia Couto.
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terça-feira, 19 de janeiro de 2021
Raul Brandão: O Mistério da Árvore
E lá aconteceu outra vez: uma antologia, esta, a repetir histórias já lidas noutra antologia. Este O Mistério da Árvore (bibliografia), de Raul Brandão, consta da Antologia do Conto Fantástico Português, lida por mim há quase uma década. Sobre o conto falei aqui. E falei bem; não tenho agora grande coisa a acrescentar, salvo talvez ter gostado menos do conto aquando da releitura do que quando o li nessa época, provavelmente devido a sentir algum cansaço do jeito popular de contar histórias. Tenho lido muitos contos populares nos últimos anos e, por mais que me interesse lê-los e perceber de onde vêm muitas das características da fantasia, do horror e de outros géneros, a repetição deixa as suas marcas. Agora, ao reler esta história de Brandão, aborreceu-me um pouco ter reencontrado nela muitos clichés. Mas a prosa continua de primeira água e isso compensa muita coisa.
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Livros de 2020
Este ano as coisas iam bem lançadas para acabar por ser um ano de muitas leituras, daqueles em que o joguinho do Goodreads de que falava no ano passado acaba vencido. Mas em setembro a minha mãe caiu, partiu uma perna, e a partir daí foi o descalabro total. Em vez dos cerca de 50 títulos que tinha marcado como alvo, li 31, um número razoavelmente baixo para o qual também contribui o facto de ter concluído o ano quase a terminar a leitura de uns quantos livros.
Mais positivo é o facto da contabilidade lusófonos/não lusófonos ter sido este ano bastante equilibrada. Li 15 títulos lusófonos, a grande maioria portuguesa mas incluindo também um livro mais propriamente lusófono por incluir autores de vários países de língua portuguesa, um outro que é principalmente português mas inclui também brasileiros e ainda um fanzine exclusivamente brasileiro. Somam-se a isso três publicações primordialmente não lusófonas mas com participação lusófona e o restante é material traduzido ou nas línguas originais.
A lista completa é a seguinte:
1. O País de Outubro, de Ray Bradbury (contos de fantasia e terror);
2. Bestiário, de Franz Kafka (contos e novelas fantásticos);
3. Doze Escritores Portugueses Contemporâneos, org. Nelson de Matos (contos e excertos mainstream por vezes com elementos fantásticos);
4. O Ladrão da Eternidade, de Clive Barker (romance de horror juvenil);
5. Maresia, de Fernando Correia da Silva (romance de FC distópica);
6. Hopscotch, de Kevin J. Anderson (romance de FC);
7. Órbita, de Thomas H. Block (romance de FC);
8. Talentos Fantásticos, org. Carlos Lopes (antologia de contos e poemas de fantasia, horror e FC);
9. Dez Contos Para Ler Sentado, org. Tito Couto (antologia de contos mainstream e fantásticos);
10. O Manuscrito Perdido de Lord Byron, de John Crowley (romance mainstream com pitadas de fantástico);
11. Irish Bar «La Gomera», de José Conrado Dias (novela mainstream);
12. A Tragédia de Fidel Castro, de João Cerqueira (romance fantástico humorístico);
13. Histórias de Espantar, de António Bettencourt Viana (contos de FC, com uma história de horror e uma policial);
14. Impacto, de Douglas Preston (romance de FC, variante technothriller);
15. O Marciano, de Andy Weir (romance de FC);
16. Os Melhores Contos Fantásticos, org. Flávio Moreira da Costa (antologia de contos fantásticos clássicos);
17. Um Rio Chamado Angústia, de Eduardo Madeira (conto humorístico);
18. Um Romance, de Rui Zink (conto mainstream);
19. Um Velório Alegre, de Mário Zambujal (conto mainstream);
20. Os Demónios da Noite e Outros Contos, de Charles Nodier (contos fantásticos e de horror);
21. A Barca, de Pedro Pereira (conto fantástico);
22. A Besta, de Pedro Pereira (conto de fantasia juvenil);
23. Desporto Radical, de Ricardo Dias (conto ciberpunk);
24. Diferente, de Ricardo Dias (conto de FC);
Também foram lidos alguns números de periódico, nomeadamente:
25. Pulp Feek, nº 3 (contos de horror e noir);
26. Magazine do Fantástico e Ficção Científica, nº 3 (contos de FC e fantasia);
27. Qliphoth, nº 1 (contos de fantasia e FC);
28. Magazine do Fantástico e Ficção Científica, nº 5 (contos de FC e fantasia);
E por obrigação laboral foram lidos mais três livros.
Tal como no ano passado, a ficção científica não dominou as minhas leituras de 2020. Dos 31 títulos lidos só 8 foram total ou predominantemente de FC, a que se somam mais 4 que incluem alguma FC. Estes 12 títulos, apesar disso, somam a parcela mais abundante das minhas leituras, tendo-se as restantes distribuído por uma série de outras coisas, incluindo bastante mais horror e coisas próximas (como o fantástico da época romântica ou o gótico) do que é hábito.
Contrariamente ao que aconteceu no ano anterior, em 2020 houve um livro que realmente me satisfez quase por completo: O Manuscrito Perdido de Lord Byron, de John Crowley. Curiosamente, trata-se de um romance que se afasta do tipo de leitura que mais costuma agradar-me, um romance mainstream, primordialmente histórico, ainda que inclua leves pitadas de fantástico. Abaixo deste livro, houve uma segunda linha com seis títulos que me agradaram bastante, entre os quais destacaria O Marciano, de Andy Weir, e O Bestiário de Kafka para compor um top-3. Desta vez não houve nenhuma leitura lusófona aqui misturada, o que é pena.
Nessa segunda linha encontra-se um título português, Maresia, de Fernando Correia da Silva, e foi essa a melhor leitura lusófona do ano. Para completar o top-3 teremos de descer à terceira linha, onde vamos encontrar, entre outros títulos, a antologia Dez Contos Para Ler Sentado e o romance A Tragédia de Fidel Castro, de João Cerqueira. São o segundo e o terceiro, respetivamente. A primeira inclui histórias vindas das mais diversas geografias onde se fala português, o segundo volta a ser português.
