domingo, 30 de agosto de 2020

Mia Couto: O Jardim Marinho

Realismo mágico em estado puro. É isso o que se pode encontrar nesta pequena história de Mia Couto, o que basicamente equivale a dizer fantasia em estado puro. E sim, desta feita trata-se realmente de uma história, uma pequena obra de ficção, pois se este texto tem algo de crónica esse algo está muito bem escondido.

O Jardim Marinho não é propriamente sobre um jardim, marinho ou não. É sobre uma família, sobre o amor e sobre a aceitação da diferença, mesmo perante a iminência da perda. É que o filho da família não é um rapaz como os outros: parece ter sangue de sereia e está mais confortável no mar do que em terra. E com a expressão "no mar" não me refiro a barcos. Refiro-me ao mar, ao habitat aquático propriamente dito.

E vai crescendo na praia, entre o mar e a terra. A família puxa-o para terra; a sua natureza puxa-o para o mar. É uma contradição que um dia teria de ter um desfecho, e de facto tem. Um desfecho bonito.

É aqui que mais gosto de Mia Couto. Precisamente aqui, onde a magia se cruza com a realidade da vida.

Contos anteriores deste livro:

Um improvável auxiliar de escrita

Recentemente descobri um auxiliar de escrita altamente improvável: o TORCS. Trata-se de um jogo open-source já com uns aninhos valentes em cima (o lançamento inicial data de 1997 e a última versão estável de 2016) que, como o nome de The Open Racing Car Simulator indica, simula corridas de automóveis. Tem sido muito usado ao longo dos anos como simulação propriamente dita, isto é, como plataforma para engenheiros de software brincarem com a construção de robôs de condução automática, mas os recentes desenvolvimentos dos algoritmos de machine learning parecem tê-lo posto um pouco de lado. Programação de robôs à parte, dá perfeitamente para ser jogado como eu o tenho jogado: conduzindo um carrito de uma série de carros à escolha, controlado de várias formas possíveis (no meu caso: teclado), por uma série de pistas à escolha, contra uma série de carros à escolha conduzidos por um ou vários robôs à escolha. Os robôs disponíveis são 10 e cada um controla 10 carros, o que dá um total de 100 oponentes possíveis (e eu já os expandi para 200 cá com uns truques). É grátis, claro, como qualquer programa open-source. Está disponível aqui.

Já o jogo há montes de anos, com umas intermitências pelo meio. Com o tempo fui desenvolvendo truques para que a maioria das corridas que faço sejam competitivas e por isso interessantes e, embora haja modos de jogo bastante demorados (corridas de grande prémio, que duram mais de uma hora e até há corridas de resistência mais longas do que isso), eu uso principalmente, desde sempre, um modo que dá para fazer corridas rápidas, de 10 minutos, por vezes até menos, até cerca de 20 minutos e picos quando corro com os carros mais lentos. Recentemente tenho-o jogado bastante. E não só porque o covid me deixou com pouco trabalho a fazer, embora também por isso.

É que descobri que fazer uma ou duas corridas com o TORCS me ajuda a resolver problemas com a escrita.

Não com a escrita em si, obviamente. Não com o encadeamento de letras e palavras e frases e parágrafos. Mas com a estrutura. Com problemas e bloqueios de enredo, com decisões sobre o que a personagem tal faria na situação xis. Com o planeamento de o quê e como escrever a seguir.

Sabem como é quando vão no carro atentos ao trânsito mas a pensar ao mesmo tempo em outras coisas? O jogo permite fazer algo de muito semelhante, e com a vantagem dos erros não terem consequências mais graves do que perder uma corrida. E mesmo quando estas são particularmente competitivas, exigindo por isso um grau de atenção mais elevado, há sempre um cantinho ao fundo da mente que vai continuando a remoer o problema. Aquilo de que me dei conta foi que deixar esse cantinho em paz, a fazer o seu trabalho sem interferências, sem tentar dirigi-lo, é particularmente eficaz. Às vezes chega mesmo a ser mais eficaz do que ir ler o que ficou para trás, o truque que uso desde sempre para "reentrar na atmosfera" do que estou a escrever.

Também é daí que vem a minha produtividade recente. Não direi que ficar a olhar a página vazia à espera de uma ideia que comece a enchê-la, essa experiência por que passa qualquer pessoa que escreva com maior ou menor regularidade, é coisa do passado, mas o que descobri é que largar a página vazia, chamar o TORCS e correr uma corrida tem muito frequentemente o resultado de tornar fácil encher a página assim que a corrida termina. Ou pelo menos possível, que isto da criatividade nunca é realmente fácil.

Não sei se ainda há por aí muita gente a jogar TORCS. O jogo é velho e está desatualizado numa série de coisas (o que a bem dizer até é uma vantagem porque não exige um computador todo xpto para ser jogado como deve ser). Mas desconfio que mesmo que haja sou o único a usar o jogo para isto.

Leiturtugas #69

Já estava a ver que ninguém queria participar desta 69ª nota sobre as Leiturtugas da semana. Mas acabou por ser só uma semana de pausa e eis que estamos de volta.

E voltámos pelas mãos da Carla Ribeiro, que publicou a sua opinião sobre um livro que já tinha aparecido por aqui por outras mãos, e há muito pouco tempo: o romance de R. C. Colaço intitulado A Conspiração de Atlântida, publicado já este ano pela Cultura. É um livro de FC, pelo que a Carla passa a 2c3s.

E por esta semana é só, a menos que me tenha escapado qualquer coisa. Se escapou, já sabem: avisem. Seja como for, voltamos para a semana, quando mais não seja com um ponto da situação e, provavelmente, a preparação do segundo sorteio. Interessados? É ler, é ler.

sábado, 29 de agosto de 2020

Ron Webb: A Garôta com Olhos de 100º

Não começa bem, esta revistinha. OK, OK, foi publicada nos anos 70, há quase meio século. As coisas mudam e nos últimos 50 anos até mudaram bastante. Mas esta historinha de Ron Webb, decididamente, envelheceu mal.

Sabem aquelas fantasias de adolescente borbulhento que adorava perder a virgindade mas não arranja maneira das mulheres lhe ligarem peva? Pois é precisamente isso o que temos neste A Garôta com Olhos de 100º (bibliografia). Para tal, claro, a "garôta" não é propriamente uma garota. É uma génia, não da lâmpada mas da garrafa (sim, a referência à alucinação ébria parece ser inteiramente propositada), que o protagonista da história faz sair da dita-cuja. Ela, que ainda por cima parece que era bonita, oferece-lhe os três desejos da praxe, e claro que o protagonista pensa primeiro ou exclusivamente com a cabeça de baixo como facilmente se adivinha.

Consentimento é, naturalmente, um conceito que passa por completo ao lado desta ficção. Afinal, um génio (ou uma génia) da garrafa não é obrigado a satisfazer os desejos de quem o chama? O que há é truques, muitos truques, tanto por parte da génia, que tinha um namorado (outro génio, claro) e tentou levar o protagonista a soltá-la e ao namorado, como por parte do protagonista, que tem um derradeiro desejo demolidor que o leva a ficar com a rapariga... digo, com a génia.

Webb pretendia ter graça. Divertir, com uma variante moderna do conto do Aladino. Talvez tenha conseguido fazê-lo na sua época, especialmente junto dos adolescentes borbulhentos ansiosos por perder a virgindade mas incapazes de o fazer sem recorrer a prostitutas. Mas hoje? Não, hoje não. As coisas mudam, e ainda bem que mudam.

Eric Schaller: Reminiscências

Continuando nas Reminiscências (bibliografia), Eric Schaller apresenta uma variação que mais adiante outra autora irá também usar: apresentar não uma "reminiscência pessoal" em que os próprios autores fazem papel de médicos (bem, isso fazem todos) com memórias de um contacto pessoal e sempre peculiar com o Thackery T. Lambshead, mas uma história sobre Lambshead que lhe terá sido contada por outra pessoa.

No caso, essa pessoa terceira é uma tal Dra. Xue-Chu Wang e a reminiscência que conta é uma história de infância em que ela teria adoecido com uma misteriosa doença e sido por isso visitada em casa pelo dr. Lambshead. Perdão: exprimi-me mal. Não foi pelo dr. Lambshead que foi visitada, mas por três homens (ou dois homens e um rapaz), bastante diferentes uns dos outros, que se identificaram, todos eles, como Dr. Lambshead.

Esta é uma história divertida, que subverte de certa forma toda a base deste livro porque torna incerta a identidade do Dr. Lambshead. É nisso e nos estapafúrdios tratamentos receitados pelos Lambsheads (ou pelos dois que têm oportunidade de os receitar visto que o terceiro leva com a porta na cara) que se encontra a maior parte do seu fantástico, pois a doença em si, que está na origem do episódio, parece pouco mais ser que uma enfermidade razoavelmente benigna que se limita a encher o paciente de borbulhas acompanhadas por febre.

