quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Transignorâncias (2): E o mais importante é?...

Para alguns, é simples: o mais importante na literatura é, sem sinal de sombra de dúvida, o tratamento dado à língua. Tendem a ser fãs de escritores como o Lobo Antunes, a quem elogiam profusamente a pureza da frase ou a qualidade poética das imagens, e parte deles tende também a desprezar com grande empenho toda a literatura (frequentemente esmagada sob o peso de epítetos vários, entre os quais o de subliteratura não será o mais violento) que se preocupa mais com outros aspetos da arte de narrar através de palavras do que propriamente com o encadeamento que estas tomam nas frases.

Mas estes são só um bando no grande aviário dos literatos. Existem também os que se preocupam primordialmente com a história; existem os que têm na mensagem o seu principal foco de interesse; existem aqueles que se deliciam acima de tudo com as personagens, outros ficam de beicinho com a construção de mundos que subjaz às histórias, outros com a imaginação de que o autor dá mostras, outros com a falta dela (sim, há quem prefira a falta de imaginação à imaginação, a adesão às fórmulas à inovação), e etc., e etc., e variadíssimos eteceteras.

Tudo isto estaria muito bem, muito certo, muito correto, muito ainda bem que assim é, se cada um destes bandos não possuísse em si uma fação mais ou menos talibânica e frequentemente muito ruidosa, que reivindica para a sua forma de olhar a literatura a VERDADE, assim mesmo, em maiúsculas e negrito, ao mesmo tempo que lança fatwas contra todas as outras heresias… digo… literaturas.

E depois, claro, seguem-se as guerras santas.

Pessoalmente, enquanto fã de longa data de ficção científica, sou um passaroco que tende a esvoaçar por perto dos bandos da história e da construção de mundos. Ou, dito de um modo mais genérico, sinto-me mais à vontade no superbando do conteúdo do que no da forma. É por isso que só com dificuldade trago Lobo Antunes, mesmo reconhecendo e dando valor à qualidade formal daquilo que produz. É porque o conteúdo dele não me interessa, porque não desenvolve, porque rumina e rerrumina sem sair do mesmo sítio do princípio ao fim dos seus livros. É por isso que detestei os contos que Isabel Cristina Pires incluiu n’A Casa em Espiral. Porque, independentemente de estarem bem escritas ou deixarem de o estar, achei aquelas histórias absolutamente vácuas. Lê-las foi, para mim, pura perda de tempo. E podia dar dezenas de outros exemplos de coisas formalmente boas, ou até muito boas, que não despertam em mim a mais pequena vontade de aplaudir.

Mas estou muito longe de encarar esta preferência como a VERDADE.

Já foi tempo. Entretanto cresci.

Isto voltou a ficar claro esta semana, ao ler o conto de Asimov de que falo uns posts mais abaixo. É um conto que, como disse na opinião sobre ele, corporiza uma abordagem específica à ficção científica. Não se limita a ser cem porcento conteúdo, preocupando-se pouco ou nada com a forma, mas recorre a um tipo específico de conteúdo, a ideia, como força motriz quase exclusiva. Foram contos deste género que levaram alguns a chamar à FC a “literatura das ideias” (expressão que me parece muito disparatada, mas isso ficará para outra altura). E eu, sempre que leio um conto destes, penso com os meus botões: “Daquilo que acabei de ler, que resta quando a ideia se esgotar?”

É que as ideias se esgotam. Esgotam-se quando são tantas vezes usadas que se transformam em clichés. Esgotam-se quando a evolução da ciência, da tecnologia, de qualquer ramo do pensamento humano, as torna obsoletas, coisas do passado. Esgotam-se, em suma, quando deixam de ser válidas. E isso é algo que, temo bem, acaba por acontecer a todas. Nenhuma ideia dura para sempre. Chega um dia em que se descobre que morreu. E que as histórias-ideia baseadas nela morreram com ela.

A não ser que tenham em si alguma coisa além da ideia.

Por exemplo, consideremos outro conto de ficção científica escrito mais ou menos na mesma época, por outro monstro sagrado, o Clarke. A Estrela. Trata este, caso não o conheçam, de um padre cristão que regressa de uma viagem interestelar ao sistema de uma estrela que teria explodido como supernova por volta do ano zero da nossa era, tornando-se assim a Estrela de Belém. O conto tem a ideia, brilhante, e ainda aditivada por aquilo que a expedição descobre a orbitar essa estrela (não vou dizer o que é; leiam o conto, que vale bem a pena). Mas além disso está bem escrito, com uma qualidade de prosa bastante superior à do Asimov. E para além disso, tem um protagonista que, no contexto de um conto, com as limitações inerentes ao formato e à dimensão, está muito bem construído enquanto personagem. É um conto que, posso apostar já aqui, perdurará durante muito mais tempo do que o de Asimov.

