domingo, 28 de março de 2021

Leiturtugas #95

Temos leiturtugas? Temos.

Esta foi a semana da Carla Ribeiro, que começou por publicar a sua opinião sobre O Fato Novo do Sultão e Outros Contos, livro de histórias tradicionais, destinado à infância, e elaborado por Guerra Junqueiro. A Carla parece ter lido o livro na edição da Booksmile, acabadinha de sair, e claro que não há aqui sequer vestígio de FC, pelo que ela passa a 0c2s.

Dias depois, escreveu também sobre um livro de horror de David Costa, A Batalha dos Caídos, segundo romance de uma série intitulada O Despertar do Nefilim. Publicado em novembro do ano passado pela No Tag, é de novo um livro sem vestígios de FC e a Carla passa a 0c3s.

Quanto aos oficiosos, o facto de ter precisado de ir na semana passada à procura da capa do romance de Nuno Gomes Garcia, Zalatune, fez-me descobrir mais uma opinião que havia por aí. Nomeadamente a do Paulo Serra, publicada no início de fevereiro. O mesmo Paulo Serra, de resto, também escreve noutro lugar (onde me será mais fácil seguir o que publica, porque ao contrário do site do Postal, aqui existe feed RSS... que está mal formatado e não é considerado válido pelo meu leitor. Porreiro. Mas há subscrição por email, veremos se funciona) e também publicou aí a sua opinião.

De resto, a semana parece ter sido dedicada a descobrir material atrasado, ainda que desta feita a "culpa" seja do próprio RSS, que é excelente para se ir acompanhando o que se publica por aí mas não deixa de ter as suas falhas. Consequência: só agora me apareceu a opinião do Jorge Almeida, publicada ainda em janeiro, sobre os Contos de Eça de Queiroz, que ele parece ter lido na velha edição dos Livros do Brasil.

Mas não foi só material atrasado, pois a terminar a semana a Maria Manuel Magalhães publicou a sua opinião sobre um romance de Bruno M. Franco que parece ser um daqueles thrillers com elementos de FC (e, no caso, também de policial). Intitula-se Segredo Mortal e foi publicado este mês mesmo pela Cultura.

terça-feira, 23 de março de 2021

Urbano Bettencourt: Tinha (s. fem.)

E estamos de volta ao sr. Fradique Mendes e às tricas e mesquinhices e egos inflados do meio literário. Neste Tinha (s. fem.), a história que Urbano Bettencourt conta é sobre um autor que barafusta com um crítico não só porque a crítica ao seu livro vem lado a lado com a de um outro obscuríssimo "cujo nome se recusa mesmo a escrever", como tem 11 palavras a menos que a dele. E eu continuo a achar tudo isto uma seca, por mais que até conheça autores capazes de atitudes tão ridículas como esta, e por mais que perceba a ironia que Bettencourt aqui aplica. A opinião volta a ser "OK, está bem feito, mas não me interessa minimamente".

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segunda-feira, 22 de março de 2021

Urbano Bettencourt: A Importância da Retórica

E aqui temos um caso de absoluta compatibilidade do sentido de humor. Também eu me pelo pelos efeitos que é possível alcançar através da literalização das frases feitas, e tenho feitos uns quantos continhos que não me deixam mentir. Ora, é precisamente o que Urbano Bettencourt faz neste curtíssimo conto sobre A Importância da Retórica, através de um protagonista que ouve deus dizer-lhe que comerá o pão com o suor do seu rosto e entende a expressão de forma literal. E eu diverti-me, evidentemente.

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Irmãos Grimm: Irmão Jovial

Com o regresso dos contos de maiores dimensões, depois de uma série de continhos de uma página e picos ou menos, regressamos também aos contos em que os Irmãos Grimm não se limitaram a recolher material da tradição oral ou de publicações prévias, dando-lhe talvez alguns retoques estilistico-literários mas nada mais, mas compuseram contos que talvez sejam novos apesar de terem base em elementos que eles encontraram em histórias mais ou menos aparentadas e julgaram compatíveis.

Irmão Jovial é um soldado desmobilizado após o fim de uma guerra, que vagueia pelo mundo (ou, vá, pela Alemanha) em busca de algum modo de ganhar a vida. Nessas andanças depara com São Pedro, que lhe testa a bondade, e Jovial passa o teste tornando-se assim companheiro do santo sem saber que este o é. Mas vai-se apercebendo aos poucos de que o santo é milagreiro e depressa se torna evidente que acha uma parvoíce o companheiro ter tantos poderes maravilhosos sem deles tirar proveito, o que leva ao conflito entre os dois e à subsequente série de aventuras e desventuras.

