quinta-feira, 31 de março de 2016

Lido: Tlön, Uqbar, Orbis Tertius

Tlön, Uqbar, Orbis Tertius (bibliografia) é um conto de Jorge Luis Borges, com um certo cheirinho a ficção científica, parcialmente sobre substituição de universos. Trata-se de uma história pseudofactual, na qual entra como personagem o amigo de Borges, Bioy Casares, e que conta como eles os dois, juntos, descobrem uma estranha entrada enciclopédica, referente ao país de Uqbar... que só existe no volume da enciclopédia pertencente a Casares. Com a curiosidade desperta pelo insólito caso, os dois põem-se a investigar o mistério de Uqbar, a que depressa se soma um segundo mistério, o de Tlön, que já não surge numa mera entrada enciclopédica mas descrito numa enciclopédia inteira, resumida no conto de forma breve mas suficiente para se perceber com clareza o seu caráter plenamente absurdo. As explicações sobre como tais livros ou partes de livro ganharam existência compõem uma parte do conto, o qual acaba em plena metaliteratura, o que neste caso equivale a dizer em plena mistura entre realidade e ficção. Curiosa coincidência: Começos, conto lido há muito pouco tempo, parece dialogar com este conto de Borges.

Trata-se de um conto cerebral, dotado de uma dose significativa de ironia, até política. Uma construção intelectual pura. E sim, é um conto muitíssimo bom.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Lido: Deleituras

Deleituras, conto de estreia de Óscar de Sá, é um daqueles contos simpáticos, escritos por apaixonados pela leitura para outros apaixonados pela leitura. Neste caso, trata a história de como uma prostituta portuense, tão bronca e inculta como o cliché manda, acolhe um cliente regular, pobretanas, que cisma que lhe dá de pagar os serviços com livros. E ela, em parte pensando vendê-los mais tarde, em parte sabe-se lá porquê, aceita. E depois de aceitar torna-se leitora, e de leitora acaba com tamanha paixão por livros e um vocabulário tão rico que até já troca insultos mais espinhudos por expressões como "néscio de merda" ou "oblato."

O conto é simpático, como digo acima, e está muito bem para um estreante. Mas também o achei demasiado óbvio, com demasiados chavões, tanto no ambiente chulo como nas personagens, como no velhíssimo chavão de apresentar o livro como coisa mágica, capaz de redimir todos os irredimíveis, demasiado inverosímil, até, para realmente gostar dele. Um conto que poderia perfeitamente ter sido escrito há quarenta, cinquenta, sessenta anos ou mais. Um conto, em suma, muitos furos abaixo do que é costume encontrar-se na Ficções. Não um mau conto; um conto que até é, repito, bom para conto de estreia. Mas um conto insatisfatório.

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sábado, 26 de março de 2016

Lido: O Homem dos Sonhos

O Homem dos Sonhos (bibliografia) é mais um conto fantástico de Mário de Sá-Carneiro que, dominando nele o autor a tendência para florear em demasia a prosa que mostrou em contos anteriores, volta a ser francamente bom. De novo escrito em primeira pessoa por um narrador que depara com personagens curiosas no decorrer da vida, um narrador intelectual da alta burguesia ociosa que vagueia pelos ambientes cosmopolitas das capitais europeias e sempre seguido de perto pela depressão, desta feita o protagonista é um homem que o narrador conhece em Paris, de que nunca chega a saber o nome mas que julga ser russo, e que o assombra pela extravagância de se mostrar genuinamente feliz. A explicação para tal felicidade, depressa acabamos por saber, é não ser deste mundo. Não o ser propriamente, pelo menos.

O exercício que Sá-Carneiro aqui faz é bastante interessante, ponto em contraponto o mundo real e o mundo onírico e imaginando que alguém tem a capacidade de os fundir, de viver num e sonhar o outro ou vice-versa, independentemente de qual seja qual. Ou quase. E fá-lo muito bem, com ritmo, com as frases de efeito poético que tão abundantemente usa em outros textos (a ponto de os dominar; a ponto de os quase destruir) dominadas, usadas a preceito e nos lugares certos, sem nunca lhe fugirem do controlo. Assim, sim. Esta é uma história bem contada, bem escrita, com uma boa ideia (uma ideia de escritor, se me entendem a entrelinha) bem desenvolvida. Como não gostar?