Ou consideremos outro ainda, também da mesma época, escrito por mais um dos monstros sagrados da FC, o Bradbury. Virão Chuvas Suaves. É um conto, para os infelizes que não o conhecem, que leva quem o lê por uma viagem pelos automatismos em falha de uma casa automática e que termina com uma das imagens mais terrivelmente belas que a ficção científica alguma vez produziu, esclarecendo o porquê dos automatismos da casa estarem em falha. A ideia, apesar de ótima, talvez não seja tão arrebatadora como as dos outros dois. Mas este conto é eterno. Porque lê-lo é como dançar uma valsa, tal é o ritmo que ele tem. Porque está muito, muito, muito bem escrito. Porque nos fala de um momento da história da nossa civilização, um momento em que havia um medo muito real de que algo como aquilo poderia de facto vir a acontecer, e remete para um outro momento em que algo como aquilo realmente aconteceu, apesar de então ainda não existirem casas automáticas. Dos três, será sem qualquer dúvida este a perdurar por mais tempo. É o mais completo enquanto objeto literário. Além de conteúdo tem também forma. Ambos ótimos.

O que eu quero dizer com isto é que quando os escritores se limitam a explorar uma única faceta da sua arte até podem explorá-la muito bem, até podem ganhar assim o seu público, mas só muito dificilmente chegarão à verdadeira grandeza. Para o fazerem só com a ideia, esta tem de ser absolutamente extraordinária. Se a ideia não for assim tão extraordinária, terão de lhe acrescentar qualquer coisa, personagens, mensagem, worldbuilding, tratamento da linguagem, seja o que for. E se o que acrescentarem também não for assim tão extraordinário, terão de lhe acrescentar mais uma demão, e assim sucessivamente.

Sublinho, porque julgo ser necessário, que aqui os termos são quase inteiramente intermutáveis. Não importa qual das facetas se usa como exemplo, pois todas elas poderiam servir. Comecei pela ideia como poderia ter começado pelas personagens ou por qualquer outro dos eteceteras com que abri este texto. E só está ali o quase, as facetas só não são mesmo inteiramente intermutáveis, porque julgo haver algumas mais fundamentais do que outras, isto é, algumas cuja ausência, ou cuja presença abaixo de uma quantidade mínima, é capaz de estragar até as mais talentosas explorações das demais. Para mim, sem uma competência mínima no manejo da língua em que se escreve, por exemplo, nada resulta. Sem um mínimo de conteúdo, tudo é perda de tempo. E eis a resposta à pergunta que intitula este texto. O mais importante é o que é imprescindível, aquilo que, quando está ausente, faz com que o edifício desmorone. Para mim, essas coisas são a competência no uso da língua e o conteúdo. Sem isso presente, pelo menos até certo ponto, nada feito. Sem isso presente, nem vale a pena começar.

Para o leitor que sou, são essas as fundações da literatura que me interessa. Havendo esse mínimo de competência no uso da língua e esse mínimo de conteúdo pode-se então começar a adicionar outras coisas, a tornar o edifício cada vez mais alto e complexo. Personagens, mais competência no uso da língua, enredo, umas ideias espalhadas aqui e ali, mais competência no uso da língua, coisas mais imponderáveis, mais fantasmagóricas, mais subjetivas, como o sentido de maravilha, ritmo, descrições, mais competência no uso da língua, cenário e assim por diante. Por outras palavras, pode-se ir acrescentando qualidade global através de sucessivos incrementos em todas estas qualidades parcelares.

No extremo, chegamos à literatura ideal, aquela que me agrada mesmo. Esta possui tudo isto. Não só ideias, não só personagens, não só novidade, não só qualidade no manejo do português (ou seja de que língua for, entre aquelas que eu entendo), não só enredo, não só isto ou aquilo. Tudo. É raro, mas já tenho lido coisas assim. E, antes que perguntem, em vários géneros, incluindo aquele saco de gatos chamado mainstream literário.

Transignorâncias anteriores:

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Lido: Reencontro

Reencontro (bib.) é um conto curto de horror (ou algo assim) de Diogo Falcão que esteve bastante longe de me agradar. Começa logo por o texto propriamente dito não me convencer por completo. Não é mau, mas podia ser melhor, e tem alguns pormenores que beiram o ridículo. Um exemplo destes últimos, provavelmente o pior: às tantas alguém "baba-se pela boca". Pois por onde haveria de se babar?! Pelas orelhas?!

