segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Tory Hoke

Tory Hoke é mais uma autora presente nesta antologia com três contos.

The Baby Mimic é um conto de ficção científica sobre o desenvolvimento e consequências do vínculo maternal. Num futuro indeterminado mas aparentemente não muito longínquo, um casal, estéril, procura um bebé-robô para conseguir, apesar disso, passar pela experiência da paternidade. Com alguma hesitação, aceitam ser integrados num programa piloto que traz consigo a promessa de uma experiência o mais realista possível. Um bom conto, ao mesmo tempo aterrorizador e divertido, que lida com estas coisas das mães, dos pais e dos bebés, com uma certa ironia desassombrada.

The Demeter Gyro Disaster é também um conto de ficção científica, este uma história de sobrevivência que começa quando uma estação espacial sofre uma falha catastrófica e, enquanto o resto da tripulação foge, um tal Dennis e uma tal Sonia ficam para trás, esquecidos. Mas não se deixam esquecer. Também é um conto bastante bom, e também está muito cheio de pequenas ironiazinhas e surpresas que só tornam a leitura mais apelativa.

Shaka Bars é outra história de ficção científica, ainda que esta esteja bem próxima do terror, sobre uma mulher, obesa, que, ao procurar no supermercado algo para comer que não a engordasse mais, depara com as Shaka Bars do título. Mas estas são mais do que à primeira vista parecem ser. Oh, muito mais. Outro bom conto, que para mim tem o interesse adicional de parecer fazer referência a, e recolher inspiração em, um dos contos do Martin que traduzi há algum tempo, O Homem em Forma de Pêra. Há em ambos algo de obsessivo que os aproxima bastante, e facto de o fulcro da obsessão girar, no todo ou em parte, em volta de pacotes de alimentos sintéticos, aproxima-os ainda mais.

Tory Hoke está claramente aprovada.

Lido: Taxidermia

Taxidermia (bibliografia) é uma noveleta retrofuturista de Guilherme Trindade sobre um homem, taxidermista de profissão e lisboeta, num mundo hiperindustrializado e supereletrificado em que os animais escasseiam cada vez mais, o que tem como consequência a idêntica escassez da matéria-prima para o seu ofício. Eis senão quando, um belo dia (ou tão belo quanto possível nesta Lisboa alternativa prestes a chegar ao terceiro milénio), esse homem é procurado por uma bela nobre, dirigente do cada vez mais decrépito Jardim Zoológico de Lisboa, que lhe faz uma proposta inusitada.

É uma história francamente boa. Apesar de o final surpresa não ter resultado comigo, pois ia vendo, quase desde o início, as ligações que existem entre a noveleta de Trindade e uma certa e determinada história de autor italiano, muito conhecida entre a miudagem, não deixei de o achar bem conseguido. E o resto da história está bem escrito (há algumas falhas, mas são pouco numerosas, pouco sérias e não comprometem) e bem concebido, com personagens interessantes e credíveis. Quanto ao mundo, este universo partilhado da Lisboa Eletropunk, adquire nesta noveleta de Guilherme Trindade uma solidez (de pesadelo, há que dizê-lo) que falta a algumas das outras histórias.

Uma das melhores histórias deste livro, que ainda não teve nenhuma má mas já teve algumas medianas.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 30 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Ada Hoffmann

Ada Hoffmann é outra autora com três textos nesta antologia.

Feasting Alone é um conto que mistura a fantasia sobrenatural (na medida em que há almas) com uma espécie de ficção científica mais ou menos transumanista (na medida em que estas sofrem uploads para uns servidores de algo que não se chega a perceber o que é; talvez o céu, ou coisa que o valha) para contar uma historinha sobre o que se perde e o que se ganha ao deixar para trás a biologia. Tem algum interesse, mas é muito curto e falta-lhe impacto.

Blue Fever é um conto de horror protagonizado por uma cantora-da-morte, uma peculiar espécie de artista que, na sociedade aqui concebida, cantam, de forma profética, sobre a morte dos clientes ou daqueles que estes escolhem como alvos. As canções têm sempre, claro, de ser originais e pessoalizadas, e é aí que a porca torce o rabo quando o cliente é alguém poderoso e letal. E está lançado o enredo; é isso mesmo o que acontece, e o conto narra o processo de criação da canção-da-morte e das dúvidas e receios que o acompanham. Outro conto interessante mas que também não me encheu as medidas.

And All the Fathomless Crowds, em compensação, é um conto magnífico. Num mundo assolado por uma epidemia de zombies de vários tipos (ou "não-mentes", segundo a terminologia aqui usada), descreve o exame final, teórico e prático, de Sandra Chakarvarti, aluna no Departamento de Sobrevivência da Queen's University, que vai avaliar se a aluna está, ou não, em condições de sobreviver a incursões ao exterior, o que implica sobreviver às várias não-mentes com que vai deparar. O chumbo no exame é fatal. Talvez. Trata-se, claro, de uma história de sobrevivência, mas é muito mais do que isso. É um conto irónico, tenso, comovente, imaginativo, cheio de ritmo e muito interessante. Mesmo muito bom.

Lido: (sem título - aforismos de Nuno Costa Santos)

Não sou fã de aforismos. É demasiado frequente que, ao lê-los, os sinta como desperdícios de boas ideias, que dariam contos interessantes e/ou divertidos se fossem desenvolvidas. Já o tinha dito, por outras palavras, durante a leitura de O Caçador de Étês e, como este texto é composto por aforismos, volto a dizê-lo agora, porque voltei a sentir o mesmo. Compreendo a atração para quem os escreve, especialmente se se trata de escritor para o qual a precisão exerce particular apelo: o aforismo, tal como o conto ultracurto e outras formas de limitação literária, funciona um pouco como um jogo no qual o escritor testa as suas capacidades no que toca a manusear a língua escrita. Há nesse tipo de texto um desafio implícito e por vezes mesmo explícito, e para muitos escritores esses desafios são irrecusáveis. Eu não funciono muito assim, mas compreendo. Enquanto leitor, no entanto, os aforismos sabem-me sempre a pouco. Foi mais uma vez o caso.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 29 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Michael Hodges

Michael Hodges está presente na antologia com três contos, um dos quais bastante curto.

Fletcher's Mountains é um conto de ficção científica pós-apocalíptica, uma história de sobrevivência individual numa Terra esvaziada e reduzida ao estado selvagem. Não é mau, mas também não é conto que cause grande impacto. É daquelas histórias que se leem e depressa se esquecem, em boa medida porque dá mais a ideia de primeiro capítulo de uma história maior do que propriamente de conto.

Hydra é outro conto de ficção científica mas, ao contrário do primeiro, este não tem enredo. Trata-se das reflexões de um cientista (não propriamente louco, mas o protagonista é baseado nessa tradição) que descobre o segredo da eterna juventude, mesmo que relativa, e consequentemente o do prolongamento da vida, ponderando as ramificações sociais de tal descoberta. Tem algum interesse, mas falta-lhe ser uma verdadeira história e o final em aberto não ajuda.

Seven Fish for Sarah volta um pouco aos ambientes do primeiro conto, pois trata-se de outra história pós-apocalíptica (Hodges tem queda para as catástrofes, está visto), ambientada num mundo cuja população, de novo muito reduzida, se tornou ludita. Este é mais conto que os outros dois mas também aqui há algo que não me agrada. Talvez os infodumps, demasiados e demasiado longos, talvez um excesso de narração em detrimento da história, de algo que se assemelhe a um acontecimento, talvez ambas as coisas e mais algumas. O que é certo é que, com estes três exemplos, Hodges não me convenceu.

Lido: A Porta no Muro

A Porta no Muro (bibliografia) é um conto de H. G. Wells que, curiosamente, está muito radicado no estilo típico do conto fantástico vitoriano, mostrando o muito característico relato por via indireta de uma história vivida por um amigo do narrador, que este conta por lhe ter sido contada. E digo curiosamente porque não se vê nada disso nos escritos mais conhecidos de Wells, os quais, apesar de precederem este relato em cerca de uma década, são bastante mais modernos.

Trata-se de um conto fantástico, claro, e a história que o amigo conta ao narrador é a de uma estranha porta verde que lhe aparece invariavelmente incrustada num largo muro branco, sempre quando ele está sozinho, e que, aberta, dá acesso a um jardim mágico, exterior ao mundo comum, uma espécie de dimensão extradimensional. Uma fuga.

