segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Irmãos Grimm: A Velha Pedinte

E a esta altura os Irmãos Grimm já estavam mesmo a raspar o fundo ao tacho... o que me deixa bastante apreensivo com o terceiro volume destes contos, que ainda está ali na pilha a olhar-me carrancudo. A Velha Pedinte é, como eles próprios admitem na nota que o acompanha, "um fragmento confuso", vagamente fantástico, sobre uma velha pedinte (surpresa!) que entra numa casa para se aquecer mas se aproxima demasiado da lareira e pega fogo. E... bem, e mais nada. É só isso. Menos de meia página de texto.

Totalmente irrelevante.

Contos anteriores deste livro:

James White: O Mundo do Abismo

Não sei bem se por efeitos da tradução, se devido ao material de base, ao longo da leitura deste livro fui-me convencendo de que devia ter sido escrito algures nos anos 50, provavelmente no início da década, pelo que foi com alguma surpresa que descobri depois que na verdade a data a ele associada é 1966. E se é verdade que a data de publicação por vezes dista consideravelmente da data de realização da obra, não é menos verdade que não tenho nenhum elemento para supor que foi o que se passou neste caso, pelo que se é 66 que consta nos registos, é 66 que vale.

De James White já tinha lido alguma da sua FC médica, e tinha gostado. Apesar de haver uma certa fórmula envolvida nessas histórias, há também uma imaginação forte a funcionar, em especial na criação de biologias alienígenas bem distantes dos homens com adereços de borracha que estamos habituados a encontrar por aí.

Neste O Mundo do Abismo (bibliografia), essa faceta das ficções de White está atenuada. Na verdade, a princípio parece nem existir.

O romance começa com um torpedeamento durante a II Guerra Mundial. Um petroleiro que está a ser utilizado para outros fins, nos comboios navais que atravessavam regularmente o Atlântico, é vítima de um torpedo alemão e afunda-se. Mas os tanques são estanques, o torpedo não rebenta com todos, e o ar que os que ficaram intactos englobam faz com que o navio mantenha alguma capacidade de flutuação, nem que seja a meia água. E há sobreviventes. Na verdade, há sobreviventes que dispõem de ar e que também têm mantimentos e água. Pelo menos durante algum tempo.

Segue-se, portanto, a inevitável descrição dos desafios da sobrevivência, na esperança de serem resgatados por alguma embarcação que os descubra. Sempre no fio na navalha, na iminência de qualquer coisa correr terrivelmente mal. Mas com a determinação do desespero.

Depois, o livro salta para o espaço e o leitor fica baralhado, mas depressa começa a aperceber-se das semelhanças. O navio afundado funciona como microcosmo da humanidade num meio hostil, e no espaço deparamo-nos com uma nave interestelar, cuja tripulação tem por tarefa despertar de vez em quando de longos períodos de hibernação a fim de tratar da manutenção da nave e fazer as correções à rota que possam fazer-se necessárias. Mas algo corre mal; a hibernação não funciona como estava previsto, ou antes, não a hibernação propriamente dita mas o processo de despertar e voltar a adormecer. E eis que a nave interestelar se vê confrontada com desafios de sobrevivência muito semelhantes aos do petroleiro torpedeado. E mais semelhantes se vão tornando com o prolongamento do romance.

É que ninguém descobre o petroleiro. Mas o engenho dos sobreviventes é tal que conseguem criar no seu interior uma biosfera cíclica funcional, capaz de assegurar a sua sobrevivência por tempo indefinido. E isso vai acabar por querer dizer várias gerações, pois havia no grupo pessoas de ambos os sexos e os imperativos biológicos são os imperativos biológicos e fazem-se sentir, mesmo que um tanto ou quanto contra-vontade. Entretanto, na nave os problemas com a hibernação também vão tornar necessário transformá-la numa nave geracional para um pequeno grupo de tripulantes que ficam encarregues de a levar a bom porto enquanto os restantes hibernam.

Quando falei mais acima de microcosmo da humanidade estava não só a referir-me à sobrevivência numa minúscula biosfera quase completamente separada da biosfera original, mas também (ou sobretudo) a toda a vivência social que ser humano encerra. No petroleiro afundado há choques de gerações, há conflitos, há a formação de fações, há amizade e camaradagem e apoio mútuo, há desespero e esperança, há curiosidade e dúvida e investigação, há vida e morte e reprodução e mais morte. E por maior que seja o engenho que propicia a sobrevivência (altamente inverosímil, diga-se de passagem), a entropia é um facto do universo, e o petroleiro vai muito a pouco e pouco deixando de ser habitável, reduzindo-se o mundo daquele povo isolado e o próprio povo também.

Na nave, entretanto, na qual passamos bastante menos tempo que no navio, acontecem coisas muito semelhantes, enquanto vamos também descobrindo que afinal não se trata de uma nave isolada, mas de uma nave de comando de uma frota inteira. Num e noutro desses microcosmos, acaba por surgir uma fação que duvida da existência real do mundo exterior ou da validade da missão a que a tradição, e só esta, afirma estarem sujeitos. Num e noutro lugar, acaba até por criar-se uma separação física entre dois grupos; no petroleiro através da ocupação de tanques diferentes, no espaço pela ocupação de outra das naves da frota. White usa tudo isto para pensar um pouco sobre a evolução das sociedades humanas e sobre as causas e consequências do conflito. E isso é uma preparação para o que se segue.