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Lido: Raposinha Gaiteira

Raposinha Gaiteira é, claro, mais uma história popular cuja protagonista é uma raposa. Trata-se de uma fábula que conta uma história de enganos na qual a raposa, claro, é a representação da astúcia e da inteligência manhosa e o lobo, seu compadre, é a vítima que cai sempre nas matreirices da raposa. O curioso aqui é que a raposa também começa por ser vítima de um engano, perpetrado por um outro compadre seu, um grou, que depois como que despoleta não só a vingança como todas as outras manigâncias que se seguem. Uma historinha curiosa, sem quase nada de lengalenga e, no contexto das histórias incluídas no livro até aqui, invulgarmente bem estruturada.

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segunda-feira, 21 de março de 2016

Lido: Relatório Sobre a Probabilidade A

Relatório Sobre a Probabilidade A (bibliografia) é um bizarríssimo romance de ficção científica de Brian Aldiss. Ou algo de parecido.

Porque chamar-lhe romance pode ser esticar o termo um pouco além do seu alcance. Este Relatório é, de facto, um relatório. Relata com minúcia obsessiva e bastante repetitiva o que vai fazendo um tal G, cuja vida é observar discretamente o que se vai passando numa banalíssima e mui britânica casa e suas redondezas. Tudo, cada objeto, cada personagem, cada movimento, é descrito com todos os detalhes. Só G. não. G. é uma inicial e um par de olhos e uma vida absurda, pouco mais.

Esta descrição obsessiva, que viola sistematicamente todas as regras que os miúdos aprendem nas oficinas de escrita criativa, depressa ganha novos níveis, quando nos apercebemos de que G., o observador, está por sua vez a ser observado o que, de resto, explica a existência do relatório. É o relatório da observação de G. e do universo em que ele se insere, ou pelo menos da parte deste que está visível para quem produz o relatório, através de alguma espécie de janela interdimensional mal compreendida.

E novas camadas surgem quando se sabe que por sua vez essas pessoas, se é que de pessoas se trata verdadeiramente, estão a ser observadas por outras pessoas (?) em outro universo, subtilmente diferente dos anteriores, e estas por outras, e por aí fora sugerindo-se, mas sem o afirmar taxativamente, uma infinidade de universos contidos uns nos outros, uma espécie de interminável cebola de universos, e interligados por janelas de observação.

Porém, esta sucessão de observadores, sendo embora o tema principal deste livro (o que está adequadamente espelhado na capa), ocupa relativamente poucas páginas. Talvez pudesse ocupar mais, deixando um pouco mais de lado o bendito relatório, que consegue ser muitíssimo maçudo. Embora inteligente, não é leitura fácil e leve, esta. Exige paciência, e a verdade é que ao chegar o fim do livro não me senti lá muito recompensado pela paciência. Fiquei mesmo com a sensação de ter sido alvo de uma elaborada partida, de que Aldiss se estaria a rir baixinho, trocista, atrás de uma cortina. De que este Relatório Sobre a Probabilidade A, no fundo, terá sido um grande gozo, apesar de ter subjacente uma ideia bastante válida, filosófica, psicológica e até politicamente. De que Aldiss se terá sentado um belo dia à frente da máquina de escrever ou do papel e pensado, entre gargalhadinhas de gozo antecipado: "Ora bem, vamos lá agora a ver qual é o livro mais chato que consigo escrever e ainda ser lido."

