Deveria hoje publicar aqui mais uma parte da minha série de artigos sobre a edição presente e futura, mas umas alterações que fiz ao publicar a parte de ontem exigiram fazer também alterações na estrutura das próximas partes, e não tenho agora tempo. Terá de ficar para amanhã. Isso não será hoje.
Hoje é isto, às nove da noite, na Casa Inglesa em Portimão. O aniversário com aniversariante ausente, livros pelo meio e umas cervejinhas a acompanhar. Venha quem vier; eu lá estarei, sozinho ou acompanhado, pelo menos durante uma horita. Quem vier, já agora acrescento, vai poder ver uma novidade em primeiríssima mão.
E hoje é também o fim do prazo para isto. Se não fosse esta mania que toda a gente tem de escrever a computador, dir-vos-ia a propósito "força nas canetas".
A quem vier celebrar o meu velhote, até logo. A quem não vier, até amanhã aqui no blogue, ou até já nas redes sociais.
sábado, 30 de novembro de 2013
Lido: Excertos de Cá Vai Lisboa
Cá Vai Lisboa, romance de um tal Alface que eu desconhecia mas, pelo exemplo junto, provavelmente não devia, é aqui representado por quatro excertos de cerca de uma página cada. São nacos de prosa muitíssimo bem escritos, onde se conjuga na perfeição um oralismo cheio daquela vivacidade que a fala tem e a literatura muitas vezes gostaria de ter mas não consegue, cheio também de toques de um castiço lisboeta que é bem capaz de estar perdido para sempre, com rios de uma ironia que consegue ser ao mesmo tempo fina e javardolas e uma sofisticação no uso da língua que não está ao alcance de muitos. Isto, literariamente, é muito bom. Muito mesmo. Só não sei, porque os excertos não são suficientes para o aferir, se também o é na história que conta. Parece ser uma história marcadamente popular, ao jeito da Crónica dos Bons Malandros do Zambujal, mas os excertos não são suficientes para se perceber se é boa ou má, se o enredo é interessante, etc. Parece ser divertida. E fiquei certamente curioso. Mas sem garantias.
Textos anteriores deste livro:
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sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Da edição presente e futura: Fraude?
(Este texto vem na sequência de outros três: este, este e mais este.)
Olhemos um pouco mais de perto para o que faz uma editora a sério. Embora nem todas funcionem da mesma forma, até porque algumas são mais especializadas e outras mais generalistas e nem todas as secções do mercado livreiro têm um funcionamento exatamente igual, regra geral as editoras a sério fazem apostas em livros de retorno certo, ou quase, a fim de cobrir os prováveis (ou certos) prejuízos de apostas mais arriscadas. É daí que vem a cultura do best-seller que invadiu livrarias e supermercados. É também daí que vem a propensão para a série, e frequentemente para a série longa, que infetou boa parte da literatura mais comercial. O best-seller, em especial aquele que vende bem anos a fio, ou a série, na qual um livro se segue a outro mantendo desejavelmente um público fiel que quer saber onde a história vai desaguar, são as apólices de seguro da editora, aquilo que lhe permite manter alguma estabilidade de caixa e dinheiro para pagar a funcionários e colaboradores e para investir em compras de direitos, contratos nacionais, campanhas de marketing (que por sua vez alimentam os best-sellers), etc.
Em países como Portugal, a grande maioria dos best-sellers ou das séries é importada. São livros já testados em outros mercados que as editoras lutam por garantir para si, na esperança de resultarem também no nosso. Nem sempre resultam, e é aqui que reside o risco que este tipo de edição tem. Pode ser pequeno, o risco, mas também pode ser grande, quando a editora investe pesadamente num livro ou numa série que depois não dá o retorno previsto. Uma forma de diminuir ainda mais o risco é apostar em livros ou séries de livros associados a filmes ou séries de televisão de grande sucesso, mais raramente a outros media como os jogos de computador. Reduzir, apenas; na edição a sério não existe ausência de risco.
Outros best-sellers são nacionais: escritores (e “escritores”) com público praticamente garantido à partida, seja pela sua relevância cultural, seja porque são caras conhecidas de outros media, e também aqui o risco existe, se bem que ao editar um livro do Saramago, do Lobo Antunes ou do José Rodrigues dos Santos a editora tenha à partida alguma garantia de vendas significativas.
Chocados com a mistura entre Saramago, Lobo Antunes e JRS? Não fiquem, que na verdade a qualidade pouca influência tem em tudo isto. O best-seller tanto pode ser um livro de um prémio Nobel como pode ser uma biografia do Cristiano Ronaldo ou porno-chanchadas em tons de cinza, passando por uma série de pontos intermédios. Não importa o que seja, basta que se venda bem para que o efeito que tem sobre o funcionamento da editora seja praticamente igual.
(Só não é exatamente igual porque a cada edição está associada uma certa quantidade de prestígio ou desprestígio, embora este fator esteja em acelerada erosão: editoras que há alguns anos se recusariam a publicar certas coisas por temerem o desprestígio a elas associado, hoje publicam-nas alegremente simplesmente porque lhes dá lucros que não obtêm de outra forma.)
Se os best-sellers lhes permitem algum desafogo financeiro, as editoras mais apegadas ao seu velho papel de provedoras do gosto dedicam-se a publicar livros que consideram importantes, relevantes ou de grande qualidade, pese embora a elevada probabilidade de resultarem em vendas fracas e prejuízos. Outras, as que ainda se preocupam com o prestígio, dedicam-se, precisamente, à edição de prestígio: obras premiadas, escritores malditos ou obscuros, etc. Outras estão-se nas tintas e publicam mais do mesmo, sempre mais do mesmo, preocupadas apenas com a obsessão puramente capitalista de ampliar os resultados de tesouraria e arranjar dividendos para entregar aos acionistas.
Mas isto só acontece se e enquanto a editora tem algum desafogo financeiro. Se este desaparece, por exemplo porque o país é entregue a um bando de loucos perigosos que lhe destrói a economia em nome de amanhãs que cantam que só eles conseguem vislumbrar, a primeira coisa a ser sacrificada são as edições deficitárias. E lá se vão os livros que em princípio vendem pouco, lá se vão os autores de prestígio, lá se vai a qualidade como fator razoavelmente decisivo na hora de escolher que livros publicar. Ficam só os best-sellers, que já não o são tanto como isso (passam a ser só sellers). Ficam só as edições que trazem consigo o mínimo risco possível, a máxima garantia de retorno.
O risco, contudo, nunca, nunca desaparece. É isso que todos estes livros e todas estas editoras, apesar de toda a sua variedade, têm em comum: cada edição é um risco, cada edição é um investimento, cada edição é, pelo menos em parte, um salto no escuro.
Depois, as editoras a sério têm de competir com empresas fornecedoras de serviços editoriais disfarçadas de editoras. Estas últimas não correm riscos ou, por outra, o único risco que correm é faltarem-lhes escritores prontos a pagar para verem a sua produção em livro (e estes nunca parecem faltar). Podem vender um total acumulado de zero, que continuam calmamente a funcionar como se nada fosse e a lançar para o mercado obra atrás de obra, quantas mais melhor, porque cada obra “editada” corresponde a xis que entra nas contas bancárias da empresa.
Tenho uma historiazinha pessoal que mostra o tipo de atitude que se pode esperar quando a edição está paga aconteça o que acontecer às vendas. O meu primeiro livro, fruto de um prémio num concurso literário, foi publicado numa edição paga pela entidade que promoveu o prémio. Por conseguinte, a editora nunca se preocupou em tentar vendê-lo, tratou a edição com total indiferença. Chegou até ao ponto do ridículo quando uma conhecida minha se dirigiu à sede da editora — segundo julgo saber, tem livraria própria — para comprar um exemplar, e o funcionário lhe disse que esse livro não existia. Que não existia. Foi preciso ela insistir, dizer até que conhece o autor, para lá lhe arranjarem o exemplarzinho. O qual, milagrosamente, passou de repente a existir.
E é basicamente isto que estas editoras fazem. Põem os livros cá fora, mais ou menos a trouxe-mouxe e com pouco interesse em vendê-los porque pura e simplesmente não precisam: já têm o lucro garantido com a própria edição, podem partir para outra. O autor, que pagou, que trate também das vendas. Se quiser recuperar algum do seu dinheiro.
Aqui reside a primeira parte da fraude. Porque não são raros os autores que vão ao engano, julgando que os seus livros serão distribuídos como os de uma editora a sério, julgando vir a poder encontrá-los nas livrarias, julgando até, por vezes, que à edição vem associada alguma espécie de marketing. Por vezes, isso é-lhes explicitamente prometido, outras vezes é apenas sugerido, outras nem sugerir é preciso; basta deixar que a ingenuidade e a inexperiência da grande maioria das pessoas que embarca na fraude faça o que tem a fazer.
Depois há a parte em que os próprios autores são cúmplices, quando pagam a edição e depois se apresentam como autores de um livro publicado pela editora Tal. Como se a editora Tal tivesse analisado o manuscrito, o tivesse considerado digno de publicação e o tivesse publicado depois de passar por todo o processo por que passam os livros publicados por editoras a sério, quando na verdade o que a “editora” Tal faz é dizer dá cá o dinheirinho, toma lá o livrinho. Tem havido casos de autores que resolveram testar até que ponto chega a indiferença com o tipo de lixo que acaba publicado, propondo a edição das maiores porcarias que conseguem criar, textos manhosos, propositadamente cheios de clichés, de buracos no argumento, de erros de português, de tudo e mais alguma coisa, e acabaram por obter a lógica resposta de oh, meu caro amigo, que obra magnífica, é claro que queremos publicá-la, o preço é xis.
Não, quem assim publica não tem livros publicados por editora nenhuma. Tem edições de autor encapotadas, pelas quais paga mais do que pagaria por uma edição de autor propriamente dita, e que apresenta fraudulentamente como edições a sério, procurando enganar o público, procurando levá-lo a crer que o que produziu teve o aval de uma empresa de profissionais do ramo.
As águas tornam-se ainda mais turvas porque várias destas empresas não se assumem. À primeira vista está tudo normal, mas nos bastidores circula dinheiro no sentido errado, ou são propostos contratos em que o autor é obrigado a comprar parte da edição (o suficiente para esta ficar paga, claro; tudo o que se vender depois é lucro). Mais fraude? Pois.
Se estas empresas não agissem assim fraudulentamente, se se apresentassem como prestadoras de serviços editoriais e não como editoras, nada teria a opor-lhes. As coisas seriam claras. As edições seriam o que são na realidade: edições de autor. E os produtores de conteúdos teriam empresas onde encontrar serviços que poderiam achar necessários. Os que não soubessem fazer paginação teriam onde contratar um paginador; os que precisassem de ilustrações saberiam quanto teriam de pagar pelo trabalho de um ilustrador; quem não fosse capaz de rever os próprios textos poderia ter acesso aos serviços de um revisor, e assim por diante. E depois editariam os seus livros em seu nome, sob a sua própria responsabilidade. Tudo claro, tudo às claras, tudo honesto.
Dir-me-ão: oh Jorge, mas toda a gente sabe que as edições de autor são uma porcaria…
Toda a gente poderá saber tal coisa, mas, se assim é, toda a gente sabe mal. Isso, contudo, já é conversa para amanhã. Por hoje, fiquem-se com um nome: Miguel Torga.
Olhemos um pouco mais de perto para o que faz uma editora a sério. Embora nem todas funcionem da mesma forma, até porque algumas são mais especializadas e outras mais generalistas e nem todas as secções do mercado livreiro têm um funcionamento exatamente igual, regra geral as editoras a sério fazem apostas em livros de retorno certo, ou quase, a fim de cobrir os prováveis (ou certos) prejuízos de apostas mais arriscadas. É daí que vem a cultura do best-seller que invadiu livrarias e supermercados. É também daí que vem a propensão para a série, e frequentemente para a série longa, que infetou boa parte da literatura mais comercial. O best-seller, em especial aquele que vende bem anos a fio, ou a série, na qual um livro se segue a outro mantendo desejavelmente um público fiel que quer saber onde a história vai desaguar, são as apólices de seguro da editora, aquilo que lhe permite manter alguma estabilidade de caixa e dinheiro para pagar a funcionários e colaboradores e para investir em compras de direitos, contratos nacionais, campanhas de marketing (que por sua vez alimentam os best-sellers), etc.
Em países como Portugal, a grande maioria dos best-sellers ou das séries é importada. São livros já testados em outros mercados que as editoras lutam por garantir para si, na esperança de resultarem também no nosso. Nem sempre resultam, e é aqui que reside o risco que este tipo de edição tem. Pode ser pequeno, o risco, mas também pode ser grande, quando a editora investe pesadamente num livro ou numa série que depois não dá o retorno previsto. Uma forma de diminuir ainda mais o risco é apostar em livros ou séries de livros associados a filmes ou séries de televisão de grande sucesso, mais raramente a outros media como os jogos de computador. Reduzir, apenas; na edição a sério não existe ausência de risco.
Outros best-sellers são nacionais: escritores (e “escritores”) com público praticamente garantido à partida, seja pela sua relevância cultural, seja porque são caras conhecidas de outros media, e também aqui o risco existe, se bem que ao editar um livro do Saramago, do Lobo Antunes ou do José Rodrigues dos Santos a editora tenha à partida alguma garantia de vendas significativas.
Chocados com a mistura entre Saramago, Lobo Antunes e JRS? Não fiquem, que na verdade a qualidade pouca influência tem em tudo isto. O best-seller tanto pode ser um livro de um prémio Nobel como pode ser uma biografia do Cristiano Ronaldo ou porno-chanchadas em tons de cinza, passando por uma série de pontos intermédios. Não importa o que seja, basta que se venda bem para que o efeito que tem sobre o funcionamento da editora seja praticamente igual.
(Só não é exatamente igual porque a cada edição está associada uma certa quantidade de prestígio ou desprestígio, embora este fator esteja em acelerada erosão: editoras que há alguns anos se recusariam a publicar certas coisas por temerem o desprestígio a elas associado, hoje publicam-nas alegremente simplesmente porque lhes dá lucros que não obtêm de outra forma.)
Se os best-sellers lhes permitem algum desafogo financeiro, as editoras mais apegadas ao seu velho papel de provedoras do gosto dedicam-se a publicar livros que consideram importantes, relevantes ou de grande qualidade, pese embora a elevada probabilidade de resultarem em vendas fracas e prejuízos. Outras, as que ainda se preocupam com o prestígio, dedicam-se, precisamente, à edição de prestígio: obras premiadas, escritores malditos ou obscuros, etc. Outras estão-se nas tintas e publicam mais do mesmo, sempre mais do mesmo, preocupadas apenas com a obsessão puramente capitalista de ampliar os resultados de tesouraria e arranjar dividendos para entregar aos acionistas.
Mas isto só acontece se e enquanto a editora tem algum desafogo financeiro. Se este desaparece, por exemplo porque o país é entregue a um bando de loucos perigosos que lhe destrói a economia em nome de amanhãs que cantam que só eles conseguem vislumbrar, a primeira coisa a ser sacrificada são as edições deficitárias. E lá se vão os livros que em princípio vendem pouco, lá se vão os autores de prestígio, lá se vai a qualidade como fator razoavelmente decisivo na hora de escolher que livros publicar. Ficam só os best-sellers, que já não o são tanto como isso (passam a ser só sellers). Ficam só as edições que trazem consigo o mínimo risco possível, a máxima garantia de retorno.
O risco, contudo, nunca, nunca desaparece. É isso que todos estes livros e todas estas editoras, apesar de toda a sua variedade, têm em comum: cada edição é um risco, cada edição é um investimento, cada edição é, pelo menos em parte, um salto no escuro.
Depois, as editoras a sério têm de competir com empresas fornecedoras de serviços editoriais disfarçadas de editoras. Estas últimas não correm riscos ou, por outra, o único risco que correm é faltarem-lhes escritores prontos a pagar para verem a sua produção em livro (e estes nunca parecem faltar). Podem vender um total acumulado de zero, que continuam calmamente a funcionar como se nada fosse e a lançar para o mercado obra atrás de obra, quantas mais melhor, porque cada obra “editada” corresponde a xis que entra nas contas bancárias da empresa.
Tenho uma historiazinha pessoal que mostra o tipo de atitude que se pode esperar quando a edição está paga aconteça o que acontecer às vendas. O meu primeiro livro, fruto de um prémio num concurso literário, foi publicado numa edição paga pela entidade que promoveu o prémio. Por conseguinte, a editora nunca se preocupou em tentar vendê-lo, tratou a edição com total indiferença. Chegou até ao ponto do ridículo quando uma conhecida minha se dirigiu à sede da editora — segundo julgo saber, tem livraria própria — para comprar um exemplar, e o funcionário lhe disse que esse livro não existia. Que não existia. Foi preciso ela insistir, dizer até que conhece o autor, para lá lhe arranjarem o exemplarzinho. O qual, milagrosamente, passou de repente a existir.
E é basicamente isto que estas editoras fazem. Põem os livros cá fora, mais ou menos a trouxe-mouxe e com pouco interesse em vendê-los porque pura e simplesmente não precisam: já têm o lucro garantido com a própria edição, podem partir para outra. O autor, que pagou, que trate também das vendas. Se quiser recuperar algum do seu dinheiro.
Aqui reside a primeira parte da fraude. Porque não são raros os autores que vão ao engano, julgando que os seus livros serão distribuídos como os de uma editora a sério, julgando vir a poder encontrá-los nas livrarias, julgando até, por vezes, que à edição vem associada alguma espécie de marketing. Por vezes, isso é-lhes explicitamente prometido, outras vezes é apenas sugerido, outras nem sugerir é preciso; basta deixar que a ingenuidade e a inexperiência da grande maioria das pessoas que embarca na fraude faça o que tem a fazer.
Depois há a parte em que os próprios autores são cúmplices, quando pagam a edição e depois se apresentam como autores de um livro publicado pela editora Tal. Como se a editora Tal tivesse analisado o manuscrito, o tivesse considerado digno de publicação e o tivesse publicado depois de passar por todo o processo por que passam os livros publicados por editoras a sério, quando na verdade o que a “editora” Tal faz é dizer dá cá o dinheirinho, toma lá o livrinho. Tem havido casos de autores que resolveram testar até que ponto chega a indiferença com o tipo de lixo que acaba publicado, propondo a edição das maiores porcarias que conseguem criar, textos manhosos, propositadamente cheios de clichés, de buracos no argumento, de erros de português, de tudo e mais alguma coisa, e acabaram por obter a lógica resposta de oh, meu caro amigo, que obra magnífica, é claro que queremos publicá-la, o preço é xis.
Não, quem assim publica não tem livros publicados por editora nenhuma. Tem edições de autor encapotadas, pelas quais paga mais do que pagaria por uma edição de autor propriamente dita, e que apresenta fraudulentamente como edições a sério, procurando enganar o público, procurando levá-lo a crer que o que produziu teve o aval de uma empresa de profissionais do ramo.
As águas tornam-se ainda mais turvas porque várias destas empresas não se assumem. À primeira vista está tudo normal, mas nos bastidores circula dinheiro no sentido errado, ou são propostos contratos em que o autor é obrigado a comprar parte da edição (o suficiente para esta ficar paga, claro; tudo o que se vender depois é lucro). Mais fraude? Pois.
Se estas empresas não agissem assim fraudulentamente, se se apresentassem como prestadoras de serviços editoriais e não como editoras, nada teria a opor-lhes. As coisas seriam claras. As edições seriam o que são na realidade: edições de autor. E os produtores de conteúdos teriam empresas onde encontrar serviços que poderiam achar necessários. Os que não soubessem fazer paginação teriam onde contratar um paginador; os que precisassem de ilustrações saberiam quanto teriam de pagar pelo trabalho de um ilustrador; quem não fosse capaz de rever os próprios textos poderia ter acesso aos serviços de um revisor, e assim por diante. E depois editariam os seus livros em seu nome, sob a sua própria responsabilidade. Tudo claro, tudo às claras, tudo honesto.
Dir-me-ão: oh Jorge, mas toda a gente sabe que as edições de autor são uma porcaria…
Toda a gente poderá saber tal coisa, mas, se assim é, toda a gente sabe mal. Isso, contudo, já é conversa para amanhã. Por hoje, fiquem-se com um nome: Miguel Torga.
Lido: Momento de Poesia
Momento de Poesia é... hm... como é que eu descrevo isto?
Bem, é um texto de O Meu Pipi. E... hum... goza com a poesia concreta, ou seja, simula um poema concreto. Ou é um poema concreto, se calhar. Nem sei. E, sendo do Pipi, tem obviamente a ver com sexo. No caso, o feminino. E tem piada. Onde? Há que encontrá-la.
Acho que é isto. Acho que consegui descrever o Momento de Poesia. E nem tive de falar do subtítulo. Mas vejam por vocês mesmos, aqui. É só puxar para baixo.
Textos anteriores deste livro:
Bem, é um texto de O Meu Pipi. E... hum... goza com a poesia concreta, ou seja, simula um poema concreto. Ou é um poema concreto, se calhar. Nem sei. E, sendo do Pipi, tem obviamente a ver com sexo. No caso, o feminino. E tem piada. Onde? Há que encontrá-la.
Acho que é isto. Acho que consegui descrever o Momento de Poesia. E nem tive de falar do subtítulo. Mas vejam por vocês mesmos, aqui. É só puxar para baixo.
Textos anteriores deste livro:
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Da edição presente e futura: Vaidade?
(É capaz de convir ler primeiro a primeira e a segunda parte disto)
Afinal foi ainda hoje, não amanhã.
Em inglês, empresas que tenham como clientes os produtores de conteúdos, em particular os escritores, têm um nome, depreciativo, do qual não gostam nem as empresas em si nem os que as contratam para pôr no mercado o que produzem: vanity press. Também não gosto deste nome, confesso, principalmente porque ele tende a subestimar grosseiramente o peso que a vaidade e os egos também têm na edição tradicional. Só quem não conhece escritores pode julgar que as vaidades estão restritas ao mundo das vanities e que só aí se encontra gente cuja noção de auto-importância é incomensuravelmente superior à sua importância real. Há exceções, obviamente, pois em tudo há exceções, mas de uma maneira geral um escritor (e provavelmente poder-se-ia falar aqui de artistas em geral) é um ególatra. Há uma arrogância intrínseca a acharmos que o que temos a dizer interessa a alguém ou tem alguma importância para o que quer que seja exterior ao confinamento do nosso crânio. Mas enfim, goste eu ou não, é isso que os anglófonos chamam a estas empresas. E têm sido elas a estar no centro das mais monumentais zaragatas dos últimos tempos.
E a minha opinião é:
Nada tenho contra elas. Desde que não se tentem fazer passar por editoras.
Porque, lá está, uma editora contrata produtores de conteúdos para satisfazer a procura dos clientes, os leitores, e não é isso que essas empresas fazem. O que essas empresas fazem é fornecer serviços editoriais aos produtores de conteúdos. Para a maioria pouco importa se um livro vende ou não, pouco interessa se existe procura ou esta não passa de miragem. O seu mercado não é o mercado livreiro, habitat das editoras propriamente ditas, mas o dos produtores de conteúdos em busca de ajuda. Que também ponham os livros à venda e que também obtenham lucros daí pouco importa: na generalidade dos casos não estão dependentes das vendas como as editoras a sério estão, porque as edições já foram pagas pelos próprios escritores. São estes quem corre todos os riscos.
E não são eles quem colhe as recompensas, se recompensas existirem.
Apesar disso, não, não tenho nada contra elas, por princípio.
Tal como nada tenho contra um escritor contratar um agente para potenciar a sua carreira. Ou tal como nada tenho contra um escritor que pretende autoeditar-se pagar a uma gráfica para lhe imprimir os livros. Não vejo nenhum mal em empresas fornecerem serviços editoriais, sejam eles quais forem, aos produtores de conteúdos e também não vejo nenhum mal em tentarem lucrar com isso. Se uma empresa pretende funcionar, digamos, como ponto de encontro entre produtores de conteúdos de vária índole — entre escritores e ilustradores, por exemplo — ou entre estes e outros técnicos envolvidos na produção de livros — paginadores, gráficos, etc. — e se conseguir sobreviver assim, atribuindo um preço a cada serviço e informando claramente o que os clientes obtêm desse serviço, parece-me uma atividade económica tão válida como outra qualquer. Nem sequer me parece mal que uma empresa dessas se faça pagar por serviços que se podem obter gratuitamente, como a obtenção do ISBN, desde que o preço não seja exorbitante, ou seja, desde que não ultrapasse um ou dois euritos: não deixa de ser trabalho que alguém tem de fazer, não deixa de exigir gastar-se algum tempo. Se um escritor acha que não tem tempo ou paciência para se informar sobre como se solicitam os ISBN e depois para os solicitar, não vejo que venha nenhum mal ao mundo que pague a quem o faça por ele… desde que não vá ao engano, desde que saiba que, se quisesse, o poderia fazer ele próprio sem gastar um cêntimo.
Não, o problema não está na existência dessas empresas e nem sequer na sua atividade. Está no modo como essa atividade se processa. Está em fazerem-se passar por editoras. Aí é que a porca torce o rabo. Aí é que há fortes elementos de fraude, da qual as empresas são culpadas e os produtores de conteúdos que com elas trabalham são ao mesmo tempo vítimas e cúmplices, embora a lista de vítimas não se restrinja a eles.
Dir-me-ão: fraude, Jorge? Não estarás a exagerar?
Não, não me parece que esteja. Amanhã explico. E desta vez fica mesmo para amanhã.
Afinal foi ainda hoje, não amanhã.
Em inglês, empresas que tenham como clientes os produtores de conteúdos, em particular os escritores, têm um nome, depreciativo, do qual não gostam nem as empresas em si nem os que as contratam para pôr no mercado o que produzem: vanity press. Também não gosto deste nome, confesso, principalmente porque ele tende a subestimar grosseiramente o peso que a vaidade e os egos também têm na edição tradicional. Só quem não conhece escritores pode julgar que as vaidades estão restritas ao mundo das vanities e que só aí se encontra gente cuja noção de auto-importância é incomensuravelmente superior à sua importância real. Há exceções, obviamente, pois em tudo há exceções, mas de uma maneira geral um escritor (e provavelmente poder-se-ia falar aqui de artistas em geral) é um ególatra. Há uma arrogância intrínseca a acharmos que o que temos a dizer interessa a alguém ou tem alguma importância para o que quer que seja exterior ao confinamento do nosso crânio. Mas enfim, goste eu ou não, é isso que os anglófonos chamam a estas empresas. E têm sido elas a estar no centro das mais monumentais zaragatas dos últimos tempos.
E a minha opinião é:
Nada tenho contra elas. Desde que não se tentem fazer passar por editoras.
Porque, lá está, uma editora contrata produtores de conteúdos para satisfazer a procura dos clientes, os leitores, e não é isso que essas empresas fazem. O que essas empresas fazem é fornecer serviços editoriais aos produtores de conteúdos. Para a maioria pouco importa se um livro vende ou não, pouco interessa se existe procura ou esta não passa de miragem. O seu mercado não é o mercado livreiro, habitat das editoras propriamente ditas, mas o dos produtores de conteúdos em busca de ajuda. Que também ponham os livros à venda e que também obtenham lucros daí pouco importa: na generalidade dos casos não estão dependentes das vendas como as editoras a sério estão, porque as edições já foram pagas pelos próprios escritores. São estes quem corre todos os riscos.
E não são eles quem colhe as recompensas, se recompensas existirem.
Apesar disso, não, não tenho nada contra elas, por princípio.
Tal como nada tenho contra um escritor contratar um agente para potenciar a sua carreira. Ou tal como nada tenho contra um escritor que pretende autoeditar-se pagar a uma gráfica para lhe imprimir os livros. Não vejo nenhum mal em empresas fornecerem serviços editoriais, sejam eles quais forem, aos produtores de conteúdos e também não vejo nenhum mal em tentarem lucrar com isso. Se uma empresa pretende funcionar, digamos, como ponto de encontro entre produtores de conteúdos de vária índole — entre escritores e ilustradores, por exemplo — ou entre estes e outros técnicos envolvidos na produção de livros — paginadores, gráficos, etc. — e se conseguir sobreviver assim, atribuindo um preço a cada serviço e informando claramente o que os clientes obtêm desse serviço, parece-me uma atividade económica tão válida como outra qualquer. Nem sequer me parece mal que uma empresa dessas se faça pagar por serviços que se podem obter gratuitamente, como a obtenção do ISBN, desde que o preço não seja exorbitante, ou seja, desde que não ultrapasse um ou dois euritos: não deixa de ser trabalho que alguém tem de fazer, não deixa de exigir gastar-se algum tempo. Se um escritor acha que não tem tempo ou paciência para se informar sobre como se solicitam os ISBN e depois para os solicitar, não vejo que venha nenhum mal ao mundo que pague a quem o faça por ele… desde que não vá ao engano, desde que saiba que, se quisesse, o poderia fazer ele próprio sem gastar um cêntimo.
Não, o problema não está na existência dessas empresas e nem sequer na sua atividade. Está no modo como essa atividade se processa. Está em fazerem-se passar por editoras. Aí é que a porca torce o rabo. Aí é que há fortes elementos de fraude, da qual as empresas são culpadas e os produtores de conteúdos que com elas trabalham são ao mesmo tempo vítimas e cúmplices, embora a lista de vítimas não se restrinja a eles.
Dir-me-ão: fraude, Jorge? Não estarás a exagerar?
Não, não me parece que esteja. Amanhã explico. E desta vez fica mesmo para amanhã.
Lido: Vem Para a Minha Cave
Vem Para a Minha Cave é um conto de Ray Bradbury que mistura, ao típico modo bradburiano, a ficção científica e o horror. O cenário e as personagens são também bastante característicos da ficção do autor americano: algures nos subúrbios de uma qualquer cidade americana, uma família da classe média constituída por pai, mãe e um filho, bem integrada na comunidade. O filho, como milhões de outros, assina a Popular Mechanics, e é daí que lhe chega uma encomenda de cogumelos que se apressa a cultivar na cave. Bradbury vai-nos dizendo tudo isto, levando-nos pela mão, ao mesmo tempo que vai inserindo no texto, com toda a subtileza, notas cada vez mais dissonantes, cada vez mais inquietantes. Um amigo do pai que tem pressentimentos e logo desaparece e depois envia um misterioso telegrama, uma outra vizinha que se dedica, furiosa, a arrancar cogumelos que lhe infestam o jardim. Um... mas não, sobre o enredo nada mais digo. Acrescento apenas que o conto é muito bom, muito bem escrito, extremamente eficaz em gerar a inquietude que pretende gerar, e que há alienígenas metidos ao barulho.
Provavelmente.
Provavelmente.
Da edição presente e futura: Editoras?
Se caíste aqui sem passar pela casa de partida, aconselho a dar lá um salto primeiro.
Antes de mais nada, se calhar convém pensarmos um pouco sobre alguns termos para sabermos bem de que estamos a falar. Começando pelo termo “editora”, que se presta a numerosos equívocos, até por a realidade a que diz respeito estar em mutação.
A verdade é que as editoras que conhecemos são, basicamente, uma realidade do século XX. Nasceram no século anterior, de uma aliança entre as livrarias e as tipografias destinada a dar resposta à industrialização que a crescente classe letrada procurava nos produtos ligados à palavra, mas foi só no século XX, quando a alfabetização ganhou massa crítica, que realmente se geraram as condições para o florescimento da atividade editorial. São, portanto, empresas intimamente ligadas à industrialização, e uma das causas das suas dificuldades atuais reside precisamente aí. É que a industrialização tem como base a produção em série de grande volume de produtos iguais. É isso que embaratece o produto final por gerar economias de escala. Mas para que tal seja viável é necessário que haja procura massificada de produtos iguais. Produção em série necessita de procura em série. Ora, se hoje, como muitos defendem, estamos em plena transição para uma época pós-industrial, em que a procura se pulveriza e a unicidade recupera a primazia, a organização tradicional das editoras fica logo aí em xeque.
Mas esta é a parte puramente económica da coisa. Tem influência, por vezes decisiva, mas está muito longe de constituir alguma espécie de todo.
É que as editoras também serviram durante muito tempo como uma espécie de provedores dos leitores. Sim, é verdade que respondiam à procura. Mas, como a literatura é, sempre foi, uma atividade de prestígio, elas também formatavam a procura. Até os aspetos económicos ganharem a primazia que têm hoje (processo que veio decorrendo paulatinamente ao longo de décadas, por mais que pareça ter acontecido de repente há uns anos quando as editoras começaram a ser compradas quase por atacado por grupos económicos poderosos), autor que se visse publicado podia gabar-se de um certo relevo na cultura de um país. Autor que se visse publicado com consistência mais um pouco.
O que nunca obstou à publicação de lixo com fartura, claro. Porque sempre houve editores mais interessados na parte comercial da atividade do que na cultural, porque sempre houve editores com pouca ou nenhuma perspicácia para distinguir o que pode ter relevo cultural do que não o terá nunca, porque sempre houve quem se autoeditasse sem ter conhecimentos ou qualidade suficiente para tal, porque sempre houve amigos, conveniências, mau gosto, cunhas, jeitinhos, censura, gente politicamente influente a mexer cordelinhos, em especial nos tempos da ditadura, em que a resposta dada aos cordelinhos mexidos por gente politicamente influente podia acarretar perigos vários, enfim, um nunca acabar de impurezas a macular os róseos Olimpos que por vezes se gosta de apresentar, em especial quando se fala do passado.
As coisas nunca foram rosadas. Sempre houve sordidez no meio, golpes baixos, interesses em compita, o diabo a quatro.
E no entanto, as editoras aí estão. Passaram por tudo isso, umas morreram, outras transformaram-se, outras nasceram cheias de genica e ideias, e aí estão.
Só que há um problema: nem todas as empresas que se intitulam editoras merecem que as chamemos assim.
Simplificando bastante para que melhor se entenda: uma editora é uma empresa que é cliente dos produtores de conteúdos e que tem como clientes os leitores, e isto não muda quando a transição pós-industrial acontece. Para que se possa falar com propriedade de editoras, as empresas têm de funcionar assim. Compram os conteúdos aos produtores — escritores, designers, paginadores, tradutores, etc. —, pagando-lhes, e juntam tudo para criar um produto novo, que depois comercializam.
Só que não é assim que funcionam bastantes das autoproclamadas “editoras” que existem por aí, e tem sido esse o principal foco de polémica em tempos mais recentes. Há empresas, e em bom número, que por mais que se disfarcem de editoras não o são, pois têm como clientes não só os leitores, ou até não principalmente os leitores, mas os próprios produtores de conteúdos.
E há uma monumental confusão à volta delas. Da qual falarei amanhã.
Antes de mais nada, se calhar convém pensarmos um pouco sobre alguns termos para sabermos bem de que estamos a falar. Começando pelo termo “editora”, que se presta a numerosos equívocos, até por a realidade a que diz respeito estar em mutação.
A verdade é que as editoras que conhecemos são, basicamente, uma realidade do século XX. Nasceram no século anterior, de uma aliança entre as livrarias e as tipografias destinada a dar resposta à industrialização que a crescente classe letrada procurava nos produtos ligados à palavra, mas foi só no século XX, quando a alfabetização ganhou massa crítica, que realmente se geraram as condições para o florescimento da atividade editorial. São, portanto, empresas intimamente ligadas à industrialização, e uma das causas das suas dificuldades atuais reside precisamente aí. É que a industrialização tem como base a produção em série de grande volume de produtos iguais. É isso que embaratece o produto final por gerar economias de escala. Mas para que tal seja viável é necessário que haja procura massificada de produtos iguais. Produção em série necessita de procura em série. Ora, se hoje, como muitos defendem, estamos em plena transição para uma época pós-industrial, em que a procura se pulveriza e a unicidade recupera a primazia, a organização tradicional das editoras fica logo aí em xeque.
Mas esta é a parte puramente económica da coisa. Tem influência, por vezes decisiva, mas está muito longe de constituir alguma espécie de todo.
É que as editoras também serviram durante muito tempo como uma espécie de provedores dos leitores. Sim, é verdade que respondiam à procura. Mas, como a literatura é, sempre foi, uma atividade de prestígio, elas também formatavam a procura. Até os aspetos económicos ganharem a primazia que têm hoje (processo que veio decorrendo paulatinamente ao longo de décadas, por mais que pareça ter acontecido de repente há uns anos quando as editoras começaram a ser compradas quase por atacado por grupos económicos poderosos), autor que se visse publicado podia gabar-se de um certo relevo na cultura de um país. Autor que se visse publicado com consistência mais um pouco.
O que nunca obstou à publicação de lixo com fartura, claro. Porque sempre houve editores mais interessados na parte comercial da atividade do que na cultural, porque sempre houve editores com pouca ou nenhuma perspicácia para distinguir o que pode ter relevo cultural do que não o terá nunca, porque sempre houve quem se autoeditasse sem ter conhecimentos ou qualidade suficiente para tal, porque sempre houve amigos, conveniências, mau gosto, cunhas, jeitinhos, censura, gente politicamente influente a mexer cordelinhos, em especial nos tempos da ditadura, em que a resposta dada aos cordelinhos mexidos por gente politicamente influente podia acarretar perigos vários, enfim, um nunca acabar de impurezas a macular os róseos Olimpos que por vezes se gosta de apresentar, em especial quando se fala do passado.
As coisas nunca foram rosadas. Sempre houve sordidez no meio, golpes baixos, interesses em compita, o diabo a quatro.
E no entanto, as editoras aí estão. Passaram por tudo isso, umas morreram, outras transformaram-se, outras nasceram cheias de genica e ideias, e aí estão.
Só que há um problema: nem todas as empresas que se intitulam editoras merecem que as chamemos assim.
Simplificando bastante para que melhor se entenda: uma editora é uma empresa que é cliente dos produtores de conteúdos e que tem como clientes os leitores, e isto não muda quando a transição pós-industrial acontece. Para que se possa falar com propriedade de editoras, as empresas têm de funcionar assim. Compram os conteúdos aos produtores — escritores, designers, paginadores, tradutores, etc. —, pagando-lhes, e juntam tudo para criar um produto novo, que depois comercializam.
Só que não é assim que funcionam bastantes das autoproclamadas “editoras” que existem por aí, e tem sido esse o principal foco de polémica em tempos mais recentes. Há empresas, e em bom número, que por mais que se disfarcem de editoras não o são, pois têm como clientes não só os leitores, ou até não principalmente os leitores, mas os próprios produtores de conteúdos.
E há uma monumental confusão à volta delas. Da qual falarei amanhã.
Lido: O Quarto das Tapeçarias
O Quarto das Tapeçarias (bibliografia), de Walter Scott, é outro déjà lu neste livro. Há três anos e picos li este conto, noutro livro, e falei dele, aqui na Lâmpada. Uma vez mais, a única diferença entre o conto que então li e o que reli agora é a ortografia utilizada, e de novo a diferença entre o leitor de então e o de agora, três anos a mais, não é suficiente para me levar a ter outra opinião ou, sequer, a fazer ajustamentos à que então tive. É aquilo, sem tirar nem pôr.
Contos anteriores deste livro:
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quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Da edição presente e futura: Prolegómenos e apresentação
Tem havido nos últimos tempos, não só na blogosfera literária portuguesa, mas espalhada por colóquios e revistas, pelo twitter e pelo facebook, ramificando-se, na verdade, bem para lá da restrita realidade nacional, englobando todo o planeta que lê, uma discussão de baixa intensidade, com ocasionais picos de polémica por vezes salpicados até daquela violência típica das polémicas que não se limitam a acontecer mas estalam, com estrondo, sobre o futuro do livro e da leitura e do papel e lugar que as editoras terão nele e têm hoje em dia.
Não tenho intervido. Mas tenho pensado no assunto, na medida do tempo disponível.
Não tenho intervido porque acho o problema demasiado complexo e multifacetado para ser desenovelado em duas penadas truz, pás, já está, como parecem julgar muitos dos que têm guardado menos reserva do que eu. Talvez não seja de surpreender, portanto, que muito do que por aí se tem vindo a dizer me soe a disparate, ou pelo menos a reflexão pouco amadurecida.
Mas como tenho pensado, e até acho que as conclusões ou impressões a que tenho chegado fazem algum sentido, a tentação de intervir tem-se feito sentir, e cada vez com mais acuidade.
Por fim, agora que tenho algum tempo livre nas mãos (que já não tenho, na verdade, mas boa parte disto já está escrita há algum tempo, portanto é como se tivesse), achei boa forma de empregá-lo passar a texto corrido o que me vai pela cabeça. Esta reflexão será publicada aos bocados, aqui no blogue, ao longo dos próximos dias. Não é definitiva, obviamente. Encontramo-nos num momento de mudança, e se há algo que estes momentos têm em comum é as coisas estarem em fluxo. É da natureza de momentos como este que o que parece hoje certo poderá não o ser amanhã. E isso faz com que tudo o que eu aqui escreva tenha em si uma certa dose de contingência. Podem ver nisto um aviso à navegação.
Mas quem diabo é este gajo, e que sabe ele sobre isto?, poderá pensar quem caia por acaso neste obscuro cantinho da internet.
É justo. É melhor que me apresente, não é? O que eu sei e penso sobre estes assuntos vem da seguinte experiência, e deixo ao critério de quem ler isto a avaliação sobre se é suficiente ou não para merecer a vossa atenção:
Trabalho vai para oito anos como tradutor profissional, tendo traduzido tanto livros de pequena visibilidade como alguns dos livros mais visíveis publicados em português nos últimos anos, seja em Portugal, seja no Brasil. Antes de ser tradutor, publiquei um pequeno livro de ficção, fruto de uma menção honrosa num concurso literário. Também antes, tive um romance recusado por uma grande editora, que na altura tinha uma coleção de ficção científica, com o argumento de que o livro tinha muito humor e pouca FC. Pura verdade: tem mesmo. Tive contrato assinado para a publicação de um livro de contos em Portugal, numa pequena editora. A publicação nunca aconteceu; depois de alguma trapalhada, comuniquei-lhes que já não estava interessado. A editora entretanto fechou portas. Tive tudo apalavrado para a publicação de um livro no Brasil, também numa pequena editora, embora sem contrato assinado; depois de vários adiamentos e também de bastante trapalhada que me deixou desconfiado daquilo em que me estava a meter, a edição foi anulada pela editora quando lhes exprimi essa desconfiança. Também esta editora já fechou portas. Não fiz mais nenhuma tentativa séria para publicar através de editoras, embora tenha sondado informalmente uma quarta editora, portuguesa, e não tão pequena como isso, sobre o interesse que teria em publicar uma coletânea de contos meus. Não tinha. Contos não vendem, parece, em especial se forem de ficção científica. Ironicamente, esta editora continua em atividade.
E sim, tudo isto fez parte da tal reflexão.
Que mais?
Ah, publiquei em print on demand um livro de crónicas, originalmente publicadas num jornal algarvio, que achei que pouco interesse teria fosse para quem fosse (não só o achei como o escrevi na introdução, aliás), mais para experimentar o processo do que por qualquer outra razão.
Publiquei ficção curta em vários sítios, de uma forma a que se convencionou chamar “profissional”, se bem que ninguém que o faça ganhe o suficiente para disso viver. Antologias, em especial no Brasil, e uma revista em Inglaterra, pagaram-me por textos meus.
Suponho que também seja relevante ter criado o Bibliowiki, não só pelo acompanhamento a ele inerente do que se vai editando no campo das literaturas fantásticas, por cá e noutros países de língua portuguesa, como por uma certa perspetiva histórica que ele também traz.
Por fim, tenho sido editor eletrónico intermitente desde que, em 2001, criei o E-nigma. Isso nada me disse sobre as editoras e como funcionam, mas deixou-me ensinamentos vários sobre algumas possibilidades de caminhos futuros para a leitura e a edição.
E pronto, é isto que este gajo é. O gajo está apresentado. Está feita a introdução. Seguem-se ideias.
Amanhã.
Não tenho intervido. Mas tenho pensado no assunto, na medida do tempo disponível.
Não tenho intervido porque acho o problema demasiado complexo e multifacetado para ser desenovelado em duas penadas truz, pás, já está, como parecem julgar muitos dos que têm guardado menos reserva do que eu. Talvez não seja de surpreender, portanto, que muito do que por aí se tem vindo a dizer me soe a disparate, ou pelo menos a reflexão pouco amadurecida.
Mas como tenho pensado, e até acho que as conclusões ou impressões a que tenho chegado fazem algum sentido, a tentação de intervir tem-se feito sentir, e cada vez com mais acuidade.
Por fim, agora que tenho algum tempo livre nas mãos (que já não tenho, na verdade, mas boa parte disto já está escrita há algum tempo, portanto é como se tivesse), achei boa forma de empregá-lo passar a texto corrido o que me vai pela cabeça. Esta reflexão será publicada aos bocados, aqui no blogue, ao longo dos próximos dias. Não é definitiva, obviamente. Encontramo-nos num momento de mudança, e se há algo que estes momentos têm em comum é as coisas estarem em fluxo. É da natureza de momentos como este que o que parece hoje certo poderá não o ser amanhã. E isso faz com que tudo o que eu aqui escreva tenha em si uma certa dose de contingência. Podem ver nisto um aviso à navegação.
Mas quem diabo é este gajo, e que sabe ele sobre isto?, poderá pensar quem caia por acaso neste obscuro cantinho da internet.
É justo. É melhor que me apresente, não é? O que eu sei e penso sobre estes assuntos vem da seguinte experiência, e deixo ao critério de quem ler isto a avaliação sobre se é suficiente ou não para merecer a vossa atenção:
Trabalho vai para oito anos como tradutor profissional, tendo traduzido tanto livros de pequena visibilidade como alguns dos livros mais visíveis publicados em português nos últimos anos, seja em Portugal, seja no Brasil. Antes de ser tradutor, publiquei um pequeno livro de ficção, fruto de uma menção honrosa num concurso literário. Também antes, tive um romance recusado por uma grande editora, que na altura tinha uma coleção de ficção científica, com o argumento de que o livro tinha muito humor e pouca FC. Pura verdade: tem mesmo. Tive contrato assinado para a publicação de um livro de contos em Portugal, numa pequena editora. A publicação nunca aconteceu; depois de alguma trapalhada, comuniquei-lhes que já não estava interessado. A editora entretanto fechou portas. Tive tudo apalavrado para a publicação de um livro no Brasil, também numa pequena editora, embora sem contrato assinado; depois de vários adiamentos e também de bastante trapalhada que me deixou desconfiado daquilo em que me estava a meter, a edição foi anulada pela editora quando lhes exprimi essa desconfiança. Também esta editora já fechou portas. Não fiz mais nenhuma tentativa séria para publicar através de editoras, embora tenha sondado informalmente uma quarta editora, portuguesa, e não tão pequena como isso, sobre o interesse que teria em publicar uma coletânea de contos meus. Não tinha. Contos não vendem, parece, em especial se forem de ficção científica. Ironicamente, esta editora continua em atividade.
E sim, tudo isto fez parte da tal reflexão.
Que mais?
Ah, publiquei em print on demand um livro de crónicas, originalmente publicadas num jornal algarvio, que achei que pouco interesse teria fosse para quem fosse (não só o achei como o escrevi na introdução, aliás), mais para experimentar o processo do que por qualquer outra razão.
Publiquei ficção curta em vários sítios, de uma forma a que se convencionou chamar “profissional”, se bem que ninguém que o faça ganhe o suficiente para disso viver. Antologias, em especial no Brasil, e uma revista em Inglaterra, pagaram-me por textos meus.
Suponho que também seja relevante ter criado o Bibliowiki, não só pelo acompanhamento a ele inerente do que se vai editando no campo das literaturas fantásticas, por cá e noutros países de língua portuguesa, como por uma certa perspetiva histórica que ele também traz.
Por fim, tenho sido editor eletrónico intermitente desde que, em 2001, criei o E-nigma. Isso nada me disse sobre as editoras e como funcionam, mas deixou-me ensinamentos vários sobre algumas possibilidades de caminhos futuros para a leitura e a edição.
E pronto, é isto que este gajo é. O gajo está apresentado. Está feita a introdução. Seguem-se ideias.
Amanhã.
Fábula política no Letra1
Há dias escrevi um arremedozinho de fábula política, com moral inclusa como é da praxe nas fábulas, para publicação no Letra1. É sobre pássaros, aparentemente. E também sobre raposas. Ou quiçá sobre a doença infantil do esquerdismo: o facciosismo.
Vão lá ler, andem. Se me perguntarem se vale a pena, eu, suspeitíssimo, respondo-lhes que oh, sim.
Vão lá ler, andem. Se me perguntarem se vale a pena, eu, suspeitíssimo, respondo-lhes que oh, sim.
Lido: Meia Culpa, Meia Própria Culpa
Meia Culpa, Meia Própria Culpa é um pequeno conto de Mia Couto protagonizado e narrado por uma mulher, Maria Metade de seu nome, que conta a sua história a um escritor. A história é a de uma vida vivida pela metade, semipresa a um homem com quem tem um meio casamento, e que acaba por matar, também pela metade. É um conto sobre a incompletude. Sobre gente que se sente incompleta, sobre atos incompletos, sobre meias tintas. Bom, mas também este conto não é dos que mais me agradam (e vou resistir à tentação de escrever que me agradou pela metade), provavelmente porque achei nele demasiada cedência ao artifício linguístico. Demasiada forma a sobrepor-se ao conteúdo. Gosto mais das coisas mais equilibradas.
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Lido: Disse a Profetisa
Disse a Profetisa (bibliografia) é um conto curto de ficção científica, de Carlos Orsi, sobre uma sociedade teocrática pós-apocalíptica na qual o pensamento científico se esforça por ressurgir. O fulcro da narrativa são dois irmãos. Um deles, o narrador que conta a história na primeira pessoa, é sacerdote de um culto que tem como centro uma "profetisa", que aparentemente se manifesta de formas que são interpretadas pelo clero. Só que essa profetisa, como se vai descobrindo aos poucos, nada tem de divino; é apenas uma mulher de antes do apocapipse, ainda viva (pelo menos parcialmente), preservada dentro de um mecanismo que as pessoas do presente ficcional não compreendem. E é precisamente para o compreender que se esforça o outro irmão. Não pela via religiosa, no entanto, mas pela científica.
Trata-se de um conto com ideologia clara, daqueles capazes de aborrecer alguns leitores... e encher as medidas a outros. Está bem escrito e bem concebido, integrando-se na tradição mais económica da ficção científica, a que põe em primeiro lugar a eficiência na explanação da ideia, secundarizando o resto. O conto tem precisamente o tamanho necessário para explanar a ideia sem ter de recorrer a grandes infodumps e nem uma linha a mais. Pessoalmente, preferiria mais linhas, mas isso não chega para não achar o conto bom.
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Trata-se de um conto com ideologia clara, daqueles capazes de aborrecer alguns leitores... e encher as medidas a outros. Está bem escrito e bem concebido, integrando-se na tradição mais económica da ficção científica, a que põe em primeiro lugar a eficiência na explanação da ideia, secundarizando o resto. O conto tem precisamente o tamanho necessário para explanar a ideia sem ter de recorrer a grandes infodumps e nem uma linha a mais. Pessoalmente, preferiria mais linhas, mas isso não chega para não achar o conto bom.
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Lido: Rato
Rato, de José Alberto Braga, fez-me lembrar os meus já distantes tempos de escola primária em que a professora (sempre tive professoras) dizia algo como "vá, meninos, vamos escrever uma redação sobre xis." E nós, obedientemente, lá fazíamos das jovens tripas coração para arranjar qualquer coisinha para escrever sobre xis.
Pois Braga aqui discorre sobre ratos. Ele vai à história, ele vai à ciência, ele desarrinca uns trocadilhos, ele manda umas bocas, umas vezes sem grande piada, outras vezes com alguma e, entre factos e irreverências, lá enche página e meia sobre ratos. Precisamente como nós fazíamos nos velhos tempos de escola primária, embora nós conhecéssemos truques que Braga, pelos vistos, não conhece, como escrever tudo com LETRAS MUITO GRANDES, para ver se a página e meia passava mais depressa. Uns ratos, nós. Ah, pois.
Se gostei? Não desgostei. Fiquemos assim.
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Pois Braga aqui discorre sobre ratos. Ele vai à história, ele vai à ciência, ele desarrinca uns trocadilhos, ele manda umas bocas, umas vezes sem grande piada, outras vezes com alguma e, entre factos e irreverências, lá enche página e meia sobre ratos. Precisamente como nós fazíamos nos velhos tempos de escola primária, embora nós conhecéssemos truques que Braga, pelos vistos, não conhece, como escrever tudo com LETRAS MUITO GRANDES, para ver se a página e meia passava mais depressa. Uns ratos, nós. Ah, pois.
Se gostei? Não desgostei. Fiquemos assim.
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terça-feira, 26 de novembro de 2013
Lido: Foda Relatada
Púdicos ou gente que queira manter os blogues virgens de palavrório indecoroso não poderão nunca falar deste livro texto por texto. Porque alguns têm títulos destes.
Foda Relatada é um dos textos do maior fenómeno blogosférico da época em que aqui a Lâmpada andava a dar os primeiros passos, há dez anos. Um blogue javardo-intelectual anónimo chamado O Meu Pipi, cujo estilo em tudo semelhante ao de Ricardo Araújo Pereira e demais felinagem malcheirosa leva à certeza de ter sido escrito por outra(s) pessoa(s) qualquer(ezes... aa... hm?). Ao tempo, o Pipi foi uma febre, e este texto é um belo exemplo do motivo. Trata-se, nada mais, nada menos, de uma queca relatada pelo sempiterno Gabriel Alves, emérito criador de frases inteligentes nos domínios, portanto, da bola. Ou, como neste caso, da queca. Uma queca entre o Pipi e a Gorda, a contar para o Campeonato Nacional da Foda, descrita com sumarenta abundância de pormenores e devaneios filosóficos e completa, como é da praxe, com os comentários dos intervenientes no final do recontro.
É bem escrito, muito porco, e hilariante. O Meu Pipi típico, portanto. E, olhem, ainda pode ser lido na internet. Aqui. Basta puxar para baixo.
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Foda Relatada é um dos textos do maior fenómeno blogosférico da época em que aqui a Lâmpada andava a dar os primeiros passos, há dez anos. Um blogue javardo-intelectual anónimo chamado O Meu Pipi, cujo estilo em tudo semelhante ao de Ricardo Araújo Pereira e demais felinagem malcheirosa leva à certeza de ter sido escrito por outra(s) pessoa(s) qualquer(ezes... aa... hm?). Ao tempo, o Pipi foi uma febre, e este texto é um belo exemplo do motivo. Trata-se, nada mais, nada menos, de uma queca relatada pelo sempiterno Gabriel Alves, emérito criador de frases inteligentes nos domínios, portanto, da bola. Ou, como neste caso, da queca. Uma queca entre o Pipi e a Gorda, a contar para o Campeonato Nacional da Foda, descrita com sumarenta abundância de pormenores e devaneios filosóficos e completa, como é da praxe, com os comentários dos intervenientes no final do recontro.
É bem escrito, muito porco, e hilariante. O Meu Pipi típico, portanto. E, olhem, ainda pode ser lido na internet. Aqui. Basta puxar para baixo.
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segunda-feira, 25 de novembro de 2013
Lido: A Garra do Macaco
A Garra do Macaco (bibliografia) é um conto de terror de William W. Jacobs baseado na velha história das Mil e Uma Noites sobre o génio e a lâmpada. Aqui não existe génio nem há que esfregar nada, mas os desejos são na mesma concedidos, em número de três, encarregando-se o destino, o demónio, ou o que seja que anima a garra (ou mão) de macaco que os concede de o fazer da forma menos amena possível para quem os pede. É um conto bastante bom, que poderia vir com a epígrafe de "cuidado com o que desejas, porque pode ser-te concedido". E digo-o mesmo sendo muito avesso à ideia conservadora de restringir as aspirações ao comezinho que lhe subjaz. À ideia de que é melhor não aspirar a nada mais do que já se tem, a nenhuma transformação que o seja de facto. À resignação cobarde com o que a vida tem destinado a cada um. Detesto estas ideias, e são elas que estão nas entrelinhas deste conto. Mas o conto, em si mesmo, é bom.
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Lido: O Adiado Avô
O Adiado Avô é mais um pequeno conto de Mia Couto, desta feita sobre um homem que recusa enquanto pode a condição de avô, renegando e rebaixando um neto que lhe aparece na vida como que por capricho teimoso da filha, sem lhe perguntar se pode ser, sem lhe pedir com licença, mudando-lhe uma existência que queria sua. Com um breve salto ao colonialismo pelo meio, é um continho sobre a mudança que o tempo traz e à qual é condição humana sujeitarmo-nos, uns mais a gosto, outros mais contra o gosto. Bom, sim, e coutiano, obviamente, mas não dos meus favoritos. Não se pode nunca gostar de tudo, não é?
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Lido: O Pico de Hubert
O Pico de Hubert (bibliografia) é uma muito distópica noveleta de Telmo Marçal que, numa linguagem dura e rica de oralismos, influenciada pelo policial negro (talvez por intermédio do ciberpunk, embora o conto em si pouco tenha de ciberpunk) visita as vidas de três protagonistas em três histórias interligadas na terceira e ambientadas num futuro próximo em que a civilização humana atingiu aquilo a que o título se refere: o momento em que, por esgotamento das reservas, a produção de produtos petrolíferos do planeta começa a decair. O nome do jogo é sobrevivência. A sobrevivência do indivíduo numa sociedade desumanizada em que as necessidades do coletivo (ou talvez não) se sobrepõem totalitariamente aos apetites de cada um. Seja sob a forma de um centro de concentração de imigrantes clandestinos (e não emigrantes, como erroneamente vem escrito ao longo do texto, numa das falhas que ele contém), típico ambiente de prisão não muito distante das penitenciárias com que contactamos há algumas décadas na ficção americana, e de onde o primeiro protagonista tenta fugir. Seja sob a forma de uma espécie de kibbutz gerido por uma seita religiosa ludita, os "Puros", igualmente castrador, igualmente desumano, igualmente capaz de levar os seus membros a mortes precoces por saírem da linha, e de onde a segunda protagonista vai acabar por ter uma oportunidade inesperada de fugir. Seja nas ruas, num bando criminoso com os seus contactos políticos, a sua hierarquia dominada pela brutalidade do mais forte, o seu território, mais uma vez bem próximo da realidade americana, no qual o terceiro protagonista prospera.
É um bom conto. Bem concebido e bem escrito, numa prosa cheia de verve na qual a maior falha, além da questão da emigração, que deveria ter sido resolvida na revisão, é não se notar uma diferença de voz entre os três protagonistas, que contam as suas histórias na primeira pessoa como se fosse a mesma pessoa a contar as três. E é: o Telmo Marçal. Mas para a noveleta ultrapassar o mero bom este deveria ter tentado encontrar a voz própria de cada uma das suas personagens, e pô-la a "falar" em conformidade. Mas é um bom conto, também por ser uma história distópica que não cede ao final feliz mais ou menos delicodoce que anda agora em voga e se mantém coerentemente distópica até ao fim.
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É um bom conto. Bem concebido e bem escrito, numa prosa cheia de verve na qual a maior falha, além da questão da emigração, que deveria ter sido resolvida na revisão, é não se notar uma diferença de voz entre os três protagonistas, que contam as suas histórias na primeira pessoa como se fosse a mesma pessoa a contar as três. E é: o Telmo Marçal. Mas para a noveleta ultrapassar o mero bom este deveria ter tentado encontrar a voz própria de cada uma das suas personagens, e pô-la a "falar" em conformidade. Mas é um bom conto, também por ser uma história distópica que não cede ao final feliz mais ou menos delicodoce que anda agora em voga e se mantém coerentemente distópica até ao fim.
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domingo, 24 de novembro de 2013
Lido: Francesca
Francesca (bibliografia), de Hugo Rocha, é mais uma das histórias de fantasmas deste autor em que um certo anacronismo marca presença. Trata-se de uma daquelas histórias se sanatório que tão em voga estiveram no início do século XX e cujo expoente máximo será provavelmente A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Ambientado na Suíça, claro, este conto de Hugo Rocha é no fundamental uma história de amor entre dois jovens tuberculosos, ele português, ela italiana, que se apaixonam e ficam noivos durante a doença. E tudo corre bem, tudo parece bem encaminhado para a cura e para a felicidade, quando a tragédia se abate sobre o provável futuro casal. É aqui que a história deixa de ser um simples conto de amor realista para se transformar em história fantástica.
O conto não deixa de ter algum interesse, mas está longe da qualidade de alguns dos outros componentes desta coletânea, principalmente por recuperar, algo tardiamente, ambientes, enredos e personagens comuns décadas antes, o que, conjugado com os limites que Rocha estabelece desde o início para este livro, o torna francamente previsível. Mas como a narrativa está bem construída também não estamos perante um mau conto.
Contos anteriores deste livro:
O conto não deixa de ter algum interesse, mas está longe da qualidade de alguns dos outros componentes desta coletânea, principalmente por recuperar, algo tardiamente, ambientes, enredos e personagens comuns décadas antes, o que, conjugado com os limites que Rocha estabelece desde o início para este livro, o torna francamente previsível. Mas como a narrativa está bem construída também não estamos perante um mau conto.
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Lido: Epitáfio Ecológico
Epitáfio Ecológico é uma crónica de José Alberto Braga sobre ecologia. Há aqui uma intenção mais opinativa do que propriamente humorística, embora o Braga humorista não desapareça. Mas este é dos textos escritos mais a sério que o livro apresentou até agora, oferecendo uma perspetiva cínica e desistente das questões ecológicas. Em duas palavras, o que Braga aqui diz é que a ideia ecológica até poderia ser boa mas já chega tarde, não tem poder, e portanto nunca terá viabilidade. Engana-se; o ideal de desenvolvimento ecológico, mesmo com todas as contradições inerentes à luta que trava, mesmo com a força do poder económico que se lhe opõe, mesmo com os altos e baixos interligados aos altos e baixos (nos últimos tempos mais baixos que altos) da economia, tem vindo a ganhar espaço e a ser posto em prática. De forma insuficiente? Sem dúvida. Mas bem mais do que Braga parece aqui temer.
Não tendo gostado das ideias que transmite, devo dizer que a crónica, em si, não é má, o que é um ponto a favor do seu autor.
Textos anteriores deste livro:
Não tendo gostado das ideias que transmite, devo dizer que a crónica, em si, não é má, o que é um ponto a favor do seu autor.
Textos anteriores deste livro:
Lido: Ao Rés do Orgasmo
Ao Rés do Orgasmo, que não é título mas primeiro verso, e cujo autor não é conhecido (não, não há só anonimatos nas caixas de comentários da internet; alguns anónimos publicam livros com títulos como Bardamerda), é um poeminha muito curto sobre os problemas de se ter sexo com parceiros ou parceiras particular e alarmantemente ignorantes. Por outro lado, quem é que perde tempo a falar de van Gogh em plena queca?!
Mas pronto, tem a sua piada, sim, e pelo menos um dos versos inclui uma imagem bastante sugestiva. Não desgostei. Até sou capaz de ter gostado. Um bocadinho.
Textos anteriores deste livro:
Mas pronto, tem a sua piada, sim, e pelo menos um dos versos inclui uma imagem bastante sugestiva. Não desgostei. Até sou capaz de ter gostado. Um bocadinho.
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Lido: Milagre
Milagre, de Joaquim Castro Caldas, é uma pequena história fantástica em verso sobre um "menino loiro de 9 anos" que desapareceu de um quadro de Botticelli e foi dar a um jardim de Amsterdão, prosseguindo o fantástico no que aconteceu ao quadro de onde o miúdo saiu depois dele de lá ter saído, e naquilo que se terá passado em Amsterdão. É a marca fantástica a mais forte neste poema, mas, como, aliás, geralmente acontece, não é a única. Sendo o livro de humor, também será de humor, a história? Bem, existe alguma ironia na ideia, mas é demasiado ténue para sequer me ter levado a sorrir. Pareceu-me, francamente, mais parturbadora do que humorística, pois há nela mais do que uma sugestão de pedofilia. Parece-me ser mais um exemplo de uma tendência que tem percorrido esta antologia e que, quanto a mim, é o seu lado mais fraco: a de equiparar a humor aquilo que pretende simplesmente chocar. Muito embora não seja inteiramente aqui o caso.
Se gostei? Nem por isso. A ideia até tem o seu interesse, mas o texto, em si, como história parece-me estar mal desenvolvido, e como poema não achei grande coisa.
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Se gostei? Nem por isso. A ideia até tem o seu interesse, mas o texto, em si, como história parece-me estar mal desenvolvido, e como poema não achei grande coisa.
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sábado, 23 de novembro de 2013
Lido: As Cidades e as Selvas
As Cidades e as Selvas é mais um poema de Rui Reininho sobre o qual, de novo, tenho pouco a dizer. Exceto que é, dos três, o menos humorístico. Aquele em que a ironia se faz menos sentir. O que menos brinca com as palavras. O mais coerente. O mais poético. Isto apesar de o Reininho nele afirmar ter papado um missionário jesuíta, ou ter-se raptado e ficado a tarde toda à espera consigo, raptado. Não se sabe bem de quê. Nem mal. Por outras palavras, é um poema semelhante aos outros, embora um pouco menos e um pouco mais. Precisamente por isso (e haverá característica mais precisa do que esta?), foi deste texto que mais gostei entre as três reininharias que se publicaram no livro cuja capa o leitor embasbacado pode contemplar aqui do lado direito. Boquiaberto. Pois.
Não, não fumei nada esquisito, descansem. Só li um poema do Reininho.
Diz que tem mais ou menos o mesmo efeito.
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Não, não fumei nada esquisito, descansem. Só li um poema do Reininho.
Diz que tem mais ou menos o mesmo efeito.
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sexta-feira, 22 de novembro de 2013
Lido: Amor Diabólico
Amor Diabólico (bibliografia), de Elizabeth Bowden é um conto que... mas espera lá... isto está-me a dar uma sensação de déjà vu. Ou de déjà lu, no caso. Eu li este conto, noutro livro, e há relativamente pouco tempo, não foi? Deixa cá ver...
Olha, foi mesmo. Podem ir aqui, que o que eu diria agora seria basicamente o mesmo que disse há três anos e picos. A ortografia é diferente — a deste livrinho é a de 1945, a do outro é a anterior —, mas é a única diferença. Nenhuma ortografia muda conteúdos quando os conteúdos não mudam. E neste caso não mudaram: a tradução é a mesma. A única diferença significativa, portanto, é a idade do leitor, e esta não mudou o suficiente para o levar a ter outra opinião.
Olha, foi mesmo. Podem ir aqui, que o que eu diria agora seria basicamente o mesmo que disse há três anos e picos. A ortografia é diferente — a deste livrinho é a de 1945, a do outro é a anterior —, mas é a única diferença. Nenhuma ortografia muda conteúdos quando os conteúdos não mudam. E neste caso não mudaram: a tradução é a mesma. A única diferença significativa, portanto, é a idade do leitor, e esta não mudou o suficiente para o levar a ter outra opinião.
Lido: A Saia Almarrotada
A Saia Almarrotada é outro belo continho de Mia Couto, desta feita narrado por uma mulher jovem, reprimida por um pai castrador. É basicamente um retrato de situação e psicológico, centrando-se nas contradições íntimas da narradora, no seu ténue assomo de rebeldia, alimentado por um tio e por um vestido que este lhe oferece e que o pai lhe ordena que destrua. Um continho subtil e cheio daquele estilo muito coutiano de malabarismar com as palavras. Sem nada de fantástico, se é que estão curiosos sobre este pormenor sem importância. Mas bastante bom, sim.
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quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Lido: Digital Éden
Digital Éden (bibliografia) é um conto ciberpunk de Gabriel Boz com boa parte daquilo que torna o ciberpunk num subgénero bem definido. Por vezes demasiado, até. A história, um pouco prejudicada por algumas gralhas que sobreviveram até à edição final, é bastante complexa para um conto tão breve, centrando-se numa seita religiosa (ou pelo menos pararreligiosa) transumanista, que prega uma espécie de ascensão para um nível de existência mais elevado dentro de sistemas informáticos sofisticados. O protagonista fora membro dessa seita, tal como a mulher que amara e continua a amar mas, enquanto esta conseguira matar-se durante o suicídio coletivo dos membros da seita e, talvez, transferir a consciência para a rede, ele fora apanhado pela polícia, que reprime esse tipo de ato. A história não é contada por ele, isto é, não se trata de uma história em primeira pessoa, mas quase. E, pesem embora algumas oscilações no ritmo narrativo ao longo da primeira parte do conto, este ganha ímpeto ao aproximar-se do desenlace, que se dá com várias reviravoltas no enredo bastante bem conseguidas. É um daqueles contos que se socorrem de clichés, conscientemente, e que os usam bem, resultando em algo que mesmo sem ser propriamente original sustenta eficazmente o interesse em quem lê.
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segunda-feira, 18 de novembro de 2013
Lido: Os Irmãos Gémeos
Os Irmãos Gémeos (bibliografia), de Hugo Rocha, é uma interessante variação do tema do gémeo mau contra o gémeo bom, já bastante batido na literatura fantástica e de horror. Aqui, o gémeo bom sobrevive ao mau, e a morte do irmão, apesar de lhe causar a dor da perda de um familiar (ou não fosse ele bom), também lhe fornece alívio, uma certa libertação, pois o irmão dominara-o desde a mais remota infância. O pobre homem pode por fim viver a sua própria vida, e é o que faz, chegando mesmo a casar-se. Mas é então que as coisas correm mal: o fantasma do irmão, que só ele consegue ver, regressa de além-túmulo e começa a aproveitar-se da vda que o gémeo vivo conseguira construir para si, até tudo descambar em loucura, pelo menos aparente, e morte. Apesar do estilo de Rocha continuar a não me agradar por aí além, até gostei de ler este conto. Provavelmente já me habituei ao estilo, e isso ajuda. Quanto à ideia, mesmo sem ser inteiramente original tem inovação suficiente para lhe conferir interesse. O enredo e a abordagem é que poderiam ser um pouco menos clássicos; a técnica do amigo que conta a história tal qual a conhece, e que nela acredite quem quiser, é um cliché das histórias insólitas que já vem pelo menos desde o século XIX. É certo que continua a funcionar. Mas não deixa de ser cliché por isso.
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Lido: Léxico às Fatias - Parte II
Léxico às Fatias - Parte II é mais um pequeno texto de José Alberto Braga em que este brinca com as palavras, entrocadilhando frases curtas ao estilo de "a guerra fratricida soava-lhe familiar" ou "o gémeo era congénere de si mesmo". Embora só por vezes tenham piada, algumas são bastante interessantes mas, uma vez mais, parece-me que seria bem mais interessante se Braga tivesse desenvolvido estas ideias em textos propriamente ditos em vez de se limitar a despachá-las numa lista. Mesmo que só o fizesse a algumas. Assim, sabe a pouco.
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quarta-feira, 13 de novembro de 2013
Encontramo-nos a 30?
Aconteceu quase por acaso. No dia em que passou um ano da morte do meu pai, comprei um livro. E senti-me tão bem com isso, senti que fazê-lo era tão certo, que um ano depois, tendo decidido transformar esse ato simples numa tradição pessoal, comprei outro. E dentro de cinco meses, comprarei o terceiro. Porque a data dói, mas dói um pouco menos assim. Porque assim transmuto em coisa boa uma coisa má. E porque assim não marco uma morte mas celebro uma vida.
Olhando para trás, para a sua vida e interesses, para o que fez, para as conversas que teve, para as suas ideias, o meu pai foi muitas coisas mas só uma se manteve constante e inabalável ao longo de quase todos os setenta e cinco anos que viveu. Desde que aprendeu a ler até poucos meses antes de morrer. Os livros. Um constante amor pelos livros, pela leitura, ocasionalmente pela escrita, que o levou a juntar uma biblioteca de uns quatro mil volumes. E por isso, comprar um livro na data da sua morte tem a certeza de um ponto de exclamação.
Mas porquê ficar por aí?
Se estivesse vivo, o meu pai faria no próximo dia 30 setenta e sete anos. E há dias, ao pensar nisso, nele, na sua vida e interesses, tive uma ideia. E se agarrasse em mim, nos meus livros e nos dele, e fosse passar um par de horas à Casa Inglesa (sítio que qualquer portimonense conhece e onde ele passava longas horas, em especial antes do 25 de Abril e aos fins-de-semana, à volta do xadrez, dos livros e, sim, da política), bebendo umas cervejas, lendo se não aparecer ninguém, conversando se aparecer?
Pareceu-me boa, a ideia. Uma espécie de festa de anos com aniversariante ausente por motivos de força maior. E ainda bem, que ele detestava essas pepineiras (palavras dele) e haveria de responder à ideia com uma ironia mordaz e demolidora qualquer. Mas depois, se conseguíssemos a difícil proeza de o arrancar de casa, até acabaria muito provavelmente por se divertir. Portanto, sim.
E assim será. Estão convidados. Dia 30, às nove, nove e meia da noite. Eu estarei lá, na Casa Inglesa, naquela sala que lá existe no primeiro andar. Levo livros. Os meus, os dele, talvez uma tradução ou outra. Venham daí. Se tiverem livros vossos, tragam-nos também. Se tiverem algum outro que achem que seria boa ideia trazer, venha ele.
Eu levo o meu pai. Ele anda sempre comigo.
Olhando para trás, para a sua vida e interesses, para o que fez, para as conversas que teve, para as suas ideias, o meu pai foi muitas coisas mas só uma se manteve constante e inabalável ao longo de quase todos os setenta e cinco anos que viveu. Desde que aprendeu a ler até poucos meses antes de morrer. Os livros. Um constante amor pelos livros, pela leitura, ocasionalmente pela escrita, que o levou a juntar uma biblioteca de uns quatro mil volumes. E por isso, comprar um livro na data da sua morte tem a certeza de um ponto de exclamação.
Mas porquê ficar por aí?
Se estivesse vivo, o meu pai faria no próximo dia 30 setenta e sete anos. E há dias, ao pensar nisso, nele, na sua vida e interesses, tive uma ideia. E se agarrasse em mim, nos meus livros e nos dele, e fosse passar um par de horas à Casa Inglesa (sítio que qualquer portimonense conhece e onde ele passava longas horas, em especial antes do 25 de Abril e aos fins-de-semana, à volta do xadrez, dos livros e, sim, da política), bebendo umas cervejas, lendo se não aparecer ninguém, conversando se aparecer?
Pareceu-me boa, a ideia. Uma espécie de festa de anos com aniversariante ausente por motivos de força maior. E ainda bem, que ele detestava essas pepineiras (palavras dele) e haveria de responder à ideia com uma ironia mordaz e demolidora qualquer. Mas depois, se conseguíssemos a difícil proeza de o arrancar de casa, até acabaria muito provavelmente por se divertir. Portanto, sim.
E assim será. Estão convidados. Dia 30, às nove, nove e meia da noite. Eu estarei lá, na Casa Inglesa, naquela sala que lá existe no primeiro andar. Levo livros. Os meus, os dele, talvez uma tradução ou outra. Venham daí. Se tiverem livros vossos, tragam-nos também. Se tiverem algum outro que achem que seria boa ideia trazer, venha ele.
Eu levo o meu pai. Ele anda sempre comigo.
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
Reflexãozinha a 100 à hora
Diz-se com frequência que ler expande os horizontes. Que permite tomar consciência de mais mundo para além das limitações da vida de cada um. Que amplifica a capacidade empática, ou a inteligência, ou o potencial de raciocínio. Que, em suma, torna os leitores não necessariamente melhores que os não leitores, mas melhores do que eles próprios seriam se não o fossem.
De uma forma geral, tenho poucas dúvidas de que isto é verdade. E no entanto...
E no entanto tenho vindo a reparar com cada vez maior insistência quão limitados são aqueles que só leem uma coisa, seja essa coisa ficção "literária" ou ficção científica, fantasia urbana ou poesia, relatórios parlamentares ou banda desenhada, textos religiosos ou o manifesto do partido comunista. Quão incapazes eles se mostram tantas vezes de sair dos sulcos que as suas mentes percorrem uma e outra vez e outra ainda, sulcos tantas vezes aprofundados com o aparentemente irrefutável argumento de que "eu li". De que "está escrito". Como se estar escrito contivesse alguma espécie de taumaturgia, como se texto fosse sinónimo de sacro.
Como se ler só uma coisa, ou primordialmente uma coisa só, contraísse os horizontes. Como se reduzisse a empatia, a inteligência, o raciocínio. Como se esse tipo de leitura de foco estreito tivesse o efeito contrário ao que se diz que a leitura, em geral, possui.
Provavelmente é só impressão. Provavelmente, ela até expande os horizontes, embora não tanto como poderia expandir. Talvez amplifique empatias, inteligências e raciocínios, mas menos do que seria possível, ou até desejável.
Ou então, a explicação é outra, e não é a leitura a limitar os leitores, mas as limitações intrínsecas dos leitores a limitar as leituras. Se calhar é mais isso.
De uma forma geral, tenho poucas dúvidas de que isto é verdade. E no entanto...
E no entanto tenho vindo a reparar com cada vez maior insistência quão limitados são aqueles que só leem uma coisa, seja essa coisa ficção "literária" ou ficção científica, fantasia urbana ou poesia, relatórios parlamentares ou banda desenhada, textos religiosos ou o manifesto do partido comunista. Quão incapazes eles se mostram tantas vezes de sair dos sulcos que as suas mentes percorrem uma e outra vez e outra ainda, sulcos tantas vezes aprofundados com o aparentemente irrefutável argumento de que "eu li". De que "está escrito". Como se estar escrito contivesse alguma espécie de taumaturgia, como se texto fosse sinónimo de sacro.
Como se ler só uma coisa, ou primordialmente uma coisa só, contraísse os horizontes. Como se reduzisse a empatia, a inteligência, o raciocínio. Como se esse tipo de leitura de foco estreito tivesse o efeito contrário ao que se diz que a leitura, em geral, possui.
Provavelmente é só impressão. Provavelmente, ela até expande os horizontes, embora não tanto como poderia expandir. Talvez amplifique empatias, inteligências e raciocínios, mas menos do que seria possível, ou até desejável.
Ou então, a explicação é outra, e não é a leitura a limitar os leitores, mas as limitações intrínsecas dos leitores a limitar as leituras. Se calhar é mais isso.
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