É, portanto, um conto com mais humor que fantástico, mas bastante bem feito.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Jeffrey Thomas: Reminiscências

As Reminiscências (bibliografia) de Jeffrey Thomas inserem-se na linhagem das histórias de exploração pelo homem branco de paragens exóticas. Muitas das histórias dessa linhagem contêm um elemento fantástico forte, e esta, como é óbvio, não é exceção.

Desenrola-se a história algures na floresta equatoriana, para onde o Dr. Thackery teria viajado em companhia do Dr. Thomas a fim de estudar a forma como uma tribo local encolhe as cabeças dos inimigos. E também boatos sobre proezas médicas executadas por uma fação separatista e violenta dessa tribo. O enredo segue o caminho previsível: os exploradores embrenham-se na floresta, entram em confronto com os elementos esquivos da tribo e acabam por aprender o segredo. Nada de especial... a não ser o segredo ser bastante interessante em si mesmo.

Sim, vai haver spoilers. Os alérgicos podem ir embora, que não fornecemos anti-histamínicos.

O que eles descobrem são cabeças penduradas em árvores. Não cabeças mortas e a apodrecer, não cabeças encolhidas. Mas cabeças vivas, ou pelo menos semivivas, apesar de terem sido separadas dos corpos respetivos. Mais: cabeças capazes de falar. E o que elas dizem são visões do futuro.

É uma ideia bastante interessante, esta. E dava pano para muitas mangas, ao ponto de chegar a ser pena que as limitações do projeto que lhe deu origem não tenham permitido explorar essas mangas. Talvez um dia Thomas o faça. Acontece com alguma frequência, como temos visto.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Charles Dickens: A História dos Duendes que Raptaram um Coveiro

Sim, Charles Dickens é um dos três autores apenas que têm duas histórias neste livro (é o último dos três, aliás) e, depois de O Sinaleiro, eis que aparece A História dos Duendes que Raptaram um Coveiro (bibliografia).

Dickens também é mundialmente famoso por ter escrito uma das histórias de natal mais célebres e influentes de sempre: A Christmas Carol, que em português é geralmente editada como Um Conto de Natal. E porque estou eu a falar disto, perguntarão vocês? É que este conto, que foi dado à estampa integrado no primeiro romance de Dickens, The Pickwick Papers, já apresenta muitos dos temas e boa parte do enredo que ele veio a desenvolver mais tarde na história do velho Scrooge.

O título é autoexplicativo mas não explica tudo. Não explica, por exemplo, que a história se passa na quadra natalícia ou que o coveiro é um "scrooge", misantropo e solitário. E bêbado. Por outro lado, sim, é facto que os duendes ("feios e zombeteiros", como Dickens os descreve) o raptam. Para quê? Para lhe mostrarem não propriamente momentos da sua vida em que ele se havia mostrado particularmente canalha, como no caso do Scrooge, mas instantâneos de vidas alheias, nos quais a humanidade, essa mesma humanidade que o coveiro detesta, se mostra no seu melhor. E entretanto vão-no surrando.

É um bom conto, sim, mas o principal motivo de interesse desta história é precisamente o facto de conter um embrião daquilo que viria a ser A Christmas Carol. Isto, ideias serem reutilizadas várias vezes ao longo do tempo pelo mesmo autor, acontece com certa frequência, e é sempre fascinante ver-se como elas vão evoluindo e se vão metamorfoseando ao longo dos anos, em especial quando uma dessas iterações acaba por resultar num clássico da literatura mundial, como acontece aqui.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 25 de agosto de 2020

E mais "meus"

Estão a rebentar por aí os dois últimos volumes desta edição especial das Crónicas de Gelo e Fogo do George R. R. Martin. Fica assim concluída (para já, como diz a editora e aqui o tradutor espera que seja verdade) a reedição dos dez volumes em capa dura e com estas sobrecapas de babar que têm visto aqui na Lâmpada ao longo dos últimos meses.

E aqui estão as mais recentes para vocês babarem mais um bocadinho com elas. Não sei bem se os livros respetivos, A Dança dos Dragões e Os Reinos do Caos, já estarão à venda quando este post for publicado, mas se não estiverem ainda estarão muito em breve e poderão então babar com elas ao vivo e em direto nalguma livraria.

Como sempre, aqueles que já leram os livros têm uma relação com estas capas que tem necessariamente de ser diferente da de quem ainda não leu. Nestes, suponho, elas limitar-se-ão a despertar curiosidade. Mas em nós, os que lemos (e em mim, que traduzi), cada pormenor traz à memória um acontecimento, uma personagem, uma atmosfera.

Sempre que olho para uma destas edições, seja assim, numa imagem JPG ou numa fotografia, seja ao vivo, apetece-me alargar os cordões à bolsa e comprar tudo. Depois olho para dentro da bolsa, ou para o espaço que (não) tenho nas estantes, e passa-me. Até à próxima vez que vejo um destes livros.

Raisparta, que tentação!

Michael Cisco: Reminiscências

E assim entramos numa nova secção deste livro. Alegadamente, o que os médicos intervenientes aqui fazem é contarem pequenas histórias sobre os seus encontros com o Dr. Thackery T. Lambshead, mas na prática o que acontece nesta secção é que cada autor escreve um conto mais clássico do que os que vieram até aqui disfarçados de doenças. Michael Cisco é o primeiro a partilhar as suas "Reminiscências" (bibliografia), mas está longe de ser o último: ao todo são oito.

A história que Cisco conta é uma história de terror bastante sólida. Protagonizada por ele, narrador, e por Lambshead, ambos médicos, naturalmente, relata a forma como o protagonista principal o convidou para o acompanhar a visitar uma doente, sem no entanto o preparar antecipadamente para o que ia encontrar. Resultado, um valente choque. Porque a doente estava terminal, devido a uma estranha doença que lhe pusera o sistema nervoso do lado de fora do corpo.

Este é um conto bastante bom, que inclusivamente funcionaria mesmo fora do contexto deste livro, o que nem sempre é o caso.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 23 de agosto de 2020

Mário-Henrique Leiria: Caso 39 001 - 0 - 37

Duas páginas. É o espaço de que precisa Mário-Henrique Leiria para escrever uma das histórias de viagem no tempo mais sofisticadas que eu li na vida. Apenas duas páginas. É de se lhe tirar todos os chapéus que este livro tem na capa e mais outros tantos.

Tudo gira em volta de mais um alienígena plenamente alienígena, pertencente a uma espécie que tem a capacidade de "cuimar", i.e., de se deslocar no tempo por períodos limitados, tanto para o passado como para o futuro. Ora, esse alienígena apresenta na polícia a queixa de que tinha sido roubado no mês seguinte. Mas o problema dele não é esse. O problema dele é que a polícia deteve o futuro ladrão, o que impediu um roubo que qualquer viagem ao futuro indicaria que acontecera de facto. Paradoxo, claro. O qual só é resolúvel através do desaparecimento de toda a fortuna do assaltado, o que este, compreensivelmente, considera inaceitável.

É este nó que um inspetor da Polícia Judiciosa consegue desatar de uma forma, digamos, sui generis, e o caso de direito — o Caso 39 001 - 0 - 37 (bibliografia), naturalmente — consiste na análise das ramificações jurídicas da solução encontrada. O que é coisa assente é que este conto é uma maravilhazinha de ficção científica e de ironia. E relembro: tudo em duas páginas. Chapeau!

Textos anteriores deste livro:

Charles Nodier: O Vale do Morto

Nada como um lugar de aspeto lúgubre para servir de cenário a uma história fantástica de crime e castigo. Charles Nodier, que nasceu no sopé dos Alpes, arranja um lugar desses para situar este seu conto: um vale sombrio, coberto de floresta densa. Mas o seu O Vale do Morto (bibliografia) não se chama originalmente assim. Na verdade, este conto narra a história de como o vale ganhou esse nome.

É daqueles contos de estalagem, muito comuns nas histórias de fantasmas vitorianas, nos quais grupos de pessoas que mal se conhecem ou não se conhecem de todo contam histórias assustadoras umas às outras em volta da lareira. Histórias aninhadas noutras histórias. Aqui, a história é contada por uma das anfitriãs a um par de hóspedes, um dos quais é descrito como um tipo baixinho todo vestido de vermelho. Só faltam os corninhos e o cheiro a enxofre. A história que a anfitriã conta é a história do vale, ainda antes de ganhar o nome, pois o nome antigo também tinha a sua história: Vale do Recluso.

E é aos poucos que se descobre que houve um crime que alterou as características do vale e que todas as pessoas ali presentes têm qualquer coisa a ver com o vale e, algumas delas, com o crime. E nada mais digo, pois o desvendar progressivo do mistério é o que faz mover o conto. Este está bastante bem construído para este tipo de conto narrativo, e também muito bem escrito, ainda que acabe por não ser dos mais memoráveis, talvez em parte por tanto do cenário e construção ser semelhante a um número apreciável de outras histórias.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Charles Dickens: O Sinaleiro

Olha, outro post rápido. É a tal história de ser inevitável que qualquer leitor com alguma experiência encontre em compilações de clássicos histórias já lidas noutras edições. Com efeito, já em 2010 tinha aqui comentado na Lâmpada este conto de Charles Dickens. E dez anos depois mantenho integralmente a opinião que exprimi então sobre O Sinaleiro (bibliografia), apesar de a releitura de um conto em que o fator surpresa é importante lhe retirar sempre qualquer coisa. Mas este era então e continua a ser hoje um conto muito bom.