Sim, acho que Aldiss enquanto troll explica muito deste livro. Não é preciso ter grande imaginação para arranjar outras formas bem mais interessantes de vincar as mesmas ideias que este livro vinca. E eu só posso tirar-lhe o chapéu. Sim senhor, caro Brian, conseguiste. Escreveste mesmo um livro chatíssimo e conseguiste mesmo arrastá-lo durante cerca de 150 páginas na maior parte das edições (esta, de letras miudinhas e páginas largas, tem menos umas 30). E eu li-o de fio a pavio. Eu e mais uma porção de gente. E queres saber? Até gostei dele, mais ou menos. Não muito, mas, eh pá, um bocado.

Muito bem. Recebe os meus parabéns.

Mas acho que é preciso ter-se um sentido de humor retorcido para se ler este livro e realmente gostar dele. Não é, de forma alguma, livro adequado a toda a gente. É livro para uma minoria de leitores razoavelmente desaparafusados da cabeça. No mínimo tanto quanto eu, mas desejavelmente mais. Portanto, em termos de recomendações, só posso dizer: "Não bates bem? Então é possível que gostes. Mas estás por tua conta; eu não assumo quaisquer responsabilidades."

Terão de se contentar com isso.

Este livro foi comprado.

Lido: Lixão

Lixão é um microconto de quatro frases de Luiz Bras, entre a ficção científica e o horror, sobre o que acontece quando um homem (ou mulher, que também o pode ser) cai numa fossa futurística, possivelmente inspirada pelo compactador de lixo do primeiro filme de Star Wars. É um continho curioso, mas não me satisfez, em parte por ter demasiado presente essa referência. Mas só em parte, pois é cada vez mais raro o microconto que o faz.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Começos

Começos é um interessante e muito surreal conto metaliterário de Robert Coover, do qual nunca tinha lido nada. É americano. Trata-se de um daqueles contos muito conscientes de serem literatura, o que pode ser catastrófico, em especial quando se levam demasiado a sério. Mas neste caso não é, longe disso, pois este conto é dos que se levam a sério não levando, ou não levam levando, pois os paradoxos, a forma como a literatura que o protagonista escreve se interliga com a literatura que o protagonista vive na literatura que o autor escreve, são aquilo que lhe dá vida. Ah, sim, e o humor. Doses pesadas de leveza humorística, por vezes sombria (o conto começa com a informação de que o protagonista/autor "para poder começar foi viver sozinho para uma ilha e matou-se a tiro"), outras mais límpida, a qual, ligada a outras formas de apresentar o inesperado, vão levando quem lê, levemente, páginas fora. Acho provável que vocês não estejam a perceber nada do que estou aqui a dizer, o que também tem o seu quê de paradoxal, porque se lessem o conto perceberiam, mas se o lessem aquilo que aqui escrevo tornar-se-ia plenamente inútil. Sim, estou a sorrir.

E sim, gostei desta história, embora pouco nela seja história. Talvez por eu próprio também escrever, coisas diferentes, e por isso saber umas coisas sobre os começos em literatura. É esse o tema base: os começos em literatura. De tal forma que não seria estranho que alguém dissesse que esta história é composta por começos, mesmo quando o seu tema é a condição do escritor. Porque também é. Confusos?

Ainda bem. Já perceberam tudo.

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sábado, 19 de março de 2016

Lido: Mistério

Mistério (bibliografia) é mais um conto fantástico de Mário de Sá-Carneiro que não me agradou muito porque, embora atenuados, tem muitos dos defeitos que encontrei em A Grande Sombra. É certo que não há neste conto tanto exagero de literatura como na novela que o antecede, mas também aqui existe um burilamento excessivo, demasiado preocupado com o efeito das frases e imagens e ignorando em grande medida o todo. A melhor forma que encontro para descrever a sensação que me causam estas histórias demasiado cheias de texto é sentir-me perante um bosque que o escritor promete construir mas, em vez de o povoar de árvores, detém-se a esculpir e a pintar detalhadamente um ramo de flores aqui, outro ali, deixando no final as flores com o máximo detalhe e as árvores apenas esboçadas.