Pois é de uma fuga que se trata. Lá dentro, esquecem-se todos os problemas, desaparecem todas as crises, afastam-se todas as desilusões e frustrações. Por isso a porta é uma tentação, sempre presente em recordação, quando não sob a forma de porta sólida num muro sólido. A história é a dos vários episódios de tentação de fuga e de busca dessa tentação. A das razões para o protagonista cair na tentação ou (mais frequentemente) não o fazer. E ao mesmo tempo a de uma vida.

É um bom conto, apesar de me parecer demasiado antiquado para um autor que publicou antes histórias muito mais modernas. Um conto sobre a alienação, mais um. Nos últimos tempos, têm sido um fartote.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Capa de revista

Acontece cada uma a um gajo...

Aqui há coisa de um mês, recebo um contacto no facebook, de um antigo colega meu dos tempos em que andei a trabalhar na imprensa regional. Que queria falar comigo. Que estava a colaborar com uma revista algarvia e achava interessante entrevistar-me, por causa do Martin, e tal, e da Guerra dos Tronos, e quê, e de eu ser o tradutor português, e patati, e patata. E eu, depois de hesitar um bocadinho, disse-lhe que sim. Afinal, sei bem o que é, por já ter passado por isso, um tipo ter espaço numa publicação (no meu caso era jornal) para encher e andar a bater com a cabeça nas paredes.

"Então está combinado," disse-me ele, "passo por aí no dia tal para falar contigo e tirarmos umas fotos."

"Fotos?," digo eu. "É mesmo preciso?"

"Pá, isto é uma revista. Sabes como é."

Pois sabia, sim senhor. Pronto, está bem, combinou-se o encontro, achando eu que ia ficar com a feia carantonha a decorar uma página central ou duas e não passar disso. Fez-se a entrevista, que ainda rendeu coisa de uma hora de conversa, tiraram-se as fotos, e foi cada um de nós tratar dos respetivos trabalhos.

Quando ele me voltou a contactar para dizer "está feito" foi logo prevenindo que a coisa tinha saído um pouco diferente do que estava previsto. Depois mostrou-me como.

Assim.


Não sei quem foi que teve a ideia (e o mau gosto, não desfazendo) de espetar com as minhas feias fuças na capa da revista, mas foi mesmo isso que fizeram. Fiquei em choque. Agora já passou um bocado; está feito, está feito, mais vale seguir com a corrente. Mas logo quando vi isto só consegui exclamar, em maiúsculas e tudo, "NA CAPA?! ARGH!"

Quanto ao texto, é o típico de uma revista ligeira. A entrevista foi muito abreviada e muito parafraseada, para a encaixar no espaço disponível e a adequar à publicação. Muito do que ali aparece não corresponde textualmente ao que eu disse, ainda que corresponda quase sempre (há duas ou três exceções, que calculo terem sido causadas por cortes) ao sentido do que eu disse. Debruça-se principalmente sobre as Crónicas de Gelo e Fogo e sobre como é traduzir os livros do Martin, as qualidades que eles têm e a comparação com a série. Mas não esperem grandes profundidades. É daquelas entrevistas boas para se ler entre um banho de mar e o seguinte.

Uma coisa é certa. Nunca, mas nunca, sonhei algum dia vir a ver-me na capa de uma revista. Já o John Lennon dizia que "a vida é o que te acontece enquanto estás ocupado a fazer outros planos." Não há melhor ilustração disso mesmo do que esta.

PS - já que estamos com a mão na massa, quem tem conta no ISSUU pode aceder ao conteúdo da revista, aqui.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Ken Hinckley

Ken Hinckley está presente nesta antologia com dois contos.

The Ostracons of Europa é uma história de ficção científica hard sobre a descoberta de vida inteligente nos oceanos de Europa, a lua de Júpiter. Muito curto, talvez até demasiado (é um dos contos publicados na Nature, que exige histórias muito curtas), o conto procura ser profundo e tenso mas creio que em boa medida falha tanto numa coisa como na outra. É um conto demasiado ambicioso para tão pouco espaço, e faz-me lembrar demasiado outras histórias lidas anteriormente.

The Totem of Curtained Minds é também um conto de ficção científica, ainda que bem menos hard, ambientado em grande medida numa prisão e protagonizado por um criminoso condenado (corretamente) a prisão perpétua, que aproveita uma abordagem ao tempo desenvolvida por um seu companheiro de cativeiro, baseada na natureza da luz, para partir para um futuro longínquo em que a prisão já não existe. Executando uma fuga, portanto. Não uma fuga convencional, pelo espaço, mas uma peculiar fuga através do tempo. Esta história, bem mais extensa que a primeira, é também bastante melhor, julgo eu, ainda que os leitores que gostam das suas FC solidamente plantadas na plausibilidade científica tenham uma grande probabilidade de lhe torcer o nariz.

Lido: Três Histórias com Final Feliz

Três Histórias com Final Feliz (bibliografia) é um livro de contos de Maria de Menezes que rendeu à autora um prémio literário, o Prémio de Revelação APE/IBL de Ficção. Puxando bastante pela cabeça, e tendo em conta o que conheço de uma certa mentalidade das pessoas ligadas ao mainstream literário (hoje em dia um pouco atenuada, felizmente... mas o prémio é de 1991), acho que consigo perceber o motivo do prémio. Mas a verdade é que eu não o teria atribuído, a menos que a competição naquele ano fosse fraquinha.

O prémio, que nunca seria atribuído a um livro de ficção científica que encarasse o género minimamente a sério, por melhor que fosse sob o ponto de vista literário, premeia, acho, duas coisas. A ironia, que em época de pós-modernismo pujante e algo desenfreado é sempre uma mais-valia, em especial se surgir "em diálogo com obras marcantes da cultura popular," (as aspas não são de citação real, são de uma citação perfeitamente possível... pareço eu que estou a ouvi-los), como é o caso, visto que a primeira história como que tem umas conversas com a série Regresso ao Futuro, a segunda com carradas de ficções ufológicas que brotaram um pouco por todo o lado pelo menos desde que Wells (e Welles, há que dizê-lo; Lovecraft também o fez mas de uma forma incomparavelmente menos impactante, pelo menos a princípio) se pôs a assustar as pessoas com criaturas vindas do espaço, e a terceira dialoga com Stoker e sucedâneos. A outra coisa que o prémio premeia, julgo eu, é o uso dos oralismos e as "ousadias" literárias que a autora comete ao passá-los ao papel e também, na primeira história, semeando hífenes por todo o lado. Na parte dos oralismos concordo: eles estão realmente bem conseguidos, em especial na segunda e na terceira histórias. Já as outras "inovações", enfim, parecem-me simples patetices. É um risco que a ironia corre sempre, este de resvalar para a patetice. Faz parte.

Quer isto dizer que o livro não tem interesse? Não, não quer. Não sendo nenhuma obra-prima e não trazendo nada de muito relevante ou novo à FC portuguesa, o livro tem interesse porque a escrita tem qualidades e consegue, de facto, ter piada. Mais nas últimas histórias, bastante menos na primeira, e apesar de uma característica do humor que me incomodou ao longo de toda a leitura e que passo a tentar explicar.

Quando se faz troça de algo ou alguém, essa troça pode revestir-se de muitas formas diferentes. Há troça destrutiva, mas nem toda o é. Há troça que tem subjacente desprezo, mas também a há carregada de carinho ou admiração. Há troça raivosa mas também existe ternurenta. Há troça que revela sentimentos de superioridade; há troça fraterna, igualitária.

Ora, este livro troça de Portugal e dos portugueses, de seus maneirismos e atitudes. Mas, porque há troças de muitos tipos diferentes, isso pouco nos diz. Poderia perfeitamente ser uma troça cheia de amizade, cometida por alguém que sabe que, no fundo, está também a troçar de si próprio, caso em que nenhum incómodo me causaria. Mas ao longo da leitura foi-me parecendo com crescente acuidade que não, que é uma troça nascida de uma sensação de superioridade por parte de alguém que se vê como exterior ao objeto retratado. E isso incomodou-me.

Mal me ficaria não reconhecer, de tal forma óbvio isto é, que esta impressão não só é inteiramente subjetiva como pode também ser muito injusta. Mas a verdade é que não me consegui ver livre dela enquanto lia o livro. Pelo contrário, só se acentuou com o avançar da leitura, à medida que ia deparando com a inapelável imbecilidade do guarda Elias ou a estupidez ignorante da Dona Etelvina e família. Ou seja: da gente do povo.

