quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Blogtailor attitudes

O blogue Blogtailors publicou ontem uma nota que remete para e cita uma notícia a respeito de indefinições na adoção do acordo ortográfico em Portugal. Em apenas cinco linhas, a citação consegue a proeza de divulgar duas informações erróneas, e eu decidi escrever um comentário a dar conta dessas incorreções. Reconstruo de memória, mas tanto o conteúdo como o tom eram estes:

Há aqui várias incorreções.

Em primeiro lugar, é falso que a reforma ortográfica tenha sido ratificada por quatro países. Além dos quatro que a nota refere, também Timor-Leste assinou e ratificou o acordo, ficando a faltar apenas a Guiné-Bissau, Angola e Moçambique.

Em segundo lugar, não foi só Brasil, Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe que assinaram o acordo. Todos os países lusófonos o assinaram, bem como aos protocolos modificativos. O que falta não é a assinatura, mas a ratificação dessa assinatura.


Resultado do meu comentário? A sua não publicação. E a alteração da nota com a inclusão daquele "[SIC]" que agora lá se encontra. Não é uma atitude bestial?

Não é a primeira vez que tal coisa me acontece, e sei de outras pessoas que foram tratadas com igual desrespeito. Mas a verdade é que quem se prejudica são os próprios blogtailors. O que eles conseguem com este tipo de atitudezinha prepotente é que ou as pessoas os mandam à fava, ou então deixam de lhes comentar os disparates discretamente nas caixas de comentários, onde ficam escondidos de quase toda a gente, para passarem a fazê-lo em público noutros blogues indexados por motores de pesquisa (coisa que ou não acontece com os comentários ou acontece com a atribuição de um page-rank bem mais baixo, que faz com que esses resultados sejam empurrados bem para o fim da lista), associando eficazmente o seu nome a posts como este.

É uma escolha que os Blogtailors têm feito. Assim seja.

Adenda, 4 de Outubro: Fui alertado por uma série de três comentários anónimos aqui na Lâmpada (todos publicados imediatamente, claro, apesar do insulto implícito) para o curioso facto do meu comentário ter sido entretanto publicado. Não sei quando. Sei que não foi quando o fiz, a 28 de Setembro. Sei que não foi no dia seguinte, 29 de Setembro. Sei que não foi a 30 de Setembro, data deste post, e data em que reparei que o tal "sic" tinha sido adicionado ao post original, o que prova que já nesse momento o meu comentário tinha sido lido e não publicado. Sei que nem sequer a 1 de Outubro foi, porque fui lá ver. Pode ter sido noutro dia qualquer desde então, mas o que mais provável me parece é ter sido hoje e o anónimo não ser propriamente anónimo.

Note-se que não fui só eu a constatar a ausência do comentário. Aliás, o link para o post está ali em cima para isso mesmo: para as pessoas comprovarem por si essa ausência. Foram várias as que o fizeram. De modo que se alguém sente alguma tentação de tentar passar a ideia de que isto que aqui está é uma "difamação", desiluda-se: ninguém acredita.

Isso não me leva a mudar uma vírgula a este meu post. Só o futuro dirá se ele serviu para os Blogtailors perceberem os tiros no pé que têm vindo a dar e os levou a mudar de atitude, se a publicação tardia do comentário serviu apenas para dar motivo a um "anónimo" para me vir aqui tentar puxar as orelhas. Se se der o primeiro caso, ótimo, fico contente; se se der o segundo, é uma crapulice sem nome. Seja qual for o caso, caro "anónimo", se alguém deve desculpas a alguém são, ainda, os Blogtailors. A mim e a todos os outros que têm sido alvo do mesmo tipo de atitude.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Eleições e sistemas

Ia escrever umas coisas sobre as eleições de ontem, focando-me em resultados, vitoriosos e derrotados, esses pormenores tão originais, mas não vale a pena: já houve quem dissesse basicamente o que eu queria dizer. Mas o que o Daniel Oliveira ali escreve não esgota o assunto, e portanto aqui fica o que eu diria depois de falar sobre os resultados propriamente ditos.