E não há também nele uma tão longa e tão arrastada descrição dos estados de alma do protagonista como em A Grande Sombra, mas essa forma de umbiguismo descritivo também aqui se faz sentir. Tal como também existem outras características comuns à história anterior e a outras, características essas que já não encaro como defeitos: o protagonista é um artista ocioso e solitário, a loucura e as ideias suicidas nunca andam muito distantes, há sugestões razoavelmente sólidas de atração homossexual, ainda que ilibada pela descoberta de uma rapariga ideal, e a história desenrola-se em registo realista quase até ao fim, só assumindo contornos fantásticos no desfecho ou perto dele. É aqui que aparece o mistério a que o título faz referência, claramente inspirado pelo conceito romântico do amor perfeito enquanto fusão de duas almas gémeas, que Sá-Carneiro leva às últimas consequências. Sem grande surpresa, foi o desfecho a parte que mais me agradou no conto que, globalmente, achei apenas razoável.

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sexta-feira, 18 de março de 2016

Lido: A Raposa e o Lobo

A Raposa e o Lobo é uma historinha popular um pouco estranha porque parece mais uma amálgama de episódios de histórias diferentes do que uma história propriamente dita. Apesar de ter unidade no sentido de ser contada em tom de fábula e ter por protagonistas uma raposa e um lobo, há nela uma certa incoerência, como se juntasse em si várias fábulas diferentes, construídas à volta da raposa e do lobo (ou só da raposa, ou só do lobo).

Por outro lado, é das histórias mais desenvolvidas que constam do livro até agora, afastando-se declaradamente da lengalenga a que muitas das demais se remetem, ao mesmo tempo que mostra, de novo, potencial para o horror e um forte pendor iconoclasta e irónico. Não é a primeira destas histórias a fazê-lo e desconfio que não será, nem de perto, a última.

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terça-feira, 8 de março de 2016

Os números das mulheres do fantástico

Os números contam muitas histórias, embora seja conveniente saber lê-los para que as histórias que contam sejam verdadeiramente compreendidas. É de números que se faz a ciência, ainda que não toda a ciência (mas cada vez mais), e os números também são fundamentais para quando queremos pensar a sério em outras áreas da vida humana.

Recentemente, tem havido por este mundo fora, mas muito em particular, pela virulência utilizada, nos Estados Unidos, quem defenda que já não é preciso maior promoção da participação feminina no âmbito da literatura fantástica, quando não dizem mesmo que já se foi longe de mais, que já está tudo despido de "virilidade" e entregue a "mariquices". Isto ouve-se mais nos EUA, mas também se ouve noutras latitudes, inclusive, por vezes, nas de língua portuguesa. O Brasil, sim, mas também Portugal.

Para contrapor a essas ideias usam-se com frequência números. Porque os números, só por si, as destroem. E eu tenho, no Bibliowiki, uma ótima fonte de números. Querem ver?

Neste momento estão listados no Bibliowiki um total de 3930 autores de ficção científica, fantasia, horror e outras vertentes da literatura fantástica publicados em língua portuguesa. Ainda faltam muitos, é certo, mas a amostra é grande e tudo indica que representativa. Sabem quantos desses autores são mulheres? 939. Cerca de um quarto do total.

(Curiosamente, no momento em que escrevo estas linhas, há exatamente o mesmo número de tradutores e de tradutoras: 658. A minha profissão é igualitária, mas isso não apaga a desproporção nos outros números.)

Mas há contas ainda mais interessantes.

Quem leu livros como O Homem Invisível ou histórias como O Homem que Vendeu a Lua está habituado a títulos iniciados com "O Homem Que" ou "O Homem," que são um reflexo óbvio do género que protagoniza as histórias. Esses títulos são muito comuns na literatura fantástica em geral e na de ficção científica em particular, e o Bibliowiki tem neste momento um total de 214 páginas que começam por "O Homem".

Sabem quantas começam com "A Mulher"?

Não fazem uma ideiazinha?

OK, eu digo.

São 23.

Sim. Vinte e três.

Com números destes nas mãos, quem poderá em sã consciência defender que já se fez tudo o que há para fazer pela igualdade de género no âmbito da literatura fantástica?