Seja como for, repito, sim, achei que o livro tem interesse. Pesando todos os prós e contras, acabei por gostar dele. Não muito, é certo. Mas gostei.

Para os interessados, eis o que achei das três histórias:
Este livro foi comprado.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Kate Heartfield

Kate Heartfield está presente nesta antologia com três contos, a saber:

Word for Word é uma razoável história fantástica sobre um homem que recebeu de herança uma Caixa mágica, capaz de fazer desaparecer aquelas coisas que se dizem sem pensar e depois causam arrependimento, bastando para isso escrevê-las, palavra por palavra, e enfiar o papelinho na caixa. Herança do pai. Mas, claro, como sempre acontece, na medalha que traz consigo tão útil artefacto existe um reverso. Neste caso até há dois. Por um lado, algo que se guarda numa caixa pode ser de lá tirado, o que faz com que aquilo que foi um dia anulado regresse ao mundo com todo o seu vigor. Pelo outro lado, uma caixa é um recipiente que encerra um volume limitado de espaço. Um dia enche-se. E depois? Tem interesse, esta história, mas não creio que chegue realmente a ser boa. A ideia é melhor do que a concretização.

For Sale by Owner é bastante melhor. Conta a história de uma casa, mais do que de uma personagem, que concede ao seu habitante a imortalidade em troca de um serviço que ele deverá prestar à humanidade. É que a casa se ergue junto de um penhasco, local de eleição para o derradeiro voo de todos aqueles que querem pôr cobro à vida, e a tarefa do habitante da casa é convencê-los a voltar para trás, a dar a si mesmos mais uma oportunidade. Este conto sim, é realmente bom, não só de ideia como também de execução.

A Pair of Ragged Claws é outro conto bastante interessante, algures entre a ficção científica e o horror. Num mundo em que a humanidade contactou com uma raça de escorpiões inteligentes, (ETs? Demónios? Não se chega a saber), com os quais só algumas pessoas especiais são capazes de comunicar, conta a história de uma rapariga que vai assistir a um concerto dado por uma banda destes escorpiões, cuja vocalista é humana, e se deixa fascinar. E faz uma loucura, que acaba por ter consequências sérias. Uma abordagem interessante à alienação, mais uma. Tenho deparado com este tema por todos os lados nos últimos tempos.

Lido: O Homem mais Magro de Luanda

O Homem mais Magro de Luanda é mais uma historieta de infância de Ondjaki, cujo tema é umas festarolas regadas a cerveja que haveria em casa de um tio do protagonista e um certo acontecimento mais ou menos funesto que terá tido lugar quando, um belo dia, o Vaz, o tal que era o homem mais magro de Luanda, lá apareceu.

É um continho cheio de subentendidos. Na verdade, começa-me a parecer que o mais interessante destas ficções de Ondjaki são precisamente esses subentendidos, a forma como, olhando o mundo com os seus olhos de adulto, mas através dos olhos de criança do seu protagonista / antigo eu, Ondjaki consegue fazer o leitor perceber coisas que o miúdo não percebe. Coisas de um mundo adulto bastante específico, que o protagonista das histórias vê, regista, mas não compreende de todo ou compreende apenas à sua maneira.

E isso é interessante. Mas continuo a achar que falta aqui qualquer coisa.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Shane Halbach

Shane Halbach está presente na antologia com um único conto, intitulado

My Heart is a Quadratic Equation. Trata-se de um conto de algo aparentado à ficção científica, mas em versão humorística, sobre uma candidata a cientista louca / supervilã, daquelas que dominam o mundo e matam gente a rodos, e etc., que está a tentar — incentivada pela mãe — arranjar namorado. Há aqui qualquer coisa de Família Adams e do Dr. Evil do Austin Powers, o que talvez seja a parte melhor que o conto tem. É que a dating scene ritualizada, à americana, me desperta pouquíssimo interesse e, pese embora a invulgaridade da protagonista, é a isso que se resume boa parte do conto. Tem piada? Bem, tem alguma, sim. Mas não muita, francamente. É daqueles contos sem grande sumo, que distraem durante uns minutos e depressa se esquecem. Mediano.

Lido: Passaporte para a Eternidade

Passaporte para a Eternidade (bibliografia) é um conto de ficção científica de J. G. Ballard onde se misturam num todo nem sempre tão harmonioso como talvez fosse desejável coisas muito boas com coisas mazinhas. O ambiente é de futuro longínquo, no qual não só as viagens entre as estrelas são corriqueiras e fáceis, como a humanidade tem colonizado tudo e umas botas. Mas é um futuro longínquo antiquado, talvez mais do que seria de esperar de um conto de 1962, não só no que toca à ciência como no que diz respeito às relações sociais. Há aqui uma misoginia, por exemplo, que não me parece que seja só do protagonista (que, sim, é altamente misógino). E isso é importante na história, que descreve basicamente a forma como um marido tenta escapar-se à opção de férias escolhida pela mulher (uma opção "de gaja", portanto sem interesse nenhum), investigando que alternativas existem. É aqui que aparece a parte boa, pois Ballard usa essas alternativas de excursões turísticas futurísticas para atirar com fortíssimas e muito irónicas ferroadas a uma série de atitudes e instituições do mundo real, muito em particular a instituição militar.

Lê-se (bem, talvez nem todos leiam; eu li) este conto com uma estranha mistura de divertimento e incómodo, temperado aqui e ali com umas pitadinhas de exasperação. Não creio que alguma vez tenha sido um conto realmente superior, ao contrário de outros do autor. Hoje, está ultrapassado na maior parte dos pormenores mas, infelizmente, não em todos. Muita da crítica que Ballard faz mantém-se totalmente válida, para mal dos nossos pecados. E é isso o que o mantém de pé. Periclitante, apoiado numa bengalinha, mas de pé.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - A. T. Greenblatt

A. T. Greenblatt é mais uma autora presente nesta antologia com dois textos.

Tell Them of the Sky é um bom conto de uma espécie de híbrido de ficção científica com outras coisas, que faz lembrar os ambientes criados por China Miéville. Passa-se num mundo, ou pelo menos numa cidade, sufocados em cinza e smog, na qual, apesar de ninguém conseguir ver o céu, um velho artesão fabrica brinquedos de animais e aparelhos voadores. Um belo dia, este artesão recebe a visita de uma miúda que tem um sonho que ainda nem sabe que tem, e por isso se deixa enfeitiçar pelos brinquedos que o artesão vende e também pela ideia que eles levam consigo: a ideia do voo. O conto acompanha, em breves episódios, a relação que se vai desenvolvendo entre os dois ao longo dos anos, à medida que o artesão envelhece e a miúda se faz rapariga e esta se torna mulher, e depois desemboca no inevitável voo. Tudo bastante bem feito, com ritmo, interesse e bom tratamento do texto.

Letters from Within é um divertido continho epistolar que remete para as velhas histórias de donzelas, dragões e cavaleiros andantes. Trata-se de uma carta que o cavaleiro andante escreve à donzela sua amada, que tentara salvar, depois de ser devorado inteiro pelo dragão que supostamente iria matar. Uma desconstrução bem-humorada dos velhos clichés deste tipo de história, provando, como se preciso fosse, que os clichés podem ser uma matéria-prima literária como outra qualquer.

Greenblatt também está aprovada.

Lido: A Máscara da Morte Vermelha

A Máscara da Morte Vermelha (bibliografia) é um breve conto de Edgar Allan Poe que, um pouco em jeito de conto de fadas, relata a forma como um príncipe de um reino nunca nomeado (o que é também típico dos contos de fadas), confrontado com uma terrível epidemia chamada morte vermelha, que assolava os seus domínios sem que parecesse ser possível pôr-lhe travão, achou por bem recolher-se, e à sua corte, numa abadia acastelada, isolando-a do mundo, na esperança de que a doença acabasse por morrer por si no exterior sem chegar a afetá-los.

E daqui para a frente há spoilers. Estão avisados.

Não será difícil de antecipar, sendo Poe quem é, e sendo esta história de horror, que as coisas não correm exatamente como o príncipe pretendia. Numa festa, aparece um misterioso mascarado que pode ser, ou não, uma figura sobrenatural, e o lindo sonho de sobrevivência do príncipe vai por água abaixo.

