quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

O cinismo cansa-me

foto: RTP
Sim, vou falar do Diogo Piçarra.

Começo por dizer que não sou fã. Não tenho o Diogo Piçarra em grande consideração artística, pelos mesmos motivos por que não tenho em grande consideração artística qualquer cantor que dê sinais de pôr características não musicais à frente da música para vender discos (ou, vá, música em streaming) e bilhetes às pitas. Ou aos putos. Se é certo que alguns são realmente grandes músicos, e basta lembrarmo-nos dos Beatles para que isso não ofereça dúvidas a ninguém, não é menos certo que a esmagadora maioria passou fugazmente pela rua da música e nunca mais lá voltou a pôr os pés. Exemplos são tão numerosos que posso apontar para quase toda a pop e ainda ficam de reserva milhares de artistas com mais ou menos aspas.

Ora, o Diogo Piçarra sempre me pareceu encaixar firmemente neste último grupo. Da música que apresenta aos olhos de carneiro mal morto com que a vende nos vídeos, nada me fez admirar grandemente o que faz. Entenda-se: é um modo de ganhar a vida como outro qualquer e melhor que muitos. Nada contra, por princípio. Mas eu gosto de música, e por isso exijo dela mais do que isso.

Mas isto é preâmbulo. O que aqui me traz é a prestação do Diogo no Festival da Canção e o que se seguiu à descoberta de que a canção que apresentou era igual a uma canção adotada pela IURD (não, não é "da IURD", como apareceu por aí; foi composta antes sequer de haver uma IURD) como cântico evangélico.

Quando ouvi a canção fiquei agradavelmente surpreendido. Não com a canção, que tem uma melodia muitíssimo simples e uma progressão de acordes usada em milhares de outras, o que em si mesmo também não tem nada de mal ou errado, é apenas a natureza da música. Não com a canção, mas com a interpretação. Gostei da interpretação do Diogo, o suficiente para a achar das melhores da noite (mas não a melhor) e para o fazer subir um pouco na minha consideração artística.

Depois, vieram as acusações de plágio. E foi aqui que a porca começou a torcer fortemente o rabo.

O Diogo Piçarra explicou que não conhecia a canção pretensamente plagiada. Os cínicos não acreditaram: afinal, se a canção era igual, só podia ter sido copiada! É óbvio! Não é?

Não, não é. Quem saiba alguma coisa sobre música tem obrigação de saber que quanto mais simples é uma melodia mais fácil é que ela reapareça em peças musicais completamente independentes. Especialmente com a quantidade de música que é produzida diariamente e que torna absolutamente impossível seja a quem for conhecê-la toda. Por isso, quem saiba alguma coisa sobre música tem obrigação de no mínimo dos mínimos dar o benefício da dúvida ao Diogo Piçarra. Porque a melodia é simples, e porque é muito provável que ele desconhecesse mesmo a canção preexistente. Muito provável.

(Um parêntesis rápido: embora isto afete mais a música que outras artes, por ter uma matéria-prima mais limitada do que, digamos, a literatura — sete notas têm menos combinações possíveis do que vinte e seis letras — nenhuma atividade criativa está livre da criatividade paralela.)

O que chateia é nada disto deter o bando de cínicos ignorantes, que se ficam pelas aparências sem aprofundarem seja o que for. Parece plágio? É porque é plágio. Assume-se má-fé com a completa irresponsabilidade com que se partilha lixo nas redes sociais sem primeiro verificar a sua veracidade. Na verdade, mais do que má-fé, assume-se crime, porque é isso o que o plágio é; plágio não é criar coisas iguais, é copiar conscientemente coisas feitas por outros. Resultado: o Diogo Piçarra foi enxovalhado com absoluta injustiça por tudo quanto é bicho careta que nunca teve uma ideia original na vida.

(Outro parêntesis rápido: há uma diferença significativa entre um caso de criatividade paralela, ou até entre dois ou três, e uma quantidade suficiente de casos para configurar um padrão de comportamento. Se dou inteiramente o benefício da dúvida ao Diogo Piçarra, já casos como o do Tony Carreira, em que as canções foram várias e a "fonte" foi sempre a mesma, o que é uma total improbabilidade estatística, me merecem as maiores reticências.)

O puto não o merecia. Mesmo não tendo percebido imediatamente o que era óbvio: que não poderia apresentar a canção na final do festival e a sua única saída era retirar-se. Por causa do burburinho, sim, mas acima de tudo porque a canção é igual à outra. Acontece? Acontece. Mas quando se descobre que aconteceu convém perceber rapidamente que a RTP nunca poderia escolher aquela canção para representar o país na eurovisão, por todos os motivos e mais alguns. Não se retirando, não só o enxovalho dos cínicos iria continuar e provavelmente intensificar-se, como o Diogo correria um risco muito real de receber zero pontos do júri, acabando ingloriamente na cauda da tabela ou no máximo no meio, se a legião de pitas que babam com tudo o que faz encolhesse os ombros às acusações e votasse na mesma na sua canção.

Mas o Diogo lá o compreendeu, mesmo tardiamente, e retirou-se. E, retirando-se, bom seria que tudo isto morresse rapidamente. Bom seria que os cínicos percebessem algumas coisas sobre o processo criativo, percebessem que ninguém pode conhecer tudo o que já se fez e que, com o manancial de produção cultural que acontece nos nossos tempos, é inevitável que por vezes criadores diferentes cheguem independentemente aos mesmos resultados, percebessem que a probabilidade de ter sido precisamente isso o que aconteceu aqui é muitíssimo alta. Bom seria que o cinismo fosse menos omnipresente e menos cansativo.

Não tenho grande esperança de que assim seja. Mas é possível que sim. Especialmente se a turba arranjar outra indignação fast-food qualquer para se manter entretida. Por mim, posso dizer que a minha opinião sobre o Diogo Piçarra acabou por melhorar: o respeito que tenho por ele enquanto compositor não se alterou (não era grande, continua a não o ser) mas passei a respeitá-lo mais como intérprete. Se o deixarem crescer musicalmente, creio que tem por onde e, se o fizer, acho que pode vir a dar à música portuguesa as boas coisas que ainda não deu. Mas para isso é preciso que o deixem crescer e que ele o faça.

E quanto a vocês, só posso desejar que se acalmem com as berrarias de plágio por dá cá aquela palha. Só raramente o que vocês julgam que é plágio o é realmente. Pode ser? Estariam a fazer um grande favor à sanidade.

E parabéns a quem chegou até aqui.

Lido: Pulsação

Inês Montenegro apresenta um continho bastante interessante, uma espécie de fábula contada sob o ponto de vista de um livro. O título, Pulsação, só se compreende verdadeiramente no fim da história que narra o trajeto de "vida" de um livro desde a livraria ao momento em que é comprado, lido e depois arrumado, e o que acaba por suceder a esse longo período de mera existência na estante do dono. Para aqueles que gostam de sustentar até ao fim a procura das ideias contidas nos contos, eu talvez esteja a revelar demasiado dizendo que este continho é sobretudo uma declaração de amor às bibliotecas, mas julgo ser impossível falar dele sem o dizer. E também sem dizer que é um bom conto, com o tamanho certo e as palavras certas para a história que pretende contar.