Textos anteriores deste livro:

Sara Gwenllian Jones: Verme-Monge Saltitante

E eis-nos chegados à última das doenças, mas não se alegrem muito porque o livro ainda está bem longe de terminar. Mesmo o livro original, antes da inclusão das cerca de 100 páginas de material português, ainda inclui umas 130 páginas de coisas que extravazam a lista de doenças excêntricas e desacreditadas que têm vindo a ser lidas até aqui.

A doença que Sara Gwenllian Jones nos traz não tem nome de doença — chamar-lhe Verme-Monge Saltitante (bibliografia) é como chamar plasmódio à malária — mas apesar disso é um texto divertido, cujo principal motivo de interesse, para mim, reside na história que conta sobre a forma como as enfermidades eram encaradas na Idade Média europeia. A doença em si não é particularmente imaginativa, tratando-se de uma daquelas parasitoses que alteram o comportamento do paciente, neste caso por lhe alterar a perceção sensorial do mundo que o rodeia, levando-o a pensar que há subidas onde elas não existem, o que o põe aos saltinhos. Daí parte do nome; a outra parte provém de o verme se transmitir através do manuseio de pergaminhos, o que teria levado a doença a espalhar-se sobretudo enquanto havia mosteiros de copistas e iluministas.

Sim, que esta também é mais uma das numerosas doenças excêntricas e desacreditadas que giram à volta do livro e da leitura. É curioso como uma ideia, que em princípio seria inovadora e por isso interessante, ocorreu a tantos destes autores que ao fim de algum tempo já se torna mais cansativa do que outra coisa qualquer. É um risco que advém de se pedir a um grupo de pessoas com uma série de características em comum para escreverem textos sobre um tema específico: é fácil as várias imaginações seguirem caminhos paralelos.

Mas divago. Este texto é divertido, o que o tornaria interessante mesmo na ausência de outras qualidades. E como tem outras qualidades, é bom.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Villiers de l'Isle Adam: Vera

Saí bem impressionado da minha experiência anterior com a prosa de Villiers de l'Isle Adam, mas não posso dizer o mesmo desta. Não que o conto seja mau. Longe disso, até: é um conto muito bem escrito e muito bem concebido, que de certeza fará as delícias de muitos leitores. O problema é outro: a minha relação difícil com o romantismo literário.

Sim, porque este Vera (bibliografia) é um conto romântico até à medula. Protagonizado por um conde que perde a mulher e se recusa a aceitar a perda, relata a forma como ele mantém o fantasma da morta a viver consigo durante um ano como se ela estivesse viva. Sim, o conto está bem escrito. Mas os arrebatamentos de paixão e os sentimentalismos exagerados repelem-me com grande eficácia, e tudo isso existe aqui com bastante abundância.

Não foi conto que me deixasse saudades, este.

Textos anteriores deste livro:

Mia Couto: O Januário, ou Melhor: o Januário

E eis um conto sobre O Januário, ou Melhor: o Januário. E não me perguntem porque foi que Mia Couto resolveu intitular esta sua ficção com roupagem de crónica (ou vice-versa) desta forma, porque nem depois de ler percebi. À parte o conto ser sobre o Januário, claro.

Poderão perguntar: mas quem é o Januário? O Januário é um bateleiro, com ajuda de cujo barco se fazia a travessia do rio Pungué, e a história conta como a construção de uma ponte vai alterar o mundo do Januário. Primeiro por intermédio de todos aqueles que, com mal disfarçado gozo, lhe perguntam se não está preocupado com a ponte, ao que ele responde com indiferença, e depois no desfecho da história.

Este é fantástico em versão todoroviana. Relata um acontecimento que pode ter realmente acontecido, ou pode apenas ser lenda, mas se aconteceu tem certamente uma mãozinha mágica a ajudar. Uma rebeldia, digamos assim para não desvendar demasiado. Uma rebeldia daquelas bastante comuns em todos aqueles que veem o progresso ameaçar o seu ganha-pão, embora aqui ela tome um aspeto algo extremo. E com o regresso da magia a estas historinhas de Mia Couto eu cá leio-as de forma mais sorridente.

Contos anteriores deste livro:

Irmãos Grimm: O Lobo e o Homem

Fabulazinha muito curta, com apenas uma página, este O Lobo e o Homem parece ser mais uma das histórias em que os Irmãos Grimm decidiram não mexer. Trata basicamente de uma conversa entre um lobo e uma raposa, em que esta fala da força do homem e aquele não acredita que algum animal possa ser tão invencível e promete atacar assim que veja algum. A raposa trata de lhe indicar um caçador e o lobo lá vai atacá-lo. Claro que a empreitada não lhe corre bem, regressando ferido do recontro.

Não é daquelas fábulas que vêm acompanhadas de uma moral explícita, mas tem uma moral implícita bastante clara: cuidado com as gabarolices, e não aceites inimigos indicados por terceiros, pois podem estar a opor-te a adversários que estão fora do teu alcance.

Também não é dos contos mais interessantes nesta vasta coleção.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Edward Wellen: O Tijolo Dourado

É sempre difícil falar de uma história tão obviamente mal traduzida que até as pessoas menos sensíveis aos detalhes da tradução reparam que ela está mal traduzida. Será a história que é má ou será só a tradução? Será que os trechos que não fazem grande sentido já não o fazem no original, ou terá sido apenas o tradutor que não os compreendeu? Geralmente é difícil saber as respostas a estas interrogações (e outras do género) sem contrapor com o original, e isso torna difícil a formação de uma opinião.

As coisas complicam-se ainda mais quando o original tem características que tornariam sempre a tradução francamente complicada. Transpor para português a gíria militar americana, por exemplo, tentando conseguir um equilíbrio entre a cor do texto original e um texto português minimamente natural, é sempre uma valente dor de cabeça. E é precisamente esse o desafio que O Tijolo Dourado (bibliografia) impôs a quem o traduziu. O resultado não foi bom.

Esta história de Edward Wellen, uma novela, insere-se naquela corrente de ficções americanas pós-Vietname cujo tema comum é o absurdo da instituição militar. Protagonizada por um daqueles militares pouco amigos de ordens e hierarquias, arranca quando ele é apanhado por um superior hierárquico na cama com a mulher. Naturalmente, o superior cornudo trata de lhe fazer a folha, transferindo-o para a Décima Companhia Experimental. E o que é a Décima Companhia Experimental? Boa pergunta.

Boa pergunta porque ninguém parece saber. Ultrassecreto, claro. Mas mais que ultrassecreto, parece ser também ultraperigoso, pois a primeira coisa que acontece ao magala iconoclasta é ser levado para um pântano e abandonado numa ilha depois de lhe terem arrancado a pele das pontas dos dedos para o livrarem desses indícios comprometedores chamados impressões digitais. Isto foi escrito e publicado antes das análises ao ADN, claro. Sem perceber nada do que se está a passar, ele vai tentar regressar à civilização mas vê-se alvejado por um avião, e segue-se uma série de peripécias improváveis enquanto a paranoia vai em crescendo.

Lá pelo meio há umas referências razoavelmente vagas a aparelhos de FC, que suponho que terão servido de justificação para a integração desta história no género, embora o tom genérico esteja muito mais próximo de um Apocalypse Now do que de uma Guerra Sempre, para dar um exemplo de uma ficção científica muitíssimo relacionada com a guerra do Vietname. Até naquilo que se descobre que a Décima Companhia Experimental acaba por ser: uma fraude.

O resultado é bastante aborrecido, mas não posso garantir se o aborrecimento já vem de origem ou é criado na versão portuguesa. Há um certo tom onírico, ou talvez alucinatório que, se o texto correspondesse, podia ser bastante interessante... mas o texto não corresponde. Parece haver trechos em falta, e mais uma vez me vejo incapaz de decidir se isso se prende com problemas da edição portuguesa ou tem a ver com o onirismo da história. No fim, o que me ficou desta leitura foi a sensação de que foi longa em demasia e pouco mais. Mas não posso dizer que esta novela é má. Digo apenas que nesta edição não a recomendo.

Conto anterior desta publicação:

Douglas Preston: Impacto

Tecnothrillers. Um termo (quase) inglês que não tem tradução portuguesa, embora a primeira parte da palavra já o seja, e designa uma peculiar variante literária que geralmente (mas nem sempre) se enraíza profundamente na ficção científica. Apesar disso, nunca foram muito do meu agrado. O tecnothriller tem como principal objetivo a criação de uma trama envolvente e enrodilhada, cheia de ação e muitas vezes com presença de militares e/ou agentes de serviços secretos, em que os elementos de FC servem sobretudo de suporte à ação, não como motor para alguma espécie de reflexão. Também há FC propriamente dita que é assim. Mas eu sempre preferi da outra.

