domingo, 31 de julho de 2016

Lido: O Homem da Espada de Vinte Quintais

O Homem da Espada de Vinte Quintais é mais um dos contos que Adolfo Coelho foi recolhendo pelo país fora e descreve as façanhas do "Mama-na-Burra", um fortalhaço mais ou menos heroico que, aos sete tenros anos, já manuseava a tal espada de vinte quintais (uns 1200 quilos, nem mais nem menos) e parte pelo mundo em busca de aventuras. E encontra-as, claro, acabando por desencantar umas princesas encantadas e a conquistar as devidas recompensas.

É uma história interessante, embora esquemática (ou seja: dá pano para mangas a quem queira desenvolvê-la), e o que mais interesse me desperta é que o bom do Mama-na-Burra, sendo um valentão de bom coração, servindo-se da sua força para o bem, é sistematicamente ajudado... pelo demónio.

Imagino que os padres não devessem achar grande graça a quem contava esta história. E acho fascinante que uma história assim tenha sobrevivido a bem mais que um milénio de presença cristã em Portugal. O contraste com as histórias dos Grimm acentua-se mais um pouco.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Mau Funcionamento no Parque Temático

Mau Funcionamento no Parque Temático, de Luiz Bras, é uma historinha de ficção científica quase impressionista, durante cuja leitura o leitor passa o tempo quase todo perdido, sem perceber o que diabo se está a passar, apesar do título, e só no fim lhe surge a luz, o "ah!", acompanhado por um sorriso não só de compreensão mas também de divertimento. Não revelarei mais do que o título já revela: esta é uma história sobre algo que se avaria num parque temático. Ao mesmo tempo, é uma historinha profundamente irónica sobre certos convencimentos do ser humano. Mais uma boa história, sim.

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Lido: O Medo

O Medo é um pequeno conto de Guy de Maupassant sobre o medo. Trata-se de um daqueles contos de terror de ouvir contar, tão do agrado do século XIX. Desenrola-se este a bordo de um navio, durante uma conversa entre passageiros que derivou para momentos em que teriam sentido medo ao longo das vidas, e centra-se nas histórias contadas por um deles, nas quais os terrores sobrenaturais acabam por ter explicações bem mundanas, o que não significa que sejam menos de aterrorizar. Maupassant era um grande escritor, e isso nota-se aqui, na forma segura com que desbobina a narrativa, no equilíbrio perfeito entre o que diz e o que deixa por dizer, mas o conto não chegou a impressionar-me. É um bom conto, mas falta-lhe impacto.

sábado, 30 de julho de 2016

Lido: O Desbocado

O Desbocado (bibliografia) é um conto curto de ficção científica de Telmo Marçal, ambientado num futuro (próximo?) em que o governo se prepara para baixar os padrões de qualidade do ar puro. Ou pelo menos, é a história com que o protagonista do conto, assessor do Ministro do Ambiente e Saúde, dá por si a ter de lidar. Distopia bem negra, este é acima de tudo um conto sobre a propaganda, sobre o modo como se manipulam notícias e ideias para levar a opinião pública a determinadas opiniões e decisões. Sim, tem as suas ideias sobre política, sim, tem as suas ideias sobre ambiente, sim tem as suas ideias sobre a relação triangular entre quem manda, quem parece mandar e o comum dos mortais, mas é sobretudo um conto sobre os media e, entre estes, acima de tudo sobre a televisão. Como tal, dificilmente poderia ser mais atual neste momento em que assistimos a uma manipulação de intensidade inaudita em praticamente toda a paisagem mediática portuguesa (e não só). Muito bom.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - John Zaharick

John Zaharick encerra este monumental livro com três contos.

Dysmorphic é uma história de ficção científica, passada num futuro razoavelmente próximo, sobre uma rapariga com dismorfia, não a de género a que as questões à volta da visibilidade e dos direitos dos transexuais têm associado a palavra, mas a de espécie. E obtém uma espécie de libertação através do controlo remoto de drones, sondas biomecânicas de investigação, que controla através de mecanismos de realidade virtual... e que lhe permitem pela primeira vez sentir-se confortável na sua pele. Um conto muito interessante, ainda que curto, sobre um fenómeno psicológico que existe mesmo, e uma possível solução futura para ele.

Ghost Gardening é uma fantasia urbana sobre uma casa assombrada, cujo principal motivo de interesse reside na forma como está escrita, intercalando uma carta escrita por alguém (um homem?) à sua amada morta, sobre as assombrações que vai descobrindo no edifício onde vive, com excertos de um livro encontrado por ele numa biblioteca, intitulado (tradução minha) Guia de Jardinagem Fantasmagórica, que explica os pormenores segundo os quais se rege este mundo ficcional. Também é um conto interessante.

After the Kaiju Attack é um imaginativo conto sobre a vida quotidiana na Costa Oeste dos EUA, ambientado num mundo futuro em que os kaiju (monstros gigantescos, surgidos no cinema japonês, de que o exemplo mais conhecido é o Godzilla) existem como parte de todo um ecossistema profundamente adulterado e agressivo. Vocês, os mais conhecedores de FC, talvez pensem ao ler isto num conto ribofunk, mas não me parece que este conto seja propriamente ribofunk, antes se baseia diretamente nos filmes e BD de kaiju que têm vindo a ser produzidos desde os anos 50 do século passado. De novo, o que de melhor tem este conto é a abordagem, mostrando não o ataque do kaiju, mas uma cena quotidiana no rescaldo de um ataque. Também interessante.

Lido: Um Toque do Real: Óleo Sobre Tela

Um Toque do Real: Óleo Sobre Tela (bibliografia) é um conto onírico, com algo de horror, algo de surrealismo e algo de fantástico, de Roberto de Sousa Causo, protagonizado por um pintor que, depois de ter tido sucesso no exterior, procura agora igual sucesso no Brasil (e que coisa tão portuguesa, esta!), e se vê mergulhado num pesadelo repleto de tintas, pincéis, telas e perigos mortais. O conto relata uma convoluta viagem, com o seu interesse, pelos territórios oníricos desse pesadelo, e termina quando o protagonista sai dele. O "afinal foi tudo um sonho" final é dos mais batidos clichés deste tipo de história, mas Causo dá-lhe uma pequena variação que melhora um bocadinho o resultado, pois o sonho acaba por ser usado pelo protagonista como ponto de partida para uma mudança efetiva na sua vida acordada. Não me parecendo que este seja um bom conto, também não o achei mau. Mediano, portanto.

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sexta-feira, 29 de julho de 2016

Lido: Três Versões de Judas

Três Versões de Judas é mais um dos estudos falsos de Jorge Luís Borges, contos em que ele adota um estilo académico para discorrer eruditissimamente sobre literatura que nunca existiu, seja ela ficcional ou, como neste caso, ensaística. O protagonista desta história é um tal Nils Runeberg, estudioso de Judas, que teria supostamente feito publicar estudos que contradizem a versão de Judas-enquanto-traidor propagada pelas igrejas cristãs, propondo teorias fantasiosas e convolutas, mas elogiosas, sobre a sua verdadeira natureza. Três, sim.

O conto é um pseudofactual, claro, e como já disse algumas vezes, não é dos estilos que mais me atraem, ainda que os de Borges costumem erguer-se vários patamares acima dos daqueles que se deixaram inspirar pelo argentino. Este, contudo, pela minha muito grande falta de interesse (e consequente ignorância) pelo tema teológico, por mais blasfema que possa ser essa teologia, despertou-me um agrado muito relativo. A menos que algum dos três contos que faltam o ultrapasse, o que é possível mas creio que improvável, este deverá ser o conto que menos me irá agradar em todo o livro.