Contos anteriores deste livro:

Nanocuentos del planeta tierra - quem é esta gente? (1)

Quando começaram a sair as listas de contos aceites para os Nanocuentos del Planeta Tierra, e confrontado com tantos nomes que desconhecia por completo, tive curiosidade de saber quem era aquela gente e fui (devagarinho, muito devagarinho, que isto não tem andado fácil por estas bandas) investigar. Depois, achei que, já agora, bem podia divulgar os resultados da investigação.

Este post é a primeira dessas divulgações. Em parte porque ainda não completei a investigação, em parte porque escrever isto sempre gasta algum tempo, em parte porque não sei se há aí alguém minimamente interessado nisto, aqui está o que consegui saber sobre os dez primeiros autores apenas.

Jenny Kangasvuo foi o primeiro nome a surgir. Não encontrei muita informação e a que encontrei está em finlandês, portanto houve logo recurso ao tradutor do Google. É uma autora finlandesa, aparentemente nascida em 1975, teve um romance publicado em 2012 e ganhou em 2006 um prémio Atorox. O que é isto, perguntam vocês? Pois parece ser um prémio finlandês de ficção científica dedicado a contos.

Balazs Farkas veio a seguir. Depois de me livrar do futebolista com o mesmo nome, descobri que se trata de um escritor húngaro ativo em ficção literária e weird fiction (ou talvez simplesmente horror), nascido em 1987, e com uma lista razoavelmente longa de obras publicadas em húngaro (se o tradutor me ajudou suficientemente bem, o que é algo duvidoso) desde 2005, além de três em inglês.

Dolly Garland foi fácil: o seu site é logo o primeiro link a aparecer no Google. Trata-se de uma escritora com um ar muito indiano e baseada em Londres e uma lista razoavelmente curta de contos publicados, acompanhada por alguma poesia e uma extensa lista de artigos.

Servando Clemens não tem muita informação disponível. Só fiquei a saber que é mexicano de Sonora e que parece ter começado a escrever há relativamente pouco tempo. Parece dedicar-se sobretudo ao horror, mas posso estar muito enganado a este respeito.

Graciela Yaracci é argentina de Buenos Aires e parece ter-se dedicado sobretudo à poesia, ainda que também tenha escrito contos muito breves, por vezes em parceria.

Gergely Buglyó é outro húngaro e mais uma vez lá teve de vir o tradutor do Google em meu auxílio. Aparentemente é escritor e cientista (ciências biomédicas, ajuizando pelos títulos dos papers), baseado em Debrecen, e tem publicada uma trilogia que parece ser de fantasia, além de alguns contos em antologias e online.

Alejandro Bentivoglio é mais um argentino da região de Buenos Aires, nascido em 1979, que parece ter uma ampla produção literária focada nas microficções, coligidas em vários livros que vêm saindo desde 2006. O estilo parece andar entre o absurdista, o fantástico e o poético, possivelmente influenciado por Cortázar.

María Rosa Lojo também é argentina e de Buenos Aires. Nascida em 1954, é uma académica (estudos literários) com quase 20 livros publicados entre o romance, as coletâneas de contos e a poesia, isto para não falar da dezena ou mais de publicações de cariz ensaístico e académico.

So Blonde deixou-me de mãos atadas. Não só tem todo o ar de pseudónimo (significa "tão loura/o" em inglês), como existe um jogo de computador com esse título, o qual domina por completo as buscas no Google. Foi o primeiro nome que me deixou a zeros, mas não deverá ser o último.

José Luis Zárate é um dos poucos nomes que já conhecia. Mexicano de Puebla, nascido em 1966, é um dos mais importantes escritores mexicanos de ficção científica e fantástico (ativo em ambas as vertentes da coisa) e tem uma carreira já longa, pois começou a publicar em 1987, tendo até agora posto cá fora seis romances e vários livros de contos.

E pronto, os primeiros dez são estes. Um dia destes haverá mais.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Lido: Para Sempre Porque Sim

Voltamos uma derradeira vez a Alexandra Pereira e às suas histórias para falar de um continho de duas páginas sobre alguém que não lhe apetecia fazer nada, uma "mulher-renúncia", como a autora lhe chama. Até ao dia em que encontra um "homem-renúncia", sua imagem ao espelho, ao qual vai acabar por dizer Para Sempre Porque Sim. O ambiente é vagamente de realismo mágico, ou de alegoria com as suas personagens e ambientes simplificados ao extremo, a história é em parte um conto moral sobre as virtudes de dizer não, em parte uma simples história de amor que como que afirma haver sempre alguém para qualquer pessoa, por mais ouriçada que esta pareça ser à primeira vista. Sentimentos bonitos, história bem contada, tema que pessoalmente achei pouco interessante. É um bom conto do qual não gostei muito.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Gary Johnson

Existe, na literatura fantástica contemporânea, um movimento retro bastante forte, corporizado em muito do steampunk que se vai fazendo e, em geral, em escritores que escrevem hoje usando estilos e temáticas do século XIX ou do princípio do século XX, englobando não só o já referido steampunk, mas também muita ficção de horror, lovecraftiana, neogótica, pastiches da ficção científica da época, por aí fora. Não é, confesso, das abordagens que eu mais aprecie, ainda que saiba reconhecer e consiga desfrutar de quando está bem feito, muito em especial quando existe uma razão forte para a emulação de textos passados. Em geral, contudo, prefiro quando os autores se conseguem (e querem) libertar dessa emulação; quando, sem renegarem influências ou heróis literários, preferem procurar ser eles próprios.

Vem isto a propósito deste conto de Daniel I. Dutra. Gary Johnson (bibliografia) é claramente um texto que procura emular a abordagem novecentista à ficção científica. Está lá tudo, todo o mancial de clichés: o cientista meio enlouquecido e solitário, autodidata, as experiências perigosas e eticamente reprováveis, o misticismo a imiscuir-se no mundo físico, o horror a surgir como consequência natural de a arrogância humana ir mexer onde não deve, o próprio texto parcialmente epistolar, muitos eteceteras. Lê-se este texto de Dutra e sentem-se as linhas que o ligam a obras como Frankenstein ou O Médico e o Monstro. Há, obviamente, quem goste. Já eu, não só não gosto muito como o exercício me parece arriscado, e por vários motivos: por um lado, os clichés devem ser manuseados com prudência para escapar à possibilidade de se aborrecer leitores com alguma sofisticação; por outro lado, o texto fica inevitavelmente antiquado; por outro ainda, e o que é mais importante, quem emula velhos e grandes escritores não consegue escapar à comparação... e sai-se dela quase sempre mal. Os clássicos são quase invariavelmente melhores, muito melhores.

