foto: RTP |
Começo por dizer que não sou fã. Não tenho o Diogo Piçarra em grande consideração artística, pelos mesmos motivos por que não tenho em grande consideração artística qualquer cantor que dê sinais de pôr características não musicais à frente da música para vender discos (ou, vá, música em streaming) e bilhetes às pitas. Ou aos putos. Se é certo que alguns são realmente grandes músicos, e basta lembrarmo-nos dos Beatles para que isso não ofereça dúvidas a ninguém, não é menos certo que a esmagadora maioria passou fugazmente pela rua da música e nunca mais lá voltou a pôr os pés. Exemplos são tão numerosos que posso apontar para quase toda a pop e ainda ficam de reserva milhares de artistas com mais ou menos aspas.
Ora, o Diogo Piçarra sempre me pareceu encaixar firmemente neste último grupo. Da música que apresenta aos olhos de carneiro mal morto com que a vende nos vídeos, nada me fez admirar grandemente o que faz. Entenda-se: é um modo de ganhar a vida como outro qualquer e melhor que muitos. Nada contra, por princípio. Mas eu gosto de música, e por isso exijo dela mais do que isso.
Mas isto é preâmbulo. O que aqui me traz é a prestação do Diogo no Festival da Canção e o que se seguiu à descoberta de que a canção que apresentou era igual a uma canção adotada pela IURD (não, não é "da IURD", como apareceu por aí; foi composta antes sequer de haver uma IURD) como cântico evangélico.
Quando ouvi a canção fiquei agradavelmente surpreendido. Não com a canção, que tem uma melodia muitíssimo simples e uma progressão de acordes usada em milhares de outras, o que em si mesmo também não tem nada de mal ou errado, é apenas a natureza da música. Não com a canção, mas com a interpretação. Gostei da interpretação do Diogo, o suficiente para a achar das melhores da noite (mas não a melhor) e para o fazer subir um pouco na minha consideração artística.
Depois, vieram as acusações de plágio. E foi aqui que a porca começou a torcer fortemente o rabo.
O Diogo Piçarra explicou que não conhecia a canção pretensamente plagiada. Os cínicos não acreditaram: afinal, se a canção era igual, só podia ter sido copiada! É óbvio! Não é?
Não, não é. Quem saiba alguma coisa sobre música tem obrigação de saber que quanto mais simples é uma melodia mais fácil é que ela reapareça em peças musicais completamente independentes. Especialmente com a quantidade de música que é produzida diariamente e que torna absolutamente impossível seja a quem for conhecê-la toda. Por isso, quem saiba alguma coisa sobre música tem obrigação de no mínimo dos mínimos dar o benefício da dúvida ao Diogo Piçarra. Porque a melodia é simples, e porque é muito provável que ele desconhecesse mesmo a canção preexistente. Muito provável.
(Um parêntesis rápido: embora isto afete mais a música que outras artes, por ter uma matéria-prima mais limitada do que, digamos, a literatura — sete notas têm menos combinações possíveis do que vinte e seis letras — nenhuma atividade criativa está livre da criatividade paralela.)
O que chateia é nada disto deter o bando de cínicos ignorantes, que se ficam pelas aparências sem aprofundarem seja o que for. Parece plágio? É porque é plágio. Assume-se má-fé com a completa irresponsabilidade com que se partilha lixo nas redes sociais sem primeiro verificar a sua veracidade. Na verdade, mais do que má-fé, assume-se crime, porque é isso o que o plágio é; plágio não é criar coisas iguais, é copiar conscientemente coisas feitas por outros. Resultado: o Diogo Piçarra foi enxovalhado com absoluta injustiça por tudo quanto é bicho careta que nunca teve uma ideia original na vida.
(Outro parêntesis rápido: há uma diferença significativa entre um caso de criatividade paralela, ou até entre dois ou três, e uma quantidade suficiente de casos para configurar um padrão de comportamento. Se dou inteiramente o benefício da dúvida ao Diogo Piçarra, já casos como o do Tony Carreira, em que as canções foram várias e a "fonte" foi sempre a mesma, o que é uma total improbabilidade estatística, me merecem as maiores reticências.)
O puto não o merecia. Mesmo não tendo percebido imediatamente o que era óbvio: que não poderia apresentar a canção na final do festival e a sua única saída era retirar-se. Por causa do burburinho, sim, mas acima de tudo porque a canção é igual à outra. Acontece? Acontece. Mas quando se descobre que aconteceu convém perceber rapidamente que a RTP nunca poderia escolher aquela canção para representar o país na eurovisão, por todos os motivos e mais alguns. Não se retirando, não só o enxovalho dos cínicos iria continuar e provavelmente intensificar-se, como o Diogo correria um risco muito real de receber zero pontos do júri, acabando ingloriamente na cauda da tabela ou no máximo no meio, se a legião de pitas que babam com tudo o que faz encolhesse os ombros às acusações e votasse na mesma na sua canção.
Mas o Diogo lá o compreendeu, mesmo tardiamente, e retirou-se. E, retirando-se, bom seria que tudo isto morresse rapidamente. Bom seria que os cínicos percebessem algumas coisas sobre o processo criativo, percebessem que ninguém pode conhecer tudo o que já se fez e que, com o manancial de produção cultural que acontece nos nossos tempos, é inevitável que por vezes criadores diferentes cheguem independentemente aos mesmos resultados, percebessem que a probabilidade de ter sido precisamente isso o que aconteceu aqui é muitíssimo alta. Bom seria que o cinismo fosse menos omnipresente e menos cansativo.
Não tenho grande esperança de que assim seja. Mas é possível que sim. Especialmente se a turba arranjar outra indignação fast-food qualquer para se manter entretida. Por mim, posso dizer que a minha opinião sobre o Diogo Piçarra acabou por melhorar: o respeito que tenho por ele enquanto compositor não se alterou (não era grande, continua a não o ser) mas passei a respeitá-lo mais como intérprete. Se o deixarem crescer musicalmente, creio que tem por onde e, se o fizer, acho que pode vir a dar à música portuguesa as boas coisas que ainda não deu. Mas para isso é preciso que o deixem crescer e que ele o faça.
E quanto a vocês, só posso desejar que se acalmem com as berrarias de plágio por dá cá aquela palha. Só raramente o que vocês julgam que é plágio o é realmente. Pode ser? Estariam a fazer um grande favor à sanidade.
E parabéns a quem chegou até aqui.