Além disso, praticamente todos os tecnothrillers que já li na vida pareceram-me mais adaptações de filmes do que obras literárias independentes. Há uma certa uniformidade neste tipo de romance comercial que faz com que praticamente todos pareçam projetos de blockbusters de verão, o que para quem procura variedade nas leituras não é propriamente agradável. Pega-se num desses livros e depressa fica perfeitamente óbvio quem é vilão e por isso acabará por morrer ou ser preso antes da história terminar e quem é herói e por isso acabará por se sair bem no final feliz, por mais que a meio pareça ter a vida por um fio, o que reduz quase a zero a surpresa da narrativa, por mais que o autor se esforce por criar reviravoltas e mais reviravoltas, tentando assim mantê-la interessante. Exceção feita apenas para algum protagonista secundário que acabe morto, muitas vezes heroicamente, a fim de estabelecer que sim, sim, o vilão é mesmo vilão.

E sim, este Impacto (bibliografia) é tudo isso. O que é particularmente aborrecido porque Douglas Preston até tem boas ideias, ideias de ficção científica "a sério", por assim dizer, a sustentar este livro.

Tudo começa quando algo que parece um meteorito parece cair ao largo da costa do Maine, estado norte-americano que ocupa a ponta nordeste do território dos EUA. O meteoro atrai a atenção de uma personagem curiosa, que decide procurá-lo em companhia de uma amiga: uma jovem negra, filha de um pescador, de volta à terra natal depois de ter abandonado a universidade (e logo uma das afamadas), apesar de ser brilhante e para enorme desapontamento do pai. A ideia: encontrar o meteorito e vendê-lo, pois meteoritos podem valer montantes avultados de dinheiro e ela está a precisar.

Entretanto, como uma história destas tem sempre de ter várias linhas narrativas que só se vão encontrar perto do fim, noutro ponto dos EUA um cientista repara numa estranha fonte de raios gama em Marte. Problema: Marte é um planeta, e só objetos particularmente energéticos (i.e., estrelas) são capazes de emitir raios gama com aquela intensidade e regularidade. Ele procura investigar, mas os chefes cortam-lhe as pernas, insistindo para que faça o trabalho que devia estar a fazer. Insiste e acaba despedido. E depois acaba assassinado por um assassino profissional, pago para recuperar os seus dados.

Não contente com duas linhas narrativas, Preston acrescenta ainda uma terceira, centrada num agente independente contratado pela CIA para ir ao Camboja verificar o que se passa num determinado ponto do país, que parece estar a ser palco de acontecimentos estranhos. Quando lá chega descobre uma espécie de cratera e uma mina de pedras com estranhas propriedades, gerida por aventureiros violentos que escravizaram a população da região para trabalhar para eles. Cratera mas nem vulcânica nem de impacto.

Na verdade, vem-se a descobrir que se trata de uma cratera de saída. De saída de algo que tinha colidido com a Terra ao largo do Maine, atravessado o planeta de um lado ao outro e saído no Camboja. Algo de física sofisticada: um strangelet, um pequeno objeto de matéria estranha (i.e., matéria ultradensa composta por quarks que não formam partículas elementares e que se pensa existir nos núcleos das estrelas de neutrões). Mas de onde veio o strangelet? O que pode significar? E porque é que anda um assassino a tentar ocultar a descoberta de uma fonte de raios gama em Marte?

Esta do assassino é a mais solta das muitas pontas mal atadas do enredo. Percebe-se bem porque é que ele aparece — porque ao autor faz falta um vilão que possa pôr os heróis a mexer, e note-se que eu falo do autor e não da história. O que não se percebe bem é porque é que ele aparece, isto é, por que raio uma emissão de raios gama vinda de Marte haveria de levar à contratação de um assassino profissional. É daqueles absurdos que só fazem sentido em thrillers e em filmes de ação à Hollywood, uma solução fácil e algo tosca para o problema de como manter a tensão em alta ao longo da história.

Essas três linhas narrativas vão acabar por se juntar, claro. Depois de uma série de peripécias o agente secreto vai acabar primeiro como protetor da geniazinha, para depois a deixar sozinha e entregue aos seus próprios meios porque aparentemente é preciso ir pessoalmente a Washington falar com políticos. E claro que o assassino vai atrás da rapariga, porque emoção a sério só há quando um profissional da violência tenta assassinar uma rapariga indefesa... e quando a indefesa se defende, porque o espetador... perdão... o leitor está a torcer pelos bons e há que dar ao esp... arre... ao leitor o que o leitor quer ler.

O que mais me aborrece é que atrás de tudo isto até está uma ideia de FC que podia dar uma história muito interessante se tivesse sido mais bem explorada, uma ideia cujos contornos totais vamos descobrindo aos poucos ao longo do romance, o que é, para mim, a parte mais interessante de um todo que o é pouco. E sim, vêm aí SPOILERS. São inevitáveis. Se são alérgicos a tais bichos, saiam já daqui, vão ler outras coisas.

O que se vem a descobrir é que a fonte de raios gama não está em Marte mas sim em Deimos, a mais pequena das duas luas do planeta, e que não é natural. É um artefacto alienígena, antiquíssimo, deixado numa das crateras de Marte por uma espécie qualquer desconhecida mas, aparentemente, xenófoba, pois trata-se de uma arma sofisticada. Uma arma automática, dotada de poder de decisão próprio, capaz de disparar strangelets de dimensão variável — às tantas a Lua é atingida por um disparo bastante mais potente do que o que atinge a Terra e o resultado é uma quantidade de detritos lunares suficiente para a criação de uma espécie de anel em volta da Terra — e provavelmente de destruir o planeta por inteiro. Coisa muito para além da capacidade tecnológica terrestre. E os disparos são disparos de aviso, que constituem uma espécie de ultimato ao nosso mundo e à nossa espécie.

Com esta ideia Preston podia ter criado uma obra de FC de primeira água, desde que limasse algumas inconsistências. Mas não era esse o seu objetivo. Não há aqui nenhum questionamento sobre o nosso lugar no universo, nenhuma exploração da ideia da xenofobia, em suma, quase nenhum sumo. Há apenas uma historieta movimentada sobre vilões e heróis improváveis, pronta para transformar-se em filme de série B ou C. Sendo esse o seu objetivo, terei de admitir que foi bem sucedido, uma vez que o romance é isso mesmo. E tenho plena consciência de que há quem prefira assim: literatura escapista de entretenimento puro que quando espremida não tem grande coisa lá dentro. Eu é que não: gosto de sumo. Este livro deixou-me bastante insatisfeito, não só por quase não ter sumo mas também, ou talvez principalmente, por poder ter sido muito mais do que é. Oportunidades mal aproveitadas; são uma praga.

Este livro foi comprado.

Isaac Asimov: O Olhar de Quem Vê

Estas histórias do Azazel cansam-me. Este Isaac Asimov está quase sempre tão distante do Asimov da série da Fundação ou dos melhores contos dos robôs positrónicos, sendo no entanto o mesmo, que chega até a ser deprimente. Poucos destes contos ultrapassam a mediocridade e demasiados nem a isso chegam. Se não fosse teimoso e se não tivesse aquele otimismo do leitor que está sempre à espera de que na página seguinte surja qualquer coisa que faça com que a leitura valha a pena, o mais certo é que já tivesse abandonado este livro. Mas sou e tenho, de modo que vamos lá a mais um.

Já perceberam que O Olhar de Quem Vê (bibliografia) não é dos melhores destes contos, decerto. Mas também não é tão mau como o parágrafo anterior pode levar a crer. Há ali em cima algum efeito de saturação com contos que só muito raramente trazem um pouco do que transformou Asimov num dos grandes nomes da FC, potenciado por este, mais uma vez, não o trazer. Por outras palavras: não seria por este conto que abandonaria este livro, mas por toda a sequência.

Este conto é sobre uma mulher muito, muito feia, que tem de se contentar com um homem muito, muito feio como parceiro de vida. O vaidoso que sabe chamar o demónio Azazel apieda-se dela e faz com que o demónio a embeleze, após o que a mulher, fútil e superficial como no mundo de Asimov as mulheres tendem a ser (exceto quando criam robôs positrónicos, aparentemente), trata de rejeitar o seu feioso e de arranjar para o substituir um tipo tão fútil, superficial e bem-parecido como ela é agora. É misógino? Claro. Mas não é dos casos piores e a moral da história, de que a verdadeira beleza não é exterior mas interior, por mais cliché que seja continua válida.

É um conto mediano, não um conto mau.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 16 de agosto de 2020

Leiturtugas #68

Estavam avisados de que esta semana iam chegar mais Leiturtugas, e aqui estão elas, pontualmente como deve ser. E foram bué. Termo técnico.

As primeiras chegaram pela mão da Carla Ribeiro, que se pôs a ler e a comentar BD portuguesa, especificamente a antologia Raízes dos autores do The Lisbon Studio, publicada já este ano pela G Floy. Sendo BD, claro, conta como sem FC, pelo que a Carla passa a 1c3s.