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quinta-feira, 28 de julho de 2016

Lido: Os Três Homenzinhos na Floresta

Os Três Homenzinhos na Floresta é outro conto dos Irmãos Grimm que resulta da fusão de contos tradicionais recolhidos em vários pontos, com o argumento de que são "complementares". E muitas vezes talvez o sejam mesmo, talvez se trate mesmo de fragmentos de histórias completas mais antigas que os Grimm conseguiram reconstruir. Mas não me parece que seja aqui o caso, porque antes mesmo de saber que era essa a origem desta história, informação que nos é prestada pelos Grimm na nota que sucede ao conto, já me parecia que ele era composto por duas partes que se conjugavam mal.

A história em si é mais uma história de madrastas malvadas e invejas entre filhos e enteados (ou, neste caso, filhas), uns bons, humildes e obedientes, e é curioso como estas coisas vêm sempre juntas, e os outros maus, arrogantes e desobedientes. Os três homenzinhos do título são uma espécie de duendes, que dão a cada filha/enteada, por artes mágicas, aquilo que merece, acabando os maus mortos e os bons ricos e régios.

Uma coisa curiosa em que tenho reparado ao ler em paralelo as histórias tradicionais portuguesas e os contos de Grimm é que, ao passo que é frequente as primeiras trazerem em si sementes de revolta e troça irreverente contra os poderosos, as segundas são quase sempre conformistas em absoluto. Talvez seja fenómeno derivado do caldo cultural que produziu as histórias de base, talvez reflita diferenças entre a mundovisão de Adolfo Coelho e dos Irmãos Grimm, não sei. Mas é interessante.

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quarta-feira, 27 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Django Wexler

Django Wexler está presente nesta antologia com uma noveleta e um excerto de romance.

The Penitent Damned, a noveleta, é uma história de fantasia com ladrões, duques cruéis e um sistema de magia curioso. A história está bem concebida, com um enredo tão convoluto que chega a ficar um pouco confuso, especialmente no fim, e um sistema de magia curioso, mas ao longo de toda a leitura não consegui sacudir a sensação de que já tinha lido coisas muito parecidas, ou pelo menos de que os vários elementos de que esta história se compõe fazem lembrar outras histórias. Não é um mau conto, mas não foi dos que mais me agradaram.

The Thousand Names, o romance, começa a acompanhar o dia-a-dia de um posto avançado colonial e tem a curiosidade de ter como protagonista — ou uma das protagonistas, pelo menos — uma rapariga que se tinha alistado disfarçada de homem para fugir para longe da sua terra. Não consigo perceber como raio uma rapariga consegue manter o fingimento de não o ser na ausência de privacidade de um meio castrense, e o excerto não o explica, mas é possível que o resto do livro explique. De resto, o que mais contribui para alimentar a curiosidade por esta história são precisamente as personagens, bastante bem construídas e, várias, francamente interessantes. O enredo? O excerto não é grande coisa a desvendar os caminhos que o enredo poderá seguir. Mas que me despertou alguma curiosidade por uma história que, tudo o indica, também deverá ser fantasia, despertou.

Lido: João Pequenito

João Pequenito, mais um conto popular recolhido por Adolfo Coelho, conta as façanhas de um tal João Pequenito, ao serviço do rei da sua terra, a atormentar o rei dos Turcos em audaciosas e bem sucedidas incursões. Parece daquelas histórias de ladrões ou espiões em ambiente medieval, que por vezes se encontram em alguns tipos de fantasia (em especial a de capa e espada), e até tem a conferir-lhe o correspondente elemento fantástico um papagaio que não só fala como percebe na perfeição o que se está a passar, tentando infrutiferamente avisar os seus amos das malfeitorias do Pequenito (ou benfeitorias, dependendo do ponto de vista). É mais uma das histórias de Adolfo Coelho que, bem explorada, podia servir de base para um conto interessante. Há muitas assim.

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terça-feira, 26 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - M. Darusha Wehm

M. Darusha Wehm é uma autora presente nesta antologia com três contos.

The Care and Feeding of Mammalian Bipeds, v. 2.1 é um conto de ficção científica narrado por um robô cuidador de uma família humana, das tradicionais, pai, mãe e filhos adolescentes. É daqueles contos feitos de incompreensão e mal-entendidos que, como já disse quando falei de outro conto deste livro, há algum tempo, costumam agradar-me. E foi o caso: sem ser propriamente uma obra-prima, este é um conto muito divertido, usando a autora muito bem o contraste entre a satisfação do robô por tudo estar a correr bem e a realidade, em que tudo se desfaz, e que o robô não consegue compreender.

Modern Love é outro conto de ficção científica sobre relações e, tal como o primeiro, também este está temperado por uma pitada significativa de horror. É-nos mostrado um futuro casal que tem tudo para dar certo... mais ou menos da mesma forma que a relação entre um drogado e o traficante dá certo. Ela é uma stalker, que persegue digital e pessoalmente o objeto da sua afeição, usando a tecnologia do futuro próximo para ficar a saber tudo sobre ele antes mesmo de lhe dirigir palavra. Ele, por seu turno, também não é tão inocente como parece ao longo de quase todo o conto. Não se sabe se viveram felizes para sempre, porque o fim da história chega antes, mas se calhar até viveram... com umas ajudinhas quimico-tecnológicas. Arrepios.

I Open My Eyes é mais um conto que mistura ficção científica e horror, agora sobre uma personalidade que sobrevive num "contentor" à morte do corpo que anteriormente a albergava. O tema principal desta história é a eternidade (ou um tempo tão dilatado que é praticamente eterno) e a solidão que ela provoca.

São três bons contos, estes. Não propriamente obras primas, também não de uma originalidade superlativa, mas bons.

Lido: Sermão Contra a Imaginação

Sermão Contra a Imaginação é uma vinheta fantástica de Luiz Bras, a que o final — muito bom, por sinal — confere um distinto sabor a horror, sobre um rapaz de imaginação descontrolada. Ou melhor, demasiado potente, pois tudo o que imagina se concretiza e depois tem de encontrar alguma forma de imaginar algo capaz de contrabalançar o imaginado inicial. Se imagina uma máscara que confere a um francês (também imaginário) telepatia, tem de imaginar uma outra que confere a uma chinesa a contratelepatia. E por aí fora.

Há uma forte carga surreal nesta história que, pese embora ser bastante descritiva, o que poderia jogar em seu desfavor, tem no crescimento exponencial de seres imaginados e nos problemas que ele levanta, nomeadamente na relação do rapaz com o pai, um fio condutor eficaz. E claro que o tema verdadeiro da vinheta não é nem o rapaz nem a sua imaginação, mas a relação entre filhos imaginativos e pais castradores. Ou castradores em geral, aquelas pessoas cuja função na vida parece ser cortar asas e amarrar à terra quem nasceu para voar.

Mais uma boa história.

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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Gerald Warfield

Gerald Warfield está presente nesta antologia com duas histórias — uma noveleta e um conto.

Spores of the Volcano é uma muito interessante história de ficção científica, ambientada, ao que me parece, no futuro longínquo da Terra (ou talvez noutro planeta, ainda que certos pormenores façam com que esta possibilidade me pareça menos provável), mas numa Terra profundamente alterada, mergulhada numa glaciação global e estéril só interrompida pelas auras de calor que rodeiam alguns vulcões e aí geram microclimas pujantes de vida, muito à semelhança do que acontece com as nascentes hidrotermais no fundo dos oceanos, e cuja vida inteligente já não é há muito o Homem, mas descendentes de cefalópodes com características que fazem lembrar tanto os polvos, como os chocos ou mesmo os náutilos. Aqui, a vida reproduz-se e espalha-se através de esporos disseminados pelo vento e está sempre sob a ameaça de ser anuquilada pelas erupções dos vulcões. A cultura que se desenvolve nestas circunstâncias, que no fundo é o principal protagonista desta noveleta, é fascinante. Mas o conto não é apenas worldbuilding; existe nele uma história de superação e sobrevivência quase igualmente fascinante. Muito bom.