Entre estes títulos facilmente se encontra boa parte dos top-3 das leituras de, com e sem FC em 2020: O Manuscrito Perdido de Lord Byron e O Bestiário de Kafka foram as duas leituras sem FC que mais me agradaram, seguidos por um título que ainda não tinha aparecido: O País de Outubro, de Ray Bradbury. O Marciano e Maresia foram as duas melhores leituras de FC, e também a elas se segue um título que ainda não tinha aparecido: Hopscotch, de Kevin J. Anderson. E quanto a títulos que não são de FC mas contêm FC, eles foram demasiado escassos para fazer realmente um top-3, mas os dois números do Magazine do Fantástico e Ficção Científica valem a menção. Especialmente o nº 3.
Quanto às piores leituras do ano, de novo temos uma lista integralmente lusófona. Quem vai levar a palma de pior leitura do ano vai ser o Eduardo Madeira com o seu Um Rio Chamado Angústia, seguido por um livro que é significativamente pior que a soma das suas partes (o livro é francamente mau em tudo, da organização à paginação), a antologia Talentos Fantásticos, e para completar o bottom-3 temos a novela de José Conrado Dias, Irish Bar «La Gomera».
Daqui a um ano, mais ou menos uns quantos dias, e a menos que algo de catastrófico aconteça, cá estaremos a falar de como foram as leituras de 2021. Até lá.
Mais positivo é o facto da contabilidade lusófonos/não lusófonos ter sido este ano bastante equilibrada. Li 15 títulos lusófonos, a grande maioria portuguesa mas incluindo também um livro mais propriamente lusófono por incluir autores de vários países de língua portuguesa, um outro que é principalmente português mas inclui também brasileiros e ainda um fanzine exclusivamente brasileiro. Somam-se a isso três publicações primordialmente não lusófonas mas com participação lusófona e o restante é material traduzido ou nas línguas originais.
A lista completa é a seguinte:
1. O País de Outubro, de Ray Bradbury (contos de fantasia e terror);
2. Bestiário, de Franz Kafka (contos e novelas fantásticos);
3. Doze Escritores Portugueses Contemporâneos, org. Nelson de Matos (contos e excertos mainstream por vezes com elementos fantásticos);
4. O Ladrão da Eternidade, de Clive Barker (romance de horror juvenil);
5. Maresia, de Fernando Correia da Silva (romance de FC distópica);
6. Hopscotch, de Kevin J. Anderson (romance de FC);
7. Órbita, de Thomas H. Block (romance de FC);
8. Talentos Fantásticos, org. Carlos Lopes (antologia de contos e poemas de fantasia, horror e FC);
9. Dez Contos Para Ler Sentado, org. Tito Couto (antologia de contos mainstream e fantásticos);
10. O Manuscrito Perdido de Lord Byron, de John Crowley (romance mainstream com pitadas de fantástico);
11. Irish Bar «La Gomera», de José Conrado Dias (novela mainstream);
12. A Tragédia de Fidel Castro, de João Cerqueira (romance fantástico humorístico);
13. Histórias de Espantar, de António Bettencourt Viana (contos de FC, com uma história de horror e uma policial);
14. Impacto, de Douglas Preston (romance de FC, variante technothriller);
15. O Marciano, de Andy Weir (romance de FC);
16. Os Melhores Contos Fantásticos, org. Flávio Moreira da Costa (antologia de contos fantásticos clássicos);
17. Um Rio Chamado Angústia, de Eduardo Madeira (conto humorístico);
18. Um Romance, de Rui Zink (conto mainstream);
19. Um Velório Alegre, de Mário Zambujal (conto mainstream);
20. Os Demónios da Noite e Outros Contos, de Charles Nodier (contos fantásticos e de horror);
21. A Barca, de Pedro Pereira (conto fantástico);
22. A Besta, de Pedro Pereira (conto de fantasia juvenil);
23. Desporto Radical, de Ricardo Dias (conto ciberpunk);
24. Diferente, de Ricardo Dias (conto de FC);
Também foram lidos alguns números de periódico, nomeadamente:
25. Pulp Feek, nº 3 (contos de horror e noir);
26. Magazine do Fantástico e Ficção Científica, nº 3 (contos de FC e fantasia);
27. Qliphoth, nº 1 (contos de fantasia e FC);
28. Magazine do Fantástico e Ficção Científica, nº 5 (contos de FC e fantasia);
E por obrigação laboral foram lidos mais três livros.
Tal como no ano passado, a ficção científica não dominou as minhas leituras de 2020. Dos 31 títulos lidos só 8 foram total ou predominantemente de FC, a que se somam mais 4 que incluem alguma FC. Estes 12 títulos, apesar disso, somam a parcela mais abundante das minhas leituras, tendo-se as restantes distribuído por uma série de outras coisas, incluindo bastante mais horror e coisas próximas (como o fantástico da época romântica ou o gótico) do que é hábito.
Contrariamente ao que aconteceu no ano anterior, em 2020 houve um livro que realmente me satisfez quase por completo: O Manuscrito Perdido de Lord Byron, de John Crowley. Curiosamente, trata-se de um romance que se afasta do tipo de leitura que mais costuma agradar-me, um romance mainstream, primordialmente histórico, ainda que inclua leves pitadas de fantástico. Abaixo deste livro, houve uma segunda linha com seis títulos que me agradaram bastante, entre os quais destacaria O Marciano, de Andy Weir, e O Bestiário de Kafka para compor um top-3. Desta vez não houve nenhuma leitura lusófona aqui misturada, o que é pena.
Nessa segunda linha encontra-se um título português, Maresia, de Fernando Correia da Silva, e foi essa a melhor leitura lusófona do ano. Para completar o top-3 teremos de descer à terceira linha, onde vamos encontrar, entre outros títulos, a antologia Dez Contos Para Ler Sentado e o romance A Tragédia de Fidel Castro, de João Cerqueira. São o segundo e o terceiro, respetivamente. A primeira inclui histórias vindas das mais diversas geografias onde se fala português, o segundo volta a ser português.