E sim, é verdade, nem tudo é responsabilidade dos homens. A menor participação feminina é um facto, e o Infinitamente Improvável que o diga. Mas, francamente, temos no mínimo dos mínimos a responsabilidade de não apregoar disparates. Sim, nós, os homens, continuamos a ser grandemente dominantes no género, o que é tanto mais bizarro quanto é bastante evidente que elas leem mais do que nós (basta olhar para o Goodreads) e sim, há ainda muito a fazer para se começar a equilibrar as coisas. Assumamos isso de uma vez por todas com total clareza.

Até porque bebés chorões de um metro e setenta, que berram que lhes estão a roubar os brinquedos, não merecem o respeito de ninguém.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Lido: Os Homens Preferem as Mais Jovens

Os Homens Preferem as Mais Jovens é uma deliciosa historinha de ficção científica que conta, mirabolantemente, diria mesmo rocambolescamente, o que acontece quando um viajante do tempo farto da vida decide voltar atrás no tempo para assassinar a mãe antes de o dar à luz, coisa que a mulher, horrorizada, tenta por todos os meios impedir. E tudo acaba num gigantesco nó, como não poderia deixar de ser. Gigantesco e não só: também muitíssimo divertido.

Com pouco mais de uma página, esta história tem tudo o que uma história de viagens no tempo deve ter, a começar pelos paradoxos, e ainda uma valente dose de bom humor. De se tirar o chapéu.

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domingo, 6 de março de 2016

Lido: Existe um Homem que Tem o Costume de me Dar com um Guarda-Chuva na Cabeça

Existe um Homem que Tem o Costume de me Dar com um Guarda-Chuva na Cabeça, de Fernando Sorrentino, é um daqueles contos cujo título diz quase tudo. É narrado em primeira pessoa por um homem que conta como outro lhe apareceu um dia na vida para lhe dar pancadas na cabeça com um guarda-chuva, sem ser possível demovê-lo ou impedi-lo de o fazer, de noite ou de dia, fizesse chuva, fizesse sol, nevasse ou ventasse, nas situações mais públicas ou na maior das intimidades. Divertido e insólito, este é um conto de um imaginativo surrealismo e a primeira incursão pelo fantástico que se encontra neste número da Ficções. E, sendo bastante curto, também tem a extensão certa: como é daqueles contos que se esgotam na ideia, dificilmente manteria o interesse se se prolongasse por mais páginas, a menos, claro, que outras ideias se viessem somar a esta. Não creio que esteja aqui uma obra-prima, nem nada do género, mas é um conto divertido e bem concebido, portanto está aprovado.

Contos anteriores desta publicação:

sábado, 5 de março de 2016

Lido: Lisboa no Ano 2000

Lisboa no Ano 2000 (bibliografia) é uma antologia de ficção científica organizada por João Barreiros, mas não uma antologia como as outras. Normalmente, quando se pensa numa compilação de contos de vários autores, pensa-se em contos isolados ou englobados de uma forma mais ou menos coerente num tema genérico. Aqui, a ideia é outra. Aqui, a ideia é a construção de um universo partilhado, dentro do qual os autores desenvolvem as suas ficções.

Não é inédito, claro. Não só tem antecedentes lá fora, como já tínhamos exemplos na ficção científica de língua portuguesa, entre os quais se destaca o projeto Intempol, idealizado por Octavio Aragão. Mas em Portugal, que eu saiba, é a primeira vez que se faz algo do género e o resultado é francamente bom.

Aqui, o fulcro é uma ideia do João Barreiros, que pegou nas especulações futuristas de vários autores da viragem do século XIX para o XX, que imaginavam futuros dominados pela tecnologia de ponta do tempo, a eletricidade, temperou-a com doses generosas das suas obsessões literárias, tirou o chapéu, a boina, o barrete e o capachinho a Nicola Tesla, enquanto lhe fazia uma profundíssima vénia, misturou tudo com outras ideias meio espiritualistas, muito em voga entre finais de oitocentos e inícios de novecentos, e criou um universo ficcional sólido o suficiente para servir de alicerce para outros autores nele e com ele brincarem.