Pageant for a Crazy Man está longe de me ter agradado tanto. Trata-se de um conto de horror psicológico, quase realista, sobre a intolerância e, até certo ponto, a xenofobia. É daquelas histórias de infância, contadas ou rememoradas pelo protagonista muitos anos mais tarde, como que a revisitá-las com olhos de adulto, e gira em volta do provável assassínio de um mudo e talvez louco, perto do local onde a protagonista estava acampada com os pais. É uma história incómoda, mas parece-me faltar-lhe qualquer coisa para atingir a qualidade da primeira.

Lido: O Pico de Hubert

O Pico de Hubert (bibliografia) é uma noveleta de ficção científica de Telmo Marçal que eu já li várias vezes, e de que já tinha até falado aqui na Lâmpada há relativamente pouco tempo. Não chega a três anos. Hoje, após esta releitura, mantenho quase tudo o que escrevi nessa altura, com a ressalva de já não existir aqui a confusão entre emigrante e imigrante que existia na primeira edição, decerto devido a uma revisão mais cuidada ou à falha ter sido detetada entretanto. Por outro lado, a falha principal que então identifiquei, a ausência de uma voz própria a cada um dos protagonistas, permanece, e por isso continuo a achar este conto bom, mas não tão bom como poderia ser.

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domingo, 24 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Sabrina Vourvoulias

Sabrina Vourvoulias está presente nesta antologia com um só conto:

Collateral Memory. Trata-se de um conto de horror ambientado num país qualquer da América Latina, sob uma ditadura militar dirigida pela CIA. A ação centra-se numa brincadeira infantil, que reúne os filhos dos militares americanos destacados numa base no país e os filhos dos locais que trabalham na base, ou lá perto, e que mimetiza o que os pais fazem. As relações de poder, as violências, os espancamentos, os vencedores sistemáticos que fazem do mundo das crianças um microcosmos do mundo dos adultos. Com uma diferença: no das crianças há quem seja capaz de usar magia. E fá-lo para melhor se esconder, para, por uma vez, vencer.

É um conto fortíssimo, este, e bastante bem estruturado, em dois tempos interligados, o das crianças, no passado, e o presente, anos mais tarde, em que uma das protagonistas da história — a narradora — a relembra. Também é, portanto, um conto sobre a memória, as suas limitações e armadilhas. Um conto carregadinho de sumo. Muito bom.

Lido: Twist in my Sobriety

Twist in my Sobriety (bibliografia) é um conto de ficção científica de Flávio Medeiros sobre xenofobia. A hstória tem uma base razoavelmente ufológica: na Terra do futuro, uma espécie alienígena benevolente aparece e põe a sua tecnologia à disposição da espécie humana, pedindo em troca apenas a possibilidade de observação irrestrita, um pouco à semelhança do que fazem os marcianos no romance Os Marcianos Divertem-se (Martians, Go Home) de Fredric Brown — embora estes o façam sem pedir licença. Com licença ou sem ela, os conflitos são mais ou menos inevitáveis, e as coisas não correm propriamente bem, o que é exemplificado pela violenta xenofobia do protagonista desta história. Parece interessante, certo? Pois, e sê-lo-ia se não tivesse um problema: os infodumps. Quando, num conto de 12 páginas, 4 estão ocupadas por um imenso infodump completamente separado do fluxo narrativo, e várias das outras também contêm infodumps mais pequenos, ainda que bastante mais bem integrados na narrativa, o resultado não é o melhor. Este conto, para funcionar bem, teria de ser maior e com um enredo mais complexo ou incluir uma informação bastante mais compacta sobre os antecedentes da história. Assim como está, é a meu ver a história mais fraca do livro até agora.

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sexta-feira, 22 de julho de 2016

Novo projeto - Fantástico Algarve

Cheguei a uma conclusão existencial: não sei ficar quieto. Pior: quando me vem uma ideia ela leva-me a chatear, e a chatear, e a chatear, até que a ponha em prática. Portanto, olhem, aqui está mais uma, o Fantástico Algarve:

Trata-se, desta vez, de um site bibliográfico algo especial, porque se destina a reunir sob um mesmo teto toda a produção fantástica que eu consiga encontrar vinda de autores nascidos ou radicados no Algarve. O objetivo último é tentar uma aproximação a uma resposta à pergunta feita no cabeçalho, mas isso é coisa de longo prazo. Até porque este projeto deverá avançar lentamente e manter-se parado durante períodos razoavelmente longos. E estará, claro, sempre incompleto.

Este é, de certa forma, um projeto derivado do Bibliowiki, e foi em parte criado com o objetivo de contribuir para o próprio Bibliowiki, numa retroalimentação circular que se espera produtiva.

Depara desde logo com um problema: a informação biográfica disponível sobre os autores lusófonos em geral e portugueses em particular é quase sempre bem mais escassa do que a dos seus congéneres estrangeiros, sobretudo dos americanos. Como consequência, procurando neste momento por "Algarve" na base de dados do Bibliowiki, chega-se a apenas 18 pessoas e, entre estas, só 10 são autores de ficção (os restantes são tradutores, ilustradores, autores de não-ficção, etc.). Em parte, isto deve-se a não contar com os radicados, em parte deve-se a lacunas na informação do Bibliowiki, que ainda tem bastantes autores e obras em falta, mas, mesmo assim, entre os autores já presentes no wiki e que não dispõem de nenhuma informação biográfica, e são muitos, deve haver certamente algumas dezenas com relação com o Algarve.

Parte do objetivo do Fantástico Algarve é, pois, suprir essas lacunas. A outra parte é identificar mais rapidamente o conjunto de obras fantásticas (em sentido amplo, englobando o fantástico propriamente dito, o maravilhoso, a ficção científica, o horror, a fantasia, o surrealismo, etc.) produzidas, total ou parcialmente, por estas pessoas. E com o tempo, talvez seja possível encontrar o que há (ou não) de Algarve nelas.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Brian Trent

Brian Trent é mais um autor presente nesta antologia com três contos.

Sparg é um conto de ficção científica sobre um polvo inteligente, geneticamente melhorado, antigo animal de estimação de uma família, que tenta sobreviver sozinho depois de a família ter desaparecido sem que ele perceba como nem porquê. A referência a (ou inspiração em) Virão Chuvas Suaves de Bradbury é muito clara, mas não é isso que retira potência a esta história, até porque Trent se limita a inspirar-se, não copia, e intercala a história que conta no presente com momentos em que o polvo se recorda da família, tornando-a assim de certa forma presente e fazendo com que a sua ausência pareça ainda mais terrível. E o polvo, na sua inadequação para o que tenta fazer, é uma personagem mais patética e digna de dó do que os automatismos da casa inteligente de Bradbury. Por outro lado, não há aqui nenhuma imagem tão inesquecível como a sombra branca no muro enegrecido. Mas mesmo assim este conto é bastante bom.

War Hero é outro conto de ficção científica, este ambientado em Marte, que tem como protagonista um soldado incumbido após uma revolução da missão de assassinar o antigo ditador que, apesar de ter morrido, foi clandestinamente ressuscitado (neste futuro longínquo as pessoas fazem gravações periódicas das personalidades, as quais podem ser incorporadas no mesmo corpo ou em corpos diferentes no caso de alguma coisa lhes acontecer) num corpo novo escondendo-se à vista de todos. Mas as coisas não correm exatamente como planeado. É uma história inteligente de FC hard, que explora bem a tecnologia em que se baseia e tem um enredo cheio de reviravoltas sem que, no entanto, nenhuma destas pareça gratuita.