Entre estes títulos facilmente se encontra boa parte dos top-3 das leituras de, com e sem FC em 2020: O Manuscrito Perdido de Lord Byron e O Bestiário de Kafka foram as duas leituras sem FC que mais me agradaram, seguidos por um título que ainda não tinha aparecido: O País de Outubro, de Ray Bradbury. O Marciano e Maresia foram as duas melhores leituras de FC, e também a elas se segue um título que ainda não tinha aparecido: Hopscotch, de Kevin J. Anderson. E quanto a títulos que não são de FC mas contêm FC, eles foram demasiado escassos para fazer realmente um top-3, mas os dois números do Magazine do Fantástico e Ficção Científica valem a menção. Especialmente o nº 3.
Quanto às piores leituras do ano, de novo temos uma lista integralmente lusófona. Quem vai levar a palma de pior leitura do ano vai ser o Eduardo Madeira com o seu Um Rio Chamado Angústia, seguido por um livro que é significativamente pior que a soma das suas partes (o livro é francamente mau em tudo, da organização à paginação), a antologia Talentos Fantásticos, e para completar o bottom-3 temos a novela de José Conrado Dias, Irish Bar «La Gomera».
Daqui a um ano, mais ou menos uns quantos dias, e a menos que algo de catastrófico aconteça, cá estaremos a falar de como foram as leituras de 2021. Até lá.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2021
Isaac Asimov: Voo de Fantasia
Embora a maioria das histórias de Azazel esteja desprovida de qualquer coisa de científico, sendo simplesmente fantasia satírica, o que poderá surpreender a quem julgue Isaac Asimov um escritor apenas de FC (na verdade não são muitos os escritores que se dedicam apenas a um género), existem algumas exceções. Não que algum destes contos seja de ficção científica propriamente dita, claro. Demónios não são propriamente tema para aquela FC mais pura e Azazel é um demónio (ainda que a história da personagem seja algo mais colorida do que isso). Mas há alguns contos de Azazel que podem ser vistos como fantasia científica. Este Voo de Fantasia (bibliografia) é um desses contos, o que não deixa de ser curioso tendo em conta o título português.
(Já agora, o título inglês, Flight of Fancy, parece pouco mais ser que a literalização de uma frase feita da língua, uma daquelas frases com significado próprio que repetimos alegremente esquecendo o sentido literal das palavras; eu já fiz o mesmo um par de vezes, por exemplo aqui).
Curiosamente, é um conto que tem a ver com religião. O protagonista (e aqui é mesmo protagonista, pois o Azazel está quase ausente do conto) é um ateu que se tinha tornado ateu porque a ideia dos anjos colidia com os conhecimentos científicos sobre criaturas voadoras. E também porque ele próprio sonhava voar. Não como as pessoas voam, com aparelhos e tecnologia, mas à força de braços ou de asas. À força da sua própria força. Claro que é aqui que Azazel é metido ao barulho, claro que faz um dos seus milagrezinhos embora, sendo o homem descrente, o disfarce de aparelhómetro de antigravidade... e claro que as coisas não correm tão bem como seria desejável.
Porque a condição para o homem ser capaz de voar era acreditar que o aparelho funcionava. Mas para que isso acontecesse era necessário manter-se descrente, fiel à ciência e não às superstições anticientíficas. Mas a páginas tantas conseguem convencê-lo de que o que faz é milagroso e ele, acreditando, deixa de acreditar e por isso deixa de conseguir voar.
Invulgarmente sofisticado, este conto de Azazel parece ser mais sério que os restantes, mesmo sem perder o pendor satírico, e em parte por isso é dos melhores contos de toda a série. Talvez chegue mesmo a ser bom, o que não é comum acontecer nestas histórias.
(Já agora, o título inglês, Flight of Fancy, parece pouco mais ser que a literalização de uma frase feita da língua, uma daquelas frases com significado próprio que repetimos alegremente esquecendo o sentido literal das palavras; eu já fiz o mesmo um par de vezes, por exemplo aqui).
Curiosamente, é um conto que tem a ver com religião. O protagonista (e aqui é mesmo protagonista, pois o Azazel está quase ausente do conto) é um ateu que se tinha tornado ateu porque a ideia dos anjos colidia com os conhecimentos científicos sobre criaturas voadoras. E também porque ele próprio sonhava voar. Não como as pessoas voam, com aparelhos e tecnologia, mas à força de braços ou de asas. À força da sua própria força. Claro que é aqui que Azazel é metido ao barulho, claro que faz um dos seus milagrezinhos embora, sendo o homem descrente, o disfarce de aparelhómetro de antigravidade... e claro que as coisas não correm tão bem como seria desejável.
Porque a condição para o homem ser capaz de voar era acreditar que o aparelho funcionava. Mas para que isso acontecesse era necessário manter-se descrente, fiel à ciência e não às superstições anticientíficas. Mas a páginas tantas conseguem convencê-lo de que o que faz é milagroso e ele, acreditando, deixa de acreditar e por isso deixa de conseguir voar.
Invulgarmente sofisticado, este conto de Azazel parece ser mais sério que os restantes, mesmo sem perder o pendor satírico, e em parte por isso é dos melhores contos de toda a série. Talvez chegue mesmo a ser bom, o que não é comum acontecer nestas histórias.
Contos anteriores deste livro:
Afonso Cruz: Síndroma da Culpa Absoluta
Nem o Afonso Cruz escapa à pulsão populista pelo ataque aos «políticos», nomeadamente aos «políticos democratas», alegadamente incapazes de sentir culpa (como se os ditadores, responsáveis por uma quantidade incomparavelmente maior de crimes, a sentissem). Mas o Afonso Cruz, ao menos, é um escritor realmente bom e por isso sabe temperar as suas pulsões populistas com um português de ótima qualidade e algumas frases e ideias inesperadas e deliciosamente irónicas.
A Síndroma da Culpa Absoluta (bibliografia) é exatamente o que o título/nome da doença indica: um problema mental que leva os doentes a assumirem a culpa por tudo e mais alguma coisa, coisas essas das quais estão, bem entendido, completamente inocentes. Em estágios avançados da doença, as culpas que os pacientes carregam podem «levá-los à loucura e a calçar sandálias de couro». A culpa e a inocência, claro está, são estados relacionados de perto com o crime e este com as investigações policiais, o que é usado por Cruz para fazer um pouco de metaliteratura, arranjando um autor chamado Padre Braun, referência óbvia ao Padre Brown, pároco-detetive criado por Chesterton.