E eles fizeram-no em geral bem, criando — não que a competição seja muita — o melhor livro retrofuturista português.

Retroquê, perguntam? Retrofuturista. É uma forma de ficção científica que reimagina passados, presentes ou futuros possíveis (ou nem tanto) se a evolução tecnológica tivesse seguido caminhos diferentes daqueles que seguiu no mundo real. E subdivide-se numa profusão de subgéneros. Ficções em que a forma dominante de maquinaria funciona a vapor (e/ou, funciona segundo os princípios e/ou a estética dominantes na época do vapor) são ficções steampunk; ficções inspiradas pela era atómica chamam-se atompunk, e por aí fora.

Aqui, temos um presente (bem... um passado próximo) alternativo em que, espiritualismo à parte, tudo tem inspiração nos aparelhos elétricos dos pioneiros do aproveitamento da energia elétrica para uso humano. Ou seja, tudo isto é retrofuturismo eletropunk tingido de horror.

Ao longo de vários anos, fui dizendo que a melhor antologia de ficção científica e fantástico escrita originalmente em português que eu conhecia era a Por Universos Nunca Dantes Navegados, justificando a opinião com a inexistência nela de maus contos, coisa demasiado rara nas nossas antologias, e com o equilíbrio na qualidade das histórias. Com a publicação de Vaporpunk, a Universos perdeu o Brasil mas manteve-se dominante em Portugal. Teve um abanão quando saiu Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa mas resistiu porque, embora esta seja francamente boa enquanto trabalho de edição, a qualidade de demasiados dos seus contos deixa bastante a desejar. Mas não resistiu a Lisboa no Ano 2000.

Porque Lisboa no Ano 2000 também não tem contos maus. Porque tem uma mancheia de contos bons ou muito bons. Porque os melhores são de melhor qualidade média do que os melhores da Universos. Porque, ao contrário da Universos, Lisboa no Ano 2000 é mais do que a mera soma das histórias que a compõem.

Lisboa no Ano 2000 é um livro bastante bom. Mesmo que algumas destas histórias mostrem falhas, mesmo que alguns dos autores estejam ainda bastante verdes, ombreando com outros muito mais experientes e com muito maior domínio de todos os aspetos da arte de contar histórias, há um patamar mínimo de qualidade que está sempre presente, há uma estrutura que ajuda a disfarçar ou pelo menos a apoiar fragilidades e há algo que está ausente de quase todas as antologias que eu já li: a sensação de que restam ainda muito mais histórias para contar no complexo mundo aqui criado. Também isso é bom.

E como, mesmo sendo maior que as partes, a antologia não deixa de as ter, eis o que achei dos contos individualmente considerados:
Este livro foi comprado.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Lido: A Grande Sombra

A Grande Sombra (bibliografia), mais uma novela fantástica de Mário de Sá-Carneiro, regressa a algumas das suas obsessões. Tem aspetos bastante interessantes, mas eles são subjugados por algumas características que fazem com que este seja, na minha opinião, o pior dos textos de Sá-Carneiro lidos até este ponto, excetuando apenas algumas das curtíssimas experiências iniciais.

A história é mais uma vez contada de forma diarística, pela pena de um homem que descreve o que de mais importante vai acontecendo na sua vida e, longamente, muito longamente, o que vai na sua mente. Esse é um dos problemas desta história: durante longuíssimas páginas ela, a história, não existe; há apenas as ruminações plenas de umbigo de um homem quase absolutamente centrado em si mesmo, presunçoso, e repleto de ennui (tem mesmo de ser assim em francês) burguês. Só começa a haver história propriamente dita quando ele comete um homicídio... e isso acontece à página 27 de um texto que, nesta edição, ocupa 51 páginas. Até aí...