Toda a gente fala de abstenção. Para quase toda a gente, esta é sintoma de que algo vai mal no sistema político, de que as pessoas estão alheadas da democracia, não respeitam as instituições democráticas nem as pessoas que por elas se movimentam, etc. E é verdade. Mas convenhamos: com campanhas como aquela a que assistimos é difícil continuar a respeitar certa gente, em particular quem faz da aldrabice, da calúnia e da insídia armas para a conquista do poder. As pessoas muito sérias que apregoam políticas de verdade e depois mentem com um ar muito sério e quantos dentes têm na boca, manuseando os fantoches que têm nos jornais com o único objetivo de iludir o zé pagode.

Felizmente, nem todo o zé pagode se deixa iludir dessa maneira. O crime até pode compensar durante algum tempo, mas no fim das contas feitas as pessoas muito sérias que agem desta forma acabam quase sempre por se revelar como aquilo que são. E o zé pagode que não é estúpido interioriza que antes os palhaços do que pessoas assim tão sérias. O zé pagode que não é estúpido mil vezes votaria nos Gato Fedorento antes de dar um voto a uma certa senhora muito séria e àquele mar de gente tenebrosa que governa um certo partido que eu cá sei, apesar de ser assustador pensar que, mesmo assim, ele tenha quase chegado aos trinta por cento. E que seja também uma pessoa assim tão séria a ocupar poleiro em Belém.

Presidente de todos os portugueses, my ass.

Qual é, portanto, a surpresa por as pessoas não irem votar? Quem vê comportamentos como aqueles e não tem discernimento para não generalizar a toda a classe política, ou até toda a atividade política, fica em casa, claro. Ou, se quer mesmo protestar, vai à mesa de voto juntar-se aos quase 100 mil camaradas que deixaram o boletim em branco, ou aos quase 75 mil que preferiram votar nulo (o que, pela experiência que tive numa mesa, há anos, rende algumas frases bastante elucidativas quanto ao sentimento do votante). São cento e setenta mil pessoas que, se estivessem organizadas numa espécie de "Partido do Contra", teriam eleito um grupo parlamentar capaz de encher um táxi.

E depois há outros fatores. No meu círculo eleitoral, não houve um único partido com hipóteses de eleger deputados que não tivesse resolvido meter à cabeça da lista um paraquedista qualquer, gente sem nenhuma identificação com esta região que ultrapasse o vir cá de vez em quando passar férias. Nem um. Qual a surpresa por as pessoas pensarem que eles vão para o parlamento defender não os nossos interesses, mas os dos respetivos partidos? Qual a surpresa por se achar que eles não fazem a mínima ideia dos nossos problemas?

Francamente? Se é para candidatarem a deputados pessoas sem a menor ligação aos círculos por que se candidatam, melhor seria que acabassem com os círculos e elegessem os deputados por um círculo único, nacional. Não ficaríamos a conhecê-los pior do que conhecemos agora, não ficaríamos menos próximos deles do que estamos agora, e com um círculo único o nosso sistema eleitoral tornar-se-ia realmente proporcional, em vez desta mixórdia que temos agora, que beneficia sistematicamente os dois maiores partidos. Com 230 deputados eleitos por lista única, o parlamento teria representação de mais correntes de pensamento da sociedade portuguesa, o que quem é realmente democrata só poderá aplaudir. Com os resultados de ontem, isso significaria eleger um deputado com cerca de 24 mil votos, o que somaria aos 5 partidos atualmente representados o MRPP e o MEP.

É que, sabem?, o nosso sistema atual distorce a representação parlamentar. Os 37,7% de votos que contam para a eleição de deputados que o PS obteve (isto é, os votos expressos menos os brancos e os nulos) transformam-se em 42,5% dos deputados; os 30% do PSD viram 34,5% dos deputados; os 10,8% do CDS, os 10,2% do BE e os 8,1% da CDU são reduzidos a 9,3%, 7,1% e 6,6% dos deputados, respetivamente. É fácil de ver que a força que as diversas formações políticas obtém no parlamento não corresponde à vontade dos eleitores. É mais ou menos semelhante, anda por aí. Mas a forma de eleição de deputados distorce a vontade do eleitorado. E, como foi dito várias vezes ontem na TV, não estamos livres de acontecer um cenário de distorção absoluta, em que um partido menos votado acaba mais representado do que outro mais votado.