Sem que seja das melhores de Poe, é muito curioso como esta história tem paralelo com o curso característico de todas as alienações. Podemos procurar fugir do mundo, refugiando-nos em territórios confortáveis, seja na imaginação, na literatura, no futebol, nas drogas, no álcool, seja onde for, que o mundo consegue sempre arranjar maneira de nos relembrar da sua existência, batendo-nos no ombro para nos dizer que na verdade só ele tem real solidez. As fantasias, as fugas, são sempre temporárias e frágeis, castelos de cartas prontos a ruir ao primeiro sopro. Mais tarde ou mais cedo, por mais que se feche os olhos, há que abri-los para o feio rosto da realidade.

E é por, não dizendo isto, dizer isto, que este é um bom conto. Não apenas uma história, mas arte. Boa literatura.

Conto anterior deste livro:

domingo, 23 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Tina Gower

Tina Gower está presente na antologia com dois textos, uma noveleta e um conto.

Twelve Seconds, a noveleta, é um excelente exemplo de ficção científica policial, protagonizada e narrada por um investigador de registos post-mortem, autista, que um belo dia repara numa irregularidade que a princípio mais ninguém vê. Os registos post-mortem ("sifões", na terminologia que Gower cria) são impressões dos momentos que antecedem a morte, captados a partir dos cérebros das vítimas e depois analisados pelos investigadores em sistemas de realidade virtual, e a irregularidade que o protagonista nota é a inexistência, em alguns "sifões" em particular, de algo que existe em todos os outros: halos. A história, que não tem grande elaboração estilística, está muito bem construída e é bastante enriquecida pelas características do protegonista e pela forma muitíssimo credível como este é elaborado.

Today I Am Nobody, o conto, é uma história de fantasia que, ao contrário da primeira história, tem na elaboração estilística da prosa um dos seus pontos fortes. A protagonista é uma rapariga presa numa paixão sem esperança que, para tentar captar as boas graças do amado, se metamorfoseia em outras mulheres graças a um feitiço de um xamã. O conto descreve as várias metamorfoses da rapariga e o que acontece quando ela se apresenta ao alvo da sua afeição sob cada uma das formas. O resultado é um conto cheio de ritmo, com muita ironia e muito bem escrito.

Ajuizando pela amostra, vale a pena manter Tina Gower debaixo de olho.

Lido: A Rainha

A Rainha (bibliografia) é uma interessante noveleta de Paulo Vicente Pedroso sobre um cientista mais que meio louco que patrulha o Mar da Palha, nas zonas lodosas da margem sul do Tejo, na esperança de capturar e estudar uma gigantesca enguia elétrica que, segundo as histórias, aí habita. É essa a rainha a que o título se refere; a rainha dos peixes, a rainha do rio, quiçá.

Mas o que encontra, pelo menos a princípio, são dois miúdos, órfãos e estranhos, habituados a cuidar de si mesmos, contra ventos e marés. E acolhe-os, a contragosto, enquanto vai congeminando formas de se servir deles.

É uma premissa curiosa, que dá uma história com o seu interesse e poderia resultar numa muito boa. No entanto, não resulta. Esta história de Pedroso é prejudicada por uma prosa com demasiadas falhas, tanto estilísticas como em questões menos óbvias, como o ritmo ou a forma de caracterizar as personagens, o que faz com que acabe por não ser mais que razoável. Porquê? Eis um exemplo, escolhido perfeitamente ao calhas, abrindo o livro e selecionando a frase em que os olhos caíram, que por isso não é a melhor frase do texto mas também está longe de ser a pior:
"Isso era tudo o que o homem não precisava. Duas crianças a importuná-lo mas mesmo assim perguntou:"
Percebem o que está aqui mal? Existe uma sequência lógica entre a primeira frase e o princípio da segunda que é mais forte do que entre o princípio e o fim desta. Não funciona. Estas duas frases já ficariam mais agradáveis à leitura com uma mera alteração na pontuação. Assim:
"Isso era tudo o que o homem não precisava: duas crianças a importuná-lo. Mas mesmo assim perguntou:"
Mas melhor seria fazer mais umas alterações. Por exemplo:
"Duas crianças a importuná-lo. Era mesmo disso que não precisava. Mesmo assim, perguntou:"
É pena. A ideia do conto poderia resultar num texto realmente forte, mas por causa deste tipo de coisa fica aquém.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Lido: Ficções, nº 13

A Ficções, nº 13 (bibliografia) é uma revista com um conjunto de histórias variado, mas em geral bastante bom, sem qualquer espécie de tema ou abordagem comum que sirva de traço de união, à parte a curiosidade de terem — quase todas — sido escolhidas pelos participantes numa oficina de tradução literária.

Contrariamente ao que os supersticiosos poderiam supor, a coisa correu muito bem, e a literatura aqui incluída é quase toda no mínimo interessante, e em dois ou três casos chega mesmo a ser excelente. Apesar de ter havido alguns contos de que não gostei por aí além, na maior parte dos casos esse menor prazer na leitura deve-se mais a peculiaridades de gosto do leitor que sou do que às características dos contos propriamente ditas.

Sim, vale a pena ler esta revista em forma de livro.

Para fãs do fantástico, tem o interesse acrescido de conter dois contos de escritores geralmente associados ao género, um dos quais (M. John Harrison) muito pouco publicado entre nós, e a outra (Ursula K. Le Guin) justificadamente célebre e celebrada.

Se quiserem saber o que achei de cada um dos contos, é só seguir os links:
Esta publicação foi comprada.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Max Gladstone

Max Gladstone é mais um autor presente na antologia com um só conto, que no seu caso se intitula

Drona's Death. É um conto de fantasia, cheio de morte e deuses e guerreiros heróicos à moda de Hércules, centrado nas velhas questões de matar ou morrer no meio de uma guerra e dos problemas que causam as relações familiares quando a vida está por um fio. Interessante? Não. Tudo isto já foi tratado variadíssimas vezes antes, e quase sempre melhor. É que a prosa de Gladstone é pretensiosa, daquelas prosas tonitruantes que parecem estar sempre a declamar num palco, por entre exclamações sentimentais. Os anglófonos têm um termo para este tipo de prosa: purple prose. E, graças em parte a essa prosa e em parte a outras características pouco recomendáveis, o conto lê-se com aborrecimento e esquece-se num ápice. Sem deixar saudades.

Muito fraquinho. Muito mesmo.

Lido: Conto de Natal

Conto de Natal é mais uma crón... mas espera... não, não é. É um... conto fantástico?! Do Ricardo Araújo Pereira?! Vou ter de acrescentar mais o nome deste ao Bibliowiki?! E se calhar ainda ir-lhe comprar os livros para ver se é o único ou se há mais? Ora esta!

Pois que o Ricardo Araújo Pereira, conhecido incréu, resolveu escrever um continho de natal, para o que foi buscar uma personagem completamente inesperada, Jesus Cristo, uma lenda inteiramente desaproveitada, a história de o tipo andar por aí a aparecer às pessoas enquanto pedinte, e com esses ingredientes, que nunca ninguém tinha usado antes, lá compôs um continho à sua maneira. Tem punchline, obviamente. E é divertido, claro, embora a minha condição de confrade RAPiano na blasfémia possa estar a colorir esta opinião. Estou certo de que, digamos assim ao calhas, o João César das Neves não iria achar nenhuma gracinha à gracinha. E quem diz Abominável César das Neves, diz qualquer outro devoto beato. Mas eu? Oh, eu ri.

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Lido: 2014 Campbellian Anthology - Bill Ferris

Bill Ferris é mais um autor presente na antologia com uma única história, um conto intitulado

Athlete's Foot. Trata-se de um conto absolutamente nojento sobre um atleta, jogador profissional de basquetebol, que entra na vida do narrador, também ele jogador, quando assina por uma equipa de Minsk. Vedetinha, daquelas insuportáveis, que tratam toda a gente como seus escravos pessoais, sofre, no entanto, de um problema: pé-de-atleta. Não um pé-de-atleta qualquer, note-se. Afinal de contas, a primeira frase do conto é, numa traduçãozinha rápida, "deixem que vos diga como foi que o LaWilliam Morris perdeu mesmo as pernas." E é isso que o conto conta, tintim por tintim, com todos os repugnantes pormenores. Só lendo. E a verdade é que apesar de se perceber desde o início onde é que tudo aquilo vai dar, o conto sustenta o interesse. Um interesse mórbido, nauseado, mas não deixa de ser interesse.

É um conto bastante bom. Horrendo mas bom.