Acresce a isto uma história pouco firme, que começa como uma simples noite de copos para depois entrar numa espiral de criaturas malfazejas de uma forma que me pareceu bastante gratuita, até que para de repente. Mesmo de repente. Aquilo nem final em aberto é. Ainda virei a página para ver o que ainda aí viria, mas a página seguinte está em branco.

Enfim, achei este continho bastante fraco.

Conto anterior desta publicação:

Morella

Leituras de 2011

Em 2011, voltei a ler bastante menos do que costumava ser hábito em mim. O principal motivo para isso foi não ter lido praticamente nada durante os três primeiros meses do ano, mas também contribuiu ter tido entre mãos um número invulgarmente elevado de livros volumosos, incluindo dois com mais de 900 páginas cada. Mas mesmo assim, li mais do que há dois anos. Na verdade, tirando três anos que passei fora do país e tinha dificuldade em arranjar leituras em português, 2009 deve ser o ano em que menos li desde que me tornei leitor a sério, no início da adolescência.

Este ano, as leituras foram menos ecléticas do que no ano passado, com menos mainstream e muito mais fantasia. Mas vamos às listas.

Os livros propriamente ditos, lidos por lazer mas todos comentados na Lâmpada ao longo do ano, não passaram de 18 e, entre estes, 12 têm qualquer coisa de ficção científica. A lista completa é a seguinte:

1- O Livro das Configurações, de Mário Cabral (novela de fantasia mística);
2- O Jardim de Infância, de Geoff Ryman (romance de ficção científica);
3- O Homem que Perdeu o Cérebro, do Repórter X (contos de aventuras e mistério);
4- Una Luz en la Noche, de Daniel Mares (dois romances de ficção científica);
5- Golfinho de Júpiter, de Mary Rosenblum / Pela Sombra Morrerão, de Carla Ribeiro (uma novela de ficção científica e outra de horror);
6- Pago Para Esquecer, de Philip K. Dick (contos principalmente de ficção científica);
7- Novas Cosmicómicas, de Italo Calvino (contos surrealistas com toques de ficção científica);
8- O Lagarto do Âmbar, de Maria Estela Guedes (noveleta fantástica com toques de ficção científica);
9- E Outros Belos Contos de Natal, organizado por Miguel Neto (contos humorísticos, muitos deles fantásticos, sobre o Natal);
10- Imaginários 2, organizado por Tibor Moricz, Saint-Clair Stockler e Eric Novello (contos de fantasia, ficção científica e terror);
11- A Canção de Kali, de Dan Simmons (romance de horror);
12- Os Marcianos Divertem-se, de Fredric Brown (romance satírico de ficção científica);
13- O Homem que Via o Futuro, de Clifford D. Simak (contos de ficção científica);
14- Uma Récita do Roberto do Diabo, de Júlio César Machado (conto fantástico);
15- Darwinia, de Robert Charles Wilson (romance de ficção científica);
16- História de Portugal, Director's Cut, de Renato Carreira (livro de humor);
17- 15 Histórias de Ficção Científica, organizado por Bertrand Solet e Maria Adelaide Couto Viana (contos de ficção científica);
18- A Mão Esquerda das Trevas, de Ursula K. Le Guin (romance de ficção científica).

A acrescentar aos livros li também revistas, que funcionam praticamente como se fossem antologias periódicas e portanto também contam para o total. E já tinha dito isto no ano passado. São mais 4:

19- Ficções, nº 16 (contos mainstream e fantásticos);
20- Mundos, nº 1 (contos de ficção científica);
21- Asimov's, nº 325 (contos de ficção científica);
22- Samizdat, Especial 1 (contos de ficção científica).

Este ano, li vários livros por motivos laborais que, no entanto, não teria sido obrigatório ler. Refiro-me aos volumes já publicados de As Crónicas de Gelo e Fogo, que reli para voltar a entrar no mundo martiniano, antes de deitar mãos à nova tradução. Lembrar-me de como traduzi certas coisas, voltar ao ambiente de escrita e história, etc. São mais 8:

23- A Guerra dos Tronos, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica);
24- A Muralha de Gelo, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica);
25- A Fúria dos Reis, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica);
26- O Despertar da Magia, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica);
27- A Tormenta de Espadas, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica);
28- A Glória dos Traidores, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica);
29- O Festim dos Corvos, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica);
30- O Mar de Ferro, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica).