Ao contrário de vários outros dos contos que se podem encontrar aqui e noutras compilações de histórias tradicionais de várias latitudes, mais ou menos fiéis aos originais, esta não me parece ser história originada em tempos ancestrais, pagãos, e recoberta por uma camada de mitologia cristã a fim de a tornar mais palatável para a Igreja. Parece-me ser história mais recente (não a história em concreto, que foi criada pelos Grimm, mas o material que lhe deu origem), criada provavelmente não muito antes de os Irmãos Grimm nela terem tropeçado. Histórias como O Suave Milagre, do nosso Eça, em que Jesus ou algum santo andam pelo mundo a testar a bondade, caridade ou qualquer outro atributo cristão dos mortais mostram um claro parentesco com ela, e muito me surpreenderia se a origem de ambas não estivesse nos sermões dos padres, ansiosos (pelo menos da boca para fora, há que dizê-lo) por incutir no seu rebanho a ideia de que há que praticar sempre as virtudes cristãs pois nunca se sabe quem poderá estar a ver.

Mas é uma história interessante, e uma bem-vinda variação face às curtíssimas e muito esquemáticas historiazinhas que têm sido o pão-nosso de cada dia ao longo das últimas páginas.

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domingo, 21 de março de 2021

Leiturtugas #94

Olá, olá. Pensavam que esta semana não havia Leiturtugas, é? Pois enganaram-se redondamente. Há. E há bué delas.

E pensavam que lá porque o Marco Lopes tinha acabado de publicar a sua série de opiniões sobre as Crónicas de Allariya do Filipe Faria ele ia fazer uma pausa, ou pelo menos falar de outro autor ou universo? Pois voltaram a enganar-se, que o autor regressou ao universo e publicou A Oitava Era, romance inaugural do segundo ciclo dessa sua fantasia épica. E o Marco opinou. O livro saiu em agosto do ano passado, claro que pela Presença, e continua sem trazer sinal de FC. O Marco passa a 0c8s, portanto.

Outra das suspeitas do costume, a Cristina Alves, também publicou uma opinião no início da semana. O alvo da leitura da Cristina foi desta vez o romance Zalatune, de Nuno Gomes Garcia, um livro de FC distópica (ou uma distopia com alguma FC, talvez) publicado já este ano pela Manuscrito. Passa a Cristina a 4c5s.

A rematar a semana, surge a Tita, a recuperar tempo perdido, trazendo-nos não uma mas duas opiniões. A primeira é sobre Mors-Amor, romance de fantasia (ou com fantasia, talvez) autoeditado por Sónia Ferreira em novembro do ano passado. Nada se vislumbra aqui de FC, pelo que a Tita passa a 1c1s.

A segunda é também sobre Zalatune, de Nuno Gomes Garcia (vocês combinaram-se?), e aqui existe FC pelo que a Tita passa a 2c1s.

Entre os oficiosos, tivemos esta semana uma opinião da Diana também sobre Mors-Amor de Sónia Ferreira. E combinaram-se, tá visto...

Também a Isabel Daires opinou sobre um livro que parece estar cheio de fantasia, embora num registo bem diferente: A Mulher que Prendeu a Chuva e Outras Histórias, coletânea de Teolinda Gersão publicada originalmente em 2007 e reeditada já este ano pela Porto Editora.

Por seu turno, a Carla fala um pouco sobre O Conto da Ilha Desconhecida, um infantojuvenil de José Saramago com a sua dose de fantástico, publicado originalmente em 1997 e reeditado há um par de anos pela Porto Editora.

E por esta semana é só, e já não é nada mal. Siga para a próxima!

Urbano Bettencourt: Fradique e o Desconcerto do Mundo

De Borges saltamos para Eça, que Urbano Bettencourt é muito pós-moderno na forma como enche as suas ficções de referências literárias e nos traz desta vez Fradique Mendes, julgo que em versão queirosiana (mas também pode ser de algum dos outros escritores que se serviram da personagem, ou de todos, ou se calhar de nenhum), no mais extenso destes seus minicontos.