Lido: Jornalismo do Bom

Jornalismo do Bom é uma crónica de Ricardo Araújo Pereira, mais uma, na qual o nosso bom RAP elabora outra das suas geniais teorias. A deste texto é que não há melhores pessoas para fazer jornalismo, neste momento (vá, há 10 anos, mas hoje em dia, se calhar, é ainda mais assim) em Portugal do que um taxtista. E vai daí óspois, que tudo isto é muito lisboeta, descreve uma conversa altamente elucidativa que terá tido com um desses dignos profissionais a propósito de vários assuntos da maior relevância. E prontos. É isto. Mais um texto muito divertido, a espaços até um pouco surreal, mas em bom. E bem escrito, claro, incluindo o uso adequado e mesmo por vezes castiço do discurso direto, coisa que seria bom que tantos escritores "sérios" (seja lá isso o que for) que por aí andam aprendessem a fazer.

Estas crónicas funcionam sempre muito melhor a médio/longo prazo quando são genéricas e não comentam acontecimentos demasiado circunscritos a uma determinada época. A espuma dos dias, como dizia o outro, esgota-se depressa.

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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Sean Eads

Sean Eads é outro autor presente nesta antologia com um único texto, intitulado no seu caso

The Seer. Trata-se de um conto de ficção científica pós-apocalíptica em que o apocalipse não foi causado pelo homem ou por forças mais ou menos sobrenaturais, como é hábito, mas por uma invasão alienígena. Passa-se bastante depois da invasão (e da vitória sobre os ETs), num planeta em que a cultura dominante regrediu a hábitos razoavelmente tribais. O protagonista é um Vidente, uma espécie de líder em parte político, em parte religioso, em parte militar, que no entanto duvida de si próprio, não só por ser, de longe, o mais novo membro do conselho de videntes, mas porque sempre mentiu quanto a visões que nunca teve, até começar a tê-las... e elas não serem nada parecidas às que todos os outros — e ele próprio — dizem ter.

O conto tem uma ótima ideia base e tanto sumo que só isso basta para o tornar interessante, embora deixe algo a desejar no que toca à concretização. É uma história bastante profunda sob a camada superficial de FC militar. Se tivesse sido mais bem concretizada seria uma história excelente. Assim, não chega lá.

Lido: Psht ó Chefe

Psht ó Chefe é mais uma crónica de Ricardo Araújo Pereira em que, depois de levar tau-tau no rabinho por usar o anglicismo ortográfico "psht" em lugar do mais vernáculo, e portanto correto, "pcht", RAP debruça o seu olhar analítico pelos diversos tipos de empregados de café, no que toca, naturalmente, à forma como eles transmitem à copa o pedido do cliente. Gargalhada inevitável, pois então, tanto devido à subdivisão em géneros como aos exemplos dados para cada um e até a uma certa redução de si próprio à dimensão devida. Mais um texto muito divertido e, pé na poça ortográfico à parte, bem escrito.

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segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Haris A. Durrani

Haris A. Durrani é mais um autor presente nesta antologia com um único texto, no caso dele uma noveleta. Intitula-se

Tethered. Trata-se de uma ficção científica orbital bastante interessante, passada num futuro em que a multuplicação de colisões entre satélites e destroços em órbita atingiu um nível tal que tornou impraticáveis certas órbitas em volta do planeta. Os protagonistas são um casal de catadores de lixo espacial, profissionais independentes, que recebem e aceitam, algo a contragosto, um contrato para recuperar um satélite específico. E claro que as coisas não correm com a lisura que seria desejável. É que não é por estarmos num futuro ainda algo distante que a geopolítica desaparece.

Uma ficção científica hard bem escrita, bem concebida e bem executada, intercalada por informação verdadeira sobre as várias facetas do problema muito real do lixo espacial com que mais tarde ou mais cedo será necessário lidar. É uma reflexão razoavelmente profunda sobre esse problema específico, ainda que evite debruçar-se muito sobre mais alguma coisa. E também é uma história de sobrevivência em órbita, à semelhança do filme Gravity. E uma história de amor, com personagens bem construídas e credíveis. Em suma: uma boa história.

Lido: Um Roupão Para José Sócrates

Um Roupão Para José Sócrates não é nada do que estão a pensar, que nesta altura ainda o dito não tinha estabelecido residência em Évora. Mas é engraçado como certos títulos adquirem conotações inesperadas com a passagem do tempo. E sabem o que também é engraçado, e muito? Esta crónica de Ricardo Araújo Pereira. Até porque pouco fala de Sócrates, à época primeiro-ministro ainda mais ou menos em estado de graça. Fala, isso sim, daquelas pessoas que lá na terra dele (sim, que por cá somos mais discretos) têm o costume de ir de manhã comprar o pão de roupão. Tema dado, o RAP disserta, defendendo a tese de que essa gente devia ir para a política, e eis a ligação do roupão ao Sócrates.

E quem lê gargalha, pois então. Fazer o quê? Tem de ser, e o que tem de ser tem muita força, já lá diz a malta do roupão na padaria.

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domingo, 16 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Robin Wyatt Dunn

Robin Wyatt Dunn é mais um autor presente na antologia com dois contos.

L. A. Actors é um estranho conto distópico que acompanha a queda dos EUA (do mundo?) no caos através de breves apontamentos poéticos sobre a vida de atores numa Los Angeles futura, encerrados na sua bolha artística mas incapazes de se isolar por completo do mundo que os rodeia. Bastante bem escrito, o conto constitui uma interessante proeza técnica, mas falta-lhe qualquer coisa para se tornar memorável. Ser mais desenvolvido, talvez, pois o conto é bastante curto; quem o lê mal tem tempo para ficar a conhecer vagamente as personagens e não o tem de todo para se preocupar com o que lhes possa acontecer.

Inside the Crown é um conto ainda mais estranho, situado algures num limbo entre a ficção científica, a fantasia e o horror, sobre um viajante interdimensional que procura uma arma que estará dentro da coroa a que o título faz referência, na companhia do cadáver reanimado do pai. Bem escrito, sim, mas tão absolutamente bizarro que se acaba a leitura e se fica sem saber bem o que pensar. Até a própria história termina como que não terminando.

Dunn tem interesse, mas há qualquer coisa na sua prosa que não me convence, e não me refiro à estranheza. Essa é propositada e, julgo, bem conseguida. Boa parte do problema, suspeito, reside nas personagens, que pouco passam de esboços traçados a linhas rápidas e pouco sólidas, sem que se compreenda bem aquilo que as faz mexer. Talvez por excesso de brevidade, talvez por ele não achar que boas personagens são importantes para as histórias que quer contar. Mas se calhar até são.

Lido: A Cotonete de Luís Figo

A Cotonete de Luís Figo é uma crónica de Ricardo Araújo Pereira que só tangencialmente fala da cotonete de Luís Figo. Malandrice do artista que sugere e depois não cumpre e esquiva. Começa por um episódio em que RAP pretende adquirir cotonetes e é confrontado com um dilema, pois não basta pedi-las; há que escolher entre a caixa normal e a «embalagem prestígio». A partir daí, o humorista lança-se numa exploração algo caótica dessa coisa do prestígio, que mete ao barulho Luís Figo, lá está, mas também Jorge Sampaio, à época presidente da república. A coisa tem graça mas, como se refere em parte a acontecimentos e pessoas que na altura andavam nas bocas do mundo mas entretanto já deixaram de andar, já teve mais do que a que tem hoje. O tempo é um larápio de graça. Vai uma pessoa a tratar da sua vidinha, cheia de graça na carteira, vem de lá o tempo, faz assim aos dedinhos, frlip, e lá se vai a graça. E a polícia não faz nada. É um escândalo!

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sábado, 15 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Lara Elena Donnelly

Lara Elena Donnelly é mais uma autora que está presente nesta antologia com um único conto. O dela intitula-se

The Witches of Athens. Trata-se de uma fantasia urbana muito americana, escrita num estilo cuidado ao ponto de fazer lembrar um pouco alguns dos contos de Bradbury, sobre duas irmãs, rivais, que fazem bruxedos, cada uma à sua maneira, nos dois diners existentes numa cidadezeca do Ohio chamada Athens. E a páginas tantas são procuradas por dois rapazes, cada uma pelo seu, que estão apaixonados um pelo outro mas são demasiado acanhados para o revelarem. A história que o conto conta é o evoluir desse botão de relação homossexual até desabrochar, com o auxílio das irmãs. É uma história com o seu interesse, mas não me agradou particularmente porque depressa se torna previsível e porque, no fundo, as bruxas acabam por não estar lá a fazer grande coisa. E se calhar por ser tão americana, também. Todo o cenário da cidadezinha de província, de tão visto, já se transformou num gigantesco cliché.