É o que acontece com Dutra. Ele não faz mal o que se propõe fazer. O pastiche é credível, a história que conta está razoavelmente bem contada, muito embora me pareça que há aqui alguns problemas de ritmo narrativo, todo o conto tem ar de ter sido escrito lá pelos anos 10 ou 20 do século XX, o mais tardar. Mas não foi, e quando lemos sabemos que não foi. Por isso comparamos com os que foram, e a comparação não é muito favorável à obra moderna. Dutra poderia ter evitado uma colagem tão forte aos textos do passado se usasse de forma criativa alguns elementos anacrónicos; seria uma forma de transmitir ao leitor a ideia de que, sim, existe uma influência, mas não existe uma cópia. Infelizmente não o fez.

Não gostei deste conto. Não posso dizer que seja mau, mas não me agradou.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Lido: F de Foguete

Qualquer livro de contos que contenha clássicos absolutos, qualquer livro que contenha alguns dos melhores contos jamais escritos num determinado género, é imediatamente livro de recomendar absolutamente, sejam os restantes contos bons, medianos, maus ou até péssimos. Mais ainda quando, ao fazer-se a contabilidade final, se encontra um total de zero contos maus e vários clássicos absolutos.

F de Foguete (bibliografia) é, portanto, um livro altamente recomendável. Porque entre os seus 17 contos se contam algumas das melhores histórias que Ray Bradbury escreveu na sua longa carreira e, concomitantemente, alguns dos melhores contos de ficção científica que foram escritos até hoje. Um livro que contenha Um Som de Trovão, A Buzina da Neblina ou A Longa Chuva é um livro que deve ser lido, mesmo que os outros 14 contos que contém sejam fracos. E não são. Há alguns que são apenas medianos, mas a generalidade destas histórias encaixa-se em algum grau de bom ou de muito bom.

A maioria é também histórias de ficção científica, ainda que por vezes o sejam de uma forma muito "impura", com grandes misturas de fantasia ou horror. A maioria mas nem todas; algumas destas histórias nada têm de FC ou de qualquer outro ramo daquilo a que costuma chamar-se literatura fantástica: são histórias mainstream, muito americanas em essência e ambiente; curiosamente, ou talvez não, são também as mais desinteressantes, aquelas a que mais falta o rasgo imaginativo que tanto contribui para a experiência de leitura de Bradbury. São histórias brandas que, ao contrário das outras que podem também o ser mas incluem sempre algum tempero que lhes realce o sabor, têm muito de sensaborão, por mais bem escritas que possam estar. Se o livro fosse todo assim, seria dispensável. Bastante.

Mas não é. E por isso só não digo que é um livro indispensável porque os melhores contos que contém estão também disponíveis noutras publicações, sejam também coletâneas do autor, sejam antologias de grandes histórias de ficção científica do século XX. Os clássicos tendem a aparecer assim, um pouco por todo o lado.

Eis o que achei dos contos individualmente considerados:

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Lido: O Rosto Vivo

Não tenho muito a dizer sobre este O Rosto Vivo de Marcelina Gama Leandro. É uma historinha daquelas que dão a ideia de que a autora não soube bem o que escrever até à última hora, ou então que não conseguiu passar eficazmente a ideia para texto. Limita-se a contar uma historieta sobre um par de irmãos que vão à biblioteca do avô em busca de um livro para ler, são apanhados e são corridos, por entre vagas sugestões de haver magia embebida nos livros, ou pelo menos em alguns. A influência de Harry Potter parece-me razoavelmente clara, mas mesmo assim esta podia dar uma história interessante se fosse mais longa e menos inconsequente no que pretende contar.

E se estivesse mais bem escrita. Há neste continho demasiados problemas com a pontuação (nomeadamente com as vírgulas) e palavras estapafúrdias como "intimado", quando se queria na verdade escrever "intimidado". Uma intimação até pode intimidar mas é coisa distinta de intimidação.

Em suma: podia ser melhor. Bastante melhor.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Lido: Um Tuaregue e Dois Cavalos

Cinco páginas, para aquilo que é habitual nestes contos de Alexandra Pereira, é um texto particularmente extenso, este com o título aparentemente enganador de Um Tuaregue e Dois Cavalos. Não há aqui tuaregues nem cavalos, salvo em sentido figurado; conta-se uma história de emigração, aparentemente clandestina, não se percebe bem se de regresso aos anos da ditadura salazarenta em que a sobrevivência dependia tantas vezes de passar a salto a fronteira, numa primeira etapa que levava o fugido a Espanha em viagem que só muito raramente aí terminava, pois a Europa livre ficava mais longe, se avançando para um futuro indeterminado em que essa necessidade de novo se faz premente. E é inteiramente possível que essa indefinição só exista na minha cabeça, sempre em busca de futuros prováveis, ao contrário das dos outros, que se contentam com passados.

Seja como for, isso pouco importa para o conto em si, que é sobretudo uma longa (longa, entenda-se, para o que é hábito na autora) divagação sobre o que é isto de ser português, sobre nacionalismo ou sua ausência, sobre raízes e a vontade de as arrancar; que o ambiente pidesco a pairar ao fundo seja passado concreto ou futuro eventual nada altera sobre coisa alguma no que ao conto diz respeito. Este está bem escrito e é eficaz, apesar de uma certa tendência para a divagação ensaística que o piora. Em suma: razoável.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Os Músicos da Cidade de Bremen

Uma das imagens mais antigas que eu tenho guardadas na memória mostra uma série de quatro animais empoleirados em cima uns dos outros. Não me lembro de onde a vi pela primeira vez, nem de quando, mas lembro-me bem da sequência: em baixo está um burro, empoleirado no burro está um cão, às cavalitas do cão está um gato e no topo está um galo.

Muito mais tarde vim a descobrir que esta pilha de bicharada é um dos símbolos da cidade alemã de Bremen, que aparece em t-shirts e em estátuas, e que se baseia numa lenda da região.

Agora fico a caber que foi em duas versões desta lenda que os Irmãos Grimm pegaram para criar o continho Os Músicos da Cidade de Bremen, três páginas e meia sobre quatro animais já velhos e inúteis, que decidem associar-se e rumar a Bremen para ganhar a vida na cidade, mas acabam por ficar pela floresta depois de, graças a trabalho de equipa, expulsarem de uma casa um bando de ladrões.

É uma história com bom potencial para adaptações infantis e decerto terá sido de uma dessas que eu colhi a imagem. Mas a verdade é que, embora a imagem em si mesma me tenha perdurado na memória, a história não o fez. Ao ler este conto foi como se o estivesse a ler de novo. E, embora ele tenha algum interesse com o seu arquetípico grupo de criaturas díspares que se unem para alcançar um objetivo comum, explorando assim ao máximo as características próprias de cada uma (tantas vezes usado na literatura de aventuras, e muito em especial na fantasia), não creio que seja uma história particularmente boa precisamente por ser tão olvidável.

