Ia escrever umas coisas sobre as eleições de ontem, focando-me em resultados, vitoriosos e derrotados, esses pormenores tão originais, mas não vale a pena:
já houve quem dissesse basicamente o que eu queria dizer. Mas o que o Daniel Oliveira ali escreve não esgota o assunto, e portanto aqui fica o que eu diria depois de falar sobre os resultados propriamente ditos.
Toda a gente fala de abstenção. Para quase toda a gente, esta é sintoma de que algo vai mal no sistema político, de que as pessoas estão alheadas da democracia, não respeitam as instituições democráticas nem as pessoas que por elas se movimentam, etc. E é verdade. Mas convenhamos: com campanhas como aquela a que assistimos é difícil continuar a respeitar certa gente, em particular quem faz da aldrabice, da calúnia e da insídia armas para a conquista do poder. As pessoas muito sérias que apregoam políticas de verdade e depois mentem com um ar muito sério e quantos dentes têm na boca, manuseando os fantoches que têm nos jornais com o único objetivo de iludir o zé pagode.
Felizmente, nem todo o zé pagode se deixa iludir dessa maneira. O crime até pode compensar durante algum tempo, mas no fim das contas feitas as pessoas muito sérias que agem desta forma acabam quase sempre por se revelar como aquilo que são. E o zé pagode que não é estúpido interioriza que antes os palhaços do que pessoas assim tão sérias. O zé pagode que não é estúpido mil vezes votaria nos Gato Fedorento antes de dar um voto a uma certa senhora muito séria e àquele mar de gente tenebrosa que governa um certo partido que eu cá sei, apesar de ser assustador pensar que, mesmo assim, ele tenha quase chegado aos trinta por cento. E que seja também uma pessoa assim tão séria a ocupar poleiro em Belém.
Presidente de todos os portugueses,
my ass.
Qual é, portanto, a surpresa por as pessoas não irem votar? Quem vê comportamentos como aqueles e não tem discernimento para não generalizar a toda a classe política, ou até toda a
atividade política, fica em casa, claro. Ou, se quer mesmo protestar, vai à mesa de voto juntar-se aos quase 100 mil camaradas que deixaram o boletim em branco, ou aos quase 75 mil que preferiram votar nulo (o que, pela experiência que tive numa mesa, há anos, rende algumas frases bastante elucidativas quanto ao sentimento do votante). São cento e setenta mil pessoas que, se estivessem organizadas numa espécie de "Partido do Contra", teriam eleito um grupo parlamentar capaz de encher um táxi.
E depois há outros fatores. No meu círculo eleitoral, não houve um único partido com hipóteses de eleger deputados que não tivesse resolvido meter à cabeça da lista um paraquedista qualquer, gente sem nenhuma identificação com esta região que ultrapasse o vir cá de vez em quando passar férias. Nem um. Qual a surpresa por as pessoas pensarem que eles vão para o parlamento defender não os nossos interesses, mas os dos respetivos partidos? Qual a surpresa por se achar que eles não fazem a mínima ideia dos nossos problemas?
Francamente? Se é para candidatarem a deputados pessoas sem a menor ligação aos círculos por que se candidatam, melhor seria que acabassem com os círculos e elegessem os deputados por um círculo único, nacional. Não ficaríamos a conhecê-los pior do que conhecemos agora, não ficaríamos menos próximos deles do que estamos agora, e com um círculo único o nosso sistema eleitoral tornar-se-ia realmente proporcional, em vez desta mixórdia que temos agora, que beneficia sistematicamente os dois maiores partidos. Com 230 deputados eleitos por lista única, o parlamento teria representação de mais correntes de pensamento da sociedade portuguesa, o que quem é realmente democrata só poderá aplaudir. Com os resultados de ontem, isso significaria eleger um deputado com cerca de 24 mil votos, o que somaria aos 5 partidos atualmente representados o MRPP e o MEP.
