sábado, 31 de julho de 2010

Lido: Sin Retorno

De regresso à tal página, encontramos no sexto lugar um mini-conto da mexicana Libia Brenda Castro R., intitulado Sin Retorno. É uma historinha de viagem do tempo com uma ideia interessante: a narradora viaja no tempo para assistir a certos acontecimentos de eras pretéritas, em trabalho naquilo que parece ser observação histórica, até que se vê confrontada, em final surpresa, com um efeito que não esperara. Se não seguiram o link para ir ler o conto e se zangam quando se vos conta o fim das histórias parem de ler isto agora mesmo. Estão avisados. OK? Já só temos entre nós os outros? Então pronto, cá vai. O efeito com que a protagonista não contara é que o tempo que passa nos seus estudos no passado, embora não pareça passar para quem permanece no presente, passa para o relógio biológico do seu corpo. Por outras palavras: ela envelhece a um ritmo mais acelerado do que os seus conhecidos. Interessante e bem executado.

Lido: Os Navegadores Solitários

Os Navegadores Solitários, apesar de incluir algumas referências à ficção científica, e até a afirmação de que o autor se gaba de alguma coisa saber sobre o género, é uma crónica de José Saramago totalmente destituída de ficção, científica ou não. É uma crónica realmente crónica na qual Saramago fala de dois tipos diferentes de navegadores solitários. Um desses tipos, aquele que aparece nos jornais e nas televisões, é composto pelos homens (e nos tempos atuais também cada vez mais mulheres) que se lançam ao mar sozinhos nas suas embarcações, a fim de tentarem ir do ponto A ao ponto B, e que geralmente se tornam notícia quando por qualquer motivo se deixa de saber deles. O outro, com quem Saramago faz o paralelo e o contraste, é bem diferente. Navegadores solitários que navegam no mar urbano e a quem ninguém liga, menos que todos a imprensa. É uma crónica condoída, esta, como se pode entrever pelo que aqui digo.

Lido: Eis o Homem

Eis o Homem (bib.) é uma novela de Michael Moorcock, vencedora de um Nebula e geradora de grande controvérsia, como o próprio Moorcock conta na "Nota do Autor" que fecha o volume à maneira de posfácio. Como seria de esperar, aliás. Trata-se de uma história de viagem no tempo cujo protagonista é um psiquiatra amador e falhado, junguiano e cheio de interrogações místicas, que decide viajar até à época de Cristo. A história saltita entre o presente e o passado longínquo, acompanhando alternadamente as discussões entre o protagonista e a namorada, uma cética antirreligiosa, e as deambulações do viajante no tempo pela antiga Palestina em busca de Jesus de Nazaré. Isto numa fase inicial, porque depois o viajante no tempo encontra um Jesus que não é nada do que estava à espera e vai ser confrontado com um dilema: deixar morrer o mito, o que com aquele Jesus seria inevitável, ou servir-lhe de agente?

Claro, como bem sabia Saramago, que tocar na figura mítica de Cristo cria problemas aos escritores que a tal se atrevem. Caem-lhes os zelotas todos em cima. Este livro, portanto, não é nada aconselhado a quem está convicto da realidade do mito e não gosta de o ver beliscado. Católicos intransigentes, fiquem bem longe dele. Para os outros, entre os quais me incluo, é um livro no mínimo interessante, embora eu tenha de confessar que gostei mais da primeira vez que o li, em inglês, do que desta releitura em português.

Lido: Elvis le Rouge

Elvis le Rouge, tradução francesa de Red Elvis, é uma noveleta de Walter Jon Williams que acompanha a vida e carreira dum Elvis alternativo. Mesmo para quem, como eu, não sabe muito sobre a vida e carreira de Elvis Presley (não sou da geração certa, suponho), é fascinante acompanhar o modo como Williams mostra o efeito que têm as influências sobre o trajeto de vida das pessoas e, em última análise, sobre o próprio desenvolvimento histórico das nações e da espécie. Elvis, aqui, é um rebelde não apenas social e de costumes, como foi na vida real, mas também político. O Elvis verdadeiro, apesar de inevitavelmente ter contactado com as realidades do mundo do trabalho assalariado, dada a sua origem humilde, estava demasiado embrenhado na cultura conservadora e furiosamente religiosa do Sul dos EUA para poder, por si só, ganhar ideias de esquerda. Mas aqui, o Elvis alternativo de Williams é influenciado por um rapaz oriundo da proletária Chicago, seu companheiro de rock and roll, que já de lá vem com uma forte consciência de classe e orientação política bem apontada para a esquerda. E o desenvolvimento subsequente, não só das ideias de Elvis, como da sua própria carreira, vai ser em boa parte determinado por esse encontro e influência. Uma história muito interessante que só peca, a meu ver, pelo final surpresa que achei muito desnecessário e destrói boa parte daquilo que o conto vai construindo, voltando a atirar para a esfera da idiossincrasia pessoal aquilo que vinha sendo atribuído desde o início à das influências sociais. Bem sei que muitos fãs de FC&F se pelam por finais inesperados, e que por isso acharão a história melhor precisamente por ter um final inesperado, mas neste caso em concreto achei que esse final acabou por diminuir a história, e isso, obviamente, não é bom.

Mas a história, como um todo, é. Bastante boa mesmo.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Lido: A Mão de Midas

Esta mania que têm de dar a coletâneas o título de contos nelas incluídos dá nisto: títulos repetidos aqui na Lâmpada. A Mão de Midas é mais um desses títulos, e aqui fala-se da coletânea.

Trata-se de um conjunto de cinco histórias, bastante diferentes umas das outras, e algumas, parece-me, muito inadequadas para serem incluídas numa coleção de literatura fantástica. Mas são quase todas bastante boas, em especial, paradoxalmente ou talvez não, as que menos fantástico contêm. Não será por acaso que Jack London se tornou conhecido sobretudo pelas suas histórias sobre a natureza bravia da região subártica americana e não pelos contos fantásticos e de proto ficção científica que publicou. Pelo menos para o meu gosto e para a minha maneira para olhar a literatura, histórias como A Lei da Vida ou Face Perdida são muito melhores do que A Sombra e o Clarão.

Mas em geral esta é uma boa coletânea, que representa bem a diversidade de estilos, temas e abordagens que o autor seguiu ao longo da sua carreira, e a sua versatilidade. O que achei de cada uma delas pode ser lido clicando nas seguintes ligações:

- A Casa de Mapuhi
- A Lei da Vida
- Face Perdida
- A Mão de Midas
- A Sombra e o Clarão

domingo, 25 de julho de 2010

Lido: A Sombra e o Clarão

A Sombra e o Clarão é outro conto de Jack London, e finalmente temos aqui algo que está como peixe na água numa coleção de literatura fantástica. Trata-se de um conto de ficção científica (ou melhor, de proto-FC) que descreve as nefastas consequências de uma rivalidade antiga entre dois amigos/inimigos de infância, cada um mais brilhante do que o outro. No esforço constante para superarem o adversário, acabam ambos por dedicar-se à busca da invisibilidade. Um deles dedica-se ao estudo da ausência da luz, da sua absorção pelo negro absoluto; o outro ao da transparência igualmente absoluta. O narrador, um amigo de ambos que desde sempre teve o papel de moderar os excessos dos amigos e contemporizar, vai acompanhando o desenvolvimento das investigações e acaba por ser testemunha do desenlace de toda a história.