Mas este Fradique e o Desconcerto do Mundo é um pouco mais colado ao original do que aconteceu com as referências anteriores. Na verdade, este continho mais me parece um pastiche, no qual Bettencourt parece procurar escrever o que e como Eça (pela voz de Fradique Mendes) escreveria. Não aprecio grandemente a técnica e não conheço bem o suficiente a personagem para fazer uma avaliação minimamente capaz deste continho, pelo que só posso dizer que este me deixou profundamente indiferente.

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O Manojas volta a falar de FC


O Bibliowiki tem uma dívida de gratidão para com o Manojas. Nos primórdios do site, a Cronologia do Fantástico, da Ficção Científica, e Géneros Afins, na Literatura Portuguesa, com que Manuel José Trindade Loureiro inaugurou o seu blogue, foi muito útil para ultrapassar lacunas, tapar buracos e indicar rumos de pesquisa no que à FC&F portuguesa dizia respeito, e como consequência o blogue é ainda, estes anos todos mais tarde, uma das fontes que o wiki destaca.

Trata-se, no entanto, de um blogue pessoal, com tudo o que isso implica, e o Sr. Manuel Loureiro (já é bastante idoso, ele) fala aí do que lhe dá na real gana, como é de norma em blogues pessoais, pelo que depois de publicar a Cronologia passou uma série de anos quase sem falar de ficção científica. Mas voltou a fazê-lo agora.

O tema, desta feita, é a ficção científica russa/soviética publicada em Portugal. Até agora estão publicados 5 posts, e talvez seja tudo o que ele tem para publicar. Ou talvez não, não percebi bem. Seja como for, o primeiro está aqui, e não quis deixar de fazer-lhe uma referência, até porque é relativamente raro aparecer por aí um conjunto de artigos sobre FC em lugares onde o tema não costuma aparecer.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Urbano Bettencourt: O Amador e a Coisa Amada

Ah, agora sim. Agora, finalmente, Urbano Bettencourt conseguiu conjugar o interesse e a coisa bem feita. Para mim, obviamente. O Amador e a Coisa Amada volta a ser um miniconto muito curto (cinco linhas apenas), e faz uma referência direta a Borges, mais especificamente ao conto Pierre Menard, Autor do Quixote. De novo, é um continho muito irónico, mas tem a grande vantagem de terminar de forma inesperada, divertida e completamente consistente não só com a história de Borges como com o fantástico que este praticava. Muito bem. Assim gosto mesmo.

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quarta-feira, 17 de março de 2021

Urbano Bettencourt: A Rã e o Boi

Mais um miniconto de Urbano Bettencourt, e mais uma dose de ironia mais ou menos cáustica. Mas desta vez estamos perante um texto que me interessou mais, também, mas não só, pelo inesperado surgimento do fantástico. E basta o título, A Rã e o Boi, para se perceber que tipo de fantástico. Sim, não é por acaso que este parece um título de fábula, embora Bettencourt use esta sua fábula, sobre uma rã que inveja um boi musculoso e vai tratar de muscular-se, não propriamente para dar a típica liçãozinha moral, mas para atirar farpas aos poderes públicos regionais açorianos, e provavelmente não só. O curioso é que embora este miniconto me tenha interessado mais que os anteriores me pareceu menos bem feito do que eles. Paradoxos da leitura.

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Mia Couto: Animais, Animenos

Há muito pouco a dizer sobre mais esta crónica de Mia Couto. Quem tenha vindo a acompanhar esta leitura e tenha lido o que disse sobre o texto anterior, facilmente olha para um título como Animais, Animenos e pensa com os seus botões: "'pera lá, pá, o tipo não se terá enganado? O que ele disse sobre a outra não seria para dizer sobre esta?" A resposta é não, o que o tipo disse sobre a outra é mesmo sobre a outra. Mas sim, sobre esta podia dizer-se quase exatamente as mesmas coisas, pois esta crónica parece uma espécie de segunda parte da visita ao zoo-ilógico. É a mesma coisa, com outra bicharada. E continua a ser muito engraçada.

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terça-feira, 16 de março de 2021

Urbano Bettencourt: Ladrão que Rouba a Ladrão

Pois. Mais um miniconto de Urbano Bettencourt, mais um miniconto sobre as tricas do mundo literário, e de novo sobre plágio como o título de Ladrão que Rouba a Ladrão deixa de imediato supor. Começa a instalar-se o receio de que este seja autor de uma nota só, o que seria francamente aborrecido, até porque o tema, convenhamos, está longe de ser dos mais apelativos. Está bem feito, este contículo onde U. Bettencourt até se introduz como personagem? Sim, até está. Mas a minha falta de interesse no tema, e por conseguinte nos contos, só se aprofunda a cada texto que leio.