Admiram-se por o eleitorado olhar de viés para o sistema?

Ainda por cima, a ideia teórica de que todos os votos valem o mesmo é falsa. Ontem houve quase 150 mil votos que, apesar de serem válidos e terem sido entregues a formações concorrentes, não serviram para eleger ninguém. São as sobras do método de Hondt. São 150 mil eleitores que, para todos os efeitos práticos, se veem privados de fazer ouvir a sua voz no próximo parlamento, durante o tempo que ele durar. Pior: se o círculo do Porto tivesse mais um deputado, ele teria sido eleito com 23200 votos (e seria do BE); se o círculo dos Açores tivesse mais um deputado, bastariam 11400 (e seria do PSD). Ou seja: um votante do Porto tem menos de metade do poder que tem um votante açoreano. Todos os votos contam? Longe disso. Todos os votos são contados, isso sim. E o valor que cada um tem depende do ponto do país em que é introduzido na urna. Como na história do George Orwell, todos os votos são iguais, mas há uns mais iguais do que outros.

Se as pessoas interiorizam que a sua voz não vai ser ouvida, que o seu voto de nada serve e não obterá representação na AR, que há uns mais iguais do que outros, que os políticos são todos uma cambada de gente sem espinha dorsal que procura o poder não para governar mas para governar-se, onde está a surpresa por a abstenção ser a que é? Por um terço dos eleitores não estar para se incomodar e ficar em casa?

Se querem realmente diminuir a abstenção, meus senhores, tirem a cabeça da areia e façam alguma coisa que contribua para isso. Aumentem o nível do combate político discutindo política em vez de tentar conquistar o poder com golpes sujos. E deem voz a quem não a tem, transformando o sistema que temos num sistema realmente proporcional. Pode ser por círculo único, mas também pode ser doutras maneiras. Por exemplo, se aos 226 deputados eleitos ontem (faltam ainda os da emigração) se somassem 50 eleitos por um círculo nacional para o qual só contassem as sobras do método de Hondt, os tais 150 mil votos deitados à rua, o PS ficaria com 39,1% dos deputados, o PSD com 32,2%, o CDS com 10,9%, o BE com 9,1%, a CDU com 8% e o MRPP elegeria dois, isto é, 0,7% dos deputados (a votação foi de 0,96%). Veem como as percentagens de deputados se aproximam logo das de votantes? Continua a não ser perfeito, mas é muito menos imperfeito do que o que temos agora. E quanto maior, em proporção, fosse o círculo nacional, mais proporcionais os resultados finais seriam.

Para mim, o ideal seria metade-metade. Metade dos deputados eleitos nos círculos atuais, talvez com algumas fusões nos círculos mais pequenos para evitar que se tornassem pequenos demais (não há nada que distorça tanto como círculos em que só se elegem 2 ou 3 deputados... e quanto aos uninominais, nem se fale), e a outra metade no círculo nacional. 115 para cada lado. Pelos círculos eleger-se-iam pessoas que também fossem capazes de apresentar no parlamento os problemas específicos de cada zona; o círculo nacional ficaria para os quadros dos partidos, que eles hoje em dia distribuem por todo o lado ao sabor das suas conveniências.

Iam ver se a abstenção não diminuía logo. Desde que o sistema adotado fosse suficientemente simples para que as pessoas o compreendessem.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Lido: O Regresso do Filho Pródigo

O Regresso do Filho Pródigo, de André Gide é, como se diz na contracapa da publicação em que ele é publicado, "um texto de natureza quase teatral, constituído por sucessivos diálogos" que tematiza "o conflito entre o conservadorismo e o hedonismo". Nem mais. Fica apenas a faltar dizer que se baseia no episódio bíblico com esse nome e que é, à semelhança deste, mais um dos tais textos que, mais do que verdadeiras peças de ficção, constituem uma reflexão íntima do autor, uma forma dele tentar tirar conclusões para si próprio. Tenho a certeza de que quem sofre do mesmo tipo de conflito interior, entre o conservadorismo e o hedonismo, lhe verá bastos motivos de interesse, o mesmo acontecendo com quem se pela por histórias inspiradas na Bíblia, ou quem adora diálogos empolados e com tanto de literário como de pouco natural. Infelizmente, não é o meu caso; não encontrei o mínimo interesse no conto. Poucas vezes um texto composto quase exclusivamente por diálogos conseguiu aborrecer-me tanto. Às vezes o mainstream literário é assim.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Lido: A Angustiante História de Thangobrind, o Joalheiro