É que, sabem?, o nosso sistema atual distorce a representação parlamentar. Os 37,7% de votos que contam para a eleição de deputados que o PS obteve (isto é, os votos expressos menos os brancos e os nulos) transformam-se em 42,5% dos deputados; os 30% do PSD viram 34,5% dos deputados; os 10,8% do CDS, os 10,2% do BE e os 8,1% da CDU são reduzidos a 9,3%, 7,1% e 6,6% dos deputados, respetivamente. É fácil de ver que a força que as diversas formações políticas obtém no parlamento
não corresponde à vontade dos eleitores. É mais ou menos semelhante, anda por aí. Mas a forma de eleição de deputados distorce a vontade do eleitorado. E, como foi dito várias vezes ontem na TV, não estamos livres de acontecer um cenário de distorção absoluta, em que um partido menos votado acaba mais representado do que outro mais votado.
Admiram-se por o eleitorado olhar de viés para o sistema?
Ainda por cima, a ideia teórica de que todos os votos valem o mesmo é falsa. Ontem houve quase 150 mil votos que, apesar de serem válidos e terem sido entregues a formações concorrentes, não serviram para eleger ninguém. São as sobras do método de Hondt. São 150 mil eleitores que, para todos os efeitos práticos, se veem privados de fazer ouvir a sua voz no próximo parlamento, durante o tempo que ele durar. Pior: se o círculo do Porto tivesse mais um deputado, ele teria sido eleito com 23200 votos (e seria do BE); se o círculo dos Açores tivesse mais um deputado, bastariam 11400 (e seria do PSD). Ou seja: um votante do Porto tem menos de
metade do poder que tem um votante açoreano. Todos os votos contam? Longe disso. Todos os votos são contados, isso sim. E o valor que cada um tem depende do ponto do país em que é introduzido na urna. Como na história do George Orwell, todos os votos são iguais, mas há uns mais iguais do que outros.
Se as pessoas interiorizam que a sua voz não vai ser ouvida, que o seu voto de nada serve e não obterá representação na AR, que há uns mais iguais do que outros, que os políticos são todos uma cambada de gente sem espinha dorsal que procura o poder não para governar mas para governar-se, onde está a surpresa por a abstenção ser a que é? Por um terço dos eleitores não estar para se incomodar e ficar em casa?
Se querem realmente diminuir a abstenção, meus senhores, tirem a cabeça da areia e façam alguma coisa que contribua para isso. Aumentem o nível do combate político discutindo política em vez de tentar conquistar o poder com golpes sujos. E deem voz a quem não a tem, transformando o sistema que temos num sistema realmente proporcional. Pode ser por círculo único, mas também pode ser doutras maneiras. Por exemplo, se aos 226 deputados eleitos ontem (faltam ainda os da emigração) se somassem 50 eleitos por um círculo nacional para o qual só contassem as sobras do método de Hondt, os tais 150 mil votos deitados à rua, o PS ficaria com 39,1% dos deputados, o PSD com 32,2%, o CDS com 10,9%, o BE com 9,1%, a CDU com 8% e o MRPP elegeria dois, isto é, 0,7% dos deputados (a votação foi de 0,96%). Veem como as percentagens de deputados se aproximam logo das de votantes? Continua a não ser perfeito, mas é muito menos imperfeito do que o que temos agora. E quanto maior, em proporção, fosse o círculo nacional, mais proporcionais os resultados finais seriam.
Para mim, o ideal seria metade-metade. Metade dos deputados eleitos nos círculos atuais, talvez com algumas fusões nos círculos mais pequenos para evitar que se tornassem pequenos demais (não há nada que distorça tanto como círculos em que só se elegem 2 ou 3 deputados... e quanto aos uninominais, nem se fale), e a outra metade no círculo nacional. 115 para cada lado. Pelos círculos eleger-se-iam pessoas que também fossem capazes de apresentar no parlamento os problemas específicos de cada zona; o círculo nacional ficaria para os quadros dos partidos, que eles hoje em dia distribuem por todo o lado ao sabor das suas conveniências.
Iam ver se a abstenção não diminuía logo. Desde que o sistema adotado fosse suficientemente simples para que as pessoas o compreendessem.