Porque no fim as duas linhas narrativas encontram-se. A nave, afinal, é uma nave extraterrestre que vem a caminho da Terra, e os seus tripulantes, refugiados de uma catástrofe planetária, são uma espécie aquática que vem tentar instalar-se nos oceanos da Terra sem saber que o nosso planeta tem a sua própria civilização. E, incapazes de comunicar e sem alternativas, acabam por entrar em guerra com a humanidade para conquistarem para si o seu espaço. Mas o petroleiro afundado e a bolha humana que nele vive, porque é um grupo humano em muitos aspetos análogo dos grupos extraterrestres, e também porque os bombardeamentos submarinos o ameaçam tanto como aos extraterrestres, acaba por funcionar como ponte entre as duas espécies, permitindo finalmente uma comunicação que até aí se afigurava impossível.

O resultado é um romance que tem as suas falhas e as suas violações da verosimilhança, mas acaba por ser bastante interessante. Um romance de ficção científica social que, sem ser muito profundo, não deixa de explorar uma série de ideias curiosas.

Não é um grande livro, em nenhum aspeto, mas é um livro interessante.

Este livro foi comprado.

Algernon Blackwood: O Wendigo

Há muito em comum entre Os Salgueiros e esta segunda novela de Algernon Blackwood (segunda na sequência do livro, entenda-se). Como na primeira das duas novelas, também em O Wendigo (bibliografia) vamos encontrar um grupo de homens afastados da civilização, sozinhos na vastidão selvagem, e é essa tensão entre o homem, mais ou menos civilizado, mais ou menos burguês, e os territórios em que a natureza impera com todos os seus perigos que nem sempre são naturais que está no centro de ambas as narrativas.

O ambiente, contudo, é bastante diferente. Aqui estamos nas grandes florestas canadianas, onde vamos encontrar um grupo de caçadores bastante heterogéneo que se prepara para se dividir em dois. É que andam sem sorte nenhuma, os alces que pretendem caçar não se deixam encontrar em lado nenhum e por isso não têm um troféu para amostra, pelo que chegam à conclusão de que se se separarem pelo menos poderão bater uma área maior, aumentando assim as possibilidades de alguém conseguir levar para casa uma armação.

São ao todo quatro, pois no racismo implícito (e muitas vezes explícito) nas ficções de há cento e picos anos só contam realmente os homens brancos e o quinto elemento do grupo é um índio. Este pouca influência tem na narrativa, de resto, servindo sobretudo como uma espécie de ponte entre a natureza que os rodeia e à qual são fundamentalmente alheios e o mundo do homem branco a que todos os outros pertencem. Mesmo que só dois deles, dois escoceses, sejam verdadeiramente quem ali domina, dado que os outros dois, ambos canadianos, lhes servem de guias.

Sim, claro, além de racismo teria sempre de haver também classismo. Fruta da época, com certeza. Um olhar mais sociológico sobre este tipo de ficção encontra material com abundância para estudar as relações de dominação prevalecentes nos primórdios do século XX. Dominação imperial, sobretudo, mas esta lança tentáculos sobre todas as outras... ou são as outras que levam diretamente àquela, talvez.

Mas adiante. Regressemos à literatura.

O grupo divide-se, e a partir daí passamos a acompanhar o mais jovem dos dois escoceses, um estudante, que se embrenha na floresta na companhia do seu guia franco-canadiano. E aí regressamos quase inteiramente ao ambiente de Os Salgueiros: dois homens sozinhos na natureza enquanto esta se transforma em sobrenatureza e faz valer o seu domínio ancestral.

E tal como em Os Salgueiros, todo o ambiente criado, o pavor que o desconhecido causa naqueles que são alheios àquela terra, e o crescendo de tensão que surge com o aparecimento do sobrenatural na história, tudo isso está muitíssimo bem conseguido. É certo que o impacto seria maior sem as semelhanças que esta história mostra face à que abre o livro; isto é, sem aquilo que soa um pouco a déjà vu. Mas que autor não se plagia a si próprio, pelo menos até certo ponto? E Blackwood fá-lo realmente bem.

Este é outro clássico, sim. E com bons motivos para o ser.

Contos anteriores deste livro:

Leiturtugas #176

Já pensava que esta semana não ia haver Leiturtugas. Mas eis que chegou domingo e a Inês Gomes publicou uma opinião sobre o Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. E é uma opinião acompanhada por um podcast sobre o livro e sobre o próprio autor, com a própria Inês e duas outras leitoras. Não sei qual das edições elas leram, claro, embora provavelmente tenham sido edições diferentes, mas sei que o romance foi lançado originalmente pela Caminho, em 1995, e que é um romance tão próximo da FC que até há uns malucos (tipo eu) que dizem que é um livro de FC.

Mas pronto, com Saramago se fez a semana. Venha a próxima, desejavelmente com mais leituras do que esta teve.

domingo, 30 de outubro de 2022

Irmãos Grimm: A Viga

Este A Viga é mais um continho muito curto, nem chegando a uma página, que os Irmãos Grimm não parecem ter alterado praticamente nada. Muito curto e muito simples e muito pouco interessante; na verdade pouco passa de uma anedota.

Fala de um feiticeiro que estava a fazer os seus feitiços quando uma jovem magicamente dotada de esperteza extraordinária revela o que está por trás desses feitiços, fazendo-os perder substância. O feiticeiro jura vingar-se, o que faz no dia do casamento da jovem. E é isto, e apenas isto.

Ao contrário de outras histórias que podem não ter grande interesse literário mas têm interesse sociológico, não creio que nesta esse interesse exista. É uma anedotazinha anódina, é certo que de substrato fantástico, mas sem grande relevância ou substância. Lê-se, sorri-se se se estiver particularmente bem disposto, e segue-se adiante.

Contos anteriores deste livro:

Escrita de setembro


Porque é que este gajo, poderão estar vocês a pensar, está agora, quase-quase no fim de outubro, a falar do que escreveu em setembro?