Depois apareceu o Artur Coelho, também com uma opinião sobre uma obra de BD portuguesa. No caso do Artur trata-se de um álbum de BD histórica de José Ruy, intitulado As Viagens de Porto Bomvento e publicado há década e meia pela Asa, e a opinião do Artur é daquelas muito curtas, mais desenvolvidas noutro sítio.

Mas o Artur não se ficou por aqui e no dia seguinte publicou outra opinião, desta feita sobre A Invasão dos Marcianos. Como? O que raio faz H. G. Wells nas Leiturtugas? Deixou de ser bife e virou tuga, querem ver? Não. Mas Matos Maia adaptou a emissão radiofónica de Orson Welles para a realidade portuguesa e o Artur esteve a ler o guião dessa adaptação, que está online no site Clássicos da Rádio. Ou seja: o Artur leu e comentou uma obra com FC e outra sem, pelo que passa a 5c7s e está mesmo quase a cumprir os mínimos de 2020.

No mesmo dia dos marcianos do Artur, saiu também uma opinião minha sobre uma coletânea de contos de FC com um punhado de outras coisas à mistura. Intitulada Histórias de Espantar e publicada há já mais de uma década pela Nova Vega, é de autoria do António Bettencourt Viana e naturalmente conta como com FC, pelo que eu subo a 3c3s.

E ainda no mesmo dia dos marcianos do Artur e das minhas histórias de espantar, também a Cristina Alves publicou mais uma opinião sobre BD portuguesa. Não sobre uma publicação, mas sobre duas, ainda que não tenha falado individualmente sobre cada uma delas mas coletivamente sobre ambas: os números 2 e 3 de Beep Boop, de Daniel da Silva Lopes. Uma edição da Gorila Sentado que põe a Cristina com 3c9s.

E parece ter sido só isto. Só é força de expressão. Haverá mais para a semana? É possível, mas desta vez não tenho nada na calha. Ficará com o resto da malta.

Brian Evenson: Suplemento de Worsley

É curioso constatar com que frequência os autores destas doenças/histórias decidiram incluir nos seus textos elementos que indiquem a probabilidade de os próprios médicos que descrevem as doenças, ou então aquele que lê as suas descrições, estarem afetados por elas. É razoavelmente elevada, em especial quando se soma às sugestões puramente textuais outras que dependem de determinadas características de design e paginação do livro. Este Suplemento de Worsley (bibliografia) é uma destas últimas histórias.

E quando falo de história, neste caso, estou mesmo a falar de uma história, pois Brian Evenson é daqueles autores que não se limitaram a descrever a doença e conta mesmo uma história enquanto o faz. A doença, aparentemente contagiosa, consiste na sensação de que há sempre mais um item num grupo de itens, os quais podem ser praticamente qualquer coisa. Se Fulano tem cinco moedas na carteira, tem a sensação de ter seis, mesmo depois de retirar de lá todas as cinco, e é fácil perder o controlo às coisas fantasmagóricas que julga existir.

Depois temos o design do livro a ajudar ao efeito. É que todos os títulos (todas estas histórias-doenças têm vários: o título propriamente dito e também os títulos de secções internas sobre sintomas, tratamento, história, etc.) aparecem em duplicado. Ou será que a explicação é outra, os títulos são na realidade únicos e é o leitor que sofre da doença? Hm? E esta?

Seja como for, doente ou não, este leitor gostou desta história.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 15 de agosto de 2020

A. P. Tchekhov: O Sapateiro e a Força Maligna

Às vezes parece haver todo um subgénero da literatura fantástica, em sentido lato pois, embora o seu fulcro esteja no terror, estende pseudópodes por outros géneros, incluindo até a ficção científica, que se dedica a explorar o tema do pacto faustiano com o diabo. É precisamente essa a "força maligna" deste O Sapateiro e a Força Maligna (bibliografia), conto de A. P. Tchékhov cujo principal tema é a inutilidade da inveja.

O protagonista, o sapateiro do título, é um invejoso das riquezas dos nobres e burgueses para os quais trabalha e que o destratam de uma forma que ele considera injusta. Por isso, faz um pacto com o diabo, vendendo a alma em troca da ascensão ao mesmo nível social deles. Mas a coisa corre mal, pois ao fazê-lo perde a possibilidade de se entregar aos prazeres da gente simples sem se ver alvo de desprezo e chacota. E a preocupação com a possibilidade de lhe roubarem as riquezas deixa-o louco.

Trata-se de um conto cheio de política e mostra um Tchékhov conservador, defensor da ideia de que cada macaco está realmente bem é no seu galho, sem misturas, o que não condiz lá muito bem com a ideia que eu fazia dele. E nem é questão da idade avançada ter acentuado tendências conservadoras prévias, como por vezes acontece. O conto foi publicado em 1888; nesse ano ele completou 28 anos. Provavelmente era a ideia que eu tinha dele que estava errada. Ou então trata-se de uma personalidade contraditória, como há tantas. Talvez as botas que dá ao sapateiro sejam as que usa nos pés, e o conto seja uma espécie de recado a si mesmo. Não sei. Seja como for, nada disso tem grande relevância para a sua qualidade enquanto escritor. E essa é boa: o conto está francamente bem construído e é uma variante razoavelmente original da velha história faustiana.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

António Bettencourt Viana: Histórias de Espantar (#leiturtugas)

Há certos livros (e contos também) em que a idade do autor é bastante evidente. Por vezes, quando a idade é tenra, isso revela-se com grande clareza na inexperiência que transparece da ficção. Na imaturidade, tanto literária quanto humana. De outras vezes, quando a idade é mais avançada, ela surge com clareza no tipo de texto e de autor formador da personalidade literária que se pode encontrar nessas obras. Este Histórias de Espantar (bibliografia) é um desses livros, e nem seriam precisos os elementos biográficos sobre o autor para os leitores compreenderem que António Bettencourt Viana já o publicou com uma idade avançada.

Viana é asimoviano até à medula. O estilo, seco, completamente vazio de adornos, é praticamente decalcado das ficções objetivas de Asimov, e a abordagem à FC, centrada quase exclusivamente nos detalhes científicos das histórias, limitando o desenvolvimento de aspetos literários mais exteriores a esses detalhes científicos àquilo que com eles se interseta de forma mais clara também é muitíssimo asimoviana. Mesmo trazendo sucedâneos até aos nossos dias, como de resto acontece quase sempre, este é um tipo de FC anterior à New Wave, um movimento originado nos anos 60 e 70 do século passado.

Nada disto implica que os contos sejam maus, claro. A literatura pode ser algo anacrónica mas manter a qualidade e, de resto, sem informação sobre há quanto tempo estas histórias foram escritas (sabemos quando foram publicadas em livro mas não quando foram escritas) é difícil aferir com algum grau de segurança quão anacrónicas poderão ser.

No entanto, e pondo de parte o conto do Eça que cá está incluído, pois este é autor totalmente de outro campeonato, a verdade é que a generalidade destas histórias mostra demasiadas fragilidades, não só no estilo mas também na própria elaboração dos enredos. Além da prosa pouco entusiasmante que é de esperar de qualquer autor que siga o exemplo de Asimov, há aqui falhas científicas, há clichés estilísticos, alguns deles muito a evitar, há algumas gralhas, há um didaticismo que demasiadas vezes prejudica o fluir da leitura, enfim, há carências suficientes para fazerem com que vários destes contos sejam maus. Maus como contos e também maus como contos de FC.

Por outro lado, também há aqui motivos de interesse. Uma boa história, Dois Sóis Para um Planeta Azul, será insuficiente para justificar a leitura do livro, mas A Independência da Lua também tem interesse e há um par de outras histórias que, pesem embora as falhas, são igualmente interessantes.

Depois há a questão do didaticismo. Viana afirma claramente que escreveu estas suas histórias como auxiliares de ensino. Não terá sido apenas para isso, decerto, mas nota-se que isso teve uma influência bastante grande no modo como as criou. Não sou a pessoa mais adequada para avaliar se essa parte do projeto é bem sucedida ou não — outros leitores mais ligados à docência terão mais condições para o fazer — mas à partida parece-me que até pode ser desde que a leitura seja acompanhada. Se não o for tenho algumas dúvidas. É que suspeito que a primeira condição para se ensinar alguma coisa através de uma história é torná-la interessante, e o didaticismo de Viana tende a intrometer-se demasiado nesse aspeto em demasiados destes contos. Não em todos, no entanto; alguns são mais equilibrados.

Em suma: este é um livro interessante por conter histórias de um tipo de FC muito pouco praticado entre nós e pelas duas ou três histórias entre o razoável e o bom que contém. Talvez também seja um livro interessante pela perspetiva didática que levou à sua criação. Mas não creio que seja um bom livro: inclui demasiados contos fracos.