Por fim, e de novo tal como no ano passado, também li alguns livros por obrigação laboral, mas este ano foram só 2, ainda que ambos bem gordos. Na verdade, foram os dois livros mais extensos do ano. Ei-los:

31- A Dance with Dragons, de George R. R. Martin (romance de fantasia épica);
32- Fool's Fate, de Robin Hobb (romance de fantasia).

Este ano não me é tão fácil decidir o livro do ano como foi no ano passado. Tirando destas contas as minhas traduções (aí, A Glória dos Traidores destaca-se), tenho um trio de livros de que gostei particularmente: A Canção de Kali, A Mão Esquerda das Trevas e A Dance With Dragons. Não foram muitos mais os que me agradaram mais do que a média; nisso, o ano não foi famoso, até por causa da relativa escassez da escolha, mas posso citar o Darwinia, as Novas Cosmicómicas e Os Marcianos Divertem-se. Provavelmente por esta ordem.

Quanto aos piores do ano, houve dois que se destacaram dos demais: O Livro das Configurações e O Lagarto do Âmbar. Somando-se a estes dois o nº 1 do Mundos, fico com um triozinho de leituras que me desagradaram bastante, seguido de não muito longe pelo Samizdat, Especial 1.

E é isso. Para o ano, provavelmente, haverá mais.

Lido: A Mão Esquerda das Trevas

A Mão Esquerda das Trevas (bib.) é um magnífico romance de ficção científica de Ursula K. Le Guin. Pertencente à série Hainish, conjunto de histórias independentes, unidas por terem lugar no mesmo universo ficcional, e à qual pertence também um dos meus livros favoritos seja de que género for, Os Despojados, este romance planetário ambienta-se num planeta remoto e frio (adequadamente apelidado de Inverno), no qual se desenvolveu um ramo da Humanidade com uma característica única: a divisão entre sexos não existe. Em vez de serem durante uma vida inteira homens ou mulheres, como é hábito, os indivíduos passam a maior parte do tempo como seres andróginos e assexuados, um pouco como as crianças, entrando de vez em quando numa espécie de cio, o kemmer, durante o qual se tornam muito mais subjugados pela motivação sexual do que nós. Durante esse período, um dos parceiros desenvolve características de um dos sexos e induz no outro as características do sexo oposto, permitindo-se assim a reprodução.

Ao planeta que serve de cenário chega um emissário dos mundos unidos no Ecuménio, uma espécie de confederação comercial e filosófica de planetas humanos, a fim de avaliar a capacidade e a vontade dos povos de Inverno virem a aderir a essa confederação. Emissário esse que é, está bom de ver-se, um humano como nós. Ou seja: uma aberração aos olhos dos habitantes de Inverno.

Com este material de base, Ursula Le Guin constrói uma fascinante especulação sociológica sobre como se desenvolveria uma (ou várias) sociedade sem ter subjacente a dicotomia de género que domina as nossas, e como essas sociedades encarariam o súbito desafio que é tomar consciência de que lá fora, entre as estrelas, existem dezenas de planetas ocupados por uma humanidade diferente da sua. Para isso, conta a história quer através dos olhos do emissário, quer através dos de um seu aliado local, que quando o romance começa ocupa um alto cargo no governo de uma das principais protonações do planeta mas rapidamente cai em desgraça e é obrigado a exilar-se.

É também uma história de descoberta dos limites da humanidade, do substrato comum que une esses dois homens (o emissário pensa no seu aliado como homem, embora este só o seja no sentido de "membro da espécie humana") apesar das suas diferenças. E também é uma história de sobrevivência, pois boa parte do fim do romance conta a longa travessia de um dos grandes glaciares do planeta que os dois amigos fazem depois do exílio não ter corrido lá muito bem.

A Mão Esquerda das Trevas é um livro e peras, de uma época em que ainda se conseguia contar uma história complexa e inteligente em menos de 300 páginas. Muito bom.