Um título tão longo como A Angustiante História de Thangobrind, o Joalheiro poderia talvez fazer supor que Lord Dunsany escreveria uma história que não fosse só angustiante mas também comprida. Crasso engano. Trata-se de um continho de fantasia com apenas três páginas que, com uma ironia muito bem apanhada, nos conta a história de — adivinharam — Thangobrind, um — a-ha! Aqui já não — ladrão de jóias de grande qualidade que um dia decide roubar uma jóia mágica chamada Diamante do Morto, com o resultado que logo se supõe. O mais interessante desta história, para mim, foi o quanto ela me fez lembrar os ambientes e enredos de escritores americanos bastante posteriores, como o Robert E. Howard das histórias de Conan, ou o Fritz Leiber das do Fafhrd e do Rateiro Cinzento. É um pouco como se Dunsany tivesse escrito um contito rápido delineando um território e dito aos outros "OK, tomem lá, desenvolvam lá isto".

Curioso, muito curioso.

Lido: Paradojas

Paradojas, de José Brox (que pode ser lido aqui) é um conto curto muito surreal que não me agradou particularmente. Bem, na verdade não me agradou mesmo nada. Explico porquê:

Como sabe quem tem lido estas notas de leitura, eu gosto de alguns contos surrealistas. Até já escrevi alguns. Mas para que me agradem, há uma coisa de que não prescindo. Ou melhor: há duas. Uma é estarem bem escritos. Outra é que, apesar do onirismo inerente à escrita surrealista, tenham um fio condutor qualquer, uma estrutura, uma coluna vertebral.

E é precisamente aqui que me parece que Paradojas falha. Não me parece que essa coluna vertebral exista neste caso, ou pelo menos que seja eficaz. E isso deixa o humor que o conto contém assim um bocadinho a pairar no nada, pronto a estampar-se ao comprido se o leitor não tiver o sentido de humor retorcido do autor. Parece que eu não tenho.

Outros terão, evidentemente.

Lido: Solaris

Lido, que é como quem diz relido.

Reler um romance muitos anos depois da primeira leitura — e neste caso foram mais de duas décadas — é uma experiência curiosa. Por um lado, há aquela familiaridade, aquela sensação de dejà vu, que impede a frescura da primeira leitura. Por outro, essa familiaridade é enganosa: há sempre algo que surpreende, pormenores esquecidos, coisas que não acontecem exatamente como a memória as recorda. Parte dessas surpresas podem inclusive ser mais do que um simples reavivar da memória, podem ser coisas que nos tinham passado despercebidas na primeira leitura. É que a pessoa que relê nunca é a mesma que leu — nem o Peter Pan fica absolutamente imutável — e olha para a obra com olhos que são sempre diferentes.

Já não sei bem o que pensei deste livro há vinte e tal anos. Sei que me embasbacou, que me deixou siderado, que o achei na altura das melhores coisas que me passaram pelos olhos, mas nada recordo dos pormenores.

Após a releitura, continuo a achar o Solaris do Stanislaw Lem (bib.) dos melhores romances de ficção científica de todos os tempos. Embora esteja já algo envelhecido, esse envelhecimento acontece apenas nas margens do romance, no envoltório tecnológico que lhe serve de cenário. O fulcro, aquilo que constitui a sua espinha dorsal, é tão novo hoje como foi em 1961, ano em que saiu em polaco, ou em 1983, ano da sua primeira edição portuguesa.

O título do romance revela o assunto: Solaris é um planeta, mas também um oceano vivo que cobre o planeta por completo e se comporta como uma imensa entidade inteligente, capaz das coisas mais mirabolantes e incompreensíveis. É a esse oceano que os cientistas terrestres dedicam décadas de estudo sem, no entanto, chegarem a nenhuma conclusão realmente definitiva, e o outro protagonista da história é precisamente um desses cientistas, que chega a uma estação de investigação que flutua na atmosfera acima do oceano e é confrontado com o desconhecido.