É um conto interessante, e só não o achei realmente bom porque me fez lembrar demasiado O Homem Invisível, de H. G. Wells, publicado alguns anos antes de London escrever esta sua história, e também porque o autor cometeu um erro lógico importante: é certo que no negro absoluto toda a luz é absorvida. Mas um objeto que fosse pintado com uma tinta totalmente absorvente seria perfeitamente visível desde que houvesse alguma luz a incidir sobre aquilo que rodeia esse objeto. O objeto propriamente dito talvez não se visse, mas ver-se-ia na perfeição o seu contorno, por contraste. E só não existe luz nas noites mais encobertas, que tornam tudo invisível. Esse erro, grave porque o desaparecimento através do absoluto negrume é um dos pilares do enredo, destruiu a suspensão da descrença aqui para este leitor, e não lhe permitiu desfrutar convenientemente do conto. É pena, até porque, como seria de esperar, o conto está bem escrito.

Lido: A Mão de Midas

A Mão de Midas é um conto de Jack London que descreve, num estilo parcialmente epistolar, a chantagem que um grupo terrorista ou anarquista faz a um magnata. Enquanto este não ceder ao grupo (autodenominado A Mão de Midas, daí o título) o montante exigido ir-se-ão sucedendo assassínios. É um conto que se situa algures entre o policial e o horror psicológico e se debruça ao mesmo tempo sobre a culpa e sobre as relações de poder na sociedade americana de há 100 anos, muito semelhantes, aliás, às que existem hoje em todo o mundo ocidental. Porque A Mão de Midas assassina, é certo, mas se o magnata pagasse não assassinaria, e por isso atribui-lhe a responsabilidade pelos assassínios. E porque este, apesar de todo o poder que o dinheiro e o prestígio social lhe conferem, é impotente para travar os crimes que vão sendo cometidos devido à sua teimosia em não ceder. Um conto muito interessante e, por motivos óbvios, muito relevante nos dias que correm. E também um conto que finalmente justifica, ainda que marginalmente, a sua inclusão numa coleção de literatura fantástica.

sábado, 24 de julho de 2010

Lido: O Retrato Oval

O Retrato Oval (bib.), de Edgar Allan Poe, é um conto curto de horror que acompanha um cavalheiro ferido, cujo criado arromba um castelo para lhe fornecer abrigo por uma noite. No castelo, o cavalheiro vai encontrar uma autêntica exposição de artes plásticas, incluindo até um volume que como que serve de catálogo, descrevendo e comentando os quadros. Um dos quadros, meio escondido num nicho, chama-lhe particularmente a atenção: o retrato oval do título. E é a descrição que se faz dele no tal volume que incute ao protagonista, com toda a força, o sentimento de horror.

Uma releitura completamente nova, esta. Quero com isto dizer que não me lembrava nada deste conto, apesar de ter a certeza de já o ter lido (nunca li este livro, mas li outro onde este conto está presente). Talvez pela sua extrema brevidade — não chega às 4 páginas — mas também talvez por não me ter agradado muito. Agora, pelo menos, não agradou. Sim, está bem escrito. Mas toda a situação me pareceu demasiado forçada, e a descrição do quadro torna desde o início o desfecho previsível, o que não seria particularmente grave se não fosse o facto dele estar concebido para obter um efeito de surpresa. Tudo somado, achei o conto mediano, não mais do que isso.

Lido: O Gato que Aprendeu a Falar

O Gato que Aprendeu a Falar (bib.) é um conto curto de H. H. Munro, escritor inglês mais conhecido por Saki e pelas prosas humorísticas que deu à pena. E é o que este conto é. Uma muito divertida historinha sobre um gato que uma espécie de cientista conseguiu pôr a falar como se de pessoa se tratasse. Ou por outra: sobre o que um gato (esse gato) teria a dizer caso falasse, e com que felina arrogância e altivez. Ou por outra: sobre todos os segredos e hipocrisias humanos, que o gato ouve sem que isso a ninguém cause preocupações porque, em princípio, os gatos não falam e não podem ir repetir o que ouviram e contar o que viram a ouvidos inconvenientes. Sim, as coisas não correm lá muito bem com a dádiva da fala concedida ao gato. Mas isso já é estar a contar a história em demasia.

Lido: Em Busca do Livro de Areia

Em Busca do Livro de Areia é um conto de Rhys Hughes que, como aliás acontece com todo o livro de que faz parte, ostenta bem visível a influência direta de Jorge Luis Borges. O Livro de Areia, criação do escritor argentino, é um livro que, além de outras características, é infinito, ou pelo menos tem tantas páginas quantos os grãos de areia que há no mundo (daí o nome). E é esse objeto que ressurge neste conto de Rhys Hughes, indo parar às mãos do seu protagonista e narrador lituano, um tal Jazeps Zemzaris. Este, contudo, animado de um invejável espírito prático, resolve fazer uso do livro de uma forma muito pouco literária, servindo-se para isso de algumas características do conceito matemático do infinito. Mas nem tudo corre exatamente como ele estava à espera, e por culpa própria.

O conto é excelente, de caras o melhor do livro até agora. Um conto inteligente, cerebral e rigoroso que não se esquece de se deixar escrever bem. Falta-lhe componente emocional, claro, o que pode afastar alguns leitores. Mas não é esse o objetivo. O conto está concebido como um exercício intelectual, e como tal é muito, muito bom.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Lido: O Segredo do Mar

O Segredo do Mar é outro dos pequenos contos do Lorde Dunsany. Desta feita o protagonista é um homem que pretende ficar a saber um segredo que só lhe pode ser contado por um velho marinheiro, bêbado e de língua tão porca como nestas histórias costumam ser os velhos marinheiros. Mas o segredo é-o muito, o homem tem a língua bem presa a esse respeito e por isso, para tentar soltá-la, o protagonista mune-se de uma garrafa de ferro cheia de um vinho mágico que terá obtido junto dos gnomos. E o conto segue por aí fora, entre a ansiedade de um e a bebedeira do outro, até chegar ao fim, que é quando uma delas acaba. Não vos direi qual nem porquê. Mas digo que foi outro conto de que gostei muito. Deixei-me embalar por ele quase como que pelas ondas do mar. Balançando. Balançando.

Lido: O Saque à Cidade de Loma

O Saque à Cidade de Loma é um conto do Lorde Dunsany que nos fala do que acontece aos sobreviventes de um grupo de índios que decidiu atacar a cidade de Loma, não fortificada porque se ergue numa montanha e é de dificílimo acesso, através apenas de caminhos precipitosos. Os sobreviventes, quatro, transportam o saque: um tesouro de esmeraldas, rubis, coisas em prata e de outros tipos de minerais preciosos e deuses de ouro... e um último item que não sabem que trazem consigo. É um conto fantástico desprovido da ironia tão comum nos contos de Dunsany, mas muito bem escrito e concebido embora, talvez, o final saiba um pouco a pouco por ser tão previsível. De todas as formas, pareceu-me ser um bom conto.

Lido: Precisión

Precisión, outro conto muito curto que pode ser lido na mesma página dos anteriores (é o quinto) e que foi escrito pelo argentino Carlos Daniel Joaquín Vázquez, em contraste com o anterior não me agradou. Conta uma historieta de paradoxo que me pareceu mal resolvida, prendendo-se em demasia nos detalhes cosmológicos daquilo que é necessário para viajar no tempo (e no espaço) com a precisão necessária. Por mais interessantes que esses detalhes sejam em si mesmos (e sê-lo-ão para alguns leitores, não serão nada para outros, naturalmente), ocupar mais de metade do conto com uma explicação, que ainda por cima é inevitável que não passe da superfície dada a escassez do espaço, não me parece nada boa ideia.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Lido: Todo Cambia

Todo Cambia, do espanhol Angel E. López Esteve, é uma história muito interessante de viagem no tempo, que joga com os paradoxos inerentes duma forma que eu nunca tinha visto. Talvez seja melhor irem lê-la primeiro (é a quarta), porque não estou bem a ver como poderei falar dela sem estragar surpresas. Ou então parem a leitura aqui. Estão avisados? Ótimo. A história começa de uma forma banal, um casal de cientista e amante que se prepara para testar pela primeira vez uma máquina do tempo. E é o que fazem, mas quando chegam ao futuro desaparece a banalidade. Deparam com um mudo isntável, em mutação constante, um mundo em que o uso das máquinas do tempo leva a constantes reajustes na realidade, o que implica permanentes aparecimentos e desaparecimentos ou simples mudanças. E depois o fim está tamém muito bem conseguido. Um belo continho.