Este livro foi comprado.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Lido: Para Leste

Para Leste (bib.) é um conto curto de Bruce Holland Rogers que descreve uma viagem que uma família faz para leste, no carro, depois do último negócio do pai ter ido à falência. Trata-se de um conto quintessencialmente americano, um daqueles contos de estrada que há tanto tempo permanecem na psique americana e até chegaram várias vezes ao cinema. O mais curioso nestas histórias é muitas vezes o contraponto e o contraste entre o intimismo dos pequenos mundos que rodeiam os viajantes e a vastidão das paisagens por onde esses pequenos mundos nómadas vão passando. Isso existe neste conto, mas também nele existe algo que me fez lembrar agudamente dos contos americanos de Ray Bradbury: poesia. Uma poesia contida, mais presente nos gestos do que nas palavras com que esses gestos nos são revelados, mas muito real. Para ela contribui que a história seja contada sob o ponto de vista do filho do casal, na primeira pessoa, um filho que já é suficientemente velho para se aperceber do que implica a família ficar sem meios de subsistência, mas ainda suficientemente novo para ficar empolgado com a aventura que a viagem traz consigo. É um belo conto, sim senhor.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Lido: A Extinção das Espécies

A Extinção das Espécies (bib.) é uma noveleta retrofuturista de Carlos Orsi que acompanha a viagem de um certo e determinado jovem cavalheiro, nunca nomeado mas inglês, a bordo de um navio chamado Beagle, ao longo da costa oriental da América do Sul, com escalas no Brasil e na Argentina. Já sabem quem é? Claro: Charles Darwin. Porém, ao contrário do que aconteceu com o "nosso" Charles Darwin, este não se deixa seduzir pelas espantosas adaptações dos animais e plantas ao seu meio, antes mergulha a sua insaciável curiosidade na análise de uns curiosos autómatos auto-replicantes, com os quais toma contacto pela primeira vez no Rio de Janeiro mas cujo potencial só compreende por completo quando chega à Patagónia argentina. Máquinas prodigiosas, que obtém a energia que as alimenta diretamente do sol através da exploração de um tal "efeito Waldman-Ingolstadt", que retira do nosso astro uma tal "vis viva" que pode ser transformada com grande eficiência em eletricidade. Com base nisto, Orsi desenvolve uma história muito bem construída e cheia de referências, que especula sobre as utilizações e consequências do desenvolvimento de nanotecnologia autorreplicante antes mesmo de ter sido criada uma teoria evolucionária para os seres vivos. Mais: embora esta noveleta seja inteiramente satisfatória enquanto história independente, abre portas para a criação de histórias adicionais no rico universo ficcional que delineia.

Dá para ver que gostei muito desta noveleta? Pois gostei, sim senhor. Achei-a excelente. Entre a melhor ficção curta que li no ano passado.

Lido: 15 Histórias de Ficção Científica

15 Histórias de Ficção Científica (bib.) é um livro já velhote, pertencente a uma coleção juvenil da Verbo que reunia em cada livro 15 pequenas histórias, ficcionais ou não, sobre um tema comum. Aqui, o tema é a ficção científica, ainda que com um pendor fortemente francófono, uma vez que se trata de uma adaptação de uma coletânea francesa, e também bastante mais dedicada à proto-ficção científica, do início do século XX e do século XIX, principalmente, mas também contendo um texto que nos chegou daqueles tempos antigos em que Roma era a grande superpotência do planeta. Também é, em grande medida, uma antologia destinada a abrir o apetite dos jovens para outras coisas. Atesta-o a grande percentagem de excertos de romances que contém, devidamente identificados com a obra de que foram extraídos, como que a dizer "vá, meu jovem, agora vai à procura do resto."

E posso dizer que, mesmo passados todos estes anos, e mesmo tendo já lido a maioria dos livros de onde foram retirados os excertos, a tática continuou a mostrar-se eficaz. Apeteceu-me reler alguns e sobre outros, que nunca li, fiquei curioso.

Provavelmente deviam continuar a fazer-se edições como esta hoje em dia. Talvez fosse uma boa maneira de voltar a criar público para a FC, desde tenra idade.

Outra forma de encarar este livro é como uma boa introdução, não à FC como um todo, mas àquela literatura que lhe serviu de raiz. Porque inclui os "papás" Wells e Verne, porque inclui outros autores antigos. E porque a maioria dos bons textos da antologia pertence justamente a estes autores. Os fracos, que também existem, pertencem invariavelmente a autores mais recentes. Da nossa FC é que o leitor fica apenas com uma pálida ideia. O conto português que vem incluído, da Natália Correia, mais ou menos contemporâneo à edição, talvez seja representativo da FC que se fazia na época em Portugal, mas pouco ou nada tem a ver com os trabalhos mais recentes, dada a tradicional amnésia geracional de que a nossa FC sempre padeceu.

Em suma, quem procura FC moderna não a encontra aqui, obviamente. Mesmo quem procura a FC da época em que este livro foi editado pouca encontra, e a que encontra está muitos furos abaixo da melhor. Mas o livro não deixa de ter o seu interesse, principalmente histórico.

Eis o que achei dos 15 textos:
Este livro foi comprado em segunda mão.