E aqui está a camada subjacente a esta história complexa: o desconhecido e a incapacidade humana para realmente passar a conhecê-lo, o incompreensível e a nossa perplexidade quando deparamos com ele, a futilidade dos esforços que fazemos para desvendar o que nele se esconde. No fundo, é este o verdadeiro tema deste romance, e, aliás, nesse aspeto Solaris não está isolado no contexto da obra de Lem. Romances como A Voz do Dono ou Fiasco andam também muito por esses territórios, cada um à sua maneira. Mas é Solaris a sua obra mais famosa e marcante.

Porquê?

Em grande medida por causa dessa criação magistral que é o oceano. E porque funciona mesmo violando sistematicamente todos os mandamentos que se ensinam nos ateliers de escrita criativa formatados à americana. Ação, por exemplo, quase não há; o romance é fundamentalmente contemplativo. O mandamento que reza "show, don't tell", é esfrangalhado por longas digressões teóricas sobre o oceano, contando muito e não mostrando nada. E no entanto, deve haver muito poucas pessoas com gosto por algum conteúdo na sua FC que não considerem o todo magnífico. Esta ideia é, aliás, comprovada por Solaris ser dos poucos — muitas vezes o único — livros de origem não anglófona a conseguir sistematicamente lugar nas listas de clássicos da FC, sejam eles escolhidos pelos leitores, sejam escolhidos por estudiosos do género.

Solaris não é um romance emocionante. Também não é, com duzentas e poucas páginas, um romance grande. Mas é sem sombra de dúvida um grande romance, e um romance que perdurará durante muito, muito tempo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Lido: Ar

Ar, de Geoff Ryman (bib.), é um romance feito de encruzilhadas. Para começar desenrola-se num país fictício, o Karzistão, localizado algures na Ásia Central, naquela região por onde, no mundo não fictício, passou em tempos a Rota da Seda e onde se encontram a China, o Paquistão, o Afeganistão, o Cazaquistão e mais alguns países saídos do colapso da União Soviética. No mundo fictício de Ar, cruzam-se aí três povos: os chineses, os karzistani e os eloi, minoria étnica que procura reafirmar-se e sair da alçada dos seus vizinhos mais poderosos. Cruzam-se aí também religiões, pois essa é a zona de encontro do Islão com os budismos e outras religiões orientais, embora este aspeto tenha pouca relevância para a história.

Mas a encruzilhada mais importante é a encruzilhada entre o passado e o futuro. O cenário de quase toda a história é uma aldeia, perdida nas montanhas, cujos habitantes praticam quase todos uma agricultura de subsistência e vivem na pobreza e ignorância do mundo que esse facto sugere. E é sobre essa aldeia antiga que vem cair subitamente o futuro sob a forma de Ar, uma espécie de internet universal, transmitida diretamente para o cérebro das pessoas. Primeiro, é realizada uma experiência, um teste, e é durante esse teste que algo corre terrivelmente mal: uma velhota morre de choque e a sua personalidade, ou parte dela, acaba alojada na cabeça da heroína do romance, uma mulher interessada no mundo, mas principalmente na moda que o mundo lhe traz, chamada Chung Mae. Em resultado do acidente, Mae obtém uma quantidade de informações que não são disponibilizadas às outras pessoas da aldeia, e vai caber-lhe a tarefa de arrancar os vizinhos ao passado, preparando-os o melhor possível para um futuro que acabará por chegar, quer eles queiram quer não.