Bem, até aí vão acontecendo algumas coisas, é certo. Mas são coisas desconexas, rápidas descrições de uma ou outra cena cujo único interesse reside em ajudar a caracterizar o estado de espírito (muito pouco são, como facilmente se imagina) do protagonista e servir de pretexto para uma elaboração e poetização da prosa que sobrepõe, de uma forma que chega a ser agressiva, a frase de efeito poético, tantas vezes pouco ou nada densa em substância, a alguma espécie de enredo. E esse é outro problema, e bastante grave. De facto, aqui Sá-Carneiro comete quase todos os pecados que caem dentro da definição anglo-saxónica de purple prose, um domínio total, hiperadjetivado, floreadíssimo, da forma sobre o conteúdo. E ainda por cima de uma forma francamente desagradável para a minha sensibilidade literária.

De resto, voltamos às obsessões mórbidas, à loucura e a uma certa fluidez de sexualidade, ou pelo menos de atração, que já estavam patentes em muitas (a morbidez, a loucura) ou em algumas (as sugestões de homossexualidade) das histórias anteriores. Após o assassínio de uma mulher que o atraíra, durante um ato sexual, o protagonista e narrador surpreende-se por se achar livre de suspeitas em vez de preso e condenado pelo crime, e isso revigora-o. Mas mais tarde conhece um homem misterioso e sente-se misteriosamente atraído por ele, passando a acompanhá-lo para todo o lado até chegar à conclusão de que o homem que o atrai e a mulher que matara estão interligados (ou até que de certa forma se fundem) de uma forma enigmática. Fantástica.

Essa é das coisas mais interessantes nesta novela, mas não a mais interessante. Creio que essa taça terá de ser entregue a um recurso estilístico de que Sá-Carneiro aqui se serve de uma forma surpreendente, embora não tão eficaz como poderia ser sem o excesso de poetização do texto. É que muitos são os sentimentos, os atos, os pensamentos, que vêm associados a cores, o que resulta num texto muito sinestético e cria imagens no mínimo intrigantes e ocasionalmente bastante fortes.

Em todo o caso, esses pontos de interesse não chegam. Os defeitos desta novela são demasiado pesados. Não consigo sequer achá-la razoável.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 3 de março de 2016

E então? Que me aconselham?

Ora bem, despachadas as opiniões sobre os álbuns de BD que li no ano passado (estão aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui, para quem ainda não as tinha visto), e sabendo umas coisas sobre a minha relação com a BD ao longo dos anos, estando portanto razoavelmente bem cientes dos meus gostos, digam-me lá: o que me recomendam que arranje e leia a seguir?

É escusado recomendarem este cavalheiro aqui ao lado, claro; ele é a base da minha fraca bedefilia. Também não adianta muito recomendarem-me o que conheço melhor, Tintim, Lucky Luke, essas coisas. Também não vale a pena virem-me aconselhar Marvel ou DC, que super-heróis com as cuecas por cima das fatiotas não são, decididamente, material que me encha as medidas. Mas e fora isso? O que há por aí que me possa surpreender pela positiva e, idealmente, que seja mais ou menos fácil de encontrar?

Sim, que depois da surpresa globalmente tão positiva que foi a minha experiência com a BD no ano passado, e depois de ter descoberto que a BD é o antídoto ideal para aquelas alturas em que o cansaço do texto corrido é tanto que não apetece ler uma página (coisa que acontece de vez em quando a quem trabalha com texto, suponho; às tantas satura. Pelo menos eu sofro disso) quero continuar a ler BD e a descobrir coisas. Mas quais?

Fãs de BD, sintam-se desafiados. A caixa de comentários é vossa.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Lido: Sharaz-De

Sharaz-De é um assombro. Sim, eu sei que ao longo destas opiniões sobre os álbuns de BD da Levoir que comprei (não comprei a coleção completa; este é o último) fui dizendo e repetindo que não me sentia avalizado para opinar mais detalhadamente sobre a parte gráfica da coisa, mas este álbum de Sergio Toppi torna completamente impossível não o fazer. Porque ele é, sobretudo, grafismo. E que grafismo, caramba!

Mas vamos voltar um pouco atrás.