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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Lido: O Velho

Entre sugestões de um Estado totalitário, Clóvis Garcia leva-nos com este seu O Velho a um futuro em que os velhos deixaram de ser uma visão comum nas ruas da cidade por se retirarem voluntariamente da sociedade, passando a viver em centros onde têm ao dispor tudo aquilo de que necessitam. Todos? Não. O velho que protagoniza esta história é uma exceção, recusando-se a essa forma de apagamento social, preferindo uma vida solitária mas livre, mesmo com dificuldades, à prisão dourada dos da sua geração. Mas o que faz mover o enredo não é isso: é o homem ter encontrado numa loja de antiguidades um velho androide, tão obsoleto como ele, mas proibitivamente caro, o que não impede que desperte uma espécie de paixão, ou simplesmente a necessidade de companheirismo, e que o velho vá passar a fazer os possíveis e os impossíveis para conseguir comprar a antiguidade.

É uma história bastante boa, esta. Há nela qualquer coisa de Bradbury, e também qualquer coisa de Asimov (fez-me lembrar um pouco O Homem Bicentenário, ainda que os enredos sejam bem diferentes), numa daquelas ficções científicas sociais cujo âmago é a condição humana. Neste caso, a parte da condição humana que se prende com o fim da vida e a solidão e desadaptação que ele acarreta. É também uma história bastante bem escrita e narrada com mão segura, que envelheceu muito bem. Muito melhor que o protagonista. Aprovado.

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Lido: O Som do Verão Correndo

Já aqui falei várias vezes daqueles contos centrados na infância e nas cidadezinhas do Midwest norte-americano, que Ray Bradbury escreveu com tanta frequência, quase invariavelmente ambientados no verão ou no outono. Alguns desses contos são de um horror suave, enraizando-se no imaginário do Halloween e no seu cortejo de monstros e bruxos que em Bradbury são quase sempre de bom coração. Outros aproximam-se mais da ficção científica e mostram-nos pais que lutam por apresentar o mundo a filhos sonhadores, repletos de futuro, de uma forma tal que não lhes destrua o sentido da maravilha. Outros ainda nada têm de fantasioso, são puro mainstream, conhecidas pelo termo americana.

Este O Som do Verão Correndo é uma destas últimas histórias. O protagonista é um miúdo que, ao chegar o verão, cobiça intensamente uns sapatos desportivos que vê numa sapataria. Mas os pais não nadam em dinheiro e recusam-se a comprá-los e a história conta a forma como o rapaz tenta arranjar maneira de conseguir deitar-lhes a mão. Trata-se de um conto sem grandes surpresas (ou sem nenhumas para quem já conhece razoavelmente bem a obra do escritor), cujo ponto forte é o texto de Bradbury e a poesia em que envolve as histórias mais banais, que é o que esta é. Uma história banal sobre uma situação banal, com personagens banais e sem nada de extraordinário a apimentá-la. Está bem escrita e bem concebida, mas também está muito longe do melhor que Bradbury produziu.

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domingo, 11 de fevereiro de 2018

Lido: Habitable Planets for Man

Um exercício de leitura que eu acho curioso e geralmente muito interessante é ler os livros seminais de determinadas disciplinas científicas. Não todos, claro; há alguns que são demasiada areia para a minha camioneta; não me verão tão cedo (bem, mais que provavelmente não me verão nunca) a pegar em The theory of heat radiation de Max Planck, por exemplo. Mas a leitura de livros como A Origem das Espécies, de Charles Darwin, é para mim um prazer porque conjuga várias das coisas que eu procuro na leitura, faltando-lhe apenas a pura experiência literária (que às vezes até existe; há cientistas e divulgadores de ciência que escrevem verdadeiramente bem): espevita a imaginação, treina o raciocínio, ensina-me coisas que eu não sabia (mesmo quando conheço bastante bem a disciplina há sempre alguma coisa de novo), dá-me uma perspetiva histórica da evolução dos conhecimentos na ciência em causa, por comparação entre os que vêm expressos na obra lida e o que sei sobre o estado contemporâneo da ciência, e por aí fora.

Habitable Planets for Man é um desses livros. Debruça-se sobre a exoplanetologia, ou mais especificamente sobre a parte desta disciplina que se esforça por encontrar planetas habitáveis por seres humanos em volta de outras estrelas, e faz pela primeira vez um apanhado dos conhecimentos científicos disponíveis na sua época, numa tentativa de estimar quantos planetas habitáveis haverá na nossa galáxia, a que distância será provável estar o mais próximo e, em geral, onde deverão estar.

Nota importante: o livro foi escrito em 1962 e publicado em 1964. À época, os únicos exoplanetas que se conhecia eram aqueles criados por escritores e outros autores de ficção científica, e iriam ainda passar-se trinta anos até ser realmente confirmada a existência de planetas em volta de outros astros: a primeira deteção confirmada de um exoplaneta (na verdade foram logo dois) data de 1992, mas estes planetas giram em volta de um pulsar, não de uma estrela normal. Houve que esperar mais três anos pela primeira deteção definitiva de um exopaneta na órbita de uma estrela normal, quando a publicação deste livro já tinha completado o seu 31º aniversário.

É por isso espantoso, e um testemunho da qualidade da especulação teórica disponível à época, que Stephen H. Dole tenha acertado em tanta coisa mesmo apesar da grande quantidade de surpresas com que os cientistas têm vindo a ser brindados nas últimas duas décadas de deteção de exoplanetas. Apesar de se manter preso à noção de sistemas extrassolares semelhantes ao solar, com os planetas terrestres mais perto da estrela e gasosos no sistema exterior, inteiramente dominante até que as primeiras descobertas de "júpiteres quentes" vieram pôr essa teoria de pantanas, Dole consegue fazer uma análise ainda hoje muito aplicável sobre tipos de órbitas que será possível encontrar, as relações entre estas e as massas dos planetas, os tipos de atmosferas, os intervalos de temperatura que o ambiente à superfície comporta, a presença e as quantidades de água ou a sua ausência, o efeito de estufa e a sua influência na habitabilidade, e etc. e etc., sem mesmo se esquecer de analisar casos mais exóticos como o de órbitas excêntricas ou dos planetas em sistemas múltiplos, entre outros, e chegando mesmo ao ponto de rematar o livro com um elogio de natureza quase ambientalista ao planeta Terra e às suas condições, tão propícias à nossa exigência, e a especular sobre as alterações que a humanidade poderia sofrer depois de se instalar em planetas distantes.

Nem toda a informação e teorização aqui contida sobreviveu às descobertas e às reformulações teóricas que estas forçaram, naturalmente. Mas a que sobreviveu é vasta, muito interessante e em geral bastante acessível a leigos, o que é natural se tivermos em conta que Dole escreveu não um livro propriamente dito, mas um relatório, preparado no âmbito do projeto RAND da Força Aérea dos Estados Unidos, o qual deu origem ao célebre think tank militar RAND Corporation. Ele tinha de apresentar a sua informação de forma a que os militares a conseguissem engolir... e isso faz com que ela seja hoje muito legível por qualquer pessoa com alguns conhecimentos mais ou menos básicos de planetologia, mesmo que convenha eles serem um pouco menos básicos se se quiser perceber com alguma segurança que parte do livro ainda está válida hoje em dia (a maior parte) e que parte já não está.