O romance vai repescar alguns temas típicos do ciberpunk: a computação omnipresente e a manipulação de sistemas informáticos, claro, mas também a Ásia, suas culturas e povos. Mas tem uma estrutura muito pouco ciberpunk, antes aproximando-se do romance mainstream na descrição da complexa teia de alianças e inimizades da aldeola onde Mae vive, na elaboração da personagem de Mae, que é muito mais sólida do que é hábito encontrar-se na FC, ainda que a maior parte das personagens secundárias não cheguem nem perto dessa tridimensionalidade, na ausência daquela ação violenta tipicamente ciberpunk, etc. Também aí encontramos nele uma encruzilhada, entre a FC e a literatura "lá de fora", que é acentuada ainda mais quando, a partir de cerca de meio do romance, começamos a encontrar coisas que estaríamos mais à espera de ver em histórias de realismo mágico ou de horror: Mae engravida mas, duma forma cuja explicação nunca chega sequer a ser esboçada, o embrião aloja-se não no útero, como a natureza manda, mas sim no estômago.

Curiosamente, ou talvez não, apesar de toda a disparidade e confluências que contém, o livro funciona. É, no fundamental, uma história sobre a evolução das coisas, sobre o caráter mutante da vida, sobre o modo como a tecnologia e a ciência, a capacidade de olhar objetivamente para o mundo, usando da melhor forma possível as ferramentas que temos à disposição e que vamos criando, acaba sempre por melhorar a vida da maioria das pessoas, ou até de as salvar. Imagino que haja leitores mais amigos de enredos enrodilhados e cheios de ação que se aborreçam com este livro, que de facto não é nada disso. Uns podem achá-lo pastelão e lento, outros ou, quiçá, os mesmos, podem achar certas passagens demasiado inverosímeis para um livro de FC, mas duvido de que quem seja sensível às questões filosóficas que ele tem subjacente possa não acabar a leitura com um saldo francamente positivo.

Eu, que até concordo com a objeção sobre a inverosimilhança, certamente que acabei. O livro é bom, e vale bem a pena ser lido.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Dagon, opinião dois: Darwar de Celénia, de Pedro Ventura

Lamento, não gostei. E aproveito para avisar que o que se segue contém spoilers.

Estão avisados.

Pois é, não gostei. Começa logo, naturalmente, por eu não ser fã de fantasia épica e só conseguir gostar de obras do género quando são duma qualidade excecional. Só isso bastaria para tornar pouco provável que eu gostasse deste conto. E menos provável se torna quando o conto contém precisamente aquilo que mais me afasta da fantasia épica: o maniqueísmo, o culto do herói, os líderes enquanto indivíduos eleitos e especiais, etc.

Em todo o caso, mesmo não gostando do conto por não ser a minha praia, poderia tê-lo achado bem construído e bem escrito. Não o achei mal escrito, apesar de algumas gralhas ("algo que já guardava para si à muito tempo"; "Lá fora o acampamento permanecia rendido a numa sinfonia de sonoridades") e fragilidades de outra ordem (será mesmo necessária a repetição em frases como "Era impossível que a vida não os furtasse ao amargo sabor daquela insatisfação, daquela amarga e vazia frustração que sentia."? E julgo que há erros em "Iria suportar vê-los rir e dizerem-lhe que haviam muitas outras mulheres"), e embora deteste excessos de adjetivação, ao ponto de ter enorme dificuldade em ler Lovecraft, e julgue que o Pedro comete aqui e ali esse que, para mim, é pecado capital. Apesar destas achegas, repito, não o achei mal escrito. Mas o estilo empolado que é usado não me agrada. Julgo compreender a sua origem: uma tentativa de dar mais um pouco de épico à fantasia através de uma escrita, ela própria, épica, mas com toda a sinceridade parece-me que é mais eficaz deixar que aquilo que de épico a história tenha fale por si, sem esse tipo de interferência do texto, que ainda por cima tem tendência a causar outro tipo de problemas, como muito pouca naturalidade nos diálogos e uma grande uniformidade na "voz" das diversas personagens (o que tem consequências óbvias na eficácia da sua construção). Nada disto me agrada, embora tenha plena consciência de que há pessoas que adoram cada uma destas características. Se toda a gente gostasse de amarelo, etc., etc., vocês sabem.

Outra coisa que me parece é que este tipo de fantasia não convive lá muito bem com histórias tão curtas. Quando se procura encaixá-la em tão curto espaço, tem-se tendência a usar truques para situar o leitor, e neste conto isso é visível naquela conversa entre o herói e o camarada de armas, um "como sabes Bob" típico (um deles até diz "não é óbvio?" e tudo) que não tem outra utilidade que não seja ficarmos a saber mais umas informações sobre o ambiente em que a história se desenrola, e que eu estou habituado a encontrar num certo tipo de contos de FC.