Lido: Ciclicidad

Ciclicidad, do argentino Sergio Gaut vel Hartmann, é um continho de ficção científica que, apesar de ter lá subjacente a viagem no tempo, não é propriamente sobre isso. Passa-se no futuro longínquo, após a extinção da humanidade, e mostra-nos uma conversa entre um robô barman, robô esse que tinha sido criado pelo homem muito tempo antes, e um extraterrestre bebedolas, pertencente a uma espécie que desenvolveu tecnologia para viajar no tempo. O melhor do conto, para mim, é o final. Irónico e forte, e por isso mesmo não vo-lo vou desvendar. Leiam-no, se quiserem. É o terceiro conto que está nesta página.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Lido: Graça e Desgraça de Mestre Gil

E para terminar esta ronda por textos de José Saramago, Graça e Desgraça de Mestre Gil é outra crónica-mesmo-crónica na qual ele faz uma defesa algo dúbia de Gil Vicente, chamando-lhe génio da literatura portuguesa mas insinuando que ele perde na comparação com dramaturgos oriundos de outros povos (o que não deixa de ser verdade, embora ele seja mais antigo do que a maior parte dos termos de comparação; já estava morto quando Shakespeare nasceu, por exemplo), e explicando o homem e o seu tempo, com compreensão pelas suas contradições (que também explica). E realmente é bizarro que Gil Vicente seja tão pouco representado. Chamam-lhe pai do teatro português (e do teatro em português) mas depois ignoram-no quase por completo. Por contraste, Shakespeare está sempre em palco lá na Anglofonia. Enfim, o costume por estas plagas.

Lido: «A Nua Verdade»

«A Nua Verdade» é uma (outra) crónica de José Saramago, mas desta vez é mesmo crónica, sem qualquer ficção lá misturada apesar de ele dizer que "de vez em quando, não fica mal ao cronista subir para a Máquina do Tempo, mover as alavancas adequadas e instalar-se no passado". Mas embora seja crónica, talvez seja mais certo chamar-lhe homenagem. Uma homenagem que Saramago presta a Fernão Lopes, "cronista da nua verdade", como lhe chama, e claramente um dos seus heróis. Bonito.

Lido: Carta de Ben Jonson aos Estudantes de Direito que Representaram Volpone

Carta de Ben Jonson aos Estudantes de Direito que Representaram Volpone é outro pequeno conto de José Saramago, e uma vez mais é fantástico. Como o título indica, trata-se de uma carta que terá sido escrita pelo dramaturgo Ben Jonson a um grupo de estudantes que terão representado uma das suas peças. O teatro não é a minha onda, bem longe disso, e portanto tive de ir ver quem era o homem e que peça é essa tal Volpone. Esta, é uma comédia sobre a ganância e a luxúria; aquele é um cavalheiro inglês, contemporâneo de Shakespeare. Quanto à carta, depois de explicar que o trabalho dos fantasmas dos dramaturgos mortos é andar pelo mundo a assistir às representações que se vão fazendo das peças que escreveram (ideia fantástica em si mesma... e aqui "fantástica" e tem dois significados diferentes), a carta dá efusivos parabéns aos tais estudantes por terem feito da peça uma coisa tão diferente e ao mesmo tempo tão igual. Desconhecendo como desconheço a encenação específica a que Saramago se refere, não me custa muito adivinhar que a terão adaptado à situação portuguesa da época, usando-a como arma de combate político antifascista. E que é aí que Saramago quer chegar através do seu uso do fantástico.

Lido: Manuscrito Encontrado Numa Garrafa

Manuscrito Encontrado Numa Garrafa é um pequeno conto surrealista de José Saramago em que ele ou o seu protagonista encontra uma garrafa a boiar no lago do Rossio e, num impulso, a apanha. Lá dentro, está um papel com uma mensagem, sem assinatura nem remetente: "socorro". Mas, por trás da primeira cortina, este conto-crónica serve para Saramago dar expressão à sua sensação de opressão, pois cria um ambiente paranoico, cheio de homens a ler jornais que, quando o protagonista se põe em movimento, atravessam ruas ainda lendo os jornais, ou outros que olham fixamente para montras e o perseguem trazendo consigo essas mesmas montras e sem delas tirarem os olhos. É um conto-crónica que, através dos artifícios do fantástico, diz ao leitor: "A PIDE interessou-se por mim". Um apelo, talvez. Quiçá um pedido de ajuda. Ou então uma denúncia encapotada.

Lido: Face Perdida

Face Perdida, de Jack London, é outro erro de casting. Trata-se de um conto que encontra um aventureiro polaco, depois de atravessar toda a Rússia europeia e asiática perseguido pelas autoridades do Czar, na Rússia americana, o Alasca, prisioneiro de uma tribo de índios que não gostam nada dele e pretendem matá-lo. E com bons motivos, como acabamos por ficar a saber. Porque o nosso aventureiro, por nobres que tivessem sido os motivos iniciais que o levaram a entrar em choque com o Czar (London não o afirma, mas sugere-o), acabou por se juntar a alguns exemplares da pior escumalha que a Terra tem para oferecer e fez das piores coisas que um homem pode fazer. Tudo isto ficamos nós a saber numa longa recapitulação da vida passada, à semelhança do que acontece em A Lei da Vida e, tal como aí, o fim é a morte. E tal como aí, o conto, incluído num livro especificamente concebido para uma coleção de literatura fantástica, é inteiramente realista, sem o mais pequeno sinal de fantástico, seja ele qual for. Nem mesmo o horror, ainda que seja disso que mais se aproxima. Nada.

Mas, de novo, é um bom conto. No fim torna-se algo previsível, mas é um bom conto, que me conseguiu absorver com grande eficácia.

Lido: Ligeia

Ligeia (bib.) é um romanticíssimo conto de Edgar Allan Poe que conta uma história de tragédia, amor e morte, à boa maneira romântica, mas com um lado fantasmagórico. A história, contada na primeira pessoa e muitíssimo bem escrita, apresenta Ligeia como o verdadeiro amor do narrador, um opiómano. Ligeia é duma beleza transcendental; Ligeia é duma inteligência tal que não se encontra noutras mulheres; Ligeia é um modelo de perfeição, mas é também uma mulher doente que acaba por morrer deixando o narrador desfeito em pó, como ele diz. Mas um homem não é de ferro, e aquele volta a casar, agora com uma tal Rowena, mulher que detesta... e que adoece, também ela, e acaba por morrer. Mas ao contrário de Ligeia, que quando morre fica morta, no velório de Rowena esta agita-se e como que ressuscita, mostrando ao marido os olhos de Ligeia.