Uma coisa é certa: este livro é muito eficaz em dar ao leitor alguma perspetiva cósmica do nosso lugar no Universo e do quão especial é o nosso planeta. Não que adote a perspetiva pessimista da Terra rara; conclui que os planetas habitáveis deverão ser abundantes na nossa galáxia, estimando em cerca de 50 os planetas habitáveis num raio de 100 anos-luz (relembro que a Via Láctea tem uns 150 mil anos-luz de diâmetro). Mas a listagem das condições ambientais, de órbita, de distância à estrela, de características da própria estrela, de massa do planeta, e etc., e etc., é impecável a transmitir ao leitor como este mundo em que vivemos está tão perfeitamente adaptado a nele vivermos (na verdade é ao contrário; nós é que nos adaptámos perfeitamente a ele. Mas vocês percebem o que quero dizer).

Para fãs de ficção científica, este livro tem além disso o interesse adicional de lhes dar bagagem para poderem avaliar criticamente algumas ideias que surgem nas obras do género, e para escritores que queiram dedicar-se ao género, pelo menos se as histórias que pretendem escrever tiverem alguma componente extraterrestre, é uma leitura que me parece quase indispensável porque pode evitar muitas tolices. Se pertences a algum destes grupos, portanto, recomendo esta leitura; se tens curiosidade pela ciência também. Se não, podes passar adiante sem nenhum problema.

Este livro pode ser obtido legalmente na internet, em PDF, no site da RAND Corporation.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Lido: O Poder da Leitura

Em O Poder da Leitura, Ana Cristina Luz apresenta uma historinha pós-moderna, daquelas que fazem referência tão direta a obras anteriores que exigem a leitura destas para sua compreensão plena. A história é a de um miúdo que mergulhava na literatura de uma forma extraordinariamente profunda, a ponto de ter desaparecido depois de ter recebido de presente um certo livro de Paul Auster. Quem tivesse lido esse livro teria obtido mais da leitura deste continho do que eu obtive. Presumo. Como não o li, não posso ter certeza, mas é essa a impressão com que fiquei da informação que obtive quando fui à procura dele, e esse é um problema genérico desta abordagem autorreferencial à literatura: quando se fecha demasiado este tipo de círculos literários, está-se na prática a escrever apenas para iniciados (ou para aqueles que gostam o suficiente do exercício para se sentirem tentados a iniciar-se) e arrisca-se a alienação de uma maioria mais ou menos vasta consoante a obra referenciada é menos ou mais lida.

Além disso, mesmo sem contar com isso este conto não me parece muito bom. A autora escreve demasiado, por estranho que isso possa parecer ao falar-se de um texto tão curto, introduzindo alguma palha num texto que teria mais impacto se fosse muito enxuto. Querem um exemplo para se perceber o que quero dizer? Seja. Eis o segundo parágrafo do conto:
Passados tantos anos, os pais continuam a tentar descobrir o que lhe aconteceu, uma busca que não terá fim até descobrirem o seu destino.
Estão a ver a parte que assinalei a itálico? Para que serve? Não é o que os pais fazem quase sempre? E não é óbvio que se passados muitos anos a busca continua ela irá continuar por outros tantos ou mais? Ora, como este não é o único exemplo que eu poderia ter dado, não creio que este conto ultrapasse o razoável.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Mais companhia para "Decisión"

Como expliquei aqui, a lista de histórias selecionadas para a antologia Nanocuentos del Planeta Tierra (não vo-lo tinha dito, mas o título parece ser este) vai ser divulgada aos poucos, imagino que numa tentativa de causar paragens cardíacas aos pobres autores ansiosos, e até ao fim desta semana estava previsto atingir-se o número de 100 minificções apuradas. E foi: hoje saiu mais uma lista de 50, a acrescentar às duas listas anteriores de 10 e de 40, muito centrada em autores de língua espanhola (embora não exclusivamente) e, consequentemente, muito cheia de nomes que eu não conheço.

Esta última lista encerra a coisa para quem escreveu originalmente em espanhol; os que não constam até agora ficam de fora da antologia. Mas ainda devem ser aceites cerca de 200 títulos escritos originalmente em outras línguas, o que mantém em pleno a esperança de que venham a aparecer mais nomes oriundos de países lusófonos. Da nova lista não consta nenhum.

Apesar de a vasta maioria me ser desconhecida, entre os 50 novos nomes há alguns que reconheço: Steve Rasnic Tem, americano, Daniel Salvo, peruano, Salik Shah, indiano, Fernando Sorrentino, argentino, e Antonio J. Cebrián, espanhol. Há mais alguns nomes que julgo reconhecer mas, como não tenho certeza (especialmente se realmente li ficções suas ou só troquei impressões com eles nos tempos em que frequentei fóruns de língua espanhola na internet, há mais de 10 anos), não os mencionarei aqui.

Não sei ao certo quando serão divulgados mais títulos e autores, agora todos em tradução, mas quando forem dir-vos-ei. Especialmente se houver mais pessoal lusófono por lá.

Lido: O Passarão Invisível

Em pleno ambiente de realismo mágico, O Passarão Invisível é mais um conto de Alexandra Pereira desprovido de dedicatórias que conta, numa prosa muito poética (sim, mais do que é costume) uma história rural sobre duas mulheres, uma que não se via e a outra que "pouco se destrinçava nas suas formas do contorno da serra ou do recorte dos montes", e com esta citação já deverão compreender na perfeição quão poética é aqui a prosa.

Como está bom de ver-se, ou de não se ver, mais propriamente, sendo as mulheres assim invisíveis difícil se lhes torna a tarefa de arranjar homem, e as duas páginas desta vinheta contam a forma como e com quem por fim esse desidério se viu coroado de êxito para uma delas e deu frutos.

Não sendo eu grande fã da prosa poética, que tendo a achar muito cansativa quando os textos ultrapassam uma certa dimensão e os autores põem a forma muito à frente do conteúdo, como fazem quase sempre, não deixo de gostar de ler histórias curtas assim escritas, desde que nelas exista realmente uma história. Curtas como esta: uma página, duas, no máximo três, salvo se o autor é realmente muito, muito bom naquilo que faz. Não creio que Alexandra Pereira seja assim tão boa, mas esta história, com as suas duas páginas, tem a dimensão certa para o que conta. Nada a contestar.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Lido: Os Sapatinhos Encantados

Alguns dos contos recolhidos por Adolfo Coelho neste volume mostram alguma elaboração literária, fazendo suspeitar da possibilidade de ter existido um certo trabalho relativamente àquilo que se contaria popularmente, quer tenha sido feito por ele, quer (o que me parece mais provável) tenha tido origem nas fontes. Outros há, no entanto, que se leem quase como esqueletos apressados do que seria uma história razoavelmente elaborada, não consigo perceber se por terem sido simplificados em extremo pelo contador ou por quem os contou ao contador, se por já terem nascido assim esboçados.

Este Os Sapatinhos Encantados é um continho de página e meia que pertence claramente ao segundo grupo. Conta as desventuras de uma filha de mãe cruel e ciumenta da sua beleza e salta a uma velocidade tremenda de acontecimento em acontecimento até ao desfecho final, típico dos contos de fadas. Sim, que embora aqui não haja fadas existem encantamentos. O conto é fantástico, vertente maravilhoso, e como que anseia por alguém que lhe pegue e revista o esqueleto que ele é com carnes literárias suficientes para o transformar numa obra "a sério". Tem potencial para tal. Mas fica-se pelo potencial.

Contos anteriores deste livro:

Decisión

Lembram-se disto? Do que está dito na introdução ao conto, não propriamente do conto em si? Pois bem: os prazos foram mais uma vez postergados, por atrasos na tradução, e os contos aceites não serão todos divulgados ao mesmo tempo. Mas já começam a sê-lo. Foram divulgados 10 há dias, ontem saíram mais 40, e até ao fim da semana deverão sair outros 50, somando um total de 100 minificções, o que deverá corresponder a cerca de um terço do total de ficções aceites e é menos de um décimo do total de propostas. A coisa está a ser divulgada na página de facebook da editora espanhola que irá publicar o livro, a qual tem o curioso nome de La Máquina que Hace Ping.

Não conheço muitos dos 50 nomes já divulgados, o que seria de esperar. Conheço o do mexicano José Luis Zárate, o do australiano Jay Caselberg, o do argentino (e antologista) Sérgio Gaut vel Hartmann, o do americano John Paul Allen (mas deste creio que nunca li nada), o do mexicano Alberto Chimal, o do cubano Juan Pablo Noroña, e os de mais ninguém. Ah sim, claro, também conheço os nomes de três portugueses: João Ventura, José Eduardo Lopes e Jorge Candeias.

Pois é, o meu outro conto, o que sobrou depois da recusa de Revolucionário, foi aceite. Intitulado Decisão na língua original e Decisión na tradução espanhola, é um conto de ficção científica integrado no mesmo universo de Miel Lê, e que explora fugazmente uma das ideias básicas desse universo. Não é FC hard (o universo dá para muitos tipos de histórias, da FC hard a histórias que nem parecem FC) e os elementos de ficção científica que contém são razoavelmente subtis, mas eles estão lá.

É animador ver aceite para publicação o primeiro conto que escrevi depois de uma pausa de mais de ano e meio, durante a qual não só não acabei nenhuma história, como não escrevi nada, nem uma linha, nem uma palavra. Sobretudo porque essa pausa foi provocada mais por desmotivação do que por deixar de ter histórias para contar. Elas sempre cá estiveram; passá-las a papel (ou, vá, a bits) é que parecia não valer minimamente a pena.

Também é interessante constatar que todos os três nomes portugueses aceites até ao momento publicaram no Infinitamente Improvável. Mas é provável que não nos fiquemos por aqui; afinal, ainda falta revelar a vasta maioria das ficções aceites. Depois conto-vos mais coisas.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Lido: Tuj

É com alguma frequência que a ficção científica pouco preocupada com o rigor científico dos universos que cria toma um caráter muito onírico, frequentemente de pesadelo. Por vezes, o que daí resulta são obras de primeira água, e basta citar nomes como Stanislaw Lem ou J. G. Ballard para perceberem o que quero dizer. Mas o exercício é delicado e exige grande cuidado e não menos talento porque facilmente pode tornar-se catastrófico, especialmente quando os autores ignoram com tal militância o rigor científico que adulteram os conceitos e usam as palavras originadas na ciência como meras muletas poéticas. E lembrei-me agora, por algum motivo, do Artur Portela. E da Isabel Cristina Pires.

Walter Martins quase cai nessa armadilha, safando-se por pouco. A história que cria em Tuj é sobre um geólogo que se vê misteriosamente transportado para um mundo distante, um mundo de pesadelo, simplificado, seco, constituído por uma floresta aparentemente infinita de espinheiros arbóreos e castanhos, que arde (por vezes literalmente) sob a intensa luz de três sóis. Aí, vai encontrar uma espécie de civilização enlouquecida de criaturas escanzeladamente aladas, e, contra todas as expetativas, sobrevive, adapta-se até certo ponto e arranja um amigo. E este vai explicar-lhe (e aos leitores) o que se passa.

A história acaba por ser razoável, apesar de tudo. Martins usa o onirismo do ambiente que cria com conta, peso e medida, sem exageros, e fá-lo para explorar algumas ideias sobre o perigo da ciência quando remexe na estrutura da realidade e as consequências da imortalidade. Essas ideias não têm grande originalidade e estão um bom bocado às avessas das minhas, mas impedem que a história acabe por se transformar em mero escapismo vazio de conteúdo e o mistério criado em volta do que aquele mundo é e de como funciona sustenta bem a narrativa.

Não posso dizer que tenha gostado muito deste conto, tenho ainda menos motivos para o considerar memorável, mas também não posso achá-lo mau.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Lido: A Máquina do Tempo

Ao ler este título, A Máquina do Tempo (bibliografia), o leitor desprevenido certamente julgaria ir deparar com um conto de ficção científica razoavelmente sólida, sobre a criação, eventualmente, a operação, talvez, as consequências, se a isso chegasse o engenho e a ambição do autor, de uma máquina do tempo. Na maioria dos casos, como no do romance homónimo de H. G. Wells, o leitor desprevenido certamente teria razão. Mas não no caso deste conto de Ray Bradbury.

Trata-se de mais um dos contos de Bradbury sobre a infância idealizada, numa cidadezinha algures no interior dos EUA, e aqui os miúdos vão em busca da única verdadeira máquina do tempo que existe na cidade: um velho muito velho, conhecido como Coronel Freeleigh, que tem na longa memória um registo de passados inacessíveis aos que o procuram e um interminável manancial de histórias para contar sobre esses passados.

É mais um conto doce, bem escrito e eficaz, que no entanto peca por ser um pouco extenso em demasia para a história que tem para contar, o que impede que se aproxime da qualidade das grandes histórias do autor. Um conto que, pese embora o título tão tipicamente FC, não tem nada que não seja realista, e se alguém acha que esse efeito não foi propositado não tem estado a prestar atenção. Isto apesar do conto ter sido inicialmente publicado na revista The Reporter (uma seriíssima revista americana, cheia de artigos sisudos sobre política internacional e nacional), com o título de "The Last, the Very Last", dedicado, de acordo com a chamada de capa (sim, teve direito a chamada de capa), ao Memorial Day. Tudo bem longe da FC, naturalmente; o título por que o conto é conhecido hoje só surge quando foi editado em livro, cerca de uma década mais tarde.