É justo. Portanto o gajo explica: é que isto está atrasado como um raio, por motivos que quem acompanha a Lâmpada já terá compreendido. Atrasaram os posts das Leiturtugas, embora estes tenham continuado a ser publicados porque, como é um por semana, se não o fossem iam acabar todos encavalitados uns em cima dos outros, atrasaram as opiniões, que têm sido muito escassas a ver a luz do dia sem que isso corresponda a uma diminuição real das leituras, pelo que a fila de espera é a que poderão imaginar, e atrasou este post sobre o que escrevi em setembro.

Sim, porque em setembro escrevi. Não muito, é certo, que os motivos que levaram aos atrasos também reduziram o tempo disponível para escrever, mas como não quis interromper por completo a escrita ela foi acontecendo. Toda no mesmo romance que tem sido a minha companhia nos últimos meses e deverá continuar a ser nos próximos e que em setembro cresceu um pouco menos que cinco mil palavras. À volta de quinze páginas.

Não é muito mas é mais do que em alguns dos meses anteriores e, dadas as circunstâncias, é um número que me satisfaz. E o resto...

... o resto fica para a escrita de outubro, em breve num blogue perto de si.

sábado, 29 de outubro de 2022

António Dinis: Exorcismos Poéticos

Ora aqui está uma surpresa! É que quando peguei neste livrinho esperava encontrar muita coisa, mas um poema com grande proximidade com a ficção científica não seria certamente uma dessas coisas. Especialmente com um título como Exorcismos Poéticos.

E no entanto, é precisamente isso o que António Dinis aqui apresenta. Um poema escrito num estilo que parece claramente influenciado por Álvaro de Campos, embora em versão significativamente mais iconoclasta, juntando-lhe um surrealismo reminiscente de Mário-Henrique Leiria, em que se fala se transmissões do centro da galáxia, de extraterrestres fêmeas, de dinossauros produzidos em proveta, e por aí fora.

O resultado é muito interessante. Não sei bem até que ponto o poema é bom, propriamente, mas também não creio que fazer um poema convencionalmente bom tivesse estado minimamente nos objetivos do autor. O que estava era fazer um poema com interesse, e isso conseguiu em pleno.

Gostei. Bastante.

Textos anteriores deste livro:

Irmãos Grimm: Os Animais do Senhor e os Animais do Diabo

Esta é outra história muito simples e muito curta, que os Irmãos Grimm não parecem ter alterado de todo, dado o seu caráter quase esquemático, e é também uma daquelas histórias cujos títulos dizem quase tudo. Os Animais do Senhor e os Animais do Diabo é uma página só, que conta uma disputa entre Deus e o Diabo sobre a natureza dos bodes na época da criação dos animais. No fundo, na verdade, o que aqui está é uma lenda, que parte do mito cristão da criação (mesmo que lhe junte pitadas de mitos anteriores, como os Grimm sugerem na nota) para explicar como os bodes foram criados pelo Diabo, o conflito que daí se gerou e o motivo por que o Diabo gosta de vir à Terra disfarçado de bode.

É mais uma história com muito mais interesse sociológico do que literário. Literariamente é muito má, de resto. Mas para quem gosta de mitos e lendas, suas origens e suas variantes será certamente interessante.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Por fim, temos introduções, ou prefácios se preferirem; basta clicar nas imagens

«[...] Sou suspeito, evidentemente. Não se espere de mim que não o seja sendo não só organizador e autor como tendo acompanhado de perto o desenvolvimento de todas estas histórias. Mas, suspeito ou não, declaro aqui oficialmente que gosto deste livro. É um livro em que a FC predomina, mas não é um livro de FC; é um livro com FC. As ratazanas por um lado e parte do material vindo do Infinitamente Improvável por outro emprestam-lhe outras coisas, da fantasia ao horror, passando por surrealismo, realismo mágico e uma quantidade razoável de humor. E vários eteceteras. Isso dá ao todo um equilíbrio e uma variabilidade que talvez não tivesse se tudo fosse FC — ou qualquer outro género. E também não é uma antologia temática, ainda que tampouco seja uma antologia de tema livre; é uma antologia semitemática, parcialmente composta por histórias integradas num mesmo universo partilhado ou, vá, que têm o mesmo ponto de partida, seguindo depois caminhos muito diversos, e parcialmente composta por histórias em que cada autor escreveu o que e como bem entendeu, embora sempre em interação com os restantes. [...]»
in Ratazanas e Outros Acepipes


«[...] Um ano e tal depois, ficou tudo feito. Quase-quase. O trabalho foi sendo adiado por vários motivos, entre os quais foi avultando um certo desânimo muito pessoal, a que os outros são totalmente alheios, e a ideia de que publicar num momento em que tudo à volta está num imenso caos é correr o risco do livro passar completamente despercebido, ainda mais do que seria de esperar de uma publicação de ficção científica (sobretudo), em Portugal, e feita desta forma. É correr atrás de uma meta ao mesmo tempo que a pista se vai esboroando debaixo dos nossos pés. Portanto, se calhar, o melhor será esperar que as coisas melhorem. Pelo menos um pouco.
Mas a dada altura veio a mentalização de que é muito possível que as coisas não melhorem nunca. De que se isto não for publicado em breve, o mais certo é nunca chegar a ser publicado. E isso não seria justo para quem dedicou a este projeto tanto do seu tempo, do seu esforço e do seu talento. O inferno está cheio de projetos lançados com pompa e circunstância e que nunca chegam a ver a luz do dia. Não quero contribuir para o encher mais. [...]»
in Ratazanas e Outros Petiscos

E temos ainda mais ficção científica; basta clicar nas imagens

«E agora havia gente por todo o lado gente que se espalhara pela galáxia e até para lá dela como uma vaga imparável limitada apenas pela capacidade de construir novas máquinas e de fazer e criar nova gente e todas as misturas possíveis e imaginárias entre gente e máquinas.»
Saul Matos Martins, in Ascensão e...