Lido: Os Pescadores de Trevamar

Os Pescadores de Trevamar (bibliografia) é um romance de ficção científica de Roger Eldridge, que consegue ser ao mesmo tempo francamente estranho, fascinante, intrigante e aborrecido.

O enredo gira em volta do protagonista, Lumé, ou Mirth. Durante muito tempo, o leitor luta por compreender quem, ao certo, é Lumé, o que de resto é luta que o próprio também tem, uma vez que ele só a custo e defeituosamente se integra na sua sociedade. Esta é uma sociedade primitiva, aparentemente inspirada nas dos povos árticos, mas tem a peculiaridade de desconhecer a navegação e sobreviver presa a uma ilha que parece ser pequena, totalmente rodeada por gelo. Os membros do povo dividem-se em castas bastante estanques, sendo a mais importante e respeitada a dos pescadores.

É a ser pescador que todos os jovens aspiram, e é em jovem, um jovem prestes a executar o perigoso rito de passagem que lhe dará o direito a integrar a casta superior, que vamos encontrar Mirth no início do romance. Não sozinho, pois nesta sociedade cada indivíduo tem um "outro", outro homem que é visto como uma segunda metade de si, alguém que com ele partilha vida, estatuto e até sentimentos e pensamentos. Nada há nisto de sexual; cada um dos membros do par tem as suas próprias relações com mulheres fora da parelha, formando com elas uma espécie de família mais convencional, pelo menos até serem aceites na casta dos pescadores.

É em boa medida na descrição desta sociedade, enquanto vai mostrando as lutas e dúvidas de Mirth e No-Mirth, o seu outro, e os conflitos que os dois vão tendo um com o outro, que Eldridge gasta boa parte do início do romance. E fá-lo bastante bem, conseguindo realizar algo que é sempre difícil de fazer: a descrição de uma sociedade e de uma mundovisão, para nós, os leitores que estamos de fora, a partir de dentro dessa sociedade e mundovisão, sem usar os nossos pontos de referência mas sim aqueles que as suas personagens teriam.

E ao mesmo tempo introduz mais motivos de estranheza. Por exemplo uma tal "rochavida", que é fulcral para a sobrevivência da tribo e que só no fim acabamos por compreender. A "salmoura", que parece ao mesmo tempo ser a simples água salgada mas não o ser, pois ela é apresentada como coisa venenosa, tabu, geradora de doenças e maldições, sem que se perceba bem se se trata de mera superstição, se de um perigo real. Um tal "peixe", coisa gigantesca, monstruosa, com um olho só, que vai levar Lumé a uma espécie de loucura que o leva a afastar-se da tribo, e a uma série de peripécias e aventuras que alimentam a segunda metade do romance. Coisas dessas.

Durante muito tempo, o leitor pode ser perdoado se suspeitar de algo de mágico em tudo isto. De estar perante uma estranha obra de fantasia. Isso é propositado. E Eldridge consegue fazê-lo muito bem.

Onde a meu ver mais falha é em tornar credíveis as reações e atitudes do protagonista (e também de algumas das outras personagens), demasiado teatrais, demasiado exageradas, a cheirar demasiado a dramalhão barato, o que acabou por me provocar uma certa desconexão com os seus problemas e, consequentemente, com o desenrolar das peripécias em que se mete e do próprio romance. O aborrecimento que ele me causou tem essa origem, ampliada pelo final, em que tudo subtilmente se esclarece, em que se percebe que, sim, se trata mesmo de um livro de ficção científica, que as personagens são homens e mulheres, ainda que homens e mulheres algo alterados, mas em que as explicações me pareceram bastante falhas de verosimilhança. Nunca consegui engolir a explicação da picada da aranha radioativa para os superpoderes do Homem Aranha e, embora a um nível bem distinto, as explicações deste romance andam um pouco por aí.

Tudo somado, acabei por gostar do livro, mas não muito. Acabei de lê-lo com uma certa impressão de oportunidade imperfeitamente aproveitada. Eldridge, parece-me, acertou em cheio no mais difícil e conseguiu falhar o alvo no que em princípio seria mais fácil. É, até, irritante.

Mas não dei o tempo por mal empregue, isso não. Ler livros estranhos é fundamental para abrir horizontes ou para os manter abertos. E este é, sem dúvida, um livro estranho.

Este livro foi comprado.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Ariel Djanikian

Com Ariel Djanikian voltamos aos excertos de romances, e o dela intitula-se...

The Office of Mercy. Trata-se de uma história de ficção científica pós-apocalíptica, que descreve um mundo dividido em dois grupos bem distintos de sobreviventes. Pelas florestas vagueiam tribos de caçadores-recoletores, reduzidos ao estilo de vida dos nossos longínquos antepassados; encerrados em cúpulas e em subterrâneos vivem os restos da civilização tecnológica, com as suas máquinas e as suas hierarquias rígidas... e a sua capacidade para destruir tribos inteiras de nómadas que por acaso ou intenção se aproximem demasiado de território "civilizado". Embora a ideia base seja instigante, o excerto é insuficiente para se perceber em que direção Djanikian acaba por levar a história; com base no que aqui vem publicado fica-se com a impressão de que o romance completo tanto pode ser bastante bom como bastante fraco. Tudo depende de como a situação se resolve ou não e que evolução acabam as personagens por ter. Mas desperta curiosidade, isso é certo; esse objetivo cumpre a contento.

Lido: A Ida ao Namibe

A Ida ao Namibe é mais um continho de Ondjaki, agora sobre uma ida do seu protagonista ao Namibe (obviamente) e sobre a família que lá encontra, principalmente uma prima bonita que lhe desperta o coraçãozinho de criança. É mais um conto bem-humorado sobre a vida de um miúdo angolano, este contado de um pouco mais do que os outros em ritmo de redação feita para a escola. Interessante, mas ainda bem longe do romance com que me estreei em Ondjaki. Continuo desapontado com este livro.

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quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Evan Dicken

Evan Dicken, ao contrário dos autores anteriores, está presente apenas com um conto, intitulado...

Paradise Left. Trata-se de um conto curioso, pós-Singularidade tecnológica (para quem não sabe do que se trata, o ponto em que a inteligência das inteligências artificiais supera a humana), que reflete sobre a forma como os seres humanos básicos, não alterados, reagiriam num mundo gerido por máquinas inteligentes e infinitamente benévolas. Não é dos contos mais bem escritos que este ebook contém, mas tem algumas ideias profundas, razoavelmente bem exploradas, faltando-lhe talvez um final com mais impacto para subir de patamar. Assim, o conto é interessante mas não creio que seja realmente bom. É um daqueles contos em que a qualidade das ideias é superior à qualidade da sua concretização em objeto ficcional.

Lido: A Prisão de Areia

A Prisão de Areia (bibliografia) é uma noveleta de J. G. Ballard que merece por inteiro o epíteto de ballardiana. Ballard está no seu melhor quando ambienta as suas histórias em lugares desolados, decadentes, de onde a civilização se afastou e aos quais continuam teimosamente a agarrar-se pequenas (ou mesmo minúsculas) bolsas de humanidade. E é o que temos aqui, num Cabo Canaveral alterado pelo depósito na região de muitas toneladas de areias marcianas, que fizeram a costa penetrar Atlãntico dentro e transformaram a zona num deserto rubro, uma cópia autêntica do quarto planeta no terceiro. Pior: uma cópia contaminada, que gerou uma zona de exclusão da qual a vida é expulsa, com a exceção de um grupo de três pessoas, perseguidas pelo exército, procuradas, todas elas com uma ligação qualquer ao abandonado programa espacial americano, e que assistem, como quem cumpre um ritual, à passagem pelo céu de uma "constelação" de cápsulas orbitais, tripuladas por astronautas mortos há décadas. É um conto muito bom, mais pelo ambiente e pela forma como ele é descrito e explicado, pela poesia melancólica das imagens, pelas personagens, seu comportamento e motivações, do que propriamente pelo enredo. Este, no fim de contas, pouco importa, o que provavelmente desagradará aos fãs de histórias de ação. Cá eu, acho soberbo. Este é dos tais contos que perduram na memória.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Robert Dawson

Robert Dawson aparece nesta antologia com três contos.