Eis o que achei de cada um dos contos deste livro:
Este livro foi comprado.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Mário-Henrique Leiria: Caso 37 007 339 - 3º VIII

Quem não se lembra dos exercícios de matemática que passou horas a resolver na escola, com graus variados de sucesso dependendo do aluno e provavelmente das capacidades pedagógicas dos docentes? Pois quem vai para direito tem outro tipo de exercícios para resolver, ou pelo menos para analisar: casos práticos de direito. Ora, há já uns anos valentes, Mário-Henrique Leiria pegou nesses casos e imaginou-os como seriam numa civilização galáctica multi-específica, na qual convivessem, nem sempre pacificamente, uma série de alienígenas, cada qual com as suas características e cultura.

Um dos resultados é este Caso 37 007 339 - 3º VIII (bibliografia). Refere-se o caso a um mal-entendido grave entre um rastejador polipoide de Algol-7, caixeiro-viajante, e um inseto-voador do planeta Crostol, em resultado do qual o primeiro cegou cerimonialmente o segundo. O caso é descrito sumariamente, entre a queixa, o julgamento e a sentença, e no fim o estudante terá de responder a uma pergunta.

O mais interessante neste conto, porque de um conto se trata, ainda que disfarçado de texto não-ficcional e integrado numa série em que é mais o relevo que se dá ao título global do que a títulos individuais de cada um, é a capacidade que Leiria mostra de criar criaturas alienígenas bem mais alienígenas do que é comum encontrar-se em obras de FC mais reputadas e conhecidas e sim, falo também de muita coisa vinda dos States ou do Reino Unido. Isso e a criação de verdadeiros dilemas jurídicos, baseados nas características biológicas e culturais das várias criaturas, ao mesmo tempo que não deixa de ter a piada que é comum encontrar-se nos contos dele.

É francamente bom, este conto. E os próximos também o são (estou a relê-los e já sei com o que conto).

Texto anterior deste livro:

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Stepan Chapman: Snarcoma Móvel

E de repente, numa altura em que a sucessão de histórias ou doenças razoavelmente semelhantes umas às outras ameaçava alguma monotonia, eis que aparece uma historinha que tem um piadão. E é por vários motivos que este Snarcoma Móvel (bibliografia) de Stepan Chapman se destaca do "pelotão".

Começa logo pelo título. É que "snarcoma" é um jogo de palavras que não funciona em português (não batam no tradutor — isto é intraduzível). Não existe nenhuma doença chamada snarcoma; o que existe são os sarcomas, i.e., certos tipos de cancro. E é realmente de um tipo de cancro que Chapman aqui fala, mas de um tipo de cancro muito especial. Basta perceber-se que o jogo de palavras se faz com a palavra "snark", que significa assim algo como humor sarcástico.

Pois a verdadeira natureza deste "snarcoma" só se desvenda numa secção que agora de repente não creio existir em mais nenhuma das descrições de doenças que este livro contém: uma secção que descreve o procedimento cirúrgico aconselhado para extração do tumor. Isto, apesar do nome da doença dar uma indicação bastante concreta sobre essa natureza, claro. É que o tumor é móvel. E não se trata de uma mobilidade pachorrenta, convulsões, coisas do género. É uma mobilidade de rato. Como animalzinho acossado, esconde-se e foge se não o apanham desprevenido, esquiva-se aos instrumentos cirúrgicos, criando todas as espécies de problemas. E tudo está descrito com verdadeira graça: esta foi uma das poucas histórias deste livro que me causaram mesmo uma gargalhada.

Muito bom, senhor Chapman. Muito bom mesmo.

Textos anteriores deste livro:

Leiturtugas #67

Eu na semana passada avisei que vinham aí mais Leiturtugas, não foi? Pois cá estão elas.

O Artur Coelho trouxe esta semana uma opinião sobre um curioso livrinho antigo, que pode ou não ser ficcional mas se for é fantástico. Intitulado A Mulher Queimada Viva pelos Feiticeiros de Soalhães, título totalmente descritivo, e escrito por um tal Hipolito Travassos, foi publicado há um ror de anos pela Livraria Barateira mas a versão lida pelo Artur foi a digitalização disponibilizada pela Biblioteca Nacional. Nada de FC, claro, pelo que o Artur passa a 4c6s.

E não foi só essa. Chegou mais uma, pela minha mão, Jorge Candeias ao vosso dispor, graças a uma opinião sobre uma sátira política e fantástica publicada já há uns anos largos pela Saída de Emergência. O autor chama-se João Cerqueira, o livro, um romance, intitula-se A Tragédia de Fidel Castro, e não tem nem pontinha de FC, o que me põe com 2c3s.

Para a semana? Vai haver mais, sim senhor. Voltem que não sairão de mãos a abanar.

domingo, 9 de agosto de 2020

Charles Nodier: Baptista Montauban ou O Idiota

Com algumas exceções, quanto mais estes contos de Charles Nodier se servem das técnicas e temas literários do romantismo, mas esquecíveis me parecem. Este Baptista Montauban ou O Idiota (bibliografia), por exemplo, esqueci tão rapidamente que o tempo que decorreu entre a leitura e o momento de começar a escrever este texto, apesar de não ser mais que dois ou três dias, me forçou a ir reler alguns trechos para relembrar o tema e clima da história.

É que estão lá os clichés quase todos. O jovem enlouquecido, o amor proibido, o desejo de suicídio como solução teatral para o desespero de amor, tudo. Some-se a isso um elemento fantástico bastante ténue, que praticamente se resume ao facto do jovem falar com passarinhos, e facilmente se compreende o desinteresse que esta história teve para mim.

Por outro lado, está bastante bem escrita, pelo que quem se contente com a qualidade mais estritamente literária irá provavelmente sair desta leitura satisfeito. Poderá contar com uma espécie de história da Cinderela no masculino, sem irmãs malvadas mas em modo trágico, na qual um jovem educado em casa de um proprietário rico é de lá afastado ao início da adolescência (mas demasiado tarde) para não haver amores inconvenientes entre ele e a filha do proprietário, uma rapariga da sua idade que foi sua companheira de infância, o que o leva a desenvolver perturbações mentais. E ao contrário do final feliz do conto de fadas, aqui o desfecho é o rapaz ficar a saber que a sua querida perdida vai casar, e decidir assim pôr em prática algo que já planeava há muito.

Para mim, este é um conto bastante dispensável. Outros terão outras opiniões, como é natural.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 8 de agosto de 2020

João Cerqueira: A Tragédia de Fidel Castro (#leiturtugas)

A comédia, na literatura, funciona bastante melhor em versão curta do que em versão longa. E contra mim falo, que também já escrevi e (auto-)publiquei um pequeno romance humorístico, pelo que compreendo plenamente o apelo para quem escreve. Gozar com coisas que achamos que merecem gozo nem sempre cabe em contos ou vinhetas, e por vezes é preciso esticar mais a corda da troça para que esta se faça a contento. Mas se já é complicado manter o humor em alta em textos curtos, num romance inteiro é complicadíssimo. Incomparavelmente mais complicado do que escrever longas ruminações muito sisudas sobre o umbigo do escrevente, o que não deixa de ser irónico quando atentamos ao prestígio que um e outro tipo de obra alcança junto do comum dos literatos.

Por isso, ao avaliar-se um romance humorístico, há que ter esse facto em conta. Um romance humorístico não irá causar gargalhadas ao longo de todas as suas cento e muitas páginas ou mais. Provavelmente nem irá provocar sorrisos ao longo de todas essas páginas. O melhor que quem os cria consegue alcançar é enfiar neles uma densidade de piada suficiente para que o resultado não tenha trechos chatos, para que o leitor ria ou sorria de x em x páginas, para que se sinta sempre mais ou menos divertido. Mais do que isso é puro lucro. E bastante raro.

É este o meu ponto de partida para pensar neste A Tragédia de Fidel Castro (bibliografia), um romance de humor fantástico carregadinho de anacronismos em que João Cerqueira junta na panela Fidel Castro, D. Afonso Henriques, Fátima (Nossa Senhora de), Jesus Cristo e até Deus Nosso Senhor para compor uma caldeirada satírica que, como convém à sátira, pretende simultaneamente bem humorada e crítica.

(Um parêntesis: Cerqueira traduziu este romance para inglês, e a maior parte das opiniões que se encontram por aí refere-se a essa tradução. No entanto, trata-se mais de uma adaptação do que de uma tradução, pois D. Afonso Henriques desaparece, substituido por John Fitzgerald Kennedy. Isto tem um impacto bastante grande no livro, pois Castro e JFK foram rivais na vida real — crise dos mísseis de Cuba, alguém? — e muitas das situações que na versão portuguesa são pura maluqueira na versão inglesa fariam muito mais sentido. E parece-me inteiramente possível que haja mais alterações além dessa. Fecha parêntesis)

Há alguns pontos negativos neste livro. O facto de Cerqueira tender a ser palavroso é um deles e talvez o mais negativo de todos, pois por vezes perde de vista a piada, a ironia ou a necessidade de fazer avançar a trama para se entregar àquilo a que há quem chame a volúpia da palavra, o que faz com que certos trechos se tornem aborrecidos, e isso não é bom. Outro, que reconheço ser em boa medida questão de gosto apesar de estar relacionado com o primeiro, é não me parecer grandemente interessante que se perca de vista o enredo para longas divagações que lhe são laterais, apesar de se concentrar por vezes nestas boa parte da ironia presente em certos trechos. Provavelmente haverá quem goste; eu nem por isso. Há uma espécie de tensão presente em todo o romance entre a ironia e o avanço dos acontecimentos, e é frequente que aquela sirva mais para os retardar do que para os desenvolver.