«Tentou convencer-me de que tudo isto não demorou mais que um instante. Um piscar de olhos. Um intervalo quântico no tempo.»
Jorge Candeias, in Pandorama

«Se eu penso que somos todos escravos não vos vou dizer que não, que somos só assalariados da Grande Corporação de Elon-Deus, livres para fazer tudo o que quisermos, ou vou? Querem que minta? É que posso fazer isso, sabem?»
Vanessa Glória Guedes, in O Caso Mário Capeto

Textos integrais em:


excertos (salvo Pandorama, que está em texto integral) em:


Temos mais FC; basta clicar nas imagens

«Uma explosão próxima sacode o edifício, arrancando às paredes mais uma chuva de caliça e fazendo erguer-se no ar uma gigantesca nuvem de pó. Mário atira-se para o chão, num reflexo, no mesmo momento em que sente o soco da onda de choque perpassar-lhe pelo corpo. O homenzinho solta um enorme grito de pânico mas não sai do mesmo sítio. »
Miguel Hernâni Guimarães, in Para Cada Verdade as Suas Consequências

«À décima vez que o sinal chegou, veio a princípio idêntico a todas as outras, mas depressa mudou, tornando-se mais complexo, mais modulado, e muito, muito mais prolongado. O cisne captou-o com a indiferença sôfrega de uma máquina a desempenhar a única função para que foi concebida. »
Jorge Candeias, in O Canto do Cisne

«Demonstrando a falta de savoir faire e a memória eidética típicas das máquinas, os membros do conselho pedagógico depressa trouxeram à baila a saída destemperada de dois meses antes, e pareceram deliciar-se com a enunciação detalhada de todos os pormenores dos sucessivos falhanços da aprendizagem do filho. »
Miguel Hernâni Guimarães, in Deceções da Paternidade

Textos integrais em:


e também em:


Temos ainda mais ratazanas; basta clicar nas imagens

«Quando se calou, a plateia de alguns humanos e muitas ratazanas explodiu em aplausos ainda mais entusiásticos do que quando surgira, acompanhados por assobios, guinchos e aclamações que se prolongaram durante um considerável espaço de tempo.»
Jorge Candeias, in O Futuro das Ratazanas

«Depois tentou ligar para o controlo de pestes da autarquia, mas ficou dezoito minutos exatos a ouvir uma musiquinha irritante, interrompida de vez em quando por uma voz feminina que lhe dizia que a chamada se encontrava em espera (duh), que seria atendida assim que possível (ahn-hã) e que não devia demorar mais que dois minutos (claro, claro).»
Vanessa Glória Guedes, in O Deixa-Andar das Ratazanas

«A ratazana que levava o aparelho com o pequeno écran recuperou a presença de espírito antes da companheira. Quando caíra, largara-o, e de repente reparou que o indispensável aparelho se ia agora afastando delas aos saltinhos, ameaçando desaparecer, sumir-se, voando para longe ou engolido por alguma fenda que se abrisse naquele solo instável. »
G. B. Nunes, in A Aventura das Ratazanas

«Voltou a olhar para o grande ecrã plano na montra, que agora mostrava uns cabelos compridos e maquilhagem em demasia a abrir e fechar a boca em silêncio, enquanto um quadradinho que se lhe debruçava sobre o ombro mostrava ratazanas e ministros e gravatas e correrias e polícias e caras difusas e todas iguais.»
Saul Matos Martins, in A Indiferença das Ratazanas

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Excertos em:


Temos coisas que não são FC; basta clicar nas imagens

«Acordou quarenta e cinco minutos depois, no momento em que mais de mil moedas de euro se materializaram de repente cinco centímetros acima da cama e choveram em cima dele, mais de sete quilos de uma espécie metálica e quente de granizo. Aquilo doeu.»
Jorge Candeias, in O Vil Metal

«disse-me a minha prima que é do escultor Aníbal mas não estava reformado? dizia-se que sim mas são só círculos ou há mais alguma coisa, consegues ver? milhões, isto custou milhões, estou-te a dizer que o gabinete ah, mas serão mesmo círculos? parece-me ver ali uns verticezinhos escondidos sei de fonte segura que isto é coisa da presidência para comemorar o aquilo não estará a girar com velocidade a mais? pretende levar-nos a refletir sobre a natureza do ser, obviamente, não se está mesmo a ver? assombroso, assombroso amoor, vem cá que eu»
Saul Matos Martins, in Uma História Geométrica em Duas Partes

«Quando o último pé se desprende da praia, a mulher de areia salta, feliz, num movimento leve de graça. Algo sussurra numa espécie de gargalhada, mas talvez seja só impressão, um efeito de vento, um eco de qualquer coisa longínqua de natureza bem diversa.»
G. B. Nunes, in A Mulher de Areia

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Temos mais ratazanas; basta clicar nas imagens

«O terceiro bocadinho de pão já obrigou a ratazana a saltar para cima do banco. O quinto foi simplesmente pousado na saia. Ao sétimo, o animalzinho já não fugiu depois de comer»
G. B. Nunes, in A Inocência das Ratazanas

«E as ratazanas,
ficaram paradas,
gordas e anafadas,»
Saul Matos Martins, in O Deslocamento Multiversal das Ratazanas