The Widow é um continho epistolar de ficção científica sobre o qual é praticamente impossível dizer alguma coisa sem começar a desvendar a situação nele descrita... e, como o conto é inteiramente situacional, sem qualquer ação além da que está implícita na situação que descreve, é precisamente no desvendar da situação que reside em grande medida o seu interesse, portanto continuem a ler por vossa conta e risco. Mesmo assim, tentarei ser vago. Digamos apenas que este conto mistura inteligência artificial com um esquema nigeriano, e que está francamente bem construído.

The Fifth Postulate é um conto fantástico passado em Alexandria, em 280 AC, e o seu protagonista é Euclides, coadjuvado por um escravo chamado Ianus. O conto descreve o momento em que Euclides quase inventa a geometria não-euclideana, a qual só viria a ser descoberta no início do século XIX, separadamente, por Nikolai Ivanovich Lobachevsky e por... János Bolyai. E aqui, nesta coincidência de nomes (só de nomes? Será?), reside o motivo por que o conto não é apenas um conto histórico, um texto que conta, ficcionando só um pouco, acontecimentos reais, mas sim um conto fantástico. Não explicarei porquê; digo apenas que é mais um conto subtil e francamente bem construído.

Soldier's Return é um conto de fantasmas, passado num provável presente mas cheio de recordações de acontecimentos que remontam à I Guerra Mundial. É mais um conto muito subtil e bastante poético, com um remate magnifico, que fala principalmente de desencontros e de perda. Contos de fantasmas em que as fantasmagorias acabam finalmente por pôr fim a longos anos de desencontro estão longe de ser novidade, mas Dawson é bastante bom na forma como escreve o dele. Sim, também este conto está muito bem construído.

Robert Dawson é bom. E tem uma grande versatilidade, algo de que nem todos os bons escritores se podem gabar.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Lido: Os Crimes da Rua Morgue

Os Crimes da Rua Morgue (bibliografia) é uma noveleta de Edgar Allan Poe que... hum... que eu já tinha lido. Ora deixa cá ver se também já tinha falado dela...

Tinha, claro que tinha. E, embora por vezes aconteça que das releituras nascem opiniões diferentes, no todo ou em parte, desta vez não nasceu. O que penso hoje é aquilo que eu escrevi há 5 anos (quase exatos... curiosa coincidência, esta de ler sempre esta história em agosto), sem tirar nem pôr.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Jonas David

Jonas David está presente nesta antologia com dois contos.

Deathday é um conto que relata um ritual de chegada à idade adulta, numa sociedade trans-humanista na qual as pessoas só estão completas (e só se transformam em Cidadãos) quando descartam os seus corpos biológicos em favor de corpos robóticos, mais avançados, eternamente substituíveis e por isso potencialmente imortais. O protagonista é Cobalt, um jovem prestes a fazer a transição, e o conto, que descreve o processo e as dúvidas e medos do protagonista, os seus sentimentos por si e por outros, é muito bom. Realmente muito bom.

Three Seconds é um conto que está algures na transição entre a ficção científica e a fantasia e que ressoa fortemente com uma parte importante do universo do Brandon Sanderson, por motivos que quem já leu integralmente a trilogia Mistborn depressa compreenderá. Jonas David apresenta-nos um casal de personalidades aparentemente eternas e em grande medida opostas que, pelos nomes anglófonos, parecem ser personalidades pós-humanas encerradas num universo virtual; uma constrói estrelas, planetas, galáxias inteiras; a outra anda atrás dela a destrui-las. Uma terceira entidade fornece equilíbrio, impedindo as duas primeiras de se destruirem uma à outra. E cada uma tem as suas próprias razões filosóficas para agir como age. Este também é um bom conto, ainda que não me pareça tão bom como o primeiro, e termina de forma não totalmente inesperada, mas adequada.

Jonas David parece ser autor para manter debaixo de olho.

Lido: Ex-Machina

Ex-Machina (bibliografia) é um conto retrofuturista de Michael Silva que segue as peripécias de um tal José Goias, tenente do exército, que se vai meter a investigar estranhos casos de violência coletiva centrados numa unidade fabril em Oeiras. Com algumas boas ideias, e sem ser um mau conto, este será provavelmente o pior dos contos do livro até agora, perdendo-se em cenas de pancadaria interligadas de forma pouco eficaz e escritas numa prosa que, apesar de em geral até ser competente, mostra todavia demasiadas falhas (que na verdade deviam ter sido apanhadas pela revisão; é certo que a responsabilidade principal é do autor, mas nem toda lhe cabe) para evitar prejudicar a leitura. Com menos ênfase na batatada, ou pelo menos com uma pancadaria mais lógica e dirigida, e com um pouco mais de profundidade tanto nas personagens como no próprio enredo, que deixa algumas pontas demasiado soltas, este conto poderia ser bom. Assim, é razoável. Razoável com sinal menos.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Evan Currie

Evan Currie é mais um autor que está presente nesta antologia com um excerto de romance. O dele intitula-se...

Odyssey One: The Heart of the Matter. Trata-se de uma ficção científica militar, em jeito de space opera, e de uma space opera o mais antiquada possível. Lê-se este excerto e, à parte meia dúzia de atualizações tecnológicas, dir-se-ia estar a ler-se qualquer coisa de E. E. "Doc" Smith, com a agravante de Smith estar mais ou menos na crista da onda da sua época, a inventar caminhos, ao passo que Currie... bem...

É possível que com o desenvolvimento do romance ele acabe por ser melhor do que o excerto faz suspeitar, mas não me parece provável. Achei isto muito fraco e não fiquei nada interessado em ler mais. Muito dispensável.

Lido: Só Vejo Sifões à Minha Frente

Só Vejo Sifões à Minha Frente é uma crónica de Ricardo Araújo Pereira sobre a política madeirense, e em especial sobre Jaime Ramos. Problema, que de resto é comum a muitas das crónicas políticas que este livro contém: refere-se a coisas que aconteceram há mais de uma década, de que já ninguém se lembra, o que tem como consequência óbvia que a piada que pudesse ter tido já se diluiu consideravelmente desde então. Mantém a graça da prosa, daquele jeito miudinho com que o RAP costuma escalpelizar os seus temas e em que costuma ter um piadão (e neste caso tem, até porque Jaime Ramos terá sido acusado de ter enriquecido a comercializar sifões de retrete, e eis o motivo do trocadilho no título), mas a graça que advém da pertinência política perdeu-se. É uma crónica divertida, mas suponho que em tempos o foi mais. Também é uma crónica bem escrita que, como é de domínio público, o RAP mexe bem na língua.

Salvo seja.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 9 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - John Chu

John Chu está presente na antologia com um só conto, intitulado...

Incomplete Proofs. Trata-se de um conto de ficção científica que parece ter partido da seguinte ideia: que duas coisas consigo eu arranjar que estejam nos antípodas culturais uma da outra e como é que consigo fundi-las bem o suficiente para escrever uma história com base nelas? E o espantoso é que não só as encontrou como conseguiu uni-las. Chu pegou nas abstrusões da matemática teórica com uma mão, agarrou com a outra no mundo da moda e dos costureiros, amassou as duas coisas, e desarrincou um bizarro e divertido mundo em que a malta da moda trabalha para provar teoremas e depois passá-los na passerelle, residindo o génio (matemático? costureiro? as duas coisas?) em conseguir-se chegar ao fim do desfile com a roupinha (ou seja, as equações) intacta. Absurdo? Sim, certamente. Mas a verdade é que o conto está tão bem amarrado que se torna credível, por mais inverosímil que seja a ideia de base. É preciso talento. Um enorme talento.

Tiro o chapéu a John Chu, tentando esconder a inveja que dele salpica. Isto é fenomenal.