Por fim, e porque também encontrei pontos positivos no conto, eis aquele que me parece mais bem conseguido: o final em aberto. Gostei de ver o Pedro Ventura fugir à previsibilidade da vitória definitiva dos bons com aquele final que sugere inclusive a possibilidade dessa vitória, no fim de contas, não existir, apesar da esperança que o herói alimenta. É um final inteligente: a esperança contenta aqueles que gostam de ser reconfortados, no fim das histórias que lêem, com a vitória dos bons; a dúvida satisfaz os que preferem as coisas menos a preto e branco, mais matizadas.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Dagon, opinião um: o editorial

Bem diferente do que é hábito ver-se por aí, este editorial. Todo muito lírico e emotivo, mas sem deixar de apresentar os destaques do conteúdo e de realçar as qualidades que os editores nele vêem. É um estilo, e eu gostei: foge da mesmice habitual e está bem escrito. Mas é um risco: quem odeia lirismos vai provavelmente odiá-lo também. O que, por outro lado, também pode servir para traçar territórios.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Dagon, opinião zero vírgula cinco: as minhas coisas

Não, ainda não comecei a ler a Dagon, mas lembrei-me de que já conheço parte do seu conteúdo: a parte que me diz diretamente respeito. E já agora que também posso dizer o que eu acho sobre essa parte. Pode ser que alguém se interesse por saber. Se for esse o caso, venham daí.

Começando pelo princípio: a entrevista. Não tenho muito a dizer. É uma entrevista que me satisfez. Achei as perguntas relevantes e interessantes, e respondi-lhes o melhor possível. Houve partes das respostas que me deixaram um pouco insatisfeito, porque para realmente expressarem as minhas ideias do princípio ao fim exigiriam artigos completos, e não respostas de dois ou três parágrafos. Mas embora ninguém me tivesse imposto limites ao tamanho das respostas, eu sei que não se pretende obter com uma entrevista um conjunto de artigos. Afinal, já trabalhei como jornalista. De modo que é uma insatisfação inevitável. Mas talvez escreva um dia os artigos.

Segue-se o artigo. Como nele afirmo, trata-se de algo que sai duma reflexão que está iniciada mas não concluída e, embora seja bastante longo, a reflexão ramifica-se de tal modo que houve coisas que tive de simplificar, o que também fiz para tentar mantê-lo interessante. Bem sei como por vezes é aborrecido ler coisas longas no monitor... e se forem chatas então, ui! O facto da reflexão não estar concluída significa que o mais provável é que eu próprio não concorde por inteiro com ele daqui a algum tempo. É uma opinião em processo de construção, e portanto também em mutação. Mas é uma opinião honesta no momento em que foi escrita, e acho que levanta alguns problemas em que vale a pena pensar a sério, com boa fé e honestidade, mesmo que as conclusões a que depois se chega sejam diametralmente opostas às minhas. O que me parece inevitável, sabendo como sei como pensam certas pessoas. À parte isso, talvez haja por lá uma ou outra coisa que gostaria de ter explicado melhor, mas em geral o que lá está é o que lá deve estar.

E por fim, o conto. É uma brincadeira e uma experiência. Não é um grande conto, talvez nem sequer o ache um bom conto, mas acho-o um conto divertido, que é o que pretendeu ser. A experiência consiste em tentar contar uma história de FC recorrendo apenas a diálogos e sem cair na velha armadilha do "como sabes, Bob" que tanto fez sofrer a FC ao longo das décadas. Sendo composto apenas de diálogos, e sendo eu de opinião que os diálogos se querem razoavelmente naturais, não há nele um tratemento cuidado da língua. Para muita gente, talvez, antes pelo contrário, especialmente nas falas dos "chavalos". De modo que quem não tiver sentido de humor, ou quem o tiver pouco compatível com o meu o mais certo é que não goste. Quanto aos outros, se o lerem com um sorriso e acabarem com uma gargalhadinha já me deixam satisfeito.