É a velhíssima história do velhíssimo costume.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Barnabé

Era uma vez um blogue político. Estava-se no apogeu da blogosfera política, ainda antes de os "jovens turcos" que por ela pululavam terem ganho entrada no mainstream dos vários partidos (perdendo-a depois, alguns deles), e um grupo de cinco homens de esquerda, André Belo, Celso Martins, Daniel Oliveira, Pedro Oliveira e Rui Tavares, resolve criar um blogue coletivo para cascar nos blogues de direita. E fê-lo, chamando-lhe Barnabé e vincando a origem da inspiração para o nome com uma citação da canção homónima do Sérgio Godinho (artista muito querido dos esquerdalhos, como se sabe) como subtítulo. E fê-lo com tal sucesso de mercado que a Oficina do Livro achou por bem publicar em livro uma seleção dos seus posts, o que não deixa de ser irónico para malta que tem no ceticismo quanto ao mercado tal como entendido pelos liberais uma parte significativa do cimento que a une.

O estilo do blogue era aguerrido, polémico e irónico, limitando-se frequentemente os posts a frases curtas que hoje em dia são basicamente coisa de twitter, ainda que também houvesse alguns mais longos e elaborados, verdadeiros artigos de opinião. Era um dos blogues que eu lia com certa regularidade, na época. E que ocasionalmente comentava.

O livro retrata bem o que era o Barnabé-blogue, mas claro que lhe falta um fator muito importante que faz com que não seja de todo a mesma coisa: a interatividade. Porque há blogues e blogues; eles não são todos iguais e nunca foram. Se a natureza de alguns faz com que a troca de ideias com os visitantes que decidem deixar comentários é dispensável ou até desaconselhável, outros vivem em boa parte dessa troca de ideias. E o Barnabé pertencia a este último grupo. A consequência que isso tem é a experiência-livro, quase totalmente passiva, ficar vários degraus abaixo do que foi a experiência-blogue. Os textos podem ser os mesmos, mas o livro é pior que o blogue. Significativamente.

Em especial quando é lido agora, mais de uma década mais tarde. O livro data de 2004, do auge da popularidade do blogue (que desapareceu em 2005, depois de uma das típicas zangas de comadres internas), e inclui posts publicados em 2003 e 2004. Ora, hoje, praticamente todas aquelas polémicas estão mortas ou pelo menos muito bafientas, alguns dos protagonistas desapareceram do radar público e é necessário um esforço de memória para nos tentarmos lembrar de "quem é este gajo?", as ironias e as bocas perderam o ferrão. Ou seja: quase tudo o que na época parecia ser de extrema relevância está reduzido hoje à sua devida importância. Especialmente as tricas blogosféricas.

Passados estes anos, portanto, o livro surge quase como um monumento à completa futilidade de muita da discussão política que se faz em cima do acontecimento, mera poeira no panorama da história. Em retrospetiva, "um milhão de visitas na net", como se proclama orgulhosamente na capa, reduzem-se a muito pouco.

E isto não é caso exclusivo do Barnabé. Leiam qualquer blogue político da época (os que ainda se deixam encontrar, pelo menos) e irão deparar com a mesma irrelevância. Isto quase dá razão ao Facebook, lugar para onde a maioria deste fumo sem fogo se transferiu nos últimos anos (e onde é amplificado por um algoritmo que está a contribuir com todas as forças para a morte da democracia, mas isso é conversa longa e para outro sítio), e que o enterra num fundo de página praticamente irrecuperável horas ou no máximo dias depois de ser produzido. Quase dá razão. Quase.

O que salva este livro, hoje, são alguns posts menos presos às reações epidérmicas à atualidade dos tempos. Posts mais genéricos, com reflexões mais livres dos imediatismos. E também outros posts que, embora se mantenham presos à espuma dos dias, acabam por ter a sorte de esta se ter mantido relevante passados estes anos. A Guerra do Iraque, por exemplo. Mas também algumas — poucas — outras coisas. Nisto, a perspetiva de historiador do Rui Tavares talvez seja a mais útil, embora alguns dos posts dos outros autores também o acompanhem.

Em suma: este é um livro razoável, que dá uma ideia, mas não muito precisa, do que foi o Barnabé-blogue. Não creio que tenha muito interesse enquanto documento histórico; mas não sou historiador e é provável que me engane. Também não creio que tenha muito interesse para quem não tenha vivido a blogosfera da época, pois estou seguro de que muito do que aqui se encontra lhe irá passar bem ao lado. Talvez o tenha para quem é fã dos autores, no todo ou em parte. Mas se calhar irão encontrar mais e melhor deles noutros sítios. Eu não desgostei; mas eu estou na posição razoavelmente especial de leitor regular do blogue e tenho memória pessoal de parte do que aqui se encontra. Vocês? Cada um saberá de si.

Este livro foi uma oferta dos autores. Ou melhor: um prémio. Houve no Barnabé durante algum tempo uma espécie de concurso em que se publicavam ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro, publicadas na imprensa cerca de um século antes, e se pedia aos comentadores para explicarem contemporaneamente o que elas significavam. Eu achei piada à coisa e participei algumas vezes. Com certo sucesso; ganhei com isso um livro... que vim a ler mais de dez anos depois. E assim se faz o tempo.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Em janeiro falou-se de...

No início do mês falei aqui de como a transferência do Ficção Científica Literária para formato blogue e as alterações a que isso levou permitem fazer mais facilmente algumas coisas que com a anterior versão eram complicadas. Um exemplo disso mesmo vem nesse post: a lista dos lançamentos anunciados em 2017. Mas porquê parar aí?

A verdade é que agora é tão fácil fazer isso como o que se segue: uma relação das obras de FC que receberam menção mais ou menos crítica durante o mês de janeiro que acabou de terminar. Segundo as definições de FC usadas pelo FCL, naturalmente: uma definição propositadamente lata.

Acho isto interessante por dois motivos:
  1. A lista de lançamentos anunciados está muito influenciada pelo marketing. Como é natural, as editoras que arriscam o seu dinheiro na edição (ao contrário das vanities) promovem os livros que põem no mercado e, com as parcerias, mas mesmo sem elas, os blogues vão atrás. Obras que não são promovidas passam com certa frequência despercebidas, o que leva a uma ideia algo distorcida do que está disponível por aí. E além disso...
  2. Aquilo de que se fala em blogues (e na imprensa) também é influenciado pelo marketing, pois algumas parcerias incluem não só notas de lançamento como também o envio das obras para leitura e crítica, mas esta é a única forma prontamente disponível para se avaliar o que as pessoas realmente leem, seja no que toca a edições portuguesas, brasileiras ou importadas.
Portanto, vamos lá? Depois de uma nota rápida para dizer que nas listas abaixo "conto" é tudo o que for menor que romance, incluindo portanto novelas e noveletas, e de outra para explicar que as listas estão ordenadas primeiro pelo último apelido do primeiro autor e depois por título, vamos lá.

Ah, sim, e depois das listas há mais notas.