Lido: A Lagoa

A Lagoa (bibliografia) é mais um conto (este curto) de Ana Cristina Luz em que vamos encontrar uma mulher em busca de um amor perdido e que cruza esse tema romântico com acontecimentos ou lugares mais ou menos fantasmagóricos. Aqui trata-se de uma lagoa, a lagoa da Ervedeira, que nas redondezas é tema de histórias de desaparecimentos e fantasmagorias mas na história pessoal da protagonista foi cenário para uma aventura amorosa com um homem misterioso que não voltou a ver. A ligação entre as duas coisas é fácil de imaginar, mas isso não quer dizer que esteja particularmente bem conseguida nesta história, que apresenta uma certa insegurança na narrativa e nos seus ritmos, uma certa irregularidade na qualidade da prosa. Não é um mau conto, mas não me parece que ultrapasse o razoável.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 8 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Adam Christopher

Adam Christopher é um autor com muito texto nesta antologia, visto que está presente não com um, mas com dois excertos de romances. E, como no caso de Mark T. Barnes, são romances com muito em comum um com o outro, apesar de estes não pertencerem à mesma série. Intitulam-se:

Empire State e Seven Wonders

Trata-se de romances de super-heróis, escritos num estilo muito interessante e colorido, que faz obviamente lembrar a banda desenhada mais gritty, nomeadamente algumas fases dos livros de Batman ou do Homem-Aranha, mas também coisas mais antigas, muito em especial o policial negro. Este parece ter influenciado não só o estilo, mas também, em parte, o ambiente (no primeiro romance encontramos uma versão noturna da Nova Iorque dos anos 30, totalmente submersa nas malhas do crime organizado; o segundo afasta-se mais: ambienta-se numa cidade californiana fictícia e futurística chamada San Ventura, referência clara a Los Angeles), se bem que a Gotham de Batman seja claramente a referência principal.

Sim, o estilo é interessante e, à sua maneira, bem escrito. No entanto, estes excertos soam demasiado a fanfic de banda desenhada para serem realmente bons. O cliché que contêm é imenso e quase sufocante e as personagens pouco fogem ao estereótipo. Como consequência, estes livros provavelmente irão agradar aos fãs mais entusiastas deste tipo de histórias — e da própria BD —, mas duvido que consigam captar o interesse de muitos leitores que não o sejam. O meu certamente não captaram. Gosto do estilo literário, reconheço as qualidades que a prosa tem, admito que Christopher sabe lidar com as palavras, mas não vou além disso. E isso, para mim, não basta.

Lido: A Professora Genoveva Esteve Cá

A Professora Genoveva Esteve Cá é mais um dos continhos de Ondjaki, contando este uma divertida história na qual o jovem protagonista vai abrir a porta de sua casa à dita Genoveva e lhe explica — detalhadamente — que a mãe não pode ir atender por causa da menstruação, para grande embaraço da visitante. Coisa simples e terra-a-terra, sem grandes elaborações, mas muito divertida pelo contraste entre a descontração com que o jovem e a sua família conversam sobre tais assuntos e a confusão escandalizada que isso causa em outras pessoas.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Anne Charnock

Anne Charnock é mais uma autora a só estar presente com um excerto de romance, intitulando-se o dela

A Calculated Life. Abrindo com uma citação da menos conhecida das grandes distopias totalitárias da primeira metade do século XX (Nós, do Zamiatine), este romance não parece ter, à primeira vista, grande coisa a ver com ela, apesar da prova de bom gosto que assim é dada. Mas parece ser na mesma um romance muito interessante, uma ficção científica de futuro próximo, protagonizada por uma analista de dados autista, genial no seu trabalho mas sob um desafio constante fora dele devido à sua condição. E mais ainda quando acontece a morte de um dos colegas num acidente (pelo menos é essa a aparência) e ela é encarregada de tratar os dados em que ele estava a trabalhar, o que a vai levar em direções inesperadas. É difícil avaliar romances por estes excertos, pois são demasiado curtos para sabermos realmente se os autores conseguem sustentar as histórias até ao fim, mas este é decerto promissor, não só por ter uma história que parece ser interessante mas muito em particular devido à voz da protagonista, que dá para ver nestes quatro capítulos que está muito bem conseguida.

Sim, fiquei interessado. Este excerto cumpriu cabalmente a sua função.

Lido: Os Mil Sonhos de Stellavista

Os Mil Sonhos de Stellavista (bibliografia) é um ótimo conto de ficção científica de J. G. Ballard sobre um casal em busca de casa numa zona rica mas decadente da Califórnia, uma povoação chamada Vermillion Sands. Não uma casa qualquer, naturalmente, e nem mesmo uma propriedade de luxo como as que quem consome tal coisa está habituado a ver nas páginas das revistas cor-de-rosa. Uma casa psicotrópica, dotada de uma inteligência artificial que controla por completo o edifício e capta dos seus ocupantes estados de espírito, até mesmo personalidades, adotando-as frequentemente como suas. As coisas complicam-se quando o homem, que é advogado, depara por acaso com a casa de uma mulher que defendera anos antes da acusação de ter assassinado o marido... e por quem se apaixonara. É a memória dessa paixão antiga e a permanência, na casa, da personalidade da mulher que a despertara e entretanto morrera, que o leva a instalar-se lá. Só que não é só a personalidade da mulher que se mantém presente na casa; é também a do marido assassinado, e até as recordações do próprio assassínio.

É um conto magnífico, este, de uma FC com mais de 50 anos mas que se mantém em grande medida atual, cuja história se entrelaça com temas policiais de uma forma muitíssimo bem conseguida, e que merece por inteiro o epíteto de "ballardiana." De facto, esta história data do início da época em que Ballard solidificou o seu estilo próprio e a sua forma característica de contar histórias, e isso nota-se bem. Muito bom.

Contos anteriores deste livro:

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Vajra Chandrasekera

Vajra Chandrasekera é outro autor (cingalês) presente nesta antologia com dois contos

Pockets Full of Stones é um conto de ficção científica dura cuja protagonista é uma jovem colocada num posto quase solitário em Makemake (um dos planetas anões recentemente descobertos, para quem não sabe), numa estação de retransmissão das mensagens de e para uma nave interstelar, cheia de colonos a caminho, a velocidades relativísticas, de algum planeta que não chega a ser identificado. Na nave, segue um avô da protagonista, e são as mensagens pessoais que lhe envia, ao arrepio das regras, que vão levar ao desenlace do conto. É que a nave em que o avô segue capta uma mensagem extraterrestre, de que é difícil falar sem revelar informações importantes para o enredo. Digamos apenas que é mais do que uma simples mensagem; inclui código. Código extraordinariamente avançado. O conto é bastante interessante.

The Jackal's Wedding é uma história bastante mais estranha, de uma fantasia tingida de horror, sobre uma família de chacais (serão mesmo chacais?) presa num bosque mágico rodeado por uma barreira de espinhos. Parece haver muito de simbólico nesta história. Sob o conto de fadas, que não é propriamente um conto de fadas porque não acaba tudo bem e cor-de-rosa, parece haver ideias fortemente sentidas sobre incesto, sujeição e libertação femininas, relações abusivas, por aí fora. Atrás dos chacais parecem estar criaturas muito humanas, mas a verdade é que nada é realmente claro e eu posso perfeitamente estar a ver fantasmas onde nada existe. Seja como for, este é mais um conto interessante, ainda que não tenha gostado tanto dele como do primeiro.

Lido: O Obus de Newton

O Obus de Newton (bibliografia) é uma novela retrofuturista de Telmo Marçal que, entre Lisboa e a Amazónia, conta uma movimentada história de conspirações cruzadas centradas num projeto secreto do governo português, ainda monárquico nas vésperas do ano 2000, ainda imperial, com o controlo intacto sobre a colónia brasileira, ao qual o título faz referência. A história segue as peripécias de vários anos da vida de um tal Henrique do Patrocínio, à vez agente secreto, conspirador, assassino, fugitivo e por aí fora, mostrando com toda a subtileza o seu impacto individual sobre a história da nação ao mesmo tempo que traça um relato bastante sólido das tensões sociais no Portugal alternativo comum aos contos deste livro. A prosa, muitíssimo cuidada, talvez o seja até em excesso, de quando em vez, embora compense esse excesso com achados magníficos em outros trechos. Desnecessárias, no entanto, e mesmo prejudiciais ao fluir da narrativa, são as notas de rodapé a explicar brevissimamente quando, no mundo real, tiveram lugar certos desenvolvimentos científicos, culturais ou políticos. Desnecessárias porque nada adiantam à novela, limitando-se a exibir o trabalho de casa do autor. Que importa, para uma história que se passa num final alternativo do século XX, que a primeira exploração hidroelétrica date de 1881? Que importa que Bell tenha criado o microfone no século XIX? Nem que estes factoides tivessem verdadeiro impacto no enredo se justificaria, a meu ver, interromper o fluxo de leitura com a sua explicação em nota de rodapé, e quando não têm, como é o caso, as notas tendem mesmo a tornar-se irritantes. Como dizia o outro, não havia qualquer necessidade.

Mas os rodapés não deixam de ser pormenores de uma prosa francamente boa, sem qualquer sombra de dúvida entre as melhores que o livro a que pertence desvendou até ao momento.

Contos anteriores deste livro: