quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Lido: Brancos Mortos

Brancos Mortos (bib.), de Bruce Holland Rogers é, à semelhança de Como o Som do Vento nas Árvores, mais uma compilação de pequenas histórias do que propriamente um conto. Aqui são 11, as historietas, e têm pouco ou nada de fantástico. Trata-se de histórias quintessencialmente americanas, de tal forma que não foram poucas as vezes em que senti que havia ali alguma referência cultural que eu não estava a apanhar. Muito por isso, não gostei por aí além desta obra. Terminei a leitura com a sensação de que tinha sido escrita para um leitor americano e para um leitor americano, não para mim. De que procurava precisamente o contrário da universalidade que tantas vezes se encontra na literatura. Ou em qualquer arte, diga-se de passagem. Mas não posso dizer que me tenha desagradado. Não é isso, até porque basta a habitual competência de Rogers na elaboração dos seus contos para a leitura já valer a pena. Mas ficou-me a faltar qualquer coisa. E é provável que, de todo o livro, seja este o texto de que menos gostei.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Lido: O Castelo de Lorde Valentine

 O Castelo de Lorde Valentine (bib.), romance de Robert Silverberg pertencente à série ambientada em Majipoor, é uma fantasia científica que chegou a ser nomeada para um Hugo (perdendo para outra fantasia científica, algo mais fantasiosa e menos científica do que a de Silverberg: A Rainha de Gelo, de Joan D. Vinge). Para quem não conhece, Majipoor é um planeta gigantesco cuja população nativa, os metamorfos, capazes de se transformar em tudo e mais alguma coisa, motivo pelo qual ninguém morre de amores por eles, está subjugada e reduzida a reservas (até certo ponto voluntariamente). Quem domina o planeta é um conjunto de outras espécies, oriundas de outros mundos, que lá se instalaram. Com primazia dos humanos, como tantas vezes acontece. Tudo é gerido de forma absolutista pelo Coronal, uma espécie de imperador planetário que reside numa espécie de castelo erguido no cume de uma montanha que reduziria à insignificância o Monte Olimpo, em Marte — a maior montanha do Sistema Solar. Coronal esse cujo poder é no entanto contrabalançado por três outros poderes semidivinos.

A série, embora isso não seja tão marcado no belo As Crónicas de Majipoor como é aqui, utiliza a velha máxima de que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia para se servir de uma estrutura, e de várias técnicas literárias, típicas dos romances de fantasia. O herói, bastante típico enquanto tal, é Valentine, um jovem que começa o romance amnésico e perdido num lugar remoto, embora na posse de uma bolsa recheada de ouro. Todo o romance consiste numa jornada do herói, pois Valentine depressa começa a descobrir que entre ele e o Lorde Valentine, o Coronal, há mais laços do que a mera coincidência do nome. Laços que vão a pouco e pouco revelando uma conspiração política inaudita nos anais do planeta, e que o levam a atravessar dois continentes, acompanhado por um grupo cada vez mais numeroso de seguidores (estes começam por ser uma trupe de malabaristas), para desencadear uma revolução.

Não tenho bem a certeza se se pode dizer que este livro é sobre o poder e os seus limites. Mas certamente que o poder, a sua variedade, os ressentimentos e ódios que pode gerar, têm nele papel importante e fazem uma grande contribuição para o avançar da história. Também não me parece que se lhe possa chamar um livro político, apesar da política estar nele bem presente. Uma política medieval, para a qual são mais importantes as alianças entre os vários membros da aristocracia do que propriamente a capacidade de ganhar o apoio das massas (de forma bastante típica da maior parte da fantasia, este é uma consequência daquelas). Tudo se centra no herói, na (re?)aprendizagem do herói, nas relações que o herói vai estabelecendo, nas fidelidades ou infidelidades que se vão revelando, nas aventuras a que vai sobrevivendo. Nada de muito aprofundado, apesar da extensão do romance. Este tem algo de juvenil, e a sua extensão deve-se mais ao fascinante mundo que Silverberg criou e nos mostra do que propriamente a peculiaridades da organização social e política dos seus habitantes ou a um grande desenvolvimento das personagens.

Para mim, é isso o que aqui é mais interessante: o próprio planeta Majipoor, as suas paisagens, as estranhas criaturas que o habitam, inteligentes, não inteligentes ou assim-assim. O sentido de maravilha que o mundo provoca. Ou me provoca, pelo menos.

Mas também acho que este livro, tal como Duna, embora de uma forma algo diferente, poderia ser uma ótima ponte para que um público que, apesar da recente onda de distopias juvenis, ainda está a meu ver demasiado preso à fantasia (ou até a um determinado tipo de fantasia), comece a descobrir a ficção científica e a tomar contacto com algumas das suas características. Isto, bem entendido, na condição de ser reeditado como deve ser. Sim, que esta é uma edição da Argonauta na sua fase de declínio total. Está muito longe de ser uma boa edição.

Por conseguinte, não gostei muito dela. Chateia-me quando abro um livro, leio dez páginas e ele começa a desfazer-se. Chateia-me quando leio sistematicamente "viajem" em vez de "viagem". Chateiam-me várias outras coisas do género. E, pessoalmente, não sou grande fã de heróis e das suas jornadas. Mas há quem seja, e julgo que, para esses, este é um livro realmente bom. Ou pelo menos poderia sê-lo, se bem editado.

Este(s) livro(s) foi(ram) comprado(s).

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Lido: The Merchant and the Alchemist's Gate

The Merchant and the Alchemist's Gate é uma bela noveleta de Ted Chiang que, usando a técnica das narrativas dentro de narrativas e a ambientação das Mil e Uma Noites, conta uma convoluta história sobre viagens no tempo, através de portais, e reflete sobre os conceitos de destino e de livre arbítrio. O tempo que Chiang descreve é um tempo linear, inalterável e não sujeito a paradoxos. Não que qualquer tempo linear e inalterável esteja imune a paradoxos. Mas no universo que Chiang descreve sim. As viagens, que tanto podem realizar-se para o passado como para o futuro, acontecem numa linha temporal única, e a parte mais interessante da história é o modo como Chiang consegue conjugar isso, que em princípio geraria paradoxos do tipo "se eu souber que vou morrer no sítio tal a tais horas bastar-me-á não estar lá a essa hora para alterar o futuro que teoricamente será inalterável", com a conservação da capacidade de decisão individual e do inesperado, através de um conjunto de pequenas — ou não tão pequenas como isso — histórias entrelaçadas, cada uma centrada na sua personagem. O resultado é um perfeito nó — ou um nó perfeito, o que não é bem a mesma coisa — na cabeça e nos conceitos do leitor. Uma ficção científica de baixa tecnologia, muito filosófica, e bastante bem escrita. Muito bom.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Lido: A Ama

A Ama (bib.) é mais um conto de Steven Bauer que adapta histórias alheias, escritas para televisão. Os autores desta são Joshua Brand e John Falsey, e o conto, se nos pudéssemos abstrair da tradução, até seria razoável. Nada que nunca se tenha visto, mas razoável. Os protagonistas (ou, melhor dizendo, os antagonistas) da história são dois miúdos de Los Angeles, absolutamente insuportáveis, que têm o condão de correr rapidamente com toda e qualquer ama que a mãe tente contratar. São assim uma espécie de Calvin ou de Bart Simpson elevado à sétima potência. Até que lhes aparece uma que os domina. Como? Quem viu o filme Nanny McPhee já deve ter percebido. Sim, é mágica. E responde às traquinices com traquinices, tão perigosas que acaba por assustá-los e reduzi-los à complacência. Com outra tradução, não seria mau.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Lido: Brasil

Brasil (bib.) é um romance de ficção científica de Ian McDonald ambientado, como o título indica, no Brasil. Não no Brasil do futuro que o rótulo FC fará supor, ou pelo menos não no Brasil do futuro, mas em três Brasis diferentes, que no fim acabam por ser muitos mais e nenhum ao mesmo tempo.

O romance é dividido em oito partes, intituladas "Nossa Senhora" disto ou daquilo, e cada parte divide-se em três tempos, com as suas personagens e ambiente próprios. Um presente (em relação ao ano em que McDonald escreveu o livro, entenda-se; já passaram alguns), centrado numa moderninha carioca, produtora de reality shows, tão fútil e arrivista como se poderá supor de tal atividade. Um futuro, ambientado numa São Paulo ciberpunk de daqui a 20 anos e centrado num malandro de rua repleto de "jeitinho brasileiro", bissexual e trapaceiro, que muda de identidade como quem muda de cuecas. E um terceiro ambientado na época do Brasil colonial do início do século XVIII e centrado num jesuíta irlandês com um gostinho especial pela violência, que recebe a incumbência de mergulhar profundamente na Amazónia para averiguar o que se passa com um padre que terá enlouquecido, criando aí uma espécie de reino, implacavelmente rigoroso, consigo no trono.

E tudo isto regado a física quântica.

O livro tem interesse. Dele ressalta, principalmente, a magnífica qualidade descritiva da prosa de McDonald, capaz de criar ambientes complexos com pinceladas precisas, que com frequência chegam até a ser poéticas. O encadeamento das três histórias, a forma como elas se vão a pouco e pouco fundindo até à apoteose final, também está muito bem feito. Parte das ideias de que se socorre tem, igualmente, grande qualidade e o autor usa-as quase sempre com mestria, introduzindo-as na trama sem grandes infodumps nem oscilações de ritmo. McDonald é um bom escritor, provavelmente um dos melhores estilistas que estão atualmente em atividade na ficção científica anglófona, e isso fica aqui claro, mesmo na nem sempre bem sucedida tradução portuguesa.

Mas o livro não é perfeito. E julgo que devo advertir quem for alérgico a revelações sobre o enredo para pararem de ler aqui, ou para saltarem para o penúltimo parágrafo, pois vou ter de fazer algumas.

Quando as três histórias começam a fundir-se, o leitor depressa compreende que algo de invulgar ali se passa. E começa a compreender o quê quando, pouco depois, repara no repetido surgimento de umas peculiares facas quânticas, que cortam tudo e mais alguma coisa, deixando atrás de si uma luminescência azulada.

Até aqui, tudo bem.

A porca torce o proverbial rabo quando descobrimos que estamos num cenário de universos paralelos, ainda que com a nuance de não serem propriamente universos mas simulações num gigantesco computador quântico, algures no longínquo fim frio do Universo (fazendo lembrar um pouco o cenário descrito em Darwinia), no meio de uma guerra entre duas fações: a daqueles que pretendem manter as simulações isoladas da realidade até ao fim, e a dos que tentam revelar a verdade aos "sims". O problema é que os porquês não ficam minimamente claros. Não sei se por deficiência (ou escolha) do autor, se por insuficiências da tradução, não se percebe que ideias estão por trás das partes em conflito e portanto do conflito. Por que motivos uns acham necessário divulgar a informação e outros mantê-la secreta. Pior: como nos é dito que as simulações funcionam segundo a lógica das ramificações infinitas nos universos paralelos, aquela lógica segundo a qual um ato diferente dá origem a um novo universo, que vai seguir um novo caminho com esse ponto de divergência relativamente ao "original", a lógica afirma que qualquer tentativa de interferência de uns universos noutros só irá conseguir criar universos novos, não alterar os antigos. Portanto é fútil. Logo a própria guerra é fútil. Logo não faz sentido.

E isto, para mim, estraga a história.

E eu, que estava a gostar bastante até ao último quarto do livro, mesmo apesar de um certo excesso de exotismo, de um Brasil muito colado a uma visão excessivamente folclórica — excessivamente gringa — do país que não corresponde por inteiro à realidade, acabei por achar penosa a leitura do resto. Porque, pura e simplesmente, deixei de acreditar naquilo. A suspensão da descrença desfez-se. E é pena. McDonald é capaz de melhor.

Este livro foi comprado.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Lido: Guichê

Guichê é mais um poema de Alexandre O'Neill, embora, contrariamente aos anteriores, seja razoavelmente longo. Trata-se de um texto em que O'Neill destila a sua raiva contra os burocratas, não necessariamente funcionários públicos, mas decerto funcionários de alguma coisa, e a tendência que mostram de deixar o utente à espera ad aeternum enquanto põem a conversa em dia. Quando o burocrata trabalha, começa ele, é pior do que quando destrabalha. Entre a ironia e o sarcasmo, o poema é tão acutilante como este início sugere, e tem um fim absolutamente hilariante. Deste sim, gostei bastante.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Pois

Pois é outro poema de Alexandre O'Neill, um pouco mais comprido e substancialmente mais brejeiro, sobre a frustrante situação do "respeitoso membro de azevedo e silva" (assim mesmo, sem ter cá coisas maiúsculas) que queria, mas não conseguiu, "perpenetrar nas intenções de elisa". Mais uma historieta da vida banal que, sim, consegue provocar mais que um leve sorrisinho a quem tenha do humor a mesma conceção que eu. Deste gostei.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Chaval

Chaval é outro pequeno poema de Alexandre O'Neill sobre a banalidade quotidiana. Este é sobre um adolescente, ainda borbulhento e inocente. Gostei mais que do anterior, quanto mais não seja por causa do uso de terminologia pouco habitual, como "chaval". É sempre com gosto que vejo alguém a torpedear a mediocridade bem-pensante e melhor falante das "belas letras". Sou assim, um eterno chaval.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Escalfeta

Escalfeta é um daqueles pequenos poemas de Alexandre O'Neil sobre a pequenez da vida. É irónico, claro. Mas não gostei muito. Pareceu-me mais pretexto para encher uns quantos versos com rimas em -eta do que propriamente coisa com que o O'Neill quisesse mesmo dizer alguma coisa. Não é mau, mas não gostei muito.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Quem não percebe a unificação ortográfica levante a mão

Os caturras da velha ortografia têm assim uns entusiasmos súbitos com as coisas mais estapafúrdias. Cansados de derrotas, sempre que lhes aparece à frente um artigo de alguém a deitar abaixo a nova ortografia enchem o papo de ar e pavoneiam-se por aí, inchados de orgulho, quais pombos em pleno cio. Um dos casos mais recentes foi o de uma tal Maria Regina Rocha, que dedicou algumas horas do seu tempo livre, decerto, a fazer uma espécie de estudo em que pega no vocabulário da mudança disponível no Portal da Língua Portuguesa e conta o número de casos em que a nova ortografia "unifica" e "desunifica" a ortografia. Pretende com isso provar que o AO é absurdo porque não unifica coisa nenhuma, e blá blá blá e renhónhó.

O problema, claro, é que o que ela faz e diz padece de vários problemas. Problemas tão sérios que, se fossem doenças, dariam direito a internamento.

Em primeiro lugar, a senhora conta os casos em que a ortografia é unificada ou não o é, mas exclui à partida categorias inteiras de palavras, nas quais só muda a ortografia brasileira, e que, certamente por pura coincidência (caso contrário teríamos de concluir má-fé ou desonestidade intelectual, o que seria chato) ficam todas, sem exceção, iguais às portuguesas. Diz que é por serem "residuais". Acontece que o AO altera cerca de 0,5% do léxico brasileiro (contra 1,5% do português), e quase todas as alterações têm a ver, precisamente, com essas categorias de palavras. Pelo menos 0,4% do léxico.

É um resíduo e peras, hã?

Em segundo lugar, afirma coisas extraordinárias como esta: "Em Portugal, altera-se a ortografia fazendo desaparecer as referidas consoantes e, afinal, no Brasil, essa ortografia de cariz etimológico mantém-se!" Nem lhe passa pela cabeça (ou se passa voltamos à tal má-fé e desonestidade intelectual, o que volta a ser chato) que a tal "ortografia de cariz etimológico" só se mantém no Brasil quando não se limita a ser uma questão etimológica mas se trata de uma questão de pronúncia. Lá, como cá, as consoantes mantêm-se quando são pronunciadas. Não por a etimologia das palavras ser esta ou aquela, mas por a sua pronúncia ser esta ou aquela. Falar-se aqui de manutenção da etimologia é, como soi dizer-se, atirar areia para os olhos dos papalvos.

Ou distração, vá. Se calhar foi só distração.

Mas o mais importante nem é isto. É a confusão em que os caturras tantas vezes mergulham quanto ao significado da expressão "unificação ortográfica". Confundem unificação com uniformização e dizem disparates sobre o acordo não fazer o que diz que faz porque não uniformizou a ortografia da língua.

Acontece que nunca foi esse o objetivo.

Querem que eu repita?

Nunca. Foi. Esse. O. Objetivo.

O objetivo, conforme expresso em documentação oficial (um anexo ao texto legislativo que contém o acordo aquando da sua publicação em Diário da República, mais precisamente), sempre foi, desde o início, e cito, "consagrar uma versão de unificação ortográfica que fixe e delimite as diferenças actualmente existentes e previna contra a desagregação ortográfica da língua portuguesa." Quem saiba ler português, em qualquer das ortografias em que a língua se possa expressar (e esta é a antiga portuguesa, boa para caturras), facilmente compreenderá que o que aqui está em causa não é uma uniformização ortográfica, mas uma unificação no sentido em que passa com o AO a haver um documento único, válido para todos os países lusófonos, a definir a ortografia do português.

Um documento único, portanto unificado, a substituir os dois até aí existentes e a possibilidade muito real de passarem a haver mais a curto ou médio prazo.

Isto, é bom dizê-lo, podia ter sido feito deixando tudo como estava. Podia ter-se simplesmente criado um documento único que elencasse todas as variantes tal como existiam nas ortografias pré-AO, e o resultado em termos de unificação ortográfica seria o mesmo. Passaria na mesma a haver um único documento a definir a ortografia da língua portuguesa, e esta, portanto, ficaria unificada. Não uniformizada, mas unificada.

Mas os caturras não percebem isto. A mim parece coisa simples de entender, mas eles não entendem.

Mistérios do raciocínio caturreiro.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Lido: Como o Som do Vento nas Árvores

Como o Som do Vento nas Árvores (bib.) é um conto curto de Bruce Holland Rogers. Ou talvez seja mais adequado dizer que se trata de uma compilação de nove mini-contos e vinhetas, todos unidos pelo som. Não um som qualquer, mas aqueles sons monótonos e sem grande significado que nos acompanham ao longo de toda a vida. Tu, aí desse lado, prossivelmente estarás a ouvir neste preciso momento um desses sons: o da ventoinha que te arrefece o computador. Pois é sobre sons destes que Rogers escreve, sobre a importância que eles têm, talvez sobre a sua irrelevância, em situações que não raro são insólitas ou fantásticas. Um telefone que toca às três da manhã, uma sala de espetáculos onde uma ovação perdura até muito depois de toda a gente abandonar o edifício, o ruído do motor durante um suicídio, coisas assim. Tudo cheio daquela poesia que se intromete nas frinchas da realidade. Tudo muito bom.

Lido: O Comboio Fantasma

O Comboio Fantasma (bib.) é mais um dos contos a que Steven Bauer adapta histórias de outros criadores. Desta feita, o criador é um outro Steven mais famoso, Spielberg de apelido, que imagina uma situação em que um velhote, que se salvou de um desastre ferroviário muitas décadas antes, regressa ao local onde o desastre sucedeu. Mas encontra-o mudado. Por onde outrora passava a linha de caminho de ferro, entre searas, no presente há apenas searas e a casa da quinta que, por desígnio ou coincidência, foi erigida precisamente no local por onde passavam os carris. O conto é bastante previsível e aposto que muitos dos que lerem estas linhas já estão a ver onde vai dar. Sim, o velhote está convencido de que o comboio que não o levara décadas antes irá agora voltar, feito fantasma, para o vir buscar, e esforça-se por convencer a família a sair-lhe do caminho. E o resto é mais ou menos o que imaginam, sim.

Apesar de tão previsível, não me pareceu um mau conto. Ou pelo menos não o seria se não estivesse tão mal traduzido.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Sincronicidade

Sincronicidade (bib.) é um amargo conto curto de ficção científica de João Barreiros, dividido em dois tempos distintos, mas com protagonista único. No primeiro desses tempos, um jovem cheio de sonhos e de futuro candidata-se e é escolhido para servir de modelo a uma inteligência artificial que irá "tripular" a primeira sonda interstelar de exploração, dirigida a Próxima 4, presumivelmente o quarto planeta de Próxima do Centauro. Mas a ideia não é apenas servir de modelo; é também receber e tirar sentido da emissão da sonda quando ela chegar ao seu destino e a mensagem atravessar os 4.3 anos-luz que separam o planeta da Terra, muitos anos mais tarde. Este é o segundo tempo, mas entretanto a sociedade degenerou, o ambiente é, de novo, o da Fortaleza Europa, e o protagonista está já bem longe do miúdo que sonhava com as estrelas... tão longe, na verdade, que se esquecera por completo do assunto. Ele e todo o planeta, de resto. Não desvendarei o resultado. Mas não será surpresa se disser que é sombrio; afinal, trata-se de um conto do Barreiros. De um conto bastante bom do Barreiros, diga-se em abono da verdade.

Contos anteriores desta publicação:

sábado, 19 de janeiro de 2013

Lido: Forças do Mercado

Forças do Mercado (bib.) é um romance de ficção científica de Richard Morgan, ambientado num futuro próximo no qual a sociedade britânica se transformou no sonho molhado dos neoliberais. O Estado, basicamente, não existe, pois mesmo o pouco que dele ainda vai subsistindo formalmente não passa de uma marioneta nas mãos de interesses corporativos. A sociedade, quer a britânica, quer a generalidade das restantes, embora não exatamente da mesma forma, é dominada por um punhado de corporações privadas nas quais impera a ética do guerreiro. No mundo corporativo vale tudo desde que se dê lucro à empresa. O lucro traz-te promoções, faças o que fizeres para o obter. O falhanço em obtê-lo, bem, esse traz-te a morte.

E a morte pode chegar vinda de uma série de sítios diferentes, mas em geral toma a forma de um espalhafatoso acidente numa auto-estrada vazia. É que os executivos de topo neste mundo de Morgan são guerreiros do asfalto, gladiadores ao volante de automóveis topo de gama, artilhados com o último grito da tecnologia de blindagem, de travões, de motor, etc. Há que se ser rápido de reflexos. Há que se ser impiedoso. Há que se saber explorar os pontos fracos dos adversários assim que surja a mínima oportunidade. Cair sobre a jugular assim que esta se mostre, sem hesitações nem misericórdia. Porque só assim se ganham contratos (os quais geralmente envolvem a manipulação política e militar, e portanto económica, em países do Terceiro Mundo) e porque só assim se ascende na escada empresarial.

E porque só ascendendo na escada empresarial se pode evitar cair nas zonas, que é onde vive a generalidade da população neste radioso paraíso empresarial, zonas degradadas e abandonadas à violência dos gangues, onde as pessoas fazem o que têm a fazer para sobreviver mergulhadas em miséria e doenças, presos a esses guetos económicos e sociais tanto pelos preconceitos dos privilegiados, como pela sua própria miséria. Mas sempre há quem vá conseguindo abandonar esse mundo ou erguer-se acima dele. Através de truques e artimanhas, nos casos mais éticos. Por via do crime violento nos que o são menos.

Chris Faulkner, o protagonista do romance, é um desses homens. Chegou ao mundo empresarial através da fraude, e aí permaneceu (e nele foi subindo) por ser rápido e decidido. Um self made man, disposto a tudo apesar de atormentado por uma consciência que aos outros parece faltar. E por uma mulher inconvencional, que vive uma relação cada vez mais difícil com o que ele faz para ganhar dinheiro, e que assiste de uma forma cada vez mais repugnada às alterações que ele vai sofrendo. É este conflito, entre uma humanidade que ainda vai resistindo, apesar de tudo, e um ambiente que a tenta destruir com o máximo de violência, que empresta ao romance a grande força que ele tem.

Esse conflito e os aterradores paralelismos entre a situação que ele descreve e aquela que hoje vivemos. Porque estamos na antecâmara desse mundo, dominados por gente que põe os interesses privados, deles e dos amigos, acima de quaisquer outros, governados por gente sem valores nem um pingo de decência humana, gente que acha normal recorrer-se a qualquer baixaria para levar a sua avante. Se esta gente vencer, o mundo que nos espera é o que Morgan descreve neste romance. Não será tal e qual, não o imitará em todos os detalhes, mas em linhas gerais será isto, sim. É este o resultado da redução do Estado a quase nada. É este o resultado de entregar tudo às forças do mercado. E é isso que Morgan aqui nos mostra.

Forças do Mercado é um grande livro. Um belo romance de ficção científica que, como sempre acontece com a melhor ficção científica, fala do futuro para falar do presente. E por isso mesmo deve ter vendido muito mal. As ovelhas detestam quem as tenta alertar para estarem a ser levadas para o matadouro.

Este livro foi comprado.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Lido: Cobra de Fogo

Cobra de Fogo (bib.) é uma longa noveleta de Sid Castro sobre, basicamente, uma corrida. Mas uma corrida especial, à volta do mundo, entre gigantescas locomotivas de combustão interna que, apesar do nome, são uma espécie de cruzamento entre as locomotivas ferroviárias que conhecemos, os hovercrafts, e uma peculiar variedade de veículo aéreo que se socorre do efeito de solo, desenvolvido especialmente na URSS, o ecranoplano. Uma corrida em que conta não apenas a perícia dos condutores ou a qualidade tecnológica dos engenheiros que conceberam as máquinas, mas também o armamento de que estas podem dispor para eliminar a concorrência. Uma corrida entre nações, num mundo alternativo em que os Estados Confederados da América sobreviveram até meados do século XX e o Brasil se conservou império até esse momento, em que uma vez mais se espelham as tensões entre nações dominadas por uma extrema-direita racista e violentamente nacionalista e o resto das nações que, na nossa história, desembocaram na Segunda Guerra Mundial. Mas num mundo que decidiu resolver tais tensões de forma pacífica depois de passar por uma devastadora guerra de vinte anos. Como? Através da tal corrida, precisamente. E o que está em jogo desta vez? Nada mais, nada menos, que o domínio sobre a Amazónia.

Trata-se no fundamental de uma história alternativa com forte influência pulp e numerosas referências ou homenagens a figuras de primeiro plano da FC. Faz lembrar com frequência os desenhos animados dos Malucos das Máquinas Voadoras (Wacky Races no original); embora não haja aqui nenhum pombo para apanhar nem nenhum cão armado em esperto, há a corrida, as máquinas estrambólicas, as rocambolescas artimanhas e alguns Dick Dastardlies. Também faz por vezes lembrar as histórias do Rocketeer. Tem defeitos, sim. Há infodumps em excesso, nomeadamente no pano de fundo alo-histórico, há uma linha narrativa que nem sempre parece inteiramente coesa, há um desfecho apesar de tudo previsível, dado o tom de Brasil-potência que o texto toma desde o início. Mas também há com fartura daquele velho e indefinível sentido de maravilha de que tanto se fala quando se fala da boa velha (e antiquada) ficção científica. E isso, julgo, compensa em boa medida os defeitos desta história. Na verdade, ele foi tão intenso que conseguiu até fazer-me ultrapassar a minha antipatia pelo pulp. Coisa rara. Graças às locomotivas, as verdadeiras protagonistas desta história.

Contos anteriores deste livro:

Lido: História do Futuro

A História do Futuro, do Padre António Vieira, é um livro incompleto, escrito pouco depois do fim do domínio filipino, numa época em que Portugal procurava reafirmar a sua independência contra as pretensões castelhanas (que subsistiram durante muito tempo e tomaram por várias vezes a forma de invasões e guerras), embora só publicado quase 20 anos depois da morte do autor, após ser atentamente examinado — e talvez amputado — pela Inquisição, e que consiste de um longo exercício de retórica destinado a defender a tese de que está profetizado em vários textos sagrados para a Igreja Católica que o futuro a deus pertence e que o agente de deus nesse futuro é, precisamente, Portugal.

Removendo a densa camada religiosa, é fácil ver neste livro o que ele é: uma ardente defesa do direito à existência do reino de Portugal, destinada àquele que à época ainda era o mais poderoso poder político da Europa ocidental, apesar de já ter perdido o controlo sobre os territórios protestantes: o Papa. E, por extensão, todo o clero católico, extremamente influente em ambos os reinos envolvidos na disputa, o português e o castelhano. Para esse fim, Vieira vai vasculhar nos textos sagrados em busca de trechos que possam ser interpretados de forma favorável à sua tese: a de que foi profetizado que no mundo haverá cinco grandes impérios, e que o último é o império de Cristo, indistinguível do império de Portugal.

A minha motivação para ler este livro foi bastante peculiar em relação ao que é típico nos seus leitores. É que tem vindo a ser defendida a tese de que a História do Futuro é o primeiro texto utópico escrito em língua portuguesa, e que por conseguinte se trata de um percursor de alguma da literatura fantástica posterior, nomeadamente a ficção científica, a qual sempre incluiu uma vertente de obras utópicas. Depois de o ter lido, contudo, parece-me que esta ideia é seriamente equivocada. E explico porquê:

Na obra que deu o nome à literatura utópica, Utopia, Thomas More inventa uma ilha com o mesmo nome, cuja sociedade se organiza da forma que a More parece mais certa. Embora o seu objetivo fosse primariamente político e o livro de More seja no fundamental um tratado filosófico, estão nele presentes muitas das características da ficção fantástica posterior: a criação de uma espécie de mundo secundário, que reflete e contrasta com o do autor e dos seus leitores, a criação de uma sociedade cujas diferenças com a do autor são exacerbadas para que melhor se compreendam as insuficiências desta última, e até algo de semelhante a uma história.

Na História do Futuro, por outro lado, o Padre António Vieira não faz nada disso. Sustenta-se numa tradição profética católica e procura criar a sua própria profecia. É através desta que pretende conseguir a sua influência política com um único argumento: o de que "está escrito". Está escrito que Portugal é o país do futuro, está escrito que o Quinto Império, o império de Cristo, chegará através de Portugal, está escrito. Portanto para que vos esforçais, ó senhores de outros domínios, se os vossos esforços serão frustrados pelo destino? Acalmai-vos, reduzi-vos à vossa insignificância, pois por mais problemático que o presente se nos afigure, o futuro será nosso. Vieira não descreve qualquer espécie de utopia, não fala de como será a sociedade nesse fabuloso quinto império, limita-se a dizer que ele acontecerá e que será bom. Como pode não o ser, se se está a falar do império de Cristo?

Ora uma utopia, para que o seja de facto, não pode ficar-se por dizer que o futuro será (ou o presente ou o passado, algures, é ou foi) radioso. Tem de explicar como, tem de mostrar essa radiância, que formas ela toma, tomou ou tomará. E, embora talvez fosse essa a intenção de Vieira para este livro, a verdade é que aquilo que dele nos chegou não inclui nada do género. Portanto não, não me parece que se trate de um exemplar de literatura utópica e muito menos que seja percursor de qualquer ramo da nossa literatura fantástica. É um texto teológico e político, nada mais. Vieira tem muito mais a ver com Bandarra do que com More.

Questão diferente é analisá-lo enquanto influência. Aí, sim, trata-se de um texto bastante influente, porque criou ou impulsionou alguns dos mais duradouros mitos da cultura portuguesa (e também brasileira), que foram mais tarde integrados por uma miríade de outros autores nas suas obras, fantásticas ou não. Embora inclua poucas referências a D. Sebastião, e nenhuma declaradamente sebastianista, é um texto indissociável do sebastianismo enquanto filosofia; na verdade é um dos principais textos dessa filosofia. O futuro radioso que "está escrito" está intimamente ligado ao futuro radioso que depende de um rei que "regressará num dia de nevoeiro". E o sebastianismo permeia toda a cultura portuguesa, e as que por ela foram influenciadas ou dela se originaram; consequentemente também permeia todas as literaturas lusófonas, quer haja nelas algo de fantástico, quer não haja.

Faço um parêntesis para dizer que o sebastianismo é, aliás, um dos principais motivos do nosso reiterado fracasso enquanto nação, porque gerou ou incentivou uma atitude de daixa-andar que faz com que fiquemos para trás. O mesmo argumento que Vieira utiliza para levar os príncipes estrangeiros a abandonar os seus esforços para conquistar Portugal, serve para levar os próprios portugueses a baixar os braços. Se o futuro é nosso, faça eu o que fizer, para que me vou esforçar? O destino encarregar-se-á de se fazer cumprir, como é evidente. Onde esta atitude leva é fácil compreender: à estagnação bocejante e indiferente. E o país do futuro permanecerá para sempre país do futuro. É algo que se costuma dizer do Brasil, mas que se aplica como uma luva ao Portugal que Vieira descreve e em que os sebastianistas acreditam. Ou não fôssemos, brasileiros e portugueses, um só povo separado por um oceano.

Voltando ao curso desta opinião, sim, a História do Futuro é sem dúvida um texto muito influente. Mas influência é diferente de percurso; será quanto muito o relevo que obriga o percurso a seguir um determinado caminho. E se formos chamar percursores a todos os textos que influenciaram algum aspeto das literaturas da imaginação, teríamos de afirmar que só há dois tipos de literatura: a que já é fantástica e a que ainda só é sua percursora, o que é manifestamente absurdo.

OK, mas gostei do que li? Nem por isso, não. Vieira era um grande retórico e um bom escritor, é certo. Mas os grandes retóricos tendem a construir grandes edifícios retóricos, cheios de floreados e decorações barrocas, mas muito vazios de conteúdo. E eu detesto isso. Figadalmente. E entre as ideias que ele defende, poucas são as que não acho profundamente erradas, quando não mesmo daninhas. Portanto não, não foi leitura que me tivesse agradado particularmente. Mas foi instrutiva, isso foi.

Este livro foi obtido na internet há mais de 10 anos. Li uma edição brasileira, em PDF, com bastantes erros de reconhecimento de caracteres, preparada pela Universidade Federal do Amazonas. Procurando, julgo que ainda se conseguirá encontrá-la, algures, mas há outras disponíveis. Incluindo esta, do Wikisource.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Lido: De «A Cordial Botelha»

De «A Cordial Botelha» é um poema (quiçá um fragmento?) de Alexandre O'Neill, em quatro partes, que ironiza sobre outros tantos portuguesismos. Com ironia da boa, está bem de ver. Não resisto a citar uma dessas partes porque está tão atual que até irrita, apesar de ter sido escrita há mais de quarenta anos. Aqui vai:

Tome cuidado, senão
fazem-no Dr. do pé prà mão.
Mas se Dr. não diz que é,
fazem-no cão da mão prò pé.

Perceberam? É isto.

Lido: O Menino Morto à Tua Janela

O Menino Morto à Tua Janela (bib.) é mais um conto curto de fantasia, desta vez pintalgada de horror, de Bruce Holland Rogers. Começa por parecer uma história sobre amor maternal e sobre negação. Um menino nasce morto, e a mãe recusa-se a admitir que o bebé que acabara de dar à luz não vive. E portanto ele vive, ainda que morto. E cresce. Não porque viva e por isso se desenvolva, mas porque o pai constrói uma armação para o ir esticando. Até que um belo dia de vento uns rufias resolvem fazer dele papagaio de papel, e o resultado é inesperado: ele voa, e, voando, acaba por chegar a uma terra cheia de outros mortos como ele, que no entanto não são exatamente como ele porque lá chegaram depois de terem vivido. Trata-se de mais um belo conto, com ressonâncias de lenda, de conto popular, de história exemplar. Francamente bom.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Lido: A Atracção Principal

A Atracção Principal (bib.) é mais um dos contos que Steven Bauer adapta a partir de histórias criadas por outros, desta vez por Steven Spielberg. A história é uma sucessão de clichés atrás de clichés; uma daquelas típicas histórias liceais americanas, com os seus joguinhos de popularidade, os seus jocks, os seus nerds, os riquinhos e os pobretanas. Toda a gente está farta de conhecer histórias destas, e toda a gente já está farta de saber que, como os escritores, os criadores, os cineastas, passaram quase sempre a escola encerrados na timidez e na impopularidade, aprendendo aquilo que mais tarde vão usar para se tornarem escritores, criadores e cineastas, enquanto as cabeças ocas da popularidade se resumem a isso, no fim o jock acaba humilhado e o nerd vingado. Banalidade total. O tom de comédia sem piada só piora, o enredo movido a "meteoritos magnéticos" é, basicamente, idiota, e a tradução desfaz o resto. Péssimo.

Contos anteriores deste livro:

Leituras de 2012

Em 2012, mais uma vez, não li tanto como nos antigamentes em que não traduzia, embora tenha lido mais do que no ano anterior, ano que, por sua vez, teve leituras mais abundantes do que no que o antecedeu. Desta vez, o número relativamente escasso de livros lidos é culpa de um inverno e um início de primavera de leituras muito pouco abundantes, atrasadas por um par de romances compridos e muito chatos — até entrar maio tinha lido apenas três livros, menos de um por mês. Depois disso, as coisas entraram num ritmo mais acelerado, ainda que não tanto como nos bons velhos tempos. Mas acabo o ano com uma porção de livros meio lidos que são um belo avanço das "leituras de 2013". Na verdade, se somar as páginas já lidas de todos os livros que tenho em leitura é bem capaz de chegar às duas mil. E esse é outro motivo para o número relativamente baixo de livros lidos este ano: há uma dezena que transita para o ano que vem.

No que toca a géneros foi um ano variado, com um pouco de muita coisa, ainda que tenha pendido mais para a ficção científica do que para o resto. Também li mais horror do que costumava ser hábito, quase todo clássico (ou neoclássico). E li BD, o que já não fazia há anos e anos, embora não por iniciativa própria. A verdade, contudo, é que nada se sobrepôs realmente ao resto: nem os livros de FC, que foram a maioria, chegaram à maioria absoluta. E isso é bom.

Os livros propriamente ditos, lidos por lazer mas todos comentados na Lâmpada ao longo do ano, foram bastante mais do que no ano passado, tendo somado 29. A lista completa é a seguinte:

1- O Tesouro da Rainha do Sabá, de Nuno Júdice (noveleta surrealista);
2- Vaporpunk, org. por Gerson Lodi-Ribeiro e Luís Filipe Silva (contos e novelas steampunk);
3- O Mistério da Estrada de Sintra, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão (romance mainstream com toques de policial);
4- A Erva Vermelha, de Boris Vian (romance com aspetos de mainstream, ficção científica e surrealismo);
5- Ensaio Sobre a Lucidez, de José Saramago (romance fantástico com toques de ficção científica);
6- Titus: O Herdeiro de Gormenghast, de Mervyn Peake (romance de fantasia fortemente surrealista);
7- A Peste Negra, de Gomes Leal (ficção curta fantástica);
8- Barroco Tropical, de José Eduardo Agualusa (romance de ficção científica distópica);
9- Terrortório, de vários (contos de terror);
10- O Silmarillion, de J. R. R. Tolkien (um romance e vários contos de fantasia);
11- Contos Galácticos, de James Blish (contos de ficção científica);
12- Contos Espantosos, de vários autores (contos fantásticos e mainstream);
13- A Noite e o Sobressalto, de Pedro Medina Ribeiro (contos de horror);
14- Contos Encantados, de vários autores (contos de fantasia e mainstream);
15- Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho (romance histórico);
16- Antologia de Contos Temáticos, organizada por Henry Alfred Bugalho (contos fantásticos e mainstream);
17- Anjos Pistoleiros, de Paul McAuley (romance de ficção científica);
18- O Planeta Vermelho, de Russ Winterbotham (romance de ficção científica);
19- À Boleia Pela Galáxia, de Douglas Adams (romance de ficção científica humorística);
20- Antologia do Conto Fantástico Português, org. por E. M. de Melo e Castro e Fernando Ribeiro de Mello (contos fantásticos);
21- Os Jogos do Capricórnio, de Robert Silverberg (contos de ficção científica);
22- Contos Lendários, de vários autores (contos de fantasia);
23- Invasores Terrestres, de Robert Silverberg (romance de ficção científica);
24- O Melhor do Desafio Operário, org. Ana Cristina Rodrigues (contos de ficção científica e fantasia);
25- O Fim do Sr. Y, de Scarlett Thomas (romance fantástico);
26- Julieta, de Pinheiro Chagas (conto de horror);
27- Contos Misteriosos, de vários (contos fantásticos e mainstream);
28- Forças do Mercado, de Richard Morgan (romance de ficção científica);
29- História do Futuro, do Padre António Vieira (texto retórico e teológico)

A acrescentar aos livros li também revistas, que funcionam praticamente como se fossem antologias periódicas e portanto também contam para o total. E já tinha dito isto no ano passado. Foram é metade das do ano passado; duas em vez de quatro:

30- E-zine BBDE, nº 1 (fanzine com contos e poemas fantásticos e mainstream);
31- Asimov's, nº 326 (revista com contos e poemas de ficção científica e alguma fantasia)

Por fim, e de novo tal como no ano passado, li alguns livros por obrigação laboral. No ano anterior tinham sido dois, este último ano foram cinco. Ei-los:

32- The Hedge Knight, de George R. R. Martin, Ben Avery, Mike S. Miller e Mike Crowell (BD de fantasia medieval);
33- Sworn Sword, de George R. R. Martin, Ben Avery e Mike S. Miller (BD de fantasia medieval);
34- Windhaven, de George R. R. Martin e Lisa Tuttle (romance de ficção científica)

Espera lá, deve estar o belo do leitor atento a dizer neste momento, não eram cinco? Eram, pois eram. Mas há dois de que só vos falarei para o ano. Porquê? É cá comigo.

Livro do ano? Desta vez é fácil: Forças do Mercado, do Morgan. Já decidir quem o acompanha no habitual trio de leituras em destaque é mais difícil. Provavelmente escolheria Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde e o Ensaio Sobre a Lucidez, com O Fim do Sr. Y e Barroco Tropical não muito atrás. Curiosamente, são só romances... embora Vaporpunk também estivesse nesta lista caso não contivesse uma novela minha.

Quanto às piores leituras do ano, não li nenhum daqueles livros sem qualidades que se destacam claramente dos demais. Mesmo aquela publicação que de facto se destaca das demais, o E-zine BBDE, nº1, contém algumas coisas interessantes. Tirando este ezine, e embora tenha havido vários outros livros de que não gostei, os piores deste ano que passou são todos melhores do que os piores de 2011. Mesmo assim, a escolha de três não é fácil. O Planeta Vermelho tem de constar da lista, suponho, mas quanto ao outro... hesito. Talvez A Peste Negra, seguida de perto pela Antologia de Contos Temáticos e pelo Tesouro da Rainha de Sabá.

E quanto a 2012 estamos conversados. Venha 2013.