«Alguns, a maioria, desfizeram-se em ratazanas, três, quatro, cinco, até seis ou sete nos casos em que os boquiabertos eram especialmente corpulentos, muito pretas, quase sempre redondas como pipas de vinho. Outros, porém, tossiam dois ou três ratinhos sempre que abriam a boca, mas ficavam vivos para contar a história.»
Miguel Hernâni Guimarães, in A Revolução das Ratazanas

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Temos ficção científica; basta clicar nas imagens

«Não era nada de incomum: os ciclos próprios da estação eram muito mais curtos que os ciclos de vinte e quatro horas dos seus habitantes e era bastante frequente que o sol se intrometesse nas noites daqueles, criando uma inconsistência entre a realidade e a noção abstrata de «noite».»
Miguel Hernâni Guimarães, in O Júlio Tudo Escuta, Tudo Vê

«Chegam ruídos abafados de outros pontos da nave, demasiado distorcidos para serem identificáveis. O alarme começa a tornar-se mais estridente. Olha os números do monitor. O sistema automático está a repor a pressão atmosférica. A injetar mais oxigénio na atmosfera. Não nota grande diferença.»
Jorge Candeias, in Acidente

«E numa manhã horrível, depois de uma noite particularmente mal dormida em que conseguira evitar os sonhos à custa de pouco mais de duas horas de sono, confundiu um líquido cristalino com outro, numa leitura sonâmbula de etiquetas, e em vez de ligar ao sistema de circulação de água uma solução de oligonutrientes ligou um ácido, só tendo dado pelo desastre horas depois, ao descobrir que um canteiro inteiro murchara como um balão entristecido, esvaziado de ar.»
G. B. Nunes, in Nem Sempre Estamos Preparados, Querida Lua, Para o que Desejamos

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excertos em:


Temos ratazanas; basta clicar nas imagens

«O ministro abriu a boca e dela saíram ratazanas. Eram cinco, muito pretas, lustrosas, gordas como penicos. O ministro, esse, ainda estrebuchou um bocado, atrapalhando-se com a gravata, mas acabou por cair redondo no chão.»
Miguel Hernâni Guimarães, in A Crise das Ratazanas

«E recolheu as ratazanas, uma a uma, aconchegando-as ao peito e fazendo-lhes festinhas. Depois, levou-as dali.»
Vanessa Glória Guedes, in A Metamorfose das Ratazanas

«Entretanto, o ministro despenteava-se em movimentos bruscos, agarrado ao estômago com a mão esquerda, tapando a boca com a direita. Já poucos eram os que dele tentavam aproximar-se, até porque não obtinham mais resposta do que um aceno vago ou um olhar esgazeado. Parecia pouco menos que milagre que se mantivesse em pé, tamanhas eram as convulsões que o assolavam.»
Jorge Candeias, in A Fome das Ratazanas

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e também em:


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Manuel Jorge Marmelo: Fogo-de-Artifício

Lembram-se de quando o Porto foi gozado por meio país (ou pelo país todo, se calhar) porque um grandioso espetáculo de fogo-de-artifício, planeado para um ano novo aqui há anos, se findou em inexistência para desapontamento das multidões que já estavam na rua para o ver? Pois é precisamente a partir desse episódio que Manuel Jorge Marmelo parte para escrever esta história, adequadamente batizada como Fogo-de-Artifício. E, tal como aconteceu na vida real, também aqui o foguetório que inexistiu no momento certo acabou por ser lançado mais tarde, como uma espécie de compensação.

Mas na história de Marmelo, a noite em que o fogo-de-artifício acaba por ser mesmo lançado não termina sem um percalço que faz murchar a festa: um cadáver aparece a boiar no Douro. É aí que ela se separa da realidade.

É das circunstâncias que rodeiam essa morte que se faz este conto. Disso e de doses abundantes de ironia que tem como alvo principal o Porto e seus poderes autárquicos e como alvos secundários praticamente todas as outras personagens que passam por estas páginas. O conto é irónico do princípio ao fim, apesar de ter como tema principal um crime, um assassino a soldo e uma arma chamada Henriqueta. E isso é bom, tal como bom também é o tratamento que Marmelo dá à língua portuguesa. Bastante bom mesmo.

Consequentemente, estamos perante um bom conto. Um bom conto do qual gostei bastante, o que, como sabe quem é visitante assíduo aqui da Lâmpada, nem sempre acontece. Só lucro.

Contos anteriores deste livro:

Irmãos Grimm: O Homenzinho Rejuvenescido na Forja

Um continho cautelar e muito pio, este, sobre milagres e os desastres que acontecem quando não se resiste à tentação de os imitar. Os Irmãos Grimm não parecem tê-lo alterado de todo, dada a pouca concordância estilística que aqui se encontra face aos que são mesmo deles. Podia ser terrível, mas é sobretudo humorístico.

Fala de um velho mendigo doente, que Nosso Senhor teria rejuvenescido milagrosamente na forja de um ferreiro, e eis explicado o título de O Homenzinho Rejuvenescido na Forja. Tudo muito cristão. Mas eis que Nosso Senhor se vai embora e o ferreiro decide que fazer aquilo não parece difícil, pelo que resolve rejuvenescer também alguém. Quem? Ora, a sogra, claro; afinal de contas, era a velha mais velha que tinha à mão.

E claro que não corre bem. Nada bem.

O conto tem a sua piada, não digo que não, mas não acho que seja grande coisa. Lê-se demasiado como anedota.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Mário Roberto: Rui Le

Um conto engraçado, este. Como o título de Rui Le indica, trata-se de um conto biográfico, que Mário Roberto despacha com verve e ironia, narrando a vida de um tal Rui Le, escritor famoso mas desaparecido. Não há aqui nada de particularmente profundo, ou propriamente inovador, mas há um olhar iconoclasta q.b. sobre o meio literário e os seus protagonistas e também sobre os lugares pequenos de província de onde algumas criaturas conhecidas são originárias.