The Nightmare Nights of Mars é outra história de ficção científica que regressa a Marte, mas este Marte é um planeta bem diferente, em plena terraformação, no qual já crescem florestas e a fauna respetiva. A protagonista é uma mulher, presa de uma relação abusiva com outra mulher, que é a primeira a descobrir que algo de anormal se passa com os insetos marcianos, não só em termos de tamanho como também de comportamento. Esta, que além de FC também é horror é, julgo eu, a pior das três histórias, pois não me parece que funcione lá muito bem. A parte biológica do enredo é tremida e em boa medida por isso a descrença tem dificuldades em suspender-se para que o desfrute seja pleno. Mesmo assim, tem o seu interesse.

Lido: O Milagre Secreto

O Milagre Secreto é mais um dos contos de Jorge Luís Borges em que o protagonista é um escritor a debater-se por levar até ao fim um projeto literário particularmente espinhoso. No caso, um drama em verso sobre a eternidade, adequadamente circular, do qual teria completado o primeiro e o terceiro atos, mas não o segundo. Problema: ele é judeu checo, a ação tem lugar em 1939, ano da invasão da Checoslováquia pelos nazis, e por isso é preso e condenado à morte por fuzilamento. Até aqui nada de fantástico, tudo tristemente realista, mas, desesperado pela impossibilidade de concluir aquela que, para ele, seria a sua obra-prima, o protagonista recorre a medidas extremas, suplicando a deus mais um ano. Só mais um. E deus concede-lhe esse ano, mas não exatamente como estava à espera.

Este é outro dos grandes contos de Borges. Um conto que compacta em poucas páginas uma quantidade assombrosa de referências a questões tão profundas como a noção de eternidade em vários dos seus aspetos (a eternidade do círculo, a eternidade dos instantes, etc.), a política e a guerra, a relação do artista com a sua própria obra e as dos outros, por aí fora. E ironia, uma dose razoável de ironia.

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quarta-feira, 20 de julho de 2016

Lido: Rapúncia

Rapúncia é um dos contos célebres desta compilação dos Irmãos Grimm, tornado famoso, sobretudo, através das suas numerosas adaptações ao cinema e à televisão que, no entanto, só costumam apanhar a ideia romântica da protagonista encerrada na torre que deixa cair o seu longuíssimo cabelo para que o príncipe apaixonado suba para ir ter com ela. O conto original, que nesta edição ocupa meras quatro páginas, é menos desenvolvido nessa parte do que as adaptações (apesar de o cabelo e o príncipe constarem), e inclui uma primeira parte, de página e meia, sobre como Rapúncia (vocês devem conhecê-la como Rapunzel) vai parar à torre, e também umas crueldades feiticeiras sofridas pelo príncipe antes do felizes-para-sempre final. Para quem só conhece as adaptações, o conto original dos Irmãos Grimm que, de resto, já é também uma adaptação, é ao mesmo tempo mais desenvolvido e menos desenvolvido do que elas, e isso é em si mesmo interessante. Pessoalmente, não gosto muito desta história; sou demasiado sensível a buracos de enredo, mesmo quando se trata de contos de fadas, e ela tem alguns. Mas é indiscutível que contém elementos muitíssimo eficazes a gravar-se no imaginário dos povos europeus.

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Lido: 2014 Campbellian Anthology - Grace Tang

Grace Tang é mais uma autora presente nesta antologia com três contos, que no caso dela são todos bastante curtos.

Ghost in the Machine é uma história de ficção científica contada na primeira pessoa por um marido que se descobre recorrentemente abandonado. Ou melhor: pela consciência de um marido morto, uma espécie de fantasma instalado no sistema informático da casa, na altura em que a mulher, sobrevivente, se vai libertando do passado e recomeçando a viver. É um conto curto mas interessante.

White Lies é uma história com muitos pontos de contacto com a anterior, pois também se desenvolve em torno de uma consciência em suporte informático, ainda que desta feita se trate de uma inteligência artificial, que não sabe que o é mas vai deparando com pequenas estranhezas no mundo e em si própria, o que lhe desperta dúvidas razoavelmente metafísicas. Seria um conto meramente interessante sem aquele final surpresa, tão bem executado que o faz subir de nível. Bom.

Man's Best Friend é outro conto de ficção científica, este de uma natureza um pouco diferente. Aqui a história, uma ficção científica de laboratório razoavelmente típica, tem por tema melhoramentos cibernéticos destinados a melhorar a capacidade intelectual dos que se submetem às experiências, que basta o título para se perceber que são cães. Mas também aqui existe um final surpresa francamente bom, que eleva o conto da mera razoabilidade. Não é tão bom como o segundo, mas também é bom.

Lido: Mais Vale Quem Deus Ajuda que Quem Muito Madruga

Mais Vale Quem Deus Ajuda que Quem Muito Madruga é mais uma história popular recolhida por Adolfo Coelho com bastante mais interesse sociológico do que literário. Conta o que acontece a dois almocreves depois de se terem posto a discutir a propósito do ditado popular que intitula a história, defendendo um que ele é verdadeiro e afirmando o outro que é falso. Sem chegarem a nenhuma conclusão, vai cada um para seu lado agir em concordância com as suas ideias, e aquele que fica a contar com a ajuda divina prospera e o outro, o que aposta no trabalho, acaba morto à paulada. Moral da história: faças o que fizeres, trabalhes ou fiques deitado de papo para o ar, a única coisa que interessa é a intervenção divina. Suponho que a ideia dos padres que certamente fizeram espalhar histórias como esta teria sido incutir a ideia de que tudo acontece porque e como deus manda, mas a verdade é que elas acabam por funcionar como perfeitos elogios à preguiça. Nada contra, por princípio — a indolência, se bem usada, se bem explorada, é um magnífico incentivo à criatividade e até à produtividade. Mas quer-me parecer que houve demasiada gente a encarar demasiado literalmente histórias destas. Não basta armarmo-nos de indolência e ficarmos à espera do que deus manda: é preciso, lá está, sabermos usá-la.

Ah, sim, já me esquecia: o conto é fantástico, claro.

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terça-feira, 19 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Bogi Takács

Bogi Takács está presente nesta antologia, mais uma vez, com três contos.

Recordings of a More Personal Nature é uma história de ficção científica muito interessante sobre um povo razoavelmente primitivo, que no decorrer da história vai ficando cada vez mais provável tratar-se de descendentes mais ou menos longínquos de uma raça antiga, bem mais avançada tecnologicamente. Uma raça capaz de criar nos seus descendentes um vínculo mental com uns "arquivos" que estes não compreendem, mas onde apesar disso armazenam (de forma inconsciente) uma porção considerável das suas personalidades. E o que dá origem à história é essa ligação começar a falhar, sendo depois o que a sociedade e os seus membros fazem para tentar suprir essa falha que a sustenta. Uma ideia base interessantíssima, bastante bem executada.

The Tiny English-Hungarian Phrasebook for Visiting Extraterrestrials é uma vinheta irónica e muito crítica da Hungria atual, que consiste, precisamente, do que o título indica: um guia de expressões inglesas, com tradução para húngaro e transcrição fonética, a ser usado por ETs de visita a uma Hungria proto-fascista e xenófoba. E consegue contar uma história. Bom.

Mouse Choirs of the Old Mátra é um conto de fantasia, uma fábula com todo o ar de conto tradicional, sobre um velho que parte a correr mundo em busca do melhor dos melhores para casar com uma sua sobrinha (que não é bem sobrinha). É daquelas histórias repetitivas que o povo conta, circulares, meio lengalengas, nas quais, apesar de variarem nos pormenores, as situações são sempre as mesmas no fundamental, até que o contador se cansa, ou repara que quem o ouve se cansa, e remata então a história. Não sei se este conto tem base numa história tradicional verdadeira ou se é integralmente invenção de Takács, e isso afeta a avaliação que dele faço. Se se der o primeiro caso, é um conto curioso; se se der o segundo, é francamente bom.