Sharaz-De é uma compilação de onze histórias retiradas das Mil e Uma Noites, e Sharaz-De, a Sherazade de Toppi, é quem as conta ao seu rei cruel, salvando-se assim noite após noite. Histórias fantásticas, quase todas, cheias de magia, de djinns, de gigantes e de uma espécie crudelíssima de justiça, o tipo impiedoso de justiça que prevalece em terras e tempos impiedosos.

As histórias têm um fascínio muito próprio, o que não é de espantar sendo como são as 1001 Noites a mais célebre obra literária proveniente da cultura árabe. Mas Toppi soma a esse fascínio uma arte a que só posso chamar deslumbrante. Quase sempre em página inteira, pouco ligando à tradição da banda desenhada que manda dividir as páginas em quadrados e retângulos, contendo cada qual a sua cena (na verdade, quando usa os típicos quadrinhos da BD rara é a ocasião em que a cena neles contida não os extravasa, ligando-os aos outros ou a alguma cena de fundo), umas vezes a cores, outras a preto e branco, Toppi cria um luxo de livro que é uma delícia para os olhos.

Não sei quão inovador é isto, esta espécie de transformação de um álbum de BD num livro de ilustrações por vezes quebradas em quadros e ocasionalmente acompanhadas por um ou outro balão. O texto introdutório, infelizmente, não ajuda a ficar a saber. Não sei se tem percursores, se tem outros cultores, anteriores ou posteriores, se tem resultados ainda melhores. Mas sei que cada uma destas imagens me fascinou, mais até, muito mais até, do que o texto das histórias que, de resto, acompanham na perfeição. Acompanham? Não, a palavra não é essa. A palavra é interligam, pois palavra e imagem entretecem-se de uma forma que também me pareceu rara.

Eu já disse várias vezes, e repito, que pouco percebo de BD. Mas achei este livro absolutamente soberbo. Que belíssima compra!

terça-feira, 1 de março de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Marshall Ryan Maresca

Marshall Ryan Maresca está presente nesta antologia com um só conto, intitulado

Jump the Black. Trata-se de um conto muito interessante de ficção científica que, como a boa FC muitas vezes faz, está profundamente enraizado nos acontecimentos e preocupações do tempo de todos nós e do espaço que o autor habita. Fazendo lembrar alguns dos contos do nosso João Barreiros, mostra-nos uma Terra futura, após o contacto com inteligências alienígenas e por isso repleta de alienígenas de várias espécies. Maresca situa a sua história algures nos Estados Unidos do nosso tempo, ou pelo menos faz o seu protagonista ter vivido por algum tempo em San Antonio, Texas, não por acaso uma cidade fronteiriça com o México. Porque é precisamente disso que o conto trata: de fronteiras, de dificuldades económicas, de oportunidades e da vontade de fazer qualquer coisa para partir em busca de uma vida melhor. Mesmo que quem detém o poder não queira deixar. De emigração, em suma, pouco importa se legal ou ilegal, para fora de um buraco sem futuro, para algum lugar que é visto como uma espécie de salvação.

Hoje em dia, tanto no primeiro mundo como nos restantes, sabemos todos muitíssimo bem de que está Maresca aqui a falar... embora muitas vezes muitos de nós não queiram saber. Mas este conto força-nos a confrontar a realidade dos outros, dos que no mundo real imigram, porque o sítio atrasado e sem futuro que ele nos apresenta se chama Terra, este planeta em que vivemos, e é lá fora, no espaço, onde os alienígenas dominam, que os desesperados julgam existir as oportunidades. Aqui, neste futuro imaginado, o espaço é os Estados Unidos (e a Europa) do mundo contemporâneo, a Terra o inferno de onde toda a gente quer fugir, mas os problemas e as ambições são os mesmos.

Sim, este conto conta uma história, a história de um candidato à emigração. E de uma forma bastante terra-a-terra; não se trata de nenhum panfleto. Mas não deixa por isso de ser um conto completamente político. E ainda bem que o é.