Num registo bastante oral, entrecortado por apartes que nem sempre se percebe bem se são feitos de diálogo interno ou externo (ou dos dois ao mesmo tempo, quem sabe), o conto avança com a rapidez das frases curtas e deixa-se ler de sorriso nos lábios. Rui Le é um misterioso, e o narrador desta prosa está encarregado de desvendar esse mistério... e nada interessado em fazê-lo, por motivos lá dele e do final surpresa. Mas vai contando episódios da sua vida, especialmente da sua infância e juventude, carregados de referências à cultura popular dos anos 80.

Não sei se lhe chamaria um bom conto mas até era capaz disso. Certo é que gostei, muito embora me tenha deixado a desejar algo mais, não sei bem o quê. Algum enredo, talvez. Afinal de contas, aqui temos apenas descrição; mesmo os episódios que são contados servem para descrever uma personalidade, não tanto para contar uma história. Talvez tenha sido por isso que não gostei assim muito. Mas gostei.

Textos anteriores desta publicação:

Irmãos Grimm: A Beterraba

Se é certo que os Irmãos Grimm são sobretudo conhecidos pelos contos infantis clássicos, que se viram adaptados e readaptados ao longo dos últimos séculos aos mais variados media, a descoberta principal ao ler estes livros é que esses são uma pequena minoria das muitas histórias que eles contêm. Algumas das outras parecem meros fragmentos de histórias mais desenvolvidas, ao passo que outras ainda soam a amálgama de material proveniente de origens diversas. E algumas são-no expressamente, pois não é raro que os Grimm assumam tê-lo feito nas notas que fazem sempre acompanhar os contos. Outras, no entanto, limitam-se a deixar essa ideia, pelo menos a mim. É o caso deste A Beterraba.

Trata-se de mais um daqueles contos em que se contrasta o comportamento de um irmão rico e de um irmão pobre. Este é bafejado pela sorte pois, tendo-se dedicado à agricultura depois de abandonar a vida das armas, nasceu-lhe uma beterraba prodigiosamente grande, que leva ao rei como presente, sendo por isso muito bem recompensado. O rico, invejoso e mau, não gosta nada e tenta primeiro suplantar o irmão, no que falha, recorrendo depois ao crime. Que também falha, claro, pois nestas histórias é raríssimo o bem não vencer, mesmo que por vezes o conceito de "bem" seja um tanto ou quanto peculiar.

Mas no fim parece-me ter havido um enxerto qualquer, pois o conto muda de figura. Começando como história exemplar, passa a farsa quando o irmão pobre é pendurado numa árvore enfiado num saco e é encontrado por um estudante. Este, prodigiosamente estúpido como os estudantes tendem a ser nestas histórias, vai ser enganado pelo homem, que assim se liberta.

É um conto estranho, e não particularmente bom, mas pelo menos tem a vantagem de não se tratar de mais um brevíssimo esboço. E tantos dos contos deste final de livro pouco passam disso.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 23 de outubro de 2022

Leiturtugas #175

E eis-nos de regresso ao dia certo para vos falar de mais Leiturtugas, agora que o motivo dos atrasos está basicamente arrumado e prestes a vir à luz do dia, e desta vez até há uma quantidade razoável delas.

Incluindo um dos nossos participantes oficiais, o Artur Coelho, que esta semana nos brindou não com uma mas com duas opiniões.

A primeira é uma daquelas opiniões sobre BD que ele resume no seu blogue e desenvolve mais noutro lado. A obra lida desta vez foi Uluru, álbum de Marco Fraga Silva, Mathieu Pereira e Sofia Silva, publicado este ano pela Tentáculo. É uma BD de ficção científica mas, sendo BD, conta como se não fosse, pelo que o Artur passa provisoriamente a 3c15s.

A segunda, publicada dias depois, é bastante diferente. Debruça-se sobre O Quarto Perdido do MOTELx, uma compilação de ensaios sobre os filmes portugueses exibidos no festival MOTELx, organizada por João Monteiro e Filipa Rosário e publicada também este ano pela CTLX. E o Artur conclui a semana com 3c16s.

Mas como nem só de participantes oficiais se fez a semana, passemos aos oficiosos.

Entre estes, a primeira a agraciar-nos com as suas opiniões sobre FC&F portuguesa foi a Maria Pinto, também em dose dupla. Quem tem seguido estas publicações, sabe que ela tem andado a ler os livros de José Saramago, e é isso mesmo que nos traz agora, falando-nos sobre dois romances de ou com FC. Um deles, a obra saramaguiana mais próxima da ficção científica, é o Ensaio Sobre a Cegueira, publicado originalmente pela Caminho em 1995. O outro é a sua (semi-)sequela, Ensaio Sobre a Lucidez, também publicado originalmente pela Caminho, mas em 2004. A Maria Pinto parece ter lido ambos os livros nas edições recentes da Porto Editora.

Depois apareceu uma publicação da Isabel Daires, contendo a sua opinião sobre algo invulgar nestas listas: um livro de poesia. Também publicado este ano, não é difícil supor que um livro com um título como Limbo, Inferno e Paraíso tem qualquer coisa a ver com esse aspeto da mitologia judaico-cristã, e lendo-se a opinião da Isabel conclui-se que a suposição é inteiramente correta. O autor é Nuno Dempster e o livro foi publicado pela Companhia das Ilhas. FC? Não há.

A opinião seguinte taz-nos mais fantasia e chega-nos pela mão da Daniela. Também publicado este ano, mas pela Suma de Letras, Shore Desvendado é um livro de autoria de M. G. Ferrey que já apareceu por aqui e que não parece incluir nada relacionado com FC.

Por fim, quem encerrou a semana foi o Nelson Zagalo, que opina desta sobre Cadernos da Água, de João Reis, mais um livro que já cá tivemos e mais um livro publicado este ano. Ao contrário das outras edições recentes, no entanto, este romance vai juntar-se aos dois do Saramago no grupo dos livros com FC e é único nesta nota por ter sido publicado pela Quetzal. O Nelson estreia-se aqui da melhor forma.

E por esta semana é tudo, e não se pode dizer que seja pouco. Até à próxima.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Irmãos Grimm: O Filho Ingrato

É muito esquemática, esta historinha, claramente publicada pelos Irmãos Grimm tal e qual a recolheram da tradição oral, dada a ausência de elaboração e a extrema brevidade. O Filho Ingrato é sobre o que acontece a um homem que, quando o pai vem visitá-lo, esconde a comida que tem para não ter de lhe dar alguma, e a coisa despacha-se num rápido parágrafo, apesar de envolver um sapo mágico que castiga o ingrato. Não é grande coisa, nem mesmo enquanto história popular. Não é daquelas histórias que, quando se contam, são capazes de fazer quem escuta ficar suspenso de cada palavra. Conta-se num minuto. E esquece-se com igual rapidez.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Leiturtugas #174

Muito obrigado, amigos das Leiturtugas, por me terem facilitado tanto a vida, permitindo-me anular o atraso quase por completo. Isto quando só há uma única opinião a divulgar torna-se muito mais fácil.

E é uma oficial e tudo. Chegou pela mão do Artur Coelho, que continua a colmatar lacunas nas suas leituras da FC&F portuguesa, tendo-se dedicado desta vez a opinar sobre José Gomes Ferreira. A obra? As Aventuras de João Sem Medo, uma (deliciosa) coleção de histórias fantásticas que viram a luz do dia originalmente nas páginas de um jornal nos idos de 1933 e foram retrabalhadas em romance para serem publicadas trinta anos depois, embora o Artur tenha lido a edição de bolso da Leya de 2009. Não tem é FC, este livro, pelo que as sinalefas arturianas passam a 3c14s.

E foi só isto. Pode ser que para a semana regressemos ao domingo habitual. Voltem cá para ver se sim ou sopas.

sábado, 15 de outubro de 2022

Leiturtugas #173

Ah! Ainda estão aí? Sim, isto esta semana deu quase a volta para a outra, o que quer dizer que a temporada de atrasos nas Leiturtugas prossegue. Mas já deve estar para breve o seu fim. Mais uma semana ou duas, talvez, e voltamos à programação normal. Entretanto...

Entretanto vamos falar da semana. Não desta que acaba amanhã, domingo, mas da outra anterior.

Não foi particularmente produtiva, mas trouxe-nos algo que já há algum tempo não havia: um participante oficial com opinião nova. Falo de mim, claro, Jorge Candeias, o próprio, e da opinião que publiquei sobre a pequena antologia O Sabre e o Corvo. Data de 2014, esta publicação do Fantasy & Co., e não tem qualquer sinal de FC, pelo que as minhas sinalefas passam a 4c4s.

Além da oficial, tivemos apenas duas opiniões oficiosas.

A primeira chegou-nos pela mão da Tim, que assim se estreia aqui. Uma opinião em texto e em vídeo sobre um romance intitulado A Profeta que já por cá apareceu há relativamente pouco tempo. Edição deste ano da Suma de Letras, este livro de Maria Francisca Gama, que me tinha deixado um tanto ou quanto na dúvida com a primeira opinião que sobre ele li, é decididamente fantástico. Mas não tem nada de FC.

A segunda e última é a opinião do Ricardo Trindade sobre outro livro que também já por cá apareceu: o segundo volume da série Prisioneira do Tempo, de Patrícia Madeira. Intitulado Atlântico, este romance também é uma edição deste ano, mas da Cultura, e tem FC, mesmo que pouca.

E pronto, é isto. Provavelmente não conseguirei cá pôr as leiturtugas da semana no dia certo, amanhã, mas não deverá demorar muito, até porque a próxima semana parece vir a ser ainda mais rarefeita que a última. Até lá.

domingo, 9 de outubro de 2022

Irmãos Grimm: O Burrinho

Quando eu era miúdo, um dos primeiros contos que li (e julgo que antes de o ler eu mo leram, mas disto não tenho certeza) era sobre um príncipe com orelhas de burro, e até hoje acho curioso que tantas histórias tradicionais, ou que as têm como inspiração, partam da premissa de mulheres que dão à luz animais, ou gente com características de animais.

Neste conto dos Irmãos Grimm trata-se mesmo de um animal, um burro, e está explicado o título de O Burrinho. E está explicado por que motivo me lembrei do príncipe com orelhas de burro; este tem de burro as orelhas e tudo o resto. E sim, é príncipe: a mãe é uma rainha que andava triste por não ter filhos, o que de resto já não é a primeira vez que aparece nestas histórias.

E sim, o conto tem o seu interesse, mas também tem muito em comum com outros contos que o antecedem. Como noutros há no príncipe burrinho uma espécie de feitiço, que acaba por se desfazer quando ele encontra uma princesa que dele gosta verdadeiramente, e um rei bom como sogro. Tudo muito romântico e razoavelmente bem elaborado em termos literários, ainda que alguns dos acontecimentos apareçam de forma gratuita, em episódios de deus ex-machina em que, de resto, as histórias tradicionais são pródigas. E no fim, naturalmente, vivem todos felizes para sempre.

Uma coisa é certa: não sendo dos melhores contos dos Grimm, esta história está bastante acima da maioria das que a antecedem de perto, pois nesta reta final do livro há muitos contos fracos, maus ou mesmo péssimos. Este é no mínimo razoável, e se não tivesse lido tantos contos onde já tinha encontrado tantos dos elementos de que é feito provavelmente encará-lo-ia como um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 8 de outubro de 2022

vários: O Sabre e o Corvo

Não sei como foi gerado este livrinho, mas imagino. E se aquilo que imagino corresponde à realidade, eu não lhe chamaria "antologia".

Atenção que não estou a menosprezar este O Sabre e o Corvo por lhe chamar "livrinho". A coisa é mesmo pequena; apesar de conter cinco histórias escritas por outros tantos autores, nem chega às 5200 palavras, o que corresponde a cerca de 15 páginas num livro médio. É pouca coisa. E esse é um dos seus problemas.

Não o posso afirmar, mas posso supor, que foi escrito num esquema de round robin. Para quem não sabe de que se trata, eu explico: embora o termo tenha outros significados, em literatura designa um exercício no qual uma série de autores vai elaborando uma história, à vez, partindo do que ficou escrito pelos autores anteriores e deixando os desenvolvimentos posteriores para os seguintes. Podem ser planeados ou não planeados (caso em que os autores tendem a deixar situações complicadas para os próximos resolverem, o que se pode tornar bastante divertido para quem escreve mas não é lá muito conducente a uma história bem amarrada e coerente), e podem reduzir-se a um só turno por pessoa ou englobar vários. No fim, caso a ideia seja publicar o texto em algum lado, é frequente que um dos autores (ou um subgrupo deles, por vezes) fique encarregado de limpar o texto, removendo pontas soltas e dando-lhe alguma coerência estilística.

Não sei se é isso o que aqui temos, mas parece-me que é, apesar dos cinco autores participantes só raramente terem escrito na sequência direta do que ficou escrito antes, preferindo produzir breves episódios aos quais chamaram contos. Eu não lhes daria esse nome, tal como não chamaria antologia ao conjunto, mas percebo que com a abordagem aqui seguida possa ter-lhes parecido o mais adequado.

A mim não parece e explico porquê: os textos funcionam bastante melhor enquanto partes de uma história única do que enquanto histórias individuais, mesmo integradas numa narrativa comum. Tendo lido as duas coisas em simultâneo, e havendo algumas semelhanças estruturais entre uma e outra, é inevitável comparar com o Terrarium, a que o João Barreiros e o Luís Filipe Silva chamaram "romance em mosaicos". E no entanto, estas histórias funcionam pior enquanto histórias independentes do que várias daquelas que compõem o romance em mosaicos.

Mas enfim: sendo esses os nomes que os autores lhes dão, serão esses os que eu vou usar.

A história genérica, isto é, o arco narrativo a que os contos desta antologia dão corpo em conjunto, é uma daquelas histórias de luta do bem contra o mal que tão comuns são na fantasia. Uma espada mágica tem por fim matar demónios e outras criaturas sobrenaturais malignas e escolhe quem a brande um pouco à semelhança das varinhas do Harry Potter. Esta é uma das influências que estão aqui claras; outra parece-me ser a Buffy.

Mas nada é simples, e um djinn em versão femme fatale consegue enganar um dos guerreiros do bem, transformando-o em corvo. E está explicado o título. No fim, tudo termina o melhor possível. Mas os autores não conseguiram, ou não quiseram, amarrar bem as pontas à história.

Em parte, a razão é a brevidade. É tudo apressado, os acontecimentos sucedem-se sem qualquer preparação, e as personagens assomam e somem-se tão rapidamente que nem há tempo para uma caracterização interessante nem para o leitor se interessar por elas. Alguns (nem todos) dos autores fazem o que podem para contrariar esta falta de solidez, alguns até mostram qualidades, mas a impressão que fica é a de um exercício de escrita rápido, que disso não passa. Um esboço.

Esta história e, talvez mais que a história, o universo criado, até teriam potencial para ser desenvolvidos em histórias maiores e quiçá talvez numa série. Mas não; mais uma vez, ficou-se pelo esboço, no qual o todo é bem capaz de ser pior que a soma das partes.

Eis o que fui dizendo sobre cada uma das histórias:
Este livro, como todos os livros publicados pela Fantasy & Co., está disponível gratuitamente aqui.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Leiturtugas #172

A época dos atrasos continua, umas vezes maiores, outras vezes menores. Mas como as Leiturtugas também continuam, com atrasos ou sem eles estes posts aqui vão aparecendo.

Esta semana (e já sabem que a semana a que me refiro terminou no domingo, certamente) não foi nada movimentada. No campo dos participantes oficiais voltámos a marcar um redondinho zero, e no dos oficiosos ficámo-nos pelos dois. A menos que me tenha escapado alguma coisa.

João Reis foi mais uma vez um dos autores contemplados com uma leitura e opinião, esta por intermédio da Daniela. E sim, foi de novo o romance publicado este ano pela Quetzal, Cadernos da Água. Tem sido a única leitura com FC que tem aparecido nos últimos tempos.

Já a Anabela Risso leu e comentou um livro de literatura infanto-juvenil que, como tantas vezes acontece, traz consigo fantasia. Esta um tanto ou quanto metaliterária. O título é Daqui Ninguém Passa!, a autora chama-se Isabel Minhós Martins e o livro foi publicado em 2015 pela Planeta Tangerina, depois de uma primeira edição datada, se não me engano, de 2014. Aqui não há FCs.

E pronto, estamos conversados. Afinal foi rápido.

Até para a semana.