Lido: Exames

Exames é mais um miniconto de ficção científica distópica de Luiz Bras, mas este, ao contrário da vasta maioria dos restantes, não me convenceu. Consiste de um diálogo entre um paciente e quem lhe contesta a autoavaliação com os resultados dos exames endócrinos realizados, supõe-se, pouco antes. E não há nada a fazer, realmente: os resultados não deixam margem para dúvidas.

O principal problema desta história é depender em demasia de um efeito surpresa, no final, que o resto do texto se encarrega de destruir, fazendo com que quando o fim revela o que se passa já o leitor que não esteja inteiramente distraído percebeu tudo. Bras tem muito melhor do que isto.

Textos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Tim Susman

Tim Susman também está presente nesta antologia com três contos.

Erzulie Dantor é uma história de horror ambientada no Haiti pós-terramoto e tendo como pano de fundo o peculiar tipo haitiano de magia negra. Bem escrito, com uma prosa elaborada que consegue bastante bem evitar cair na caricatura floreada da purple prose, o conto relata a história da rivalidade de duas irmãs, uma das quais, enlouquecida, se serve das superstições do povo, ainda para mais atiçadas pela catástrofe que se abatera pouco antes sobre o país, para levar ao linchamento da outra. Mas as forças do sumbundo estão sempre atentas e cada ato tem as suas consequências. Um conto bastante bom.

Diamonds Are Forever é uma vinheta de ficção científica, mas também de horror, que tem como protagonista um androide cujo processador central é feito de matriz de diamante artificial. E, como se sabe, os diamantes são eternos. Mesmo que as juntas metálicas, os cabos e tudo o resto que forma um corpo robótico se degrade e deixe de funcionar. Brrrr.

Gondeneye também é uma vinheta de ficção científica com toques significativos de horror, passada na Lua, num futuro em que o nosso satélite já está colonizado permanentemente, e conta uma historinha sobre uma rapariga que, depois de perder um olho num acidente, coloca um olho artificial de ouro... que não é tão inerte como se poderia supor. Interessante, mas creio que este é o pior dos três contos.

De qualquer forma, este Tim Susman despertou-me interesse.

Lido: O Paciente

O Paciente (bibliografia) é um conto de ficção científica de Telmo Marçal sobre um homem que encontra num hospital a sua razão de existir. Irónico, corrosivo como ácido sulfúrico quase puro, o conto mostra-nos os truques, as doenças inventadas, que o paciente arranja para conseguir dar entrada no hospital e aí ficar alguns dias internado. Porquê? Porque do lado de fora não tem nada e do lado de dentro tem tudo, as tradicionais cama, comida, e roupa lavada e ainda a companhia dos outros pacientes que (literalmente) o rodeiam por todos os lados. Mesmo se isso implicar a perda de uma perna... ou coisas piores. Este é um dos bons contos da ficção científica portuguesa e, como muita da melhor ficção científica, exagera e extrapola para o futuro circunstâncias bem reais para melhor as iluminar. Pois todos sabemos, ou se não sabemos devíamos, que as visitas de indigentes aos hospitais são, realmente, no mundo contemporâneo, no mundo real, uma forma não só de serem tratados de mazelas reais ou imaginárias, mas também de alcançarem um breve alívio da vida que lhes coube em sorte.

Conto anterior deste livro:

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Bonnie Jo Stufflebeam

Bonnie Jo Stufflebeam está presente nesta antologia com dois contos e um poema.

The Wanderers é um conto de ficção científica forte e corrosivamente irónico que consiste numa mensagem dirigida à humanidade por um grupo de alienígenas que, como eles dizem, "vieram para o nosso planeta por terem compreendido que nós, os povos de Kill Bill, Saw, Vietnam e Columbine Massacre os compreenderíamos." É uma história de contacto humano-alienígena que usa os malentendidos para nos criticar, ou pelo menos a algumas das nossas realizações e/ou características. E isso é bom, ainda que esta minha opinião possa ser suspeita pois escrevi uma história dessas, o que é capaz de mostrar um certo gostinho especial por elas.

The Siren não é um conto sobre uma sirene, mas sim um conto sobre uma sereia. Fantasia, portanto. Ou talvez horror, pois já desde os gregos se sabe bem como o canto das sereias pode levar os homens a cometer quaisquer loucuras. Ou, como neste caso, as mulheres. O conto é mais uma vez bom, e o complicado enredo sentimental que a sereia origina, com lesbianismo misturado com uma problemática rivalidade entre uma mãe e uma filha pelo afeto da sereia, confere-lhe níveis acrescidos (e crescentes) de tensão.

The Ferryman, é um poema bastante curto que sugere uma história de horror nos pântanos do delta do Mississípi e consegue criar com bastante eficácia uma atmosfera opressiva e... bem... húmida. Vale o que vale, mas também gostei.

Lido: Por Toda a Eternidade

Por Toda a Eternidade (bibliografia) é um belíssimo conto curto de ficção científica hard, de Carlos Orsi, sobre um convoluto crime perfeito. Com meras três páginas (nesta edição nem chega, mas este livrinho usa um tipo de letra muito pequeno), o conto consegue misturar crime passional com ganância, com simulação e engano, com campos de forças, com uma espécie alienígena particularmente picuinhas com contratos, com buracos negros e o que neles se passa e com mais umas quantas coisas, e tudo isto sem nunca perder a coerência e o nexo lógico apesar das várias reviravoltas no enredo que chegam até à surpresa final, a qual remata o conto da melhor forma possível. Muito bom mesmo. O melhor conto do livro até agora.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - John E. O. Stevens

John E. O. Stevens está presente nesta antologia com um único conto, intitulado

The Scorn of the Peregrinator. Trata-se de uma história de fantasia, que tem um certo ar de excerto de obra maior apesar de não haver notícia de essa obra maior ter sido publicada entretanto, sobre os acontecimentos numa certa aldeia isolada quando um "Peregrinador" (uma espécie de mistura entre arauto, cobrador de impostos e agente de retrutamento) chega para transmitir aos habitantes as mudanças nas leis que estão em vigor no reino. E não é grande coisa. Está mesmo longe de ser grande coisa. Não será propriamente uma má história, porque o tratamento do texto é correto e há algumas qualidades, mesmo que escassas, na criação do ambiente, mas é uma história que só posso qualificar como desinteressante. Muito.

Lido: A Morte e a Bússola

A Morte e a Bússola é um conto intersticial de Jorge Luís Borges, protagonizado por um tal Lönnrot, detetive minspirado por Auguste Dupin, a personagem de Poe, a que Borges faz referência logo no primeiro parágrafo do conto. Este é a história de uma investigação, como em qualquer história policial. Só que aqui a investigação segue um caminho apropriadamente labiríntico, fantástico ainda que mais num sentido atmosférico do que propriamente de enredo. Para perplexidade geral, Lönnrot não se interessa pelo desvendar dos crimes mas pelo padrão geométrico que lhes está subjacente. E acaba desvendando-o ao mesmo tempo que de investigador se metamorfoseia em vítima, no meio de uma especulação intelectual sobre a dimensionalidade do mundo. É outro grande conto, um conto altamente intelectual, como de resto quase todos, com umas pitadas de alegoria à impermanência e uma generosa dose de crítica à noção de livre arbítrio. Acho eu.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 17 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Benjanun Sriduangkaew

Benjanun Sriduangkaew está presente nesta antologia com três contos.

Annex é uma história de ficção científica ambientada entre alienígenas, com um clima muito virado para a space opera. A história é de subversão, sobre uma conspiração para esconder e difundir ideias através de uma forma que escape à deteção das autoridades de um superestado autoritário chamado Hegemonia. Como? Através de uma canção. É uma ideia curiosa, mas não gostei da forma como foi posta em prática.