O resultado é um bom conto, recheado de referências, embora não seja a história mais interessante que se pode encontrar nesta secção lusófona, muito menos nas páginas de toda a antologia. E tampouco é a história mais interessante que eu já li dele, mesmo tendo ainda lido muito pouco. Por causa do populismo, mas não só por causa do populismo. Não li Afonso Cruz suficiente para ter certeza, mas desconfio que este, sendo bom, é bem capaz de ser dos seus contos mais fracos.
A Síndroma da Culpa Absoluta (bibliografia) é exatamente o que o título/nome da doença indica: um problema mental que leva os doentes a assumirem a culpa por tudo e mais alguma coisa, coisas essas das quais estão, bem entendido, completamente inocentes. Em estágios avançados da doença, as culpas que os pacientes carregam podem «levá-los à loucura e a calçar sandálias de couro». A culpa e a inocência, claro está, são estados relacionados de perto com o crime e este com as investigações policiais, o que é usado por Cruz para fazer um pouco de metaliteratura, arranjando um autor chamado Padre Braun, referência óbvia ao Padre Brown, pároco-detetive criado por Chesterton.
O resultado é um bom conto, recheado de referências, embora não seja a história mais interessante que se pode encontrar nesta secção lusófona, muito menos nas páginas de toda a antologia. E tampouco é a história mais interessante que eu já li dele, mesmo tendo ainda lido muito pouco. Por causa do populismo, mas não só por causa do populismo. Não li Afonso Cruz suficiente para ter certeza, mas desconfio que este, sendo bom, é bem capaz de ser dos seus contos mais fracos.
Textos anteriores deste livro:
domingo, 17 de janeiro de 2021
Eça de Queiroz: O Defunto
Pronto, as antologias e a sua tendência para repetirem textos voltaram a fazer das suas: Eça de Queiroz reaparece aqui na Lâmpada acompanhado do seu conto O Defunto (bibliografia). Que Eça reapareça não tem nada de mais; mas esta é a quarta aparição de O Defunto, o que talvez seja algo exagerado. E sim, reli, ainda que deva admitir que esta leitura foi algo diagonal, e nada tenho a acrescentar ao que disse aquando da leitura anterior (afinal, decorreu pouco mais que meio ano entre as duas).
Desta leitura, na verdade, fica apenas um toquezinho de humor. É que o conto, como se sabe, se ambienta em Segóvia e arredores, cidade castelhana situada a norte e não muito longe de Madrid. De resto, o conto abre com uma referência imediata a Castela. Ora, quem escreveu a introdução que precede o conto meteu os pés pelas mãos e tratou Segóvia como cidade... portuguesa. E eu ri.
Desta leitura, na verdade, fica apenas um toquezinho de humor. É que o conto, como se sabe, se ambienta em Segóvia e arredores, cidade castelhana situada a norte e não muito longe de Madrid. De resto, o conto abre com uma referência imediata a Castela. Ora, quem escreveu a introdução que precede o conto meteu os pés pelas mãos e tratou Segóvia como cidade... portuguesa. E eu ri.
Textos anteriores deste livro:
Leiturtugas #85
Segunda semana completa do ano, segunda semana com Leiturtugas a registar. E voltam a ser três, embora desta vez nem todas venham dos participantes oficiais.
De novo foi a Cristina Alves a arrancar a semana, e de novo graças a uma opinião sobre um livro de BD. Este intitula-se Balada Para Sophie e tem autoria de Filipe Melo e Juan Cavia, tendo sido publicado no outono último pela Tinta da China. Já se sabe: BD = sem FC. A Cristina passa, pois, a 0c2s.
O gajo que escreve aqui, Jorge Candeias de seu nome, também inaugurou o ano esta semana. Fê-lo com uma opinião sobre um ebook publicado em 2014 pela Fantasy & Co. O autor é Ricardo Dias, o título é Diferente, e trata-se de uma fantasia científica distópica, pelo que contém FC. Aqui o escriba começa o ano com 1c0s, portanto.
Por fim, detetei pela primeira vez uma Leiturtuga fora do grupo dos suspeitos do costume, o que não quer dizer que seja a única que por aí anda (ainda não tive tempo para ir mesmo à procura): a brevíssima opinião da Raquel sobre Pelos Caminhos Assombrados de Portugal, de Vanessa Fidalgo. Sem FC, claro.
E para terminar, outra opinião brevíssima que já não conta porque surgiu ainda no ano passado. A Carla (a outra) leu e comentou em dezembro Os Sobreviventes, de Pedro Pereira.
De novo foi a Cristina Alves a arrancar a semana, e de novo graças a uma opinião sobre um livro de BD. Este intitula-se Balada Para Sophie e tem autoria de Filipe Melo e Juan Cavia, tendo sido publicado no outono último pela Tinta da China. Já se sabe: BD = sem FC. A Cristina passa, pois, a 0c2s.
O gajo que escreve aqui, Jorge Candeias de seu nome, também inaugurou o ano esta semana. Fê-lo com uma opinião sobre um ebook publicado em 2014 pela Fantasy & Co. O autor é Ricardo Dias, o título é Diferente, e trata-se de uma fantasia científica distópica, pelo que contém FC. Aqui o escriba começa o ano com 1c0s, portanto.
Por fim, detetei pela primeira vez uma Leiturtuga fora do grupo dos suspeitos do costume, o que não quer dizer que seja a única que por aí anda (ainda não tive tempo para ir mesmo à procura): a brevíssima opinião da Raquel sobre Pelos Caminhos Assombrados de Portugal, de Vanessa Fidalgo. Sem FC, claro.
E para terminar, outra opinião brevíssima que já não conta porque surgiu ainda no ano passado. A Carla (a outra) leu e comentou em dezembro Os Sobreviventes, de Pedro Pereira.