Aquilo que mais me impressionou nesta história foi a sua qualidade literária. Nunca gostei do tom excessivamente sentimental da prosa romântica, que não raro borda a lamechice (ou nela penetra a fundo) e por isso não consegui realmente gostar deste conto, mas que ele está otimamente escrito é inegável. E tem outra coisa boa: há várias interpretações possíveis para vários pontos do enredo. É possível, por exemplo, ver na doença e morte de Rowena uma vingança do fantasma de um primeiro amor, e mesmo essa vingança pode ter várias explicações possíveis. Quem gosta de dissecar este tipo de coisa tem aqui um pratinho cheio. Só histórias de qualidade conseguem tal feito.

Lido: Aquela Face

Aquela Face (bib.) é um conto de E. F. Benson sobre uma mulher que, após anos a ter um sonho recorrente, e no momento em que esses perturbadores ataques oníricos redobram de intensidade, descobre, num retrato com duzentos anos de idade, o rosto do homem que lhe assombra os sonhos. É mais uma história de fantasmas, mas esta escapa (até certo ponto) ao cliché da casa assombrada que gerou e continua a gerar centenas de histórias mais ou menos góticas, se não for mesmo milhares. A senhora, para se recompor, vai de férias, e é nas férias que encontra o fantasma, o que não deixa de fazer também pairar no ar um certo saborzinho, uma certa sugestão a aventura erótica de verão à beira-mar. Pareceu-me ser um conto bastante bom: bem estruturado e bem desenvolvido, com um possível subtexto que lhe aumenta o interesse, e suficientemente diferente do habitual para não ser completamente previsível.

Conto: O Eterno Otimista

Nota: tinha publicado isto originalmente seguindo o estilo geral do blogue. Mas depois achei que ficava melhor usando o estilo dos contos, e aqui está.

O Eterno Otimista

A função dele era ser o eterno otimista. O gajo que dizia sempre que as coisas iam correr o melhor possível, e que explicava porquê, econtrando essa explicação entre suposições e aquilo a que por falta de termo melhor se deu o nome de pensamento positivo. Quando se olhava ao espelho da mente, quando pesava os prós e os contras dessa sua condição, a conclusão a que chegava era sempre igual. Seja, suspirava. Alguém tem de desempenhar esse papel, e se não há mais ninguém pois que seja eu.
Até que o dia chegou em que o peso de tudo o que teve de ficar calado para que ele conseguisse desempenhar o seu papel deixou de se contentar em entortar-lhe os ombros. Começou por uma racha num ladrilho à entrada da cozinha, mesmo junto ao seu pé direito. Depois outra, perpendicular à primeira, que não viu por lhe passar uma tangente aos calcanhares. E de súbito, antes de ter tempo de se dar conta do que estava a acontecer, viu-se soterrado, submerso em camadas após camadas de pensamentos silenciados, os sedimentos de várias vidas, cercado de negrume e poeira.
Tentou gritar, sem sucesso. Tentou empurrar nas nada se movia. Tentou atingir a superfície emitindo raios de desespero, mas se alguns conseguiu produzir foram defletidos pelas rochas e desfizeram-se em ecos intraduzíveis. Acabou por desistir, por se resignar à espera, e foi-se lentamente transformando em fóssil na esperança de que um dia, milhões de anos mais tarde, algum longínquo descendente dos descendentes da sua espécie, acabasse por encontrá-lo e lhe arranjasse um lugar num museu qualquer, com um letreiro a dizer numa língua que nem conseguia imaginar "Fóssil de otimista, antropoceno".
E aquilo que lhe ocupa o espírito é a angústia de não saber como foram os outros capazes de sobreviver sem que lá estivesse ele sempre a dizer que as coisas iam correr o melhor possível, explicando porquê através de explicações encontradas entre suposições e aquilo a que por falta de um termo melhor se deu o nome de pensamento positivo.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Lido: Asimov's nº 321-322

Este número 321-322 da Asimov's é um dos números duplos que a revista costuma publicar no Outono, aumentando o número de páginas e abrindo espaço para a publicação de mais um pouco de tudo. E este é, também, um número que achei muito bom, pois dos oito contos, noveletas e novelas que contém só duas não me despertaram suficientes motivos de interesse. Os dois poemas também não, mas esses são tão pequenos que mal contam. De resto...

De resto, houve histórias que me encheram completamente as medidas, como War, Ice, Egg, Universe, de G. David Nordley, ou The Clear Blue Seas of Luna, de Gregory Benford, houve histórias que, não me tendo propriamente enchido as medidas, me agradaram bastante, como With Caesar in the Underworld, de Robert Silverberg, At Dorado, de Geoffrey A. Landis, ou The Hidden Place, de Ian McDonald, e até houve histórias que me deixaram a pensar, como Stories For Men, de John Kessel. Seis em oito é altamente satisfatório em qualquer publicação, e ainda para mais com o bónus de me ter apresentado quatro novos autores, alguns dos quais, como o G. David Nordley, foram agradabilíssimas surpresas.

E mesmo nos contos mais fracos não houve assim nada de bradar aos céus. Nada de francamente mau. São apenas contos mais fracos. De modo que, tudo somado, acabou por ser uma revista cuja leitura redundou em franco proveito. Sim senhor.

Quem quiser saber o que achei dos contos e poemas individuais, aqui tem a respetiva listinha:

- With Caesar in the Underworld
- At Dorado
- War, Ice, Egg, Universe
- The Little Cat Laughed to See Such Sport
- The Hidden Place
- The Clear Blue Seas of Luna
- The Intergalactic Host Program
- A Slow Day at the Gallery
- Stories For Men
- The Unexpected Unexplained

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Lido. Da Exactidão na Teologia

Da Exactidão na Teologia é um mini-conto de Rhys Hughes de que confesso não ter gostado por aí além. É um exercício intelectual interessante, sobre aquilo que o título implica, mas pareceu-me demasiado curto para ser realmente eficaz. E esta opinião tem de ficar por aqui para não correr o risco de se tornar maior do que o conto.

domingo, 18 de julho de 2010

Lido: O Conto do Grande Guardião

O Conto do Grande Guardião, do Lorde Dunsany, é uma história com uma estrutura curiosa, uma história dentro de outra mas não da forma mais habitual. Como o título da história de fora sugere, história de dentro é contada por um tal "Grande Guardião de Tong Tong Tarrup", mas só se lhe prometerem dar uma tareia. Aparentemente é masoquista, o guardião. Tong Tong Tarrup, já agora, é uma cidade que se ergue no topo duma medonha montanha com vista para os Confins do Mundo. Isto é uma informação que se obtém tanto da história de fora como da de dentro, pois esta é a história do que acontece quando um visitante visita a cidade. Mas, como se vê no fim da história de fora, e que é irónico como é hábito nas histórias do cavalheiro Dunsany, até é capaz de não o ser, propriamente.

Sim, a coisa é confusa. Mas muito interessante e bem escrita, sim senhores.

sábado, 17 de julho de 2010

Lido: Maestro

Maestro, do cubano Juan Pablo Noroña, é um intrigante continho de viagem no tempo que, não sei bem se pelo adiantado da hora, se por características do próprio conto, tive de ler várias vezes para entender. Ou julgar que entendi. Leiam-no (é o segundo) e depois se quiserem conversamos para ver se entendi mesmo ou não. Duma forma ou doutra, o conto é inteiramente bem sucedido numa das características mais típicas das histórias de viagem no tempo: a criação de um verdadeiro nó na cabeça do leitor, coisa que se consegue à custa da exploração dos muitos paradoxos que esse tipo de viagem tende a gerar. Mas como praticamente se limita a isso, não me encheu propriamente as medidas.