Vector é outra história de ficção científica, mas esta passa-se na Terra, numa Terra futura devastada mas não destruída (ainda) por uma guerra entre a China e os Estados Unidos, e descreve, numa prosa burilada, poética (até algo "purpúrea", há que dizê-lo), a autonomização de uma inteligência artificial. De novo, a ideia pareceu-me bem melhor que a concretização. Talvez alguém um dia consiga fazê-lo bem, mas até lá mantenho a opinião de que poetizar uma história distópica de guerra e IA em fuga é destruir o impacto tanto da história como da linguagem.

Paya-Nak é uma história de horror, e a melhor das três, pois não só o horror se presta bastante melhor do que a FC ao estilo rebuscado de Benjanun Sriduangkaew, como é uma história inspirada pelas lendas do sudoeste asiático sobre criaturas mitológicas serpentinas que vivem no e à volta do rio Mekong, o que ajuda sempre a conferir uma cor local interessante. A história é complexa. Há nela, além do elemento folclórico, que desconheço em que ponto acaba e se transforma em criação própria, fantasmagoria, maternidade, amor. É em grande medida a história de uma mulher que dá à luz um monstro... ou talvez seja a história do fantasma dessa mulher. Uma história razoável, que só não considero boa porque é daquelas histórias que se leem e depressa se esquecem (característica que partilha com as outras duas, de resto).


Lido: Irmãozinho e Irmãzinha

Irmãozinho e Irmãzinha é um conto dos Irmãos Grimm que pode servir de paradigma para o motivo de se encararem estes contos como contos dos Grimm e não simplesmente como contos tradicionais. É que, apesar de a maior parte dos autores das recolhas pré-científicas destas histórias tenham feito retoques aos textos a fim de os tornar literariamente mais palatáveis, o que faz com que esses autores de recolhas sejam também até certo ponto autores dos próprios textos, raros o fizeram tanto como os Grimm. Assumidamente. Este conto, por exemplo, é resultado da fusão de dois contos diferentes, considerados complementares, e isto vem dito na própria nota que os irmãos lhe anexaram.

Trata-se de um conto de fadas bastante típico, com a sua bruxa/madrasta má, que de tão maligna faz com que os dois irmãos do título fujam para a floresta, depois consegue com os seus bruxedos transformar o irmão num veado, mas tudo acaba em bem, como não podia deixar de ser. Um conto que seria ternurento se a bruxa má não tivesse acabado morta numa fogueira e a filha, igualmente má e ainda por cima feia, abandonada na floresta e aí devorada por animais selvagens.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Stephen Sottong

Stephen Sottong está presente nesta antologia com uma noveleta e um miniconto.

Planetary Scouts, a noveleta, é uma história de ficção científica bastante interessante, mesmo sendo o ambiente muito próximo da space opera, subgénero que não é dos que mais me agradam. Conta a história dos batedores planetários, um corpo de exploradores de planetas distantes cuja função é irem aos pares verificar in loco as condições de habitabilidade, ou não, desses planetas, avaliando o seu potencial para colonização, trabalho perigoso como poucos, visto que a galáxia está repleta de surpresas desagradáveis. Fá-lo descrevendo um punhado de missões de um desses batedores, veterano quase a terminar o contrato, desde que recebe um novo parceiro até que a parceria se desfaz quando a última missão sofre uma dessas surpresas. Uma história que apesar de não ser muito profunda é bastante boa.

Friends, o miniconto, é um continho de horror sobre a vingança dos nerds. Tem a ver com dragões devoradores de gente... ou talvez tenha a ver com outras coisas. Não o acho mau, mas não me impressionou.

Lido: A Afilhada de Santo António

A Afilhada de Santo António, mais um conto popular recolhido por Adolfo Coelho, é uma curiosa historinha que se por um lado parece ter inspiração cristã por outro é francamente estranha para ser uma história de inspiração cristã. A protagonista é uma rapariga protegida de Santo António, santo milagreiro, que o santo põe a servir em casa do rei... disfarçada de rapaz. A princípio as coisas correm bem, pois sempre que a rapariga tem alguma tarefa particularmente impossível lá lhe aparece o santo a fazar um milagre qualquer para que tudo se resolva, mas às tantas surge um problema mais sério: a rainha apaixona-se por ela e põe-se a persegui-la. Um conto cristão com lesbianismo acidental?! Eh lá! Andam avançados, estes católicos.

É curioso, este conto. Mais: é daqueles contos que dão pano para muitas mangas (e bem diferentes umas das outras). Daqueles contos de cujas três páginas se poderiam extrair histórias bem maiores.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 16 de julho de 2016

Lido: José no Inverno Policromático

José no Inverno Policromático é um texto (conto? poema?) de Luiz Bras, amargo, que tem de fantástico sobretudo uma certa atmosfera criada quase exclusivamente pela própria linguagem, não pelos significados que ela tem. E também é uma denúncia. Uma denúncia da condição de pobre que potencia todos os invernos que ser humano implica. Um grito de revolta das periferias, dos desfavorecidos, que evita tornar-se panfleto através do uso de uma linguagem cheia de imagens, oblíqua, vagamente surreal.

Um bom texto, mais um, mesmo não tenho sido dos meus favoritos.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Os Virtuosos

Os Virtuosos (bibliografia) é um conto de Telmo Marçal que de fantasia, fantástico ou ficção científica só tem o exagero. Não o exagero de cada ato ou personagem concretos que nos apresenta, porque todos eles, sem exceção, são absolutamente realistas, mas da junção de todos numa mesma teia de interconexões. Se é que existe aí algum exagero.

Os virtuosos têm todas as virtudes da teia corrupta que se estende entre as empresas privadas e uma certa forma de se estar na política. São venais, são egoístas, são assassinos, são putas, são tudo o que se possa imaginar ao olhá-los, e o conto descreve-os um a um (bem, com um texto de qualidade), enquanto vai contando uma história que só não é policial porque não existe aqui qualquer sinal de polícia. Nem nas entrelinhas.

No fundo, isto é um conto de horror. De horror social, digamos assim.

Lido: A Encruzilhada

A Encruzilhada (bibliografia) é um conto de fantasia de Ana Lúcia Merege, daquela fantasia que se ambienta num mundo secundário, o qual relata uma investigação levada a cabo por um tal Mestre das Águias (uma espécie de mago detetor de capacidades mágicas em coisas, lugares e pessoas), após terem chegado aos ouvidos das autoridades histórias sobre uma fonte milagrosa existente nas terras de um homem de personalidade francamente desagradável. É um conto competente, algo prejudicado pela sensação que deixa de ser parte de um todo maior, de não passar de um excerto, mas que consegue criar uma experiência de leitura interessante, graças em grande medida às suas personagens credíveis e bem caracterizadas (dentro das limitações de um texto desta dimensão, naturalmente) e à muito disfuncional dinâmica que a família do dono das terras apresenta. Deixa curiosidade sobre outras obras pertencentes ao mesmo universo. E elas existem: a série compreende três romances publicados nos últimos anos.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Jeremy Sim

Jeremy Sim também está presente nesta antologia com três contos.

Fleep é uma história de ficção científica ambientada numa pequena ilha, algures no arquipélago indonésio, e protagonizada por uma família que gere o único e minúsculo empreendimento turístico da ilha. Problema: quase não têm clientes. Aquilo que conseguem ganhar com as poucas pessoas que lá se alojam não dá para cobrir as despesas e por isso a empresa está a ponto de fechar. Até que aparecem os brindlefarbs, uma família inteira deles, que decidem alojar-se precisamente aí. E os brindlefarbs são uns extraterrestres bizarros, com necessidades muito peculiares, que se alimentam sugando o calor do ambiente, para quem uma estância tropical é, naturalmente, um sítio perfeito. Este é um conto sobretudo divertido, pois tal bizarria gera dificuldades muito peculiares.

Addressing the Manticore é uma história de fantasia urbana ambientada em Singapura, protagonizada por um rapaz capaz de invocar criaturas mitológicas que ninguém vê. Ou melhor: quase ninguém; aparece na sua escola uma rapariga que não só consegue ver as criaturas que ele invoca, como invocar também as suas... com a diferença de que as criaturas que ela invoca são monstruosas, sombrias, ao passo que as dele são bonitas e delicadas. Entre os dois desenvolve-se rivalidade, interesse, paixão adolescente, até que a família dela emigra e tudo acaba. É um bom conto, um conto cheio de sensibilidade sobre a inadequação e isolamento de quem é diferente na adolescência, e sobre a descoberta do amor. Além disso, está cheio de termos julgo que provenientes do inglês de Singapura, o que aumenta a cor local mas torna mais complicado compreender algumas coisas.

Skybreak é uma história fronteiriça, que pode ser encarada quer como FC, quer como fantasia, sobre uma sociedade pacífica de baixa tecnologia estruturada por forma a defender-se dos ataques dos akma, criaturas aladas que, de tempos a tempos, caem do céu para matarem e levarem pessoas. A história acompanha um desses ataques e o que faz o protagonista, cuja vocação é ser soldado mas a quem a posição na sociedade impõe que deixe o combate para o irmão... o qual, por sua vez, não tem vocação para soldado. No fundo, a história é sobre isto: a colisão entre a vocação individual e os papéis impostos pela sociedade, e no decorrer da narrativa acaba por se alcançar uma espécie de equilíbrio entre uma coisa e outra. Esta também é uma boa história, cuja relevância ultrapassa em muito o chavão escapista que costuma atirar-se contra as literaturas do imaginário.

Lido: Os Mastros do Paralém

Os Mastros do Paralém é mais um conto realista de Mia Couto ambientado em tempos coloniais ou, mais propriamente, em tempos de guerra colonial. E é um belo conto, não só pela poesia que Mia Couto sempre incute no que escreve, mas pelo feito de explicar o Moçambique do tempo (e o de hoje também, no fundo), a guerra e a luta pela independência com recurso a mera meia dúzia de personagens. O protagonista é um velho negro, que só quer viver em paz sem ser incomodado por ninguém, numa aldeia sujeita aos caprichos de um colono branco e Tavares, por onde um dia passa um mulato que se vai instalar numa gruta no topo da serra. E daí surgem as histórias e os boatos, inevitáveis, e aparecem as ausências de filhos e a gravidez de filha, seguida do nascimento de neto. Pele clara, a do neto. E lá vêm mais histórias e boatos que vão levar a uma cadeia de desenlaces que põem à prova condições e formas de olhar o mundo. Mas numa teia, num novelo, onde branco e preto, atração e violência, colono e guerrilheiro se entrelaçam tornando-se quase indistinguíveis uns dos outros. É outro conto brandamente potente, este, sem moralidades fáceis. Porque, no fundo, cada homem é uma raça.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Frances Silversmith

Frances Silversmith está presente nesta antologia com três contos.

Online War é um conto muito interessante de ficção científica pós-ciberpunk sobre o modo como um casal de jovens hackers, que antes da história começar só se conheciam online, leva a cabo a louca tarefa de impedir uma guerra particularmente perigosa. Além de conter uma história boa e bem contada, o que este conto tem de mais interessante, na minha opinião, é inverter o papel e a imagem tradicional do hacker, transformando-o na personificação da decência e do bom senso num mundo enlouquecido, mesmo mantendo-se marginal à sociedade como um todo e perseguido pelas autoridades. Um pouco à semelhança do que Cory Doctorow faz em Little Brother, só que aqui a parada é significativamente mais alta. Um conto realmente bom.

Finally Free é um miniconto de horror que, basicamente, descreve o suicídio de um vampiro. Interessante, mas não creio que passe disso.

Were é outro conto bastante curto, também de horror, que descreve uma noite de metamorfose de um lobis... hm... esperem, este termo é errado. Como se poderá chamar a isto, especialmente procurando preservar a surpresa final? Não é fácil: o título, were, é inglês antigo para "homem", mas faz referência clara ao termo werewolf, lobisomem. Em inglês funciona, dada a antiguidade e desuso do termo; em português não, porque lobo e homem têm existência contemporânea independente. Mas enfim, é um conto sobre uma noite de uma criatura que se transforma em noites de lua cheia. Um lobisomem, portanto, certo? Enfim... digamos apenas tem a ver com isso. E que o conto é bom.

Lido: Tema do Traidor e do Herói

Tema do Traidor e do Herói é outro conto bastante curto de Jorge Luís Borges que, no essencial, consiste num exercício de estilo intelectual, convoluto, no qual a realidade se mistura com a literatura, ou melhor, no qual a realidade literária, aquela realidade que encontramos nos livros, se mistura com a literatura literária, a literatura que encontramos na realidade que encontramos nos livros, se é que este labirinto faz algum sentido. Resumindo muito, descreve a história uma história que o autor-narrador terá congeminado sobre um conspirador num país subjugado — a Irlanda, mas poderia ser qualquer outro — que se descobre mera iteração de uma alma antiga, e sobre as interligações entre essa personagem e uma série de outras, reais ou imaginárias. Tal como as histórias anteriores, também esta merece profunda vénia pela experiência intelectual nela contida mas também aqui falta qualquer coisa para chegar ao nível de assombrosa perfeição de alguns dos contos da primeira parte do livro.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Jason Sheehan

Jason Sheehan é mais um autor presente nesta antologia com um excerto de romance. No seu caso, o título é:

A Private Little War. Trata-se de uma história de ficção científica militar, escrita num estilo sombrio e bastante atmosférico, sobre uma guerra de caráter aparentemente colonial, com um certo cheiro a genocídio, num pequeno e insignificante planeta distante. O estilo é interessante, fazendo lembrar o de Joe Haldeman em Guerra Sempre, e a história também parece ter algum interesse, ainda que, uma vez mais, possa seguir um caminho interessante até ao fim ou, pelo contrário, transformar-se numa mera sucessão aborrecida de cenas de batalha e interlúdios de cinismo militar. Seja como for, há neste excerto uma ideia de atoleiro bélico sem esperança que faz lembrar as ficções americanas inspiradas na Guerra do Vietname ou na do Iraque, que muitas vezes têm interesse não só por serem boas histórias, e são-no com frequência, mas também pela crítica implícita ou explícita que fazem aos atos e omissões que desembocaram nesses atoleiros ladrões de vidas e esperanças. Ou seja: terminei a leitura do excerto com alguma vontade de continuar a ler. Não muita, mas alguma.

Lido: A Corja de Patifes

A Corja de Patifes é um conto muito curto dos Irmãos Grimm, duas páginas apenas, que descreve como um galo e uma galinha, e mais uma pata, e até um alfinete e uma agulha, se juntam num improbabilíssimo bando de viajantes até encontrarem uma estalagem, nela se alojarem e depois atazanarem a vida ao pobre estalajadeiro. Um continho divertido, claramente dirigido a um público infantil, e portanto sem grande conteúdo, além do alerta contra a malandragem que não paga o que deve e ainda atormenta os cidadãos honrados e trabalhadores. Razoável.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Erik B. Scott

Erik B. Scott está presente nesta antologia apenas com um conto bastante breve, intitulado

The Exterminator. Trata-se de um continho bastante duro de ficção científica cujo protagonista é um homem, exterminador de outros homens, e mulheres, e crianças (pelo menos daqueles que não vivem nos guetos), ao serviço das forças extraterrestres de ocupação. Um colaboracionista, portanto. Não é um conto muito bom, está longe de ser memorável, é excessivamente curto e insuficientemente original para isso, mas é um conto que devia ser lido por certos tipos que eu cá sei.

Sim, que na vida real também existem colaboracionistas, dispostos aos atos mais abjetos contra os seus em nome das migalhas que os poderosos lhes oferecem depois. Eles andam por aí, como bem sabemos.

E não, a ficção científica não é necessariamente literatura escapista. Muitas vezes é a melhor forma de falar de coisas, situações e personagens bem reais.

Lido: Os Dois Irmãos

Os Dois Irmãos, mais um dos contos populares recolhidos por Adolfo Coelho, é uma história branda sobre dois irmãos (surpresa!) com a peculiaridade de serem soldados de um regimento francês. Soldados que, fartos, desertam, um após o outro. E vão dar, independentemente, a uma grande quinta onde vive uma princesa encantada que os tenta seduzir para se desfazer o encanto. Com o primeiro não tem sorte, mas tem com o segundo e, após mais algumas peripécias, tudo acaba em bem. Uma história que tem um enorme potencial para matreirices e subentendidos mas que no entanto não cumpre essa promessa, remetendo-se a uma suavidade púdica que muito provavelmente não corresponde à forma como seria contada nas festas e tabernas. Parece-me muito provável, até por uma ou duas inconsistências, que este texto que aqui se lê seja uma versão amputada de uma história mais desenvolvida mas menos "apresentável a pessoas de bem".

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 12 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Holly Schofield

Holly Schofield está presente nesta antologia com dois contos.

Graveyard Shift é um conto de ficção científica sobre um rapaz, canadiano de origem chinesa, pobre, perdido e endividado que, após a morte da mãe, reencontra as raízes graças a uma conversa com o avô morto, num futuro não muito distante em que as sepulturas estão equipadas com écrans e computadores nos quais fragmentos da personalidade dos mortos continuam de certa forma a viver com base em gravações feitas em vida e programas de inteligência artificial. É um conto sensível e muito pertinente, pois projeta num futuro razoavelmente próximo problemas bem reais e presentes: o desenraizamento dos imigrantes de segunda geração, o desemprego jovem e, em especial nos Estados Unidos, as gigantescas dívidas que é preciso contrair para se obter uma educação superior. Bastante bom.

Hurry Up and Wait é outro conto de ficção científica, esta pós apocalíptica, sobre um par de sobreviventes presos numa ilha pequena e deserta na costa ocidental do Canadá, que procuram adaptar-se a uma vida sem o apoio da civilização que, para lá da ilha, terá sido arrasada por uma devastadora epidemia. É outra boa história, ainda que não tão forte como a primeira, que tem no fulcro a construção das personagens, as suas aspirações, desilusões e os seus planos mais ou menos sonhadores para saírem da ilha e irem à procura de outros sobreviventes, e também a relação nem sempre fácil entre dois homens muito diferentes que só o acaso e as circunstâncias comuns poderia juntar. Outro conto muito interessante.

Lido: O Homem Só

O Homem Só é uma vinheta fantástica de Luiz Bras com mais que um pouco de horror e também mais que um pouco de crítica social a comportamentos e opções. O homem do título, o senhor Xis, é alguém que está em mudança de apartamento mas que, quando desliga a TV dos vários fios que a alimentam, como que se desliga a si mesmo daquilo que lhe dá substância. E assim se descobre preso. Este é, pois, mais um conto cuja brevidade não implica ausência de conteúdo, ainda que este esteja subentendido, nas entrelinhas, naquilo que o conto não conta, contando. Mais um bom conto.

Textos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Sofia Samatar

Sofia Samatar é outra autora com uma presença invulgar nesta antologia, visto surgir com um excerto de romance e dois contos.

A Stranger in Olondria (Being the Complete Memoirs of the Mystic, Jevick of Tyom), o excerto, é um texto bem escrito, que indica que o romance deverá ser uma fantasia em mundo secundário contada na primeira pessoa (afinal, trata-se de uma memória). O excerto é o início do livro, o primeiro capítulo, e acompanha o momento em que o rapaz narrador passa à primazia na hierarquia dos filhos do pai, mercador abastado, pois o irmão mais velho tem uma mente frágil. Se a construção narrativa acompanhar a qualidade da prosa, deverá ser um bom livro.

Honey Bear, o primeiro dos dois contos, é uma história muito forte emocionalmente que acompanha uma família que tenta manter uma máscara de normalidade perante um mundo destruído. A história vagabundeia entre a ficção científica e o horror, uma ficção científica apocalíptica ambientada num planeta invadido por uma espécie alienígena predatória, vampírica, que o polui de uma forma que altera a biologia de animais e plantas... e a das próprias pessoas. Estas tentam apenas adiar o inevitável, fechando os olhos, enterrando a cabeça na areia. Mesmo (ou especialmente) quando o inevitável se encontra no seu seio. Na sua família. Bastante bom.

Selkie Stories are for Losers, o segundo dos contos, é uma história subtil sobre a diversidade, a aceitação e a diferença. Une em si um universo inteiro de circunstâncias incomuns, da imigração ao lesbianiasmo, de religiões minoritárias à mestiçagem. Mas uma mestiçagem especial, pois um dos membros do casal progenitor da protagonista, segundo fica subentendido mais que entendido, não é humano, mas uma selkie. Em Portugal julgo que se desconhecem estas criaturas mitológicas, presentes nas histórias folclóricas do noroeste da Europa; uma espécie de metamorfos que vivem como focas no mar mas, se sobem a terra e despem a pele, podem viver como humanos. É isto que confere o elemento fantástico a uma história que de outra forma seria inteiramente realista, uma história de personagem algo desconfortável na sua pele, mas mais devido ao efeito que o entorno social tem do que por algum desconforto intrínseco. Muito bom, mais uma vez.

Sofia Samatar é outra autora a ter debaixo de olho.

Lido: Veio... Novamente

Veio... Novamente (bibliografia) é um conto de ficção científica ufológica de Jorge Luiz Calife. E é um conto arriscado: quando se pega em clichés da forma determinada e abundante com que Calife lhes pega está-se a correr riscos significativos. Encontramos aqui vários clichés, mas o mais importante, porque central para a história, é o do estranho meteoro que se despenha nas imediações de uma casa isolada e que a isola ainda mais ao cortar as comunicações, que vimos já em tantas obras, incluindo obras tão significativas, tão seminais, como A Guerra dos Mundos de Wells. Também encontramos uma referência óbvia a The Body Snatchers, de Finney, longe de ser tão relevante enquanto literatura, mas igualmente seminal devido às suas adaptações para o cinema. Mas o mais curioso aqui é que Calife pega nos clichés para estabelecer um determinado ambiente criado precisamente pelas referências que eles trazem à memória, mas depois dá-lhes a volta, acabando por criar uma história com mais de E.T., o Extraterrestre, do que de Guerra dos Mundos.

Este não é um conto perfeito, pois existem nele duas ou três incongruências que deveriam ter sido anuladas, mas é um bom conto em grande medida devido à prestidigitação que o autor faz com alguns dos clichés mais comuns da ficção científica. E do horror.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Marcus Sakey

Marcus Sakey também está presente nesta antologia com um excerto de romance que, no seu caso, se intitula

Brilliance. O excerto é muito curto, bastante mais do que é norma dos romances que aqui aparecem, e por isso dá uma ideia ainda mais vaga do que será possível encontrar no livro completo. Parece tratar-se de uma ficção científica distópica, ambientada num futuro razoavelmente próximo (ou talvez num presente alternativo), um tempo de guerra, no qual a humanidade está dividida entre os normais e os anormais, pessoas com talentos extraordinários que, por isso e por serem menos numerosas, são impiedosamente caçadas. Talvez seja isso, talvez seja coisa bem diferente. Talvez seja bom, o romance, talvez não seja. Com certeza só posso dizer uma coisa: é dos excertos mais esquecíveis que se encontram nesta antologia. Logo, é dos que menos curiosidade me despertaram pelo livro completo.