Até porque toda a história é francamente absurda (o que numa obra humorística não tem nada de mal, obviamente) e a meu ver precisaria de uma prosa mais ágil e menos sinuosa para a servir. Fidel Castro, chateado porque a sua revolução cubana não está a ter exatamente os resultados que pretende, culpa D. Afonso Henriques pelo facto e decide invadir-lhe o reino. O avolumar da tensão preocupa Fátima, que pode ser ou não ser a dos pastorinhos (é), e esta vai falar com Deus, o qual decide mandar o filho outra vez à Terra para ver se resolve a questão. O problema é convencê-lo, que Jesus Cristo não está propriamente disposto a isso. Mas com jeitinho lá o convencem. Não que a segunda vinda sirva de alguma coisa, atenção: a inutilidade é absoluta e ela passa sem que ninguém dê por isso. A invasão acontece e com sucesso, dificultada apenas pela natureza do povo de D. Afonso Henriques, que como é sabido nem se governa nem se deixa governar. Mas na batalha final entre os dois exércitos, o de D. Afonso prevalece, como era desde início evidente que aconteceria. Tudo muito disparatado e anacrónico, como se vê.

Para mim, a parte mais interessante neste romance é aquela que nem pretende ter piada. Cerqueira faz nas entrelinhas uma análise que me parece bastante bem sucedida, independentemente de considerandos ideológicos, do contraste tantas vezes existente entre as intenções e os resultados em política. O seu Fidel é um homem amargurado, não só com as realidades da revolução ou com as deslealdades dos homens, mas também com aquilo que considera ter de fazer para a manter de pé, para o bem último da população. E nota-se que andou a ler os discursos de Fidel Castro, se não para compor a personagem, pelo menos para criar os trechos de um diário de reflexões que compõem parte do livro. Não sei se se trata de citações diretas, mas são pelo menos credíveis.

Este é também um livro original, outro ponto positivo. Mas divertiu-me pouco e até me aborreceu um bocado, o que para uma obra de humor é uma falha fatal. Incompatibilidades no sentido de humor, provavelmente e sobretudo, ainda que haja alguns detalhes nele que me parecem algo mais objetivos do que isso. Com mais história provavelmente teria gostado mais, com uma prosa menos prolixa também. Feitas as contas ao deve e ao haver, pareceu-me um livro apenas razoável, muito provavelmente melhorado na versão inglesa. Quem tenha um sentido de humor mais compatível irá gostar quase de certeza mais do que eu gostei, quem o tenha menos gostará menos, e é essa a natureza das coisas.

Este livro foi comprado.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Irmãos Grimm: Os Seis que Foram Longe

Quem lê estes antigos contos populares não é raro deparar-se com alguns elementos que reconhece, se estiver atento, de histórias ou géneros inteiros surgidos anos ou séculos mais tarde, e este conto sobre Os Seis que Foram Longe, que os Irmãos Grimm terão recolhido e publicado sem alterações, além de eventuais retoques estilísticos, é disso exemplo paradigmático. É que ler esta história é quase como ler um conto de super-heróis.

Estive quase para escrever aqui X-Men em vez de super-heróis, mas a verdade é que embora o grupo tenha uma dinâmica semelhante, com um líder e planificador da atividade e os seus soldados, cada um com a sua habilidade extraordinária, os X-Men são apresentados como um grupo de heróis propriamente ditos, os bons da fita, ao passo que estas personagens do conto popular são algo mais dúbias, pois o seu grande objetivo é tirar vantagem das pessoas normais e sobretudo do seu rei. O que conseguem fazer, claro, recorrendo aos talentos específicos de cada um.

Este é um conto bastante interessante, muito mais pelas conotações que a sua leitura desperta do que pelo conto em si mesmo. Este pouco mais é que uma espécie de lengalenga que se vai desenvolvendo repetitivamente até ao desfecho. Mas as conotações elevam-no a outro patamar.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Mia Couto: O Dia em que Fuzilaram o Guarda-Redes da Minha Equipa

Num texto que parece ser mais crónica que a maioria destas crónicas que têm sido principalmente contos, Mia Couto regressa aos tempos da guerra colonial, apresentando-se narrador miúdo obcecado por uma mesa de matraquilhos que havia numa tasca frequentada por soldados portugueses, pois nas imediações havia um quartel. À partida eram todos brancos, os matraquilhos, iguais a todos os outros matraquilhos do império. Couto não diz, mas facilmente se imagina o sempiterno Benfica-Sporting das camisolas. Estabelecido o ambiente, arranca a história propriamente dita quando um dos bonecos aparece pintado de preto.

Toda a gente acha graça. Mas depois vão sendo pintados outros até que todos os matraquilhos da mesa se africanizam e os soldados portugueses deixam de rir. Assim se explica o título da história: O Dia em que Fuzilaram o Guarda-Redes da Minha Equipa é o dia em que os matraquilhos sofrem represália violenta pelo crime de terem sido pintados de preto por alguém.

Trata-se, obviamente, de uma história sobre colonialismo, sobre racismo (a tal coisa que há por aí quem insista que não existe em Portugal e, presume-se, nos portugueses), sobre resistência. Sobre o valor dos símbolos, o que de resto é um tema caro a Mia Couto. E bom, sim, e bastante, embora eu sinta sempre falta da fantasia quando ela está ausente dos seus textos.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Jeffrey Ford: Sinestesia Figurativa

O que esta história tem de mais curioso é deixar no ar a hipótese de o diagnóstico da Sinestesia Figurativa (bibliografia) como doença neurológica, uma variante da sinestesia verdadeira que existe no mundo real, ser um diagnóstico errado e o fenómeno a que se refere ser bastante mais exótico do que isso. Jeffrey Ford consegue assim arranjar uma bem-vinda variação relativa à filosofia da grande maioria destas histórias, nas quais são as próprias doenças que tentem a esticar a corda da verosimilhança por serem quase sempre extraordinárias. Esta, pelo contrário, é uma explicação relativamente mundana para um fenómeno que pode ser bastante mais extraordinário.

E que fenómeno é esse?

Bom, o caso é como segue: alguém, um tal Bernard Quigley, descobre que depois de ingerir alcaçuz consegue ver um duplo seu. Um duplo com a sua própria vida e as suas próprias circunstâncias, como se fosse ele mesmo só que num universo ou pelo menos numa linha temporal diferente. Ao médico que o observa nem passa tal possibilidade pela cabeça, claro, e reduz tudo a uma visão sinestética associada ao sabor do alcaçuz. No entanto, quem lê dificilmente não pensa nessa possibilidade. Pelo menos se for leitor habitual de FC e fantasia.

E sim, de certeza que é propositado, pois Ford (como os demais autores presentes no livro, de resto) é autor experiente no género. E é por isso que esta história é muitíssimo interessante.

Textos anteriores deste livro:

Em 2019 falou-se de... outras coisas

Eu avisei que a prioridade deste post era bastante baixa mas que ele acabaria por aparecer, não avisei? Avisei, claro que avisei. E portanto, olhem, cá está ele, para encerrar de vez esta fase e este tipo de trabalho derivado do defunto ficção científica literária.

Como aconteceu no post sobre as outras coisas de 2018, e depois de falar aqui sobre a ficção portuguesa de que se falou em 2019, e também da brasileira, e ainda da internacional, neste post reúne-se tudo o resto. Não vou seguir a mesma ordem do post sobre 2018; vou começar pelas outras categorias de ficção, por mais pequenas que sejam, e vou seguir mais ou menos a mesma ordem para as de não ficção e o mais que ainda possa haver. Os comentários que haja a fazer sobre cada categoria é que, tal como no ano passado, vêm logo após a respetiva lista.

Tudo esclarecido? Então vamos lá.

Ficção angolana:

Agualusa, José Eduardo
  1. A Vida no Céu
Santos, Onofre dos
  1. Lenguluka (2x)
No ano anterior suspeitava que íamos ficar limitados ao Agualusa durante muito tempo, mas eis que 2019 me desmente com o surgimento, no mercado português, de um romance de FC de Onofre dos Santos, duplicando de uma assentada o número de autores angolanos presentes nestas listas e também o número de títulos (e triplicando as opiniões). Pena é o ponto de partida ser tão baixo — um —, e portanto o ponto de chegada também o ficar muito. Os próximos anos dirão se se trata de epifenómeno ou de início de qualquer coisa. Alguém dará conta do resultado, imagino.