Ricardo Dias: Diferente (#leiturtugas)
Há algumas histórias que parecem uma coisa e depois se revelam outra bem diferente lá mais para o fim, e este conto de Ricardo Dias, sobre um homem que é Diferente, nem de propósito, o que na teocracia distópica futurista em que vive é ofensa capital, é uma dessas histórias.
Este é um conto razoável, daqueles que teriam potencial para serem bons se os seus autores tivessem tratado melhor o material de base. Há aqui uma série de elementos bastante interessantes, mas Ricardo Dias é (ou era na altura em que escreveu o conto; os autores evoluem) bastante melhor a ter ideias e a conceber situações do que a passá-las a texto.
Dias não é um estilista e tem alguma dificuldade em criar diálogos credíveis, o que gera uma experiência de leitura que não é particularmente agradável, até porque prejudica a suspensão de descrença necessária para apreciar uma história destas. Não que os elabore demasiado destruindo a oralidade necessária, pecha comum em muitos autores; o problema dele é mais colocar na boca de adultos frases e expressões mais características de jovens ou crianças. Há uma certa imaturidade nos diálogos desta história e também há alguma imaturidade no desenrolar do enredo. As duas coisas, de resto, estão relacionadas: a insistência em certas ideias, a sua repetição nas falas das personagens (principalmente), torna os vários acontecimentos demasiado óbvios. OK, há uma técnica chamada foreshadowing, a antecipação de acontecimentos futuros, mas ela só funciona se usada bem, e de qualquer forma não é grande ideia empregá-la num conto tão curto.
Por outro lado, a história tem potencial. Uma teocracia fundamentalista, obcecada pela pureza, que reprime violentamente qualquer desvio à normatividade sexual, tem um potencial muito interessante para ser usada como crítica de tendências nesse sentido existentes na sociedade contemporânea, e é claramente esse o objetivo do autor. Mas o mais interessante talvez seja mesmo o facto de Dias lançar a crítica "de dentro", por assim dizer, o que se torna evidente no desenlace do conto, o momento em que um deus ex machina totalmente literal faz com que ele deixe de ser ficção científica para passar a fantasia científica. Ou seja, a sua crítica ao fundamentalismo religioso não é a de um ateu, mas a de um crente e isso dá-lhe mais força.
Palavra de ateu.
Em suma: este é um conto interessante, que não é bom mas podia ter sido.
Este é um conto razoável, daqueles que teriam potencial para serem bons se os seus autores tivessem tratado melhor o material de base. Há aqui uma série de elementos bastante interessantes, mas Ricardo Dias é (ou era na altura em que escreveu o conto; os autores evoluem) bastante melhor a ter ideias e a conceber situações do que a passá-las a texto.
Dias não é um estilista e tem alguma dificuldade em criar diálogos credíveis, o que gera uma experiência de leitura que não é particularmente agradável, até porque prejudica a suspensão de descrença necessária para apreciar uma história destas. Não que os elabore demasiado destruindo a oralidade necessária, pecha comum em muitos autores; o problema dele é mais colocar na boca de adultos frases e expressões mais características de jovens ou crianças. Há uma certa imaturidade nos diálogos desta história e também há alguma imaturidade no desenrolar do enredo. As duas coisas, de resto, estão relacionadas: a insistência em certas ideias, a sua repetição nas falas das personagens (principalmente), torna os vários acontecimentos demasiado óbvios. OK, há uma técnica chamada foreshadowing, a antecipação de acontecimentos futuros, mas ela só funciona se usada bem, e de qualquer forma não é grande ideia empregá-la num conto tão curto.
Por outro lado, a história tem potencial. Uma teocracia fundamentalista, obcecada pela pureza, que reprime violentamente qualquer desvio à normatividade sexual, tem um potencial muito interessante para ser usada como crítica de tendências nesse sentido existentes na sociedade contemporânea, e é claramente esse o objetivo do autor. Mas o mais interessante talvez seja mesmo o facto de Dias lançar a crítica "de dentro", por assim dizer, o que se torna evidente no desenlace do conto, o momento em que um deus ex machina totalmente literal faz com que ele deixe de ser ficção científica para passar a fantasia científica. Ou seja, a sua crítica ao fundamentalismo religioso não é a de um ateu, mas a de um crente e isso dá-lhe mais força.
Palavra de ateu.
Em suma: este é um conto interessante, que não é bom mas podia ter sido.
Mário de Carvalho: O Tombo da Lua
O Beco das Sardinheiras é um beco lisboeta saído da imaginação de Mário de Carvalho e situado algures entre Alfama e a Mouraria, onde sucedem os mais fantásticos e humorísticos sucedidos. Já tinha tomado contacto com ele aqui há anos, quando li a Antologia do Humor Português, a qual inclui três dos textos que o autor escreveu sobre o Beco. Incluindo este, O Tombo da Lua (bibliografia). E a opinião que hoje me deixou é precisamente aquela que me deixou há sete anos e picos. Voltei a gostar bastante, sim senhor.
A diferença, pequeníssima, provém de ter agora relido o conto pouco depois de ter lido o conto do Mário Zambujal de que falo aqui, e por isso me ter apercebido de que há qualquer coisa de Zambujal neste beco de Mário de Carvalho. Ou, o que talvez seja mais provável, de que há semelhanças entre as obras de um e de outro porque o material de base é praticamente idêntico.
Às vezes a forma como lemos o que lemos é influenciada por aquilo que acabámos de ler.
A diferença, pequeníssima, provém de ter agora relido o conto pouco depois de ter lido o conto do Mário Zambujal de que falo aqui, e por isso me ter apercebido de que há qualquer coisa de Zambujal neste beco de Mário de Carvalho. Ou, o que talvez seja mais provável, de que há semelhanças entre as obras de um e de outro porque o material de base é praticamente idêntico.
Às vezes a forma como lemos o que lemos é influenciada por aquilo que acabámos de ler.
sábado, 16 de janeiro de 2021
Afonso Arinos: Uma Noite Sinistra
Um título como Uma Noite Sinistra (bibliografia) não engana ninguém. Nem tenta. Na verdade, bem pelo contrário, situa propositada e imediatamente o leitor no que poderá esperar do conto. É um conto de fantasmas, daqueles noturnos, misteriosos, assustadores. Uma história de casa assombrada ambientada no sertão brasileiro, ou não tivesse sido retirado de um livro chamado Pelo Sertão. O livro que deu fama a Afonso Arinos, de resto.