Lido: Nós, Portugueses

Nós, Portugueses é outra crónica de José Saramago. Esta desencantada, triste e deprimida, sobre as características do povo português. "Nós, portugueses somos assim", começa. "Delegamos muito." É daquelas crónicas tão tipicamente portuguesas que não há português que as não faça, seja mesmo em crónica quando para isso lhe chega o talento e o tempo de antena mediático, seja em conversas de café ou, mais modernamente, por aí, na internet. Crónicas queixando-se amargamente do triste fado deste povo ser como é. E Saramago, claro, também tinha de as fazer. Afinal, por muito que isso doa aos sousalaras desta terra, português é algo que ele sempre foi.

Nós, portugueses, somos assim. Delegamos muito. E adoramos teorizar com amargura sobre o que somos.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Lido: Almeida Garrett e Frei Joaquim de Santa Rosa

Almeida Garrett e Frei Joaquim de Santa Rosa é uma corajosa crónica de José Saramago sobre a liberdade e a censura. Relembro que a crónica foi escrita em 1968, em plena ditadura. Nela, Saramago parte de duas citações, dos dois homens cujos nomes coloca no título, põe-nas em confronto uma com a outra, e delas tira as suas conclusões. A citação de Garrett data de 1830 e é sobre a liberdade e a preparação, ou não, que o povo português terá para dela usufruir. Já o bom Frei (os frades são todos bons, por definição, não é verdade?) Joaquim de Santa Rosa é um censor que em 1769 assina um decreto proibindo o livro A Princesa de Clèves, de madame de Lafayette, por não estar conforme aos ditames da santa madre igreja. Saramago, claro, é contra. Vem de longe, a velha guerra. Vem de longe.

Lido: En Tournée

En Tournée é a tradução francesa de Touring, uma história escrita em colaboração por três nomes grados da FC americana: Gardner Dozois, Jack Dann e Michael Swanwick. Mas não é uma história de FC. É uma história de fantasia com alguns elementos de horror que segue um encontro entre três (outra vez) lendas mortas do rock'n'roll americano: Buddy Holly, Elvis Presley e Janis Joplin, em turné algures num lugarejo do Midwest. Pelo menos é o que os protagonistas pensam a princípio. Mas o leitor que saiba que quando Janis Joplin iniciou a sua breve e fulgurante carreira, em 1966, já Buddy Holly estava morto há vários anos, nem chega a pensá-lo e rapidamente percebe o que aqui se passa.

De facto, o efeito é até certo ponto estragado precisamente por isso. Para quem saiba quem são aquelas pessoas, não há surpresa e a história torna-se previsível no instante em que os protagonistas são identificados. E quem não saiba perde por completo as referências à cena musical americana dos anos 50, 60 e 70. Uns e outros têm de se contentar com a execução literária do conto, que não sendo má também não é nada de superlativo. Lê-se bem. Mas não me parece que passe do razoável.

Lido: A Lei da Vida

A Lei da Vida, de Jack London, é um conto sobre um velho índio que é abandonado pela tribo para morrer, como era tradição entre certos povos ameríndios. O conto acompanha os pensamentos do velho, aparentemente cego, dependente dos ouvidos para tirar sentido do mundo que o rodeia, que passa em revista alguns episódios da sua longa vida antes de enfrentar o seu fim. É um conto muito interessante, que faz lembrar, pelo ambiente e envolvência, a história de London que toda a gente conhece, O Apelo da Selva. O que não percebo é o que faz neste livro. Afinal, trata-se de um conto escolhido para integrar um livro que se destinava desde o início a uma "coleção de literatura fantástica dirigida por Jorge Luis Borges", e não vi nele nada de fantástico. É um conto muito bom, sem dúvida, mas fantástico? Nem na mais todoroviana aceção do termo. O único ponto onde poderá, eventualmente, pairar em certos espíritos a dúvida sobre a realidade ou fantasia dos acontecimentos é o desfecho, mas a mim parece absolutamente claro não só que os acontecimentos são reais, como que o autor, ao escrever o conto, nunca pretendeu levantar aí qualquer dúvida. É a lei da vida que ele descreve. A lei natural, que leva os velhos indivíduos a morrer para dar lugar aos jovens, e os débeis a servir de alimento aos fortes. Tudo para que as espécies sobrevivam. Tudo isto é até explicado por Jack London durante o conto, portanto não faz qualquer sentido levantar dúvidas todorovianas sobre o desfecho. E também não é um conto de horror psicológico. Há a perspetiva da morte, é certo, mas ninguém a teme. Ela é apresentada como algo de natural, que por isso mesmo deve ser encarado com naturalidade. Está-se nos antípodas da abordagem do horror.

Para mim, este é um belo conto realista. Gostei muito de o ler, mas neste contexto é um erro de casting.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Lido: Nação Crioula

Nação Crioula é um romance de José Eduardo Agualusa que recupera tanto o caráter epistolar como a personagem principal do livro Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queiroz, para contar várias histórias cruzadas. A história do próprio Fradique, por um lado, e suas andanças por Angola, Brasil e vários pontos da Europa. Por outro lado, a história de Ana Olímpia Vaz de Caminha, antiga escrava e descendente de um rei africano, por quem Fradique se apaixona e com quem acaba por casar-se. Mas alargando mais um pouco o âmbito da coisa e penetrando nela mais fundo, o livro conta também a história da escravatura em terras colonizadas pelos portugueses. E a história da formação da atual nação angolana. E também, em boa medida, a da brasileira. E, sim, a da portuguesa, pois também Portugal durante as suas andanças pelo mundo se transformou irreversivelmente numa nação crioula, por mais que isso custe a certos e mui ignorantes defensores de purezas imaginárias.

Aliás, não é certamente por acaso que o angolano lusodescendente que Agualusa é vai buscar uma personagem à literatura portuguesa e conta com ela a história que pretende contar. Confesso ainda não ter lido o livro do Eça (lacuna que este livro muito fez para corrigir; fiquei cheio de curiosidade), não podendo portanto aferir o grau de fidelidade do Fradique Mendes de Agualusa ao original. Mas uma coisa é evidente: esta Nação Crioula aqui descrita até pode ter o seu fulcro no país de quem a descreve, Angola, mas na verdade corresponde a toda a esfera lusófona, com a sua intrincada teia de amores e ódios, de paixões e violências, de cumplicidades e crimes e de sangue, tanto o muito que foi derramado como o outro tanto que foi cruzado, que começou a ser tecida quando os portugueses partiram mar afora em busca de outros países, povos e riquezas. Uma nação com vários polos e vários graus de mestiçagem, mas toda ela profundamente mestiça, tanto no sangue, como em algo de mais fundamental do que o sangue: a cultura.

E é também uma nação em conflito permanente consigo própria. No romance de Agualusa, esse conflito revela-se sobretudo no tema da escravatura (Nação Crioula é, aliás, o nome do navio negreiro em que Fradique foge de Angola), na luta entre a elite tradicional, confortavelmente instalada na escravocracia, e as ideias abolicionistas, mais modernas, mais liberais. Noutro tempo, seria outro o conflito, mas muito semelhantes os protagonistas. E muitos seriam certamente tão contraditórios como o velho escravocrata que surge nas páginas deste livro, a comerciar escravos, segundo dizia, para os salvar, para os libertar, ao mesmo tempo que defendia acerrimamente ideias anarquistas libertárias.

Nação Crioula é um belo e recomendável romance, sim senhores. E isto diz um tipo que não costuma gostar lá muito da técnica epistolar de contar histórias. Há sempre exceções.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Lido: A Queda da Casa de Usher

A Queda da Casa de Usher (bib.) é um dos mais famosos contos de Edgar Allan Poe, e provavelmente de toda a literatura de horror. Como muitos outros contos do género e da época, começa quando um cavalheiro chega a um misterioso casarão, que desconhece, e cujo proprietário é, neste caso, um seu velho amigo de juventude. Tal como em O Escaravelho de Ouro, também nesta história o companheiro que o protagonista vai encontrar mostra sinais de perturbação mental, mas aqui a coisa é mais negra. A irmã de Roderick Usher, o protagonista, está moribunda, e com o desenrolar da história vamo-nos apercebendo de que na realidade é a casa que é assombrada e cobra um preço elevado aos seus donos. Ou que estão todos, casa e donos (e estes entre si), ligados por algum tipo de identidade, de destino comum.

É outro conto que já tinha lido há muitos anos e do qual praticamente não me lembrava. Ou antes: lembrava, mas por vias travessas. Pois este é outro caso de um conto vítima do seu próprio sucesso e de ter sido imitado e reinventado até à exaustão nos quase dois séculos que passaram desde a sua publicação, incluindo numerosas adaptações para outros media. Lê-lo, hoje (e ainda mais relê-lo), é saltar de déjà vu em déjà vu e de cliché em cliché. Estes não o eram quando Poe publicou a sua história, mas hoje já o são. Mais do que clichés, são clichés batidos. Logo, a história perde impacto. Fica o facto de ser uma das primeiras, uma das fontes a que uma miríade de autores menores foi mais tarde beber (embora ela própria tenha também as suas fontes), o interesse intelectual que isso causa, o facto de se estar a ler uma história muito bem escrita e pouco mais. Mas o que fica não é realmente pouco. Porque neste conto, além da ideia e da tentativa de causar um impacto emocional a quem o lê, que são destruídas pela repetição, existe basta dose de literatura, que não o é. E é precisamente por isso que esta história continua ainda hoje a ser uma boa história.

Lido: O Fantasma Inexperiente

O Fantasma Inexperiente (bib.) é um conto de H. G. Wells que eu não esperava encontrar. Um conto de fantasmas, bastante clássico, com o seu classicíssimo grupo de amigos de carne e osso que se reúnem para trocar histórias e em que um deles se sai com uma história de fantasmas. Menos clássico é o fantasma propriamente dito, o que o título já faz entrever. Um fantasma inexperiente, que "desempenha aquele ofício", como ele diz, pela primeira vez e é nele (ainda?) incompetente. Um fantasma que, portanto, não assusta ninguém e precisa da ajuda de quem conta a história para aprender a fazer pelo menos algumas das coisas que os fantasmas fazem. É um conto que se lê bem, um conto curioso, mas boa parte dessa curiosidade é ele vir da pena de quem veio, pela parte que me toca. Não desgostei, mas também não gostei assim muito.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Lido: The Unexpected Unexplained

The Unexpected Unexplained é um pequeno poema de Mario Milosevic sobre uma espécie de invasão de fantasmas no mundo real. Confesso que, de todo o poema, aquilo que mais gostei foi do título. Achei o título realmente bom. O resto?... Digamos apenas que o Milosevic não é nenhum Bruce Boston, bem longe disso.

Lido: Hálito de Macaco (Halitosis simians)

Hálito de Macaco (Halitosis simians) é, de caras, entre todas as histórias de Rhys Hughes que li até hoje, aquela de que menos gostei. Fala sobre uma doença inventada, precisamente o tal hálito de macaco do título, e traz, além duma descrição sumária dos sintomas, duas ou três historietas sobre pacientes, casos clínicos ultra resumidos. Mas parece-me tudo tão forçado, tão cheio de gracinha sem conteúdo, que esta história com meras duas páginas conseguiu a proeza de me aborrecer. É obra. Não gostei mesmo nada.

Lido: O Pássaro com um Olho Vesgo

Sim, O Pássaro com um Olho Vesgo é, de facto, um conto do Lorde Dunsany. Adivinharam. Desta feita é uma história cheia de ironia (o que não é nada de invulgar) que arranca na rua dos joalheiros em Londres onde as joalharias são geridas por criaturas meio homens e meio demónios e abastecidas pelo maior ladrão de joias do mundo, um tal Thang, que por sua vez se abastece algures entre o Trilho do Fim do Mundo e a Terra das Fadas. E é precisamente a uma expedição de Thang em busca de esmeraldas que a maior parte do conto se dedica. É um conto divertido, acima de tudo. E também talvez um pouco mais infanto-juvenil do que a maioria dos outros.

Lido: Un Cierto Riesgo

Un Cierto Riesgo, do espanhol Antonio Cebrián, é uma pequena história sobre viagens no tempo que na verdade não é propriamente uma história, mas uma exploração de cenários sobre o que pode acontecer quando uma máquina do tempo for ligada. E é também uma pequena reflexão sobre os riscos da tecnologia e o direito que aqueles que a manejam têm, ou não, de os assumir. Não sendo nenhuma obra-prima, é um continho que apesar de breve é capaz de deixar muitos leitores a pensar, e isso torna-o interessante. Pode ser lido aqui. É logo o primeiro.

Lido: Esta Palavra Esperança

Esta Palavra Esperança é uma crónica de José Saramago na qual ele, entre remoques à retórica emburrecedora, à mania que os retóricos emburrecidos têm de erigir todas as palavras tonitruantes em maiúscula, às ladainhas e a outros aspetos do ambiente político e cultural do tempo (e não estamos assim tão longe desse ambiente, para mal dos nossos pecados), manifesta o seu desagrado pela palavra esperança porque a palavra realmente válida, segundo ele, é outra: vontade.

Toda a razão, José, toda a razão.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Lido: A Casa de Mapuhi

A Casa de Mapuhi, de Jack London, é uma aventura fantástica passada num atol, na Polinésia Francesa, entre os nativos da ilha, pescadores de pérolas, e um sortido de aventureiros com mais ou menos escrúpulos que se dedicavam a comprá-las. O Mapuhi do título é, claro, um dos pescadores, que teve a sorte ou a destreza de pescar uma pérola gigantesca e invulgar que desperta a cobiça de todos os compradores. Mas, por coincidência (ou não), logo após ter concluído o desvantajoso negócio que transferiria a pérola para a propriedade de um dos europeus, abate-se sobre o atol uma violentíssima tempestade que o submerge, deita abaixo muitas das árvores que nele crescem, mata uma série de gente e causa graves consequências aos sobreviventes.

Apesar da descrição do ciclone estar muitíssimo bem conseguida, apesar da relação entre os indígenas das ilhas do Pacífico e os negociantes coloniais que deles se aproveitam estar apresentada de forma quase exemplar, em especial tendo em conta a época em que Jack London viveu, não gostei muito da história. Achei demasiado desconcertantes as mudanças de protagonista que se vão dando ao longo das suas páginas. Parece-me que este tipo de coisa resulta bem em romances, mas aqui é demasiada gente para um texto tão curto, o que origina uma grande confusão de nomes e uma caracterização insuficiente, demasiado básica, de cada personagem. Isso faz com que o todo sofra, parece-me. E é pena; com as qualidades que tem, esta história podia ter sido excelente.

Lido: Aventuras de João Sem Medo

Aventuras de João Sem Medo (bib. - muito incompleta à data deste post) é um pequeno romance de José Gomes Ferreira que, apesar de ter sido publicado em 1963, começou a nascer muito antes, nas páginas de um jornal chamado O Senhor Doutor, em 1933. Nessa época não era um romance mas sim um conjunto de contos com o mesmo protagonista, precisamente o João Sem Medo do título, que vai viajando e se vai aventurando por uma série de territórios maravilhosos depois de ter abalado da sua aldeia (com o curioso nome de Chora-Que-Logo-Bebes) e saído do país a salto... por cima dum muro.

O romance é, pois, aquilo a que nos terriórios anglófonos se costuma dar o nome de fix-up e que não tem, que eu saiba, designação própria em português, talvez pela raridade do fenómeno nas nossas letras: um romance que é construído através da junção de histórias anteriormente autónomas. Nem todas as histórias de João Sem Medo foram aproveitadas para construir as suas Aventuras (e muito eu gostaria de deitar as mãos aos contos originais!), mas as que foram contam uma história mágica repleta de personagens dos contos de fadas (e de algumas situações de contos tradicionais, também). João Sem Medo, adequadamente intrépido, vai-se metendo em sarilhos e desembaraçando das situações mais desesperadas que chegam mesmo, a dado ponto, à desmaterialização completa da personagem.

Quem julgue pelas referências ao maravilhoso, à magia e aos contos de fadas que se trata de um romance infantil, acerta. Mas só na medida em que As Viagens de Gulliver são um romance infantil. Isto é: tal como a obra de Swift, também a de José Gomes Ferreira pode ser perfeitamente lida por crianças, que dela compreenderão a camada mais superficial e apreciarão o humor e a magia aparentemente disparatada que contém. Mas Gulliver é agente das observações cáusticas e satíricas do seu criador sobre a sociedade inglesa, que só adultos têm bagagem suficiente para compreender, e de igual modo José Gomes Ferreira usa o seu João para fazer crítica social, para apresentar podres e ridículos, para gozar com aquilo que o rodeia no portuguesismo reinante. A começar pelo nome da aldeia natal do protagonista, e até pelo nome deste,  rapaz sem medo no meio de poltrões, e a acabar no que ele faz quando finalmente regressa a casa.

O paralelismo com Swift, no entanto, só é válido até certo ponto. A obra deste é muito mais incisiva, muito mais corrosiva, muito mais sistemática na denúncia da sua sociedade. Gomes Ferreira é mais brando, intercala momentos de acidez com passagens de simples poesia, tem um humor menos agressivo. Mais português, provavelmente. Para isso contribui a forte presença da fábula no seu livro, que não existe tão marcada no de Swift. E também, provavelmente, o facto de os contos originais não terem todos o mesmo tom. Nota-se, mesmo com eles retrabalhados em romance, diferenças significativas de atitude, de abordagem, entre uns e outros. A história da obra condiciona a obra.

Mas é um livro muito interessante, e bastante invulgar no contexto do fantástico português. E também muito esquecido por quem se dedica a esta forma literária. Desconhecido, talvez? Por José Gomes Ferreira "não ser dos nossos"? O mesmo tipo de fenómeno que leva alguns a renegarem Saramago? Talvez. Mas se assim for, é uma grande injustiça que lhe fazem.

Hoje sai mais um dos "meus"

Se tudo correr como previsto, é hoje posto à venda mais um dos "meus" livros. E desta feita, é algo especial porque é a primeira vez que uma série que me ocupou durante mais de um ano (e isto porque não traduzi o primeiro volume; se também tivesse traduzido esse seria ainda mais tempo) chega ao fim. Também é especial porque pela primeira vez não fui eu que tomei as decisões iniciais, as grandes opções, sobre a abordagem à tradução. Foi o tradutor do primeiro volume. E eu lá tive de me adaptar a elas. E de as adaptar também a mim, até certo ponto. Há algumas alterações do primeiro livro para os restantes, mas tentei fazer com que passassem despercebidas, e acho que consegui.

Como podem ver pela imagem junta, o título do livro é A Demanda do Visionário, a autora chama-se Robin Hobb, e a série tem o título português de A Saga do Assassino, dificilmente discernível na imagem. Informações mais completas podem obter-se aqui.

Não conhecem? É fantasia épica. Um conjunto de cinco livros desenrolados num mundo de fantasia e ambiente medieval, numa federação de ducados (ou, mais propriamente, em algo de semelhante ao Reino Unido da vida real: um conjunto de entidades políticas autónomas, vassalas de um rei comum) que é atacada por um inimigo impiedoso, misterioso e mágico e se vê também vítima de intrigas internas. Os fãs do género têm gostado. Veja-se, por exemplo, a série de opiniões sobre os volumes anteriores publicadas aqui.

Depois deste livro? Outro dos "meus" tem saída marcada já para Agosto. Aliás, Agosto vai ser um belo mês. Se tudo correr como previsto.

domingo, 4 de julho de 2010

Lido: Silêncio - Uma Fábula

Silêncio - Uma Fábula (bib.) é um pequeno conto de Edgar Allan Poe sobre um homem a quem o Demónio conta uma fábula. Isto, num nível muito básico. Mas cavando mais fundo descobrimos que se trata de um conto magnífico, profundamente literário, uma pequena pedra preciosa sobre a insatisfação humana e o silêncio, sobre a solidão, o isolamento e a morte. De nada serve dizer mais do que isto. Muito, muito bom.

Lido: Corações Arrancados

Corações Arrancados (bib.) é um conto de M. R. James sobre o que acontece a um rapaz, órfão, que é acolhido por um primo rico no seu casarão. Mas o primo, além de rico, é também excêntrico, praticamente um recluso, com fama de dedicar-se a estudos importantes mas misteriosos. E, com efeito, o rapaz depressa começa a ter aventuras noturnas de índole sobrenatural, surgem unhadas numa porta, rasgões numa camisa de dormir, vultos aparecem fora da sua janela, etc. A história progride num crescendo previsível, mas o desenlace não é aquele que o cliché das histórias de fantasmas faz prever, o que só lhe aumenta a qualidade. Apesar de não possuir grande profundidade, é uma história bem concebida e executada, e mantém-se interessante até ao fim.

Lido: Crônicas

Crônicas (bib.) é uma coletânea de Gerson Lodi-Ribeiro na qual estão reunidos os contos e novelas que ele foi elaborando como apoio à criação, também sua, do universo ficcional e do pano de fundo do jogo Taikodom. E é, claramente e de longe, o mais profissional livro de FC lusófona que eu já li, quer no que isso tem de bom, quer no que tem de menos bom.

De facto, o produto principal neste empreendimento multimediático que é o Taikodom é o jogo (o livro, aliás, traz um CD de instalação do jogo), e as sete histórias presentes em Crônicas relembram-nos amiúde desse facto. Por várias vezes, a necessidade literária de elaboração duma história cede lugar à necessidade mais premente de apresentar o universo ficcional a potenciais jogadores e de despertar neles a curiosidade de o experimentar em primeira mão. E o autor faz isso muito bem, apesar do que lhe custa em termos de qualidade puramente literária em alguns dos contos e novelas.

Outro facto que também tem os seus custos tem a ver com a sequência e as repetições. Com efeito, a maior parte das histórias presentes no livro foi originalmente publicada no site do jogo, onde não é possível estabelecer uma sequência rígida de leitura. Consequentemente, há alguma informação mais fundamental que tem de ser repetida, para que os leitores/jogadores a obtenham qualquer que seja o texto em que pegam para ler. Ora, se isso funciona com contos avulsos publicados online, quando estes são recolhidos num volume único, em que há uma sequência de leitura e, especialmente em coletâneas passadas num universo ficcional coerente, essa sequência é mais do que uma mera sugestão proveniente da posição das histórias no fio das páginas, repetições desse género tornam-se um fator de distração e fazem com que as histórias acabem por sair mais mastigadas do que poderiam ter sido.

Tudo isto são factos inerentes à origem deste livro. Condicionalismos que o autor teve de aceitar e com os quais teve de contar ao escrever as suas histórias. E a verdade é que se saiu muito bem da tarefa, conseguindo até, por vezes, inserir subtileza em algo que, à partida, seria bastante hostil a ela, e logrando escrever algumas histórias que encheram as medidas aqui a este leitor, por vezes surpreendentemente. Fazendo uma analogia que não será de todo pateta com a patinagem artística, diria que só posso dar a este livro uma grande nota técnica, ainda que a artística fique por vezes algo aquém.

Em baixo têm a lista das histórias que compõem o volume, e se seguirem os links podem ficar a saber o que achei de cada uma.

- Point of K(No)w Return
- Despertar do Físico
- Morituri te Salutant!
- Guia Tertius do Taikodom Para o Turista Independente
- Escambos com Nativos
- Segunda Ressurreição
- Confronto com Quimera

Lido: Confronto com Quimera

Confronto com Quimera (bib.) é uma novela de ficção científica, de Gerson Lodi-Ribeiro, pertencente ao universo do Taikodom. Era inevitável que, sendo o Taikodom um jogo de computador em que a ação pura e simples tem um lugar importante, mais cedo ou mais tarde Lodi-Ribeiro nos apresentasse uma história como esta. Space opera, sem subtilezas ou subterfúgios. Simplesmente space opera.

Conta o primeiro grande combate que consta da história de fundo do jogo, entre uma das mais poderosas naves humanas, a Belerofonte, e uma nave-mãe da misteriosa espécie alienígena que tem vindo a atacar a periferia do espaço humano a que é dada a alcunha de Quimera. A novela quase se restringe a isso: primeiro à perseguição através de vários pontos de salto e de vários sistemas estelares, e depois ao combate propriamente dito. Tem algumas ideias interessantes, com o âmbito grandioso típico da space opera, e o autor consegue fazer com que a situação e as decisões pareçam ser estrategicamente credíveis. Desta vez, e ao contrário do que acontece com várias das outras histórias do livro, nem sequer há muita descrição do pano de fundo. Há a preparação da ação, e depois a ação. Basicamente, esta é uma história de space opera competentemente executada. Não tenho dúvidas de que satisfará os apreciadores do subgénero.

No entanto, eu não gosto, nunca gostei, de space opera. E também nunca gostei de ver a guerra contada a partir do ambiente assético e limpo das pontes ou postos de comando. Para mim, a verdadeira guerra está na selvajaria, violência e desespero de quem de facto nela mata e morre, de quem fere e é ferido. Para mim, a verdadeira guerra é a dos combatentes, não a dos comandantes. De modo que não é surpresa que esta tenha sido, de todas as histórias do livro, aquela de que menos gostei. Não que não lhe encontre qualidades, como ficou claro mais acima. Mas ela choca com as idiossincrasias dos meus gostos.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Lido: Stories For Men

Stories For Men, de John Kessel, é uma novela de ficção científica dura ambientada numa colónia lunar onde impera um sistema ferozmente matriarcal, no qual, sob uma aparência de igualdade teórica, os homens são cidadãos de segunda classe e estão, em grande medida, reduzidos a tarefas de reprodução e/ou trabalhos secundarizados pela sociedade, nomeadamente os artísticos. Tudo sustentado em teorias sociológicas baseadas na propensão masculina para correr riscos estúpidos, coisa que num ambiente tão hostil como o lunar pode significar pôr em risco toda a colónia.

O protagonista é um jovem ressentido com este estado de coisas, que se deixa influenciar por um comediante desbocado, o qual pretende, com a sua comédia politicamente incorreta, agitar as consciências e levar a uma revolução masculina. Um agitador machista, no fundo. As autoridades, claro, quando se apercebem do rumo que as coisas levam, caem sobre ele, embora não com os efeitos pretendidos. Pelo menos não imediatamente.

Trata-se de uma excelente história. A criação social, apesar de claramente baseada no modelo americano, está muito bem feita e deixa tudo miuto verosímil, seja o sistema social propriamente dito, sejam as reações dos vários protagonistas às condicionantes que a sociedade lhes impõe. Mesmo que durante boa parte da novela esta pareça ideologicamente agarrada a uma defesa feroz das mais machistas ideias da direita americana, o final é suficientemente ambíguo (e credível, ainda e sempre) para deixar, afinal, tudo em aberto. Tenho a certeza de que, consoante as inclinações ideológicas de cada leitor (sobretudo, mas não apenas, no que toca às questões de género), assim será a sua interpretação da bondade ou maldade dos atos dos principais protagonistas.

E não me parece que alguém consiga evitar ficar a pensar quando acaba de ler esta história, o que, quando acontece, é sempre um bónus agradável.

Lido: A Sós com uma Alma Prolixa

A Sós com uma Alma Prolixa é um conto curto de Rhys Hughes sobre um peculiar fim do mundo. Fala-nos duma mulher e duma casa, últimas sobreviventes da humanidade e seus abrigos, depois de anos de destuição proveniente do espaço, tão gradual como sistemática. Uma casa destruída por segundo, selecionada aleatoriamente, entre todas as casas do mundo, por uma máquina. A ideia é brilhante, a execução bastante boa. Um belo conto.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Lido: A Nefasta Velha Vestida de Preto

A Nefasta Velha Vestida de Preto é mais um dos deliciosos continhos do Lorde Dunsany, que desta vez se dedica a mostrar-nos o rasto de conversas, receio e olhares que a nefasta velha vestida de preto deixa ao passar (apressadamente) pela rua dos matadores de gado. Um conto muito curto em que o fantástico existe mais na imaginação das personagens secundárias, que constroem mirabolantes cenários de mau agouro por causa duma velha com fama de nefasta, do que propriamente na existência concreta (no que a ficção de concreto tem, bem entendido) de magias ou acontecimentos extraordinários. Delicioso? Delicioso.

Lido: El Pueblo que Salió de la Nada

El Pueblo que Salió de la Nada é uma história do argentino Marín Cagliani, muito bem concebida, muito bem escrita, sobre uma povoação inteira que aparece de repente numa ceara, ao lado da quinta do dono do terreno. E não é só a povoação que aparece, são também os seus habitantes; comerciantes, agricultores, polícia, todas aquelas pessoas de que se compõem as aldeias em qualquer parte do mundo. Mais o enredo se enleia quando, depois desse aparecimento, começam a desaparecer pessoas um pouco por toda a região.

É uma história bastante bem conseguida, uma espécie de mistura de ficção científica e fantasia que joga com efeitos quânticos e universos paralelos, mas acima de tudo com as escolhas que se fazem na vida e o arrependimento, com a luta pela sobrevivência e a desistência. Boas personagens, bom ritmo, até o espanhol me pareceu bastante bem tratado, embora eu não conheça a língua com profundidade suficiente para ter uma opinião sólida nesse particular. Em suma: uma boa leitura. Se quiserem avaliar por vocês mesmos, podem fazê-lo aqui.

Lido: O Direito e os Sinos

O Direito e os Sinos é uma crónica, mesmo crónica, de José Saramago, que nos conta a sua descoberta de um caso acontecido em tempos idos numa aldeia italiana. Um camponês, farto de assistir impotente ao roubo das suas terras pelo senhor da zona, decide repicar a finados, proclamando a morte do Direito. Saramago terá sem dúvida feito um paralelo direto entre o ato do explorado de antanho e aquilo que se ia passando no tempo em que o fascismo já ia estertorando mas ainda sobrevivia, e em que escreveu a crónica.

Que diria, pergunto eu, se tivesse descoberto esse episódio hoje, em que os pobres, os remediados e os sem-remédio são sistematicamente assaltados por um estado que parece não passar do braço armado da usura internacional para distribuir fome e carência por milhões e acrescentar fortuna ao punhado daqueles que já a têm em demasia?