Ficção galega:

Asorey, Daniel
  1. As Mulleres da Fin do Mundo
Por vários motivos, não era comum aparecer ficção galega nas pesquisas que eu fazia para alimentar o Ficção Científica Literária, embora eu tenda a considerar o galego parte da lusofonia. Por exemplo: boa parte dos veículos que falam sobre ela são em espanhol, não em galego ou português, e o próprio termo galego para ficção científica diverge do português, pois eles usam normalmente o termo castelhano, ciencia ficción, e mesmo quando usam o português/galego fazem-no com outra ortografia: ficción científica. Até na grafia reintegracionista existe diferença: ficçom científica. Mas em 2019 aconteceu eu dar por esta distopia, precisamente porque a palavra "distopia" é igual em todas as línguas ibéricas ocidentais (mais acento, menos acento).

Ficção lusófona e internacional:

?? (org.)
  1. Steampunk Internacional
Branco, Marcello Simão (org.)
  1. Assembléia Estelar
Mendes, Roberto (ed.)
  1. Dagon, nº 3
Mexia, Pedro (ed.)
  1. Granta, nº 3 (2x)
Scotuzzi, Nathalia (ed.)
  1. Diário Macabro, nº 1
  2. Diário Macabro, nº 2
VanderMeer, Jeff; Roberts, Mark; Seixas, João (org.)
  1. Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas
Esta categoria, apesar de continuar pouco significativa, cresceu bastante face a 2018, contando agora 6 editores ou equipas em vez dos 2 do ano anterior, e 7 títulos em vez dos também 2 do ano anterior. Esta escassez é curiosa, pois durante muito tempo quase não houve antologia, pelo menos entre as publicadas em Portugal, que não contivesse qualquer coisa de um ou vários escritores não lusófonos para lhe conferir algum estatuto e, imagina-se, valor comercial. De então para cá as coisas mudaram um pouco de figura e, embora esse fator continue a existir, a verdade é que a presença não lusófona nestas publicações não se faz apenas de nomes sonantes, surgindo nelas também muita gente que se estreia na edição em língua portuguesa. Em todo o caso, a escassez dos comentários a este tipo de livro ou revista também é reflexo (ou talvez seja sobretudo reflexo) da tradicional azia de um quinhão demasiado elevado dos leitores face a histórias curtas. E isto é que parece mesmo não haver meio de mudar.

Ficção luso-brasileira:

Lodi-Ribeiro, Gerson (org.)
  1. Dieselpunk
Santos, Octávio dos (org.)
  1. A República Nunca Existiu
Tal como no ano anterior, em 2019 também só se falou de duas antologias com componente luso-brasileira relevante mas, ao contrário do que aconteceu em 2018, desta vez houve mais equilíbrio pois uma foi publicada em Portugal, com preponderância de autores portugueses, e a outra no Brasil, com preponderância de autores brasileiros. Seja como for, continua a ser fraquinho, muito fraquinho. E em relação ao que disse no ano passado, que "o desenvolvimento de verdadeiro intercâmbio literário no espaço lusófono, para o qual a carolice não chega, só se dará quando houver intervenção política nesse sentido" e que "cada vez há mais escolhos no caminho dessa intervenção", faço minhas as palavras do Jorge do ano passado, pois o ano que decorreu só tornou tudo ainda mais complicado e sem quaisquer melhorias em perspetiva.

Não-ficção portuguesa:

Domingues, Álvaro
  1. Oh que Cousas Grandes e Raras Haverá
Oliveira, Arlindo
  1. Inteligência Artificial
Vieira, Joaquim
  1. José Saramago: Rota de Vida
Nesta categoria temos uma grande taxa de repetência face ao ano anterior, visto que dos três autores aqui presentes dois compunham a lista de 2018, e destes três títulos um também já tinha sido comentado nesse ano. Não é uma categoria abundante, e julgo que nunca será, uma vez que não existe, fora da academia, a tradição de publicar material de não ficção produzido em Portugal sobre ficção científica ou de alguma forma relacionado com ela, e dentro da academia esse material é também raro e é mais raramente ainda que sai para o exterior, o que de resto é um velho problema da academia em geral e não só em Portugal: a dificuldade em estabelecer pontes com o mundo não académico. O crescimento de um título e de um autor não me parece minimamente significativo: o valor de base é demasiado baixo para que seja possível tirar daí alguma espécie de leitura.

Não-ficção brasileira:

Branco, Marcello Simão; Rosatti, Renato (eds.)
  1. Megalon, nº 1
Castro, Eduardo Andrade Barbosa de
  1. Traduzindo Ficção Científica: Samuel Delany
Meirelles, Fernando
  1. Diário de Blindness
Rüsche, Ana
  1. Utopia, feminismo e resignação em The Left Hand of Darkness e The Handmaid’s Tale
Savi, Melina Pereira
  1. Ursula K. Le Guin: Otherworldly literature for nonhuman times
Souza, Kátia Regina
  1. A fantástica jornada do escritor no Brasil (2x)
Suppia, Alfredo
  1. Atmosfera Rarefeita
Tavares, Braulio
  1. A Idade da Ignorância
Valentim, Marco Antonio
  1. Ursa menor: notas sobre ficção científica e fantasia
Vugman, Fernando
  1. A Invenção do Monstro (2x)
Esta foi uma categoria que cresceu muito relativamente a 2018, em grande medida graças a um site brasileiro que publicou um número bastante razoável de opiniões sobre obras de não ficção, a grande maioria de autores não lusófonos mas algumas também de autores brasileiros. Parte dessas opiniões foram também republicadas num outro site. E houve também opiniões vindas de outros sítios, nomeadamente aqui da Lâmpada. Tudo somado, os dois títulos, autores e comentários de 2018 passaram em 2019 a 10 títulos e autores (ou equipas) e 12 comentários, subidas muito significativas.

Não-ficção internacional:

anónimo
  1. A Arte do Cinema: Star Wars
Barbour, D.
  1. Wholeness and Balance in the Hainish Novels of Ursula K. Le Guin
Bradbury, Ray
  1. O Zen e a Arte da Escrita (2x)
Carrère, Emmanuel
  1. Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos
Gordon, Charlotte
  1. Romantic Outlaws
Harari, Yuval Noah
  1. 21 Lições para o Século 21 / 21 Lições Para o Século XXI (5x)
  2. Homo Deus
Huntington, J.
  1. The Unity of “Childhood’s End”
Kaku, Michio
  1. O Futuro da Humanidade
Kelly, Kevin
  1. The Inevitable
King, Stephen
  1. Sobre a Escrita (2x)
Lincoln, Don
  1. Universo Alien
Manguel, Alberto
  1. Monstros Fabulosos (2x)
Masi, Domenico de
  1. O Mundo Ainda é Jovem
Parrinder, Patrick
  1. Imagining the Future: Zamyatin and Wells
Ricks, Thomas E.
  1. Churchill & Orwell - A Luta Pela Liberdade
Robb, Brian J.
  1. A Identidade Secreta dos Super-Heróis
Rottensteiner, Franz
  1. The Science Fiction Book: An Illustrated History by Franz Rottensteiner
Samuelson, David N.
  1. Childhood’s End: A Median Stage of Adolescence?
Serrano, Javier
  1. Un Mundo Robot
Vogel, Joseph
  1. Stranger Fans (2x)
Wallace-Wells, David
  1. The Uninhabitable Earth / A Terra Inabitável (3x)
Walsh, Toby
  1. 2062: The World that AI Made
Williams, Raymond
  1. Utopia and Science Fiction
Esta, que já no ano anterior tinha sido a categoria mais abundante entre este grupo de pequenas categorias, voltou a sê-lo em 2019, e com números muito semelhantes. Os 22 autores mais um organizador desconhecido de 2018 são agora 22 autores mais um autor ou autores desconhecidos, os 25 títulos são agora 24. E até os destaques são semelhantes. Ou pelo menos um deles é: Yuval Noah Harari, que volta a ser o principal com 6 opiniões divididas entre dois títulos. O outro destaque do ano é David Wallace-Wells, autor de uma obra sobre as consequências das alterações climáticas que foi alvo de três comentários. Weldon e Adams, pelo contrário, desapareceram em 2019.

Poesia portuguesa:

Canibal, Adolfo Luxúria
  1. No Rasto dos Duendes Eléctricos
Esta é uma categoria raríssima, inexistente no ano anterior (houve uma categoria de poesia, mas brasileira), cujo aparecimento nestas listas é sempre uma surpresa. Aconteceu em 2019 e, se isto continuasse a ser feito, provavelmente não voltaria a acontecer durante muitos anos.

Ficção internacional fora do género (mas relacionada com ele):

Wirkus, Tim
  1. The Infinite Future
No ano passado houve um autor, um título e uma opinião nesta categoria, este ano volta a haver um autor, um título e uma opinião. À partida, eu julgaria que seria mais raro encontrar material deste do que parece ser, embora dois exemplares em dois sejam absolutamente insuficientes para chegar a alguma espécie de conclusão. Mas fica a nota da persistência da categoria como uma curiosidade.

E assim chegámos ao fim desta iniciativa. Deu uma trabalheira medonha e uns posts que espero terem interessado a alguns leitores e acaba aqui devido à estupidez e incompetência da Google, como podem ler no último post do blogue que usei para alimentar estas listas.

Parabéns, Google.