É um conto bem feito, que para um leitor português traz uma dificuldade acrescida devido ao uso de numerosos regionalismos que, regra geral, são desconhecidos do lado de cá do Atlântico. Muitos compreendem-se pelo contexto, é certo, mas nem todos. Mas tirando isso, que sendo embora uma dificuldade também ajuda bastante a situar a ação, a prosa não é particularmente complexa e o conto segue com bastante fidelidade os padrões deste tipo de história.
Aliás, talvez os siga com demasiada fidelidade. Digo isto porque estas opiniões sobre as histórias deste livro andam bastante atrasadas e o tempo decorrido desde a leitura já me tinha levado a esquecer quase por completo este texto, o que não acontece com os que o rodeiam. Sim, o conto é bom, mas lê-se um pouco como coisa já lida. Ou pelo menos como coisa lida antes de ser transplantada para o Sertão brasileiro. Na introdução fala-se das histórias de assombrações que o povo conta e sim, este conto de Arinos tem essa atmosfera. Só que o outro lado dessa moeda é ele não trazer realmente muito de novo. Há histórias mais ou menos como esta em quase todas as literaturas europeias, e provavelmente também na maioria das americanas. Arinos até fala aqui de lobos, animal ausente da fauna do seu país (há na América do Sul um canídeo chamado lobo-guará, mas tem um estilo de vida bem diferente do dos verdadeiros lobos, assemelhando-se mais ao de uma raposa), no que parece ser uma tentativa de capturar um imaginário muito característico das histórias europeias e norte-americanas.
Por outro lado, nada disto anula o facto de que sim, o conto está bem feito. É um bom conto. Esquecível, talvez, mas bom.
Textos anteriores deste livro:
É um conto bem feito, que para um leitor português traz uma dificuldade acrescida devido ao uso de numerosos regionalismos que, regra geral, são desconhecidos do lado de cá do Atlântico. Muitos compreendem-se pelo contexto, é certo, mas nem todos. Mas tirando isso, que sendo embora uma dificuldade também ajuda bastante a situar a ação, a prosa não é particularmente complexa e o conto segue com bastante fidelidade os padrões deste tipo de história.
Aliás, talvez os siga com demasiada fidelidade. Digo isto porque estas opiniões sobre as histórias deste livro andam bastante atrasadas e o tempo decorrido desde a leitura já me tinha levado a esquecer quase por completo este texto, o que não acontece com os que o rodeiam. Sim, o conto é bom, mas lê-se um pouco como coisa já lida. Ou pelo menos como coisa lida antes de ser transplantada para o Sertão brasileiro. Na introdução fala-se das histórias de assombrações que o povo conta e sim, este conto de Arinos tem essa atmosfera. Só que o outro lado dessa moeda é ele não trazer realmente muito de novo. Há histórias mais ou menos como esta em quase todas as literaturas europeias, e provavelmente também na maioria das americanas. Arinos até fala aqui de lobos, animal ausente da fauna do seu país (há na América do Sul um canídeo chamado lobo-guará, mas tem um estilo de vida bem diferente do dos verdadeiros lobos, assemelhando-se mais ao de uma raposa), no que parece ser uma tentativa de capturar um imaginário muito característico das histórias europeias e norte-americanas.
Por outro lado, nada disto anula o facto de que sim, o conto está bem feito. É um bom conto. Esquecível, talvez, mas bom.
Textos anteriores deste livro:
Angelo Brea: As Exploradoras
Quando concluí a leitura deste conto, perguntei a mim mesmo se Angelo Brea teria perdido com ele a oportunidade de lançar uma interrogação algo mais relevante do que a história simples que conta. Esta, como de resto já acontece nos contos anteriores, é a sua abordagem pessoal a um tema razoavelmente batido na ficção científica: a chegada de alienígenas à Terra, onde vêm fazer o Primeiro Contacto mas onde deparam com os restos de uma civilização desaparecida. As Exploradoras são essas alienígenas, duas tripulantes aparentemente humanoides de uma nave interstelar. Mas o conto é algo mais do que isso e é no "algo mais" que reside a oportunidade que Brea não parece ter querido aproveitar.
É que as Exploradoras não encontram ninguém na Terra, sim, mas detetam na Lua sinais de vida. Vão verificar o que se passa e descobrem uma base ainda de certa forma habitada pelos últimos resquícios da civilização humana, encerrados em cápsulas de hibernação. Quinze pessoas apenas. E decidem transferir essas pessoas para a Terra, o que na prática constitui uma segunda oportunidade dada à Humanidade.
Aqui, Brea podia ter introduzido uma questão de toda a relevância: merecerá a humanidade essa segunda oportunidade? Para isso, no entanto, teria de pôr as suas exploradoras a investigar e revelar o que acontecera para que a população humana no planeta se extinguisse, e não o faz. O facto permanece como mistério, e o conto perde a oportunidade de se elevar a um nível que fica longe de atingir. É um conto razoavelmente fraco, não muito bem escrito, com ideias e estrutura um bom bocado anacrónicas. Um conto dos anos 50 ou 60 publicado no século XXI.
Conto anterior deste livro:
É que as Exploradoras não encontram ninguém na Terra, sim, mas detetam na Lua sinais de vida. Vão verificar o que se passa e descobrem uma base ainda de certa forma habitada pelos últimos resquícios da civilização humana, encerrados em cápsulas de hibernação. Quinze pessoas apenas. E decidem transferir essas pessoas para a Terra, o que na prática constitui uma segunda oportunidade dada à Humanidade.
Aqui, Brea podia ter introduzido uma questão de toda a relevância: merecerá a humanidade essa segunda oportunidade? Para isso, no entanto, teria de pôr as suas exploradoras a investigar e revelar o que acontecera para que a população humana no planeta se extinguisse, e não o faz. O facto permanece como mistério, e o conto perde a oportunidade de se elevar a um nível que fica longe de atingir. É um conto razoavelmente fraco, não muito bem escrito, com ideias e estrutura um bom bocado anacrónicas. Um conto dos anos 50 ou 60 publicado no século XXI.