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Mia Couto: No Zoo-Ilógico

Eis-nos de regresso às crónicas que o são mesmo com esta No Zoo-Ilógico, apesar de haver aqui uma tenuíssima camada de ficção a decorar a prosa. E é, de longe, a mais divertida das crónicas que Mia Couto incluiu neste livro (das lidas até agora, pelo menos), uma crónica em que o autor se diverte com as palavras e nos diverte com o seu divertimento.

A ideia é não só que a própria existência dos jardins zoológicos é ilógica, mas que os nomes que damos aos bichos também o são. Porque haveria de se chamar falcão a uma ave tão felina? Falgato não seria mais adequado? E como admitir que se chame leitão a um bicho tão pequenino, quando melhor seria chamar-lhe leitinho? E por aí fora. Este é um texto de humor e de amor pelas palavras, um texto em que Couto se serve dos trocadilhos tão característicos da sua prosa com o único fito de brincar, divertir-se e divertir quem o lê. Ou quase único, vá. Semiúnico. Há por aqui umas mensagenzinhas mais ou menos ocultas, também.

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segunda-feira, 15 de março de 2021

Mário de Carvalho: A Torneira

No Beco das Sardinheiras, um bando de putos resolve entrar num barracão (ou casarão) abandonado e muito proibido para lá fazerem o que os putos desde sempre fizeram em lugares abandonados e muito proibidos: investigar, explorar, vencer o medo que os adultos lhes tentam incutir. É assim que começa este A Torneira de Mário de Carvalho, mas já se sabe que não é assim que termina. Afinal, estamos no Beco das Sardinheiras, onde pode acontecer tudo e qualquer coisa. E geralmente acontece mesmo.

Aqui, o que os putos encontram é uma espécie de oficina cheia de estranhos mecanismos enferrujados. Resolvem acionar um deles, uma espécie de roda, o que fazem com dificuldade. Nada parece acontecer. Desinteressam-se e vão-se embora em debandada, pois o pai de um deles vem-se chegando e pode dar sarilho. Mas pouco depois aparece uma espécie de trovoada fixa sobre o bairro, e um fio de água, não muito abundante mas contínuo, despenca céu abaixo sempre no mesmo sítio. Toda a gente em espanto, a tentar perceber o que se passa, e a água vai de cair, não tanta que cause alarme na cidade em geral, mas a suficiente para começar a fazer estragos no sítio específico onde cai. Até que um dos putos soma dois e dois e resolve a situação.

Este é, como se vê, um conto fantástico muito interessante e bastante divertido. Mas para mim, o que ele tem de mais interessante é poder integrar-se num subgénero recente, que trabalha este tipo de histórias em que a tecnologia classicamente mecânica interage com o mágico e o bizarro, e fazê-lo quase toda a certeza sem que o autor disso tenha conhecimento, até porque o conto foi escrito e publicado muitos anos antes do subgénero ser identificado e individualizado. Aliás, dois subgéneros. Há aqui elementos de fantasia steampunk e também de new weird. Interessante, muito interessante.

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Urbano Bettencourt: Ossos do Ofício

Mais um miniconto de Urbano Bettencourt, e ainda mais curto que o primeiro (apenas quatro linhas), este Ossos do Ofício continua a remoer nas cenas literárias, atirando-se agora aos plagiadores, ou pelo menos a um plagiador em específico cujo nome, Macário, dá uma ideia da obra (ou autor) plagiada. O continho tem alguma graça mas continua a interessar-me pouco, e esta opinião já tem mais linhas que o conto pelo que me fico por aqui.

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domingo, 14 de março de 2021

Leiturtugas #93

Cá estamos com mais uma nota de divulgação das Leiturtugas, e mais uma vez tudo começa...

... pelo Marco Lopes. Ele continua a falar sobre a série de Allariya, do Filipe Faria, e esta semana chegou a vez do sétimo e último volume, Oblívio. Publicado originalmente em 2011, como sempre pela Presença, este é mais um livro de fantasia épica, sem nada de FC, que põe o Marco em 0c7s.

Entre os oficiosos, tivemos esta semana um livro repetente, trazido pelas mãos de uma leitora repetente, a