Ficção portuguesa:
  1. Almanaque Steampunk 2017, org. ?
  2. Instintos, de André Alves (conto)
  3. A Escolha de Hobson, de João Barreiros, Ana Ferreira, Ana Margarida Gil, Ângelo Claro, Carina Figueiras, Filipa Jales, Hugo Oliveira e Marta Ribeiro (conto)
  4. Se Acordar Antes de Morrer, de João Barreiros
  5. O Algoritmo do Poder, de Pedro Barrento
  6. O Marciano Humanista, de Ricardo Dias (conto) 
  7. Livros que não Deviam ter Sido Escritos - XIV, de José Manuel Morais (conto)
  8. Mission in the Dark, de Bruno Martins Soares (conto)
  9. Conflitos Livrescos, de João Ventura (conto)
Ficção luso-brasileira:
  1. Vaporpunk, org. Gerson Lodi-Ribeiro e Luís Filipe Silva
Ficção brasileira:
  1. Dicionário de Línguas Imaginárias, de Olavo Amaral
  2. Bunker, de Luiz Bras (conto)
  3. Um Velho Engenheiro, de Luiz Bras (conto)
  4. Ventania, de Luiz Bras (conto) 
  5. Fuga, de Gabriel Cantareira (conto)
  6. Era uma Vez um Mundo, de Antonio Luiz M. C. Costa (conto) 
  7. Transfert, de Antônio d'Elía (conto)
  8. Febre Vermelha, de Francis Graciotto
  9. O Espelho, de Nelson Leirner (conto)
  10. George e o Dragão, de Álvaro Malheiros (conto)
  11. O Elo Perdido, de Jeronymo Monteiro (conto) 
  12. Desafio, de Ney Moraes (conto)
  13. Ninguém Nasce Herói, de Eric Novello
  14. Alec Dini e o Vórtice do Tempo, de F. R. Pan
  15. Páginas do Futuro, org. Braulio Tavares
  16. Homens Sob Medida, de Nelson Palma Travassos (conto)
  17. As Águas-vivas não Sabem de Si, de Aline Valek
  18. A Jornada de Tony Farkas, de R. G. Werther
Ficção lusófona e internacional:
  1. Dagon, nº 2, ed. Roberto Bilro Mendes
Ficção internacional:
  1. Bajo el Signo de Alpha, org. ?
  2. Isaac Asimov Magazine, nº 2, ed. ?
  3. The End Has Come, org. ?
  4. Flatland: A Romance of Many Dimensions, de Edwin A. Abbott
  5. O Contágio, de Megan Abbott
  6. O Avatar, de Poul Anderson
  7. The Gods Themselves, de Isaac Asimov
  8. O Conto da Aia, de Margaret Atwood
  9. The Drowned World, de J. G. Ballard
  10. Às Portas da Fantasia, de Robert Bloch e Ray Bradbury
  11. A Expansão, de Ezekiel Boone
  12. O Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle
  13. Matem o Presidente, de Sam Bourne
  14. A Janela cor de Morango, de Ray Bradbury (conto)
  15. Aqui Haverá Tigres, de Ray Bradbury (conto)
  16. Gelo e Fogo, de Ray Bradbury (conto)
  17. O Dragão, de Ray Bradbury (conto)
  18. O Presente, de Ray Bradbury (conto)
  19. Origem, de Dan Brown
  20. Kindred - Laços de Sangue, de Octavia Butler
  21. A Coroa, de Kiera Cass
  22. A Idade do Ouro, de Arthur C. Clarke
  23. Areias de Marte, de Arthur C. Clarke
  24. Persepolis Rising, de James S. A. Corey
  25. Jurassic Park, de Michael Crichton
  26. Demolidor: Homem sem Medo, de Paul Crilley
  27. Uma Dobra no Tempo, de Madeleine l'Engle
  28. Neuromancer, de William Gibson
  29. Alien: Rio de Sofrimento, de Christopher Golden
  30. Sangue por Sangue, de Ryan Graudin
  31. A Mão Esquerda das Trevas, de Ursula K. Le Guin
  32. Duna, de Frank Herbert
  33. Não me Abandone Jamais, de Kazuo Ishiguro
  34. A Quinta Estação, de N. K. Jemisin
  35. As Terras Devastadas, de Stephen King
  36. Belas Adormecidas, de Stephen King e Owen King
  37. O Bazar dos Sonhos Ruins, de Stephen King
  38. Sob a Redoma, de Stephen King
  39. A Floresta Sombria, de Cixin Liu
  40. O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu
  41. Lovecraft - Medo Clássico, vol. I, de H. P. Lovecraft
  42. A Estrela da Meia-Noite, de Marie Lu
  43. Caçador em Fuga, de George R. R. Martin, Gardner Dozois e Daniel Abraham
  44. Histórias de Aventureiros e Patifes, org. George R. R. Martin e Gardner Dozois
  45. Mulheres Perigosas, org. George R. R. Martin e Gardner Dozois 
  46. Winter, de Marissa Meyer
  47. Alien: Mar de Angústia, de James A. Moore
  48. Altered Carbon / Carbono Alterado, de Richard K. Morgan
  49. Broken Angels, de Richard K. Morgan
  50. Woken Furies, de Richard K. Morgan
  51. O Motivo, de Patrick Ness
  52. Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe
  53. Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe, de Edgar Allan Poe
  54. O Prestígio, de Christopher Priest
  55. A Sétima Praga, de James Rollins
  56. As Brigadas Fantasma, de John Scalzi
  57. More Happy than Not, de Adam Silvera
  58. O Projeto Rosie, de Graeme Simsion
  59. O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson
  60. Piquenique na Estrada, de Arkádi e Boris Strugátski
  61. Autoridade, de Jeff VanderMeer
  62. Vinte Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne
  63. Chronos: Viajantes do Rempo, de Rysa Walker
  64. A Piada Infinita, de David Foster Wallace
  65. Até ao Fim do Mundo, de Tommy Wallach
  66. Artemis, de Andy Weir
  67. O Livro do Juízo Final, de Connie Willis
Não-ficção brasileira:
  1. A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil, de Kátia Regina Souza
Não-ficção internacional:
  1. The Universe Next Door, org. ?
  2. Twin Peaks: The Final Dossier, de Mark Frost
  3. O Mito da Singularidade, de Juan-Gabriel Ganascia
  4. Tecnologia versus Humanidade, de Gerd Leonhard 
Algumas notas finais:

Pelo menos durante este mês de janeiro, falou-se (e portanto presumivelmente leu-se) muito pouco de ficção científica lusófona. Não só os textos listados são na sua grande maioria contos, como estes são numa boa proporção fruto das minhas próprias leituras. Retirando o que eu li e não compõe um livro, tanto a lista de portugueses como a de brasileiros só teriam 7 entradas. Para fazer o mesmo exercício à dos autores internacionais basta retirar os contos do Bradbury e dá 62. A diferença é imensa, muito maior do que a diferença que existe na quantidade de lançamentos.

Pode ser que isto seja algum desvio estatístico deste mês em concreto, mas duvido. Seja como for, se eu resolver fazer este exercício também para os meses seguintes, saberemos. Seria interessante ver estas quantidades subir; que acham?