Conto anterior deste livro:
Mário Zambujal: Um Velório Alegre
Rui Zink e Mário Zambujal têm pelo menos uma coisa em comum, mas em várias outras características dificilmente podiam ser mais diferentes. O que têm em comum é o despretensiosismo, uma abordagem simples, que não simplista, ao ato de escrever. Mas enquanto Zink é daqueles escritores que experimentam uma série de abordagens à literatura e formas de contar histórias, Zambujal especializou-se numa e dela parece não querer sair (ou pelo menos, vá lá, tudo o que li dele é assim; como não li tudo, admito a possibilidade de estar enganado).
É uma opção que oferece as suas vantagens. Os especialistas deste género conseguem frequentemente tornar-se excelentes no que fazem, apurando a técnica sem se dispersarem por ramais e desvios que lhes fariam outras exigências. É algo semelhante a um estilo, coisa que todos os escritores fazem bem em arranjar, mas não é bem a mesma coisa. E também tem os seus lados negativos. Facilmente se torna limitativo. Facilmente, também, pode cair no mais do mesmo.
E Zambujal, ou pelo menos o que dele tenho lido, é precisamente assim. Desde a Crónica dos Bons Malandros que os seus ambientes são basicamente os mesmos — os bairros populares e as suas gentes, que fazem da sobrevivência diária um exercício de equilibrismo e criatividade paredes meias com a ilegalidade — e as histórias que conta pouco divergem umas das outras. Assim, quem tenha lido os Bons Malandros não precisa de puxar muito pela imaginação para ficar com uma boa ideia do que poderá encontrar neste Um Velório Alegre. É, sim, mais do mesmo. Mas é um mais do mesmo em bom, porque o autor lida muito bem com o material que escolheu.
O protagonista é um bom malandro, sim, e o conto consiste de um depoimento prestado por ele à polícia. Conto que não é conto, propriamente, e aí reside o principal ponto fraco deste texto, uma vez que a sua condição de excerto de um romance (Primeiro as Senhoras, publicado em 2006) fica por demais evidente no final que nada encerra. Parece que o homem foi raptado e está a relatar o rapto a um inspetor da polícia que nunca se deixa ouvir, mas acabamos a leitura sem ficarmos a saber praticamente nada sobre o rapto. Aqui, Zambujal não conta isso, conta uma série de episódios que decorrem em torno de um velório a que o protagonista teria ido por engano antes de ter sido raptado, mas essas são, ou pelo menos parecem ser, historietas acessórias cuja função parece ser mais a de apresentar uma personagem do que qualquer outra coisa.
Mas a verdade é que este texto é divertido e está bastante bem feito, pelo que a sua leitura é agradável. Quem goste dos Bons Malandros do Zambujal, e eu gosto, certamente gostará de ler isto. Eu? Gostei, sim.
É uma opção que oferece as suas vantagens. Os especialistas deste género conseguem frequentemente tornar-se excelentes no que fazem, apurando a técnica sem se dispersarem por ramais e desvios que lhes fariam outras exigências. É algo semelhante a um estilo, coisa que todos os escritores fazem bem em arranjar, mas não é bem a mesma coisa. E também tem os seus lados negativos. Facilmente se torna limitativo. Facilmente, também, pode cair no mais do mesmo.
E Zambujal, ou pelo menos o que dele tenho lido, é precisamente assim. Desde a Crónica dos Bons Malandros que os seus ambientes são basicamente os mesmos — os bairros populares e as suas gentes, que fazem da sobrevivência diária um exercício de equilibrismo e criatividade paredes meias com a ilegalidade — e as histórias que conta pouco divergem umas das outras. Assim, quem tenha lido os Bons Malandros não precisa de puxar muito pela imaginação para ficar com uma boa ideia do que poderá encontrar neste Um Velório Alegre. É, sim, mais do mesmo. Mas é um mais do mesmo em bom, porque o autor lida muito bem com o material que escolheu.
O protagonista é um bom malandro, sim, e o conto consiste de um depoimento prestado por ele à polícia. Conto que não é conto, propriamente, e aí reside o principal ponto fraco deste texto, uma vez que a sua condição de excerto de um romance (Primeiro as Senhoras, publicado em 2006) fica por demais evidente no final que nada encerra. Parece que o homem foi raptado e está a relatar o rapto a um inspetor da polícia que nunca se deixa ouvir, mas acabamos a leitura sem ficarmos a saber praticamente nada sobre o rapto. Aqui, Zambujal não conta isso, conta uma série de episódios que decorrem em torno de um velório a que o protagonista teria ido por engano antes de ter sido raptado, mas essas são, ou pelo menos parecem ser, historietas acessórias cuja função parece ser mais a de apresentar uma personagem do que qualquer outra coisa.
Mas a verdade é que este texto é divertido e está bastante bem feito, pelo que a sua leitura é agradável. Quem goste dos Bons Malandros do Zambujal, e eu gosto, certamente gostará de ler isto. Eu? Gostei, sim.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2021
Aniceto Gregório: Pandemia Y
Este é um texto muito curioso e bastante mais sofisticado do que pode parecer à primeira vista. Com toques de ficção científica (há, alegadamente, um par de hackers que inventa um algoritmo capaz de prever o futuro), com um narrador tão pouco confiável que escancara a possibilidade de ter acabado de inventar tudo a fim de "mostrar serviço", mas também com um certo elemento de presciência capaz de tornar algo estranha a sua leitura agora que estamos a meio de uma pandemia verdadeira, este conto consegue ao mesmo tempo escapar à atmosfera geral do livro e integrar-se inteiramente nela.
A Pandemia Y (bibliografia) que Aniceto Gregório inventa é uma pandemia inexistente. Mas apesar da sua inexistência, é uma pandemia tão séria que deixa a ONU numa roda-viva a tentar arranjar e produzir uma forma de a combater. Tudo com base em boatos, em diz-que-disse, em perguntas potencialmente embaraçosas que levam os ocupantes dos cargos à ação simplesmente devido ao receio de serem ultrapassados pelos acontecimentos e ficarem mal vistos. Isto, claro está, se o narrador/autor do texto não inventou tudo sozinho. O resultado não é um dos casos clínicos típicos deste livro, mas uma coisa algo diferente, um texto escrito por um autodeclarado leigo na matéria. E no entanto, apesar dessa diferença, o espírito do Almanaque está lá.
Este conto é bastante bom. O seu principal ponto forte é sem dúvida a originalidade, mas o resto dos ingredientes que para ele contribuem também estão entre o razoável mais (alguns gags um tudo-nada gratuitos são capazes de ser o que tem de menos bom) e o bom.
A Pandemia Y (bibliografia) que Aniceto Gregório inventa é uma pandemia inexistente. Mas apesar da sua inexistência, é uma pandemia tão séria que deixa a ONU numa roda-viva a tentar arranjar e produzir uma forma de a combater. Tudo com base em boatos, em diz-que-disse, em perguntas potencialmente embaraçosas que levam os ocupantes dos cargos à ação simplesmente devido ao receio de serem ultrapassados pelos acontecimentos e ficarem mal vistos. Isto, claro está, se o narrador/autor do texto não inventou tudo sozinho. O resultado não é um dos casos clínicos típicos deste livro, mas uma coisa algo diferente, um texto escrito por um autodeclarado leigo na matéria. E no entanto, apesar dessa diferença, o espírito do Almanaque está lá.
Este conto é bastante bom. O seu principal ponto forte é sem dúvida a originalidade, mas o resto dos ingredientes que para ele contribuem também estão entre o razoável mais (alguns gags um tudo-nada gratuitos são capazes de ser o que tem de menos bom) e o bom.
Textos anteriores deste livro:
Leiturtugas #84
Pois aqui estamos a inaugurar o ano de Leiturtugas, alguns dias mais tarde relativamente ao plano por causa das coisas da vida, essa vaca, mas englobando apenas o material que surgiu na semana que terminou no dia 10.
E que material é esse? São três opiniões.
A primeira a aparecer é sobre BD e chega-nos pela mão da Cristina Alves. O título é Bestiário de Isa, e trata-se de uma pequena edição de autor de Joana Afonso, publicada a encerrar o ano de 2020. Como nos anos anteriores, também neste BD é "sem FC" e a Cristina começa o ano com 0c1s.
Depois foi a vez da Carla Ribeiro publicar a sua opinião sobre um romance de fantasia sobrenatural, ou talvez de realismo mágico, também publicado no ano passado. Trata-se de A Rapariga Invisível, dado ao público por Carlos M. Queirós através da Cultura. Também é "sem FC" e a Carla está igual à Cristina: 0c1s.
E o Marco Lopes também começa de igual forma, pois a opinião com que inaugura o ano é sobre um romance de fantasia épica, o primeiro da série de Allaryia de Filipe Faria: A Manopla de Karasthan. Este já não é edição recente, como se sabe; já tem quase duas décadas. A edição original, como sempre da Presença, tem data de 2002. E também o Marco arranca com 0c1s.
Mas isto são só as opiniões do pessoal que participa oficialmente no projeto. É que a mesma vida que levou ao atraso neste post me impediu de vasculhar atentamente o que foi sendo publicado fora do grupo interno e pode ser que haja por aí mais coisas. Se houver, não se preocupem que acabarão por chegar a estas páginas. Por enquanto, fiquem com algumas coisas publicadas ainda no ano passado:
Em dezembro, a Carla (outra Carla) publicou uma brevíssima opinião sobre um conto natalício de Inês Montenegro, intitulado Pela Chaminé Abaixo. É fantasia, claro.
E em julho, a Ana Vargas tinha publicado a sua opinião sobre um livro de António Manuel Venda cheio de fantástico, intitulado O que Entra nos Livros.
E por agora é só. Vamos ver se consigo voltar a publicar estas coisas aos domingos. Se sim, voltaremos a ver-nos daqui a dois dias. Se não, serão mais um ou dois. Até lá.
E que material é esse? São três opiniões.
A primeira a aparecer é sobre BD e chega-nos pela mão da Cristina Alves. O título é Bestiário de Isa, e trata-se de uma pequena edição de autor de Joana Afonso, publicada a encerrar o ano de 2020. Como nos anos anteriores, também neste BD é "sem FC" e a Cristina começa o ano com 0c1s.
Depois foi a vez da Carla Ribeiro publicar a sua opinião sobre um romance de fantasia sobrenatural, ou talvez de realismo mágico, também publicado no ano passado. Trata-se de A Rapariga Invisível, dado ao público por Carlos M. Queirós através da Cultura. Também é "sem FC" e a Carla está igual à Cristina: 0c1s.
E o Marco Lopes também começa de igual forma, pois a opinião com que inaugura o ano é sobre um romance de fantasia épica, o primeiro da série de Allaryia de Filipe Faria: A Manopla de Karasthan. Este já não é edição recente, como se sabe; já tem quase duas décadas. A edição original, como sempre da Presença, tem data de 2002. E também o Marco arranca com 0c1s.
Mas isto são só as opiniões do pessoal que participa oficialmente no projeto. É que a mesma vida que levou ao atraso neste post me impediu de vasculhar atentamente o que foi sendo publicado fora do grupo interno e pode ser que haja por aí mais coisas. Se houver, não se preocupem que acabarão por chegar a estas páginas. Por enquanto, fiquem com algumas coisas publicadas ainda no ano passado:
Em dezembro, a Carla (outra Carla) publicou uma brevíssima opinião sobre um conto natalício de Inês Montenegro, intitulado Pela Chaminé Abaixo. É fantasia, claro.
E em julho, a Ana Vargas tinha publicado a sua opinião sobre um livro de António Manuel Venda cheio de fantástico, intitulado O que Entra nos Livros.
E por agora é só. Vamos ver se consigo voltar a publicar estas coisas aos domingos. Se sim, voltaremos a ver-nos daqui a dois dias. Se não, serão mais um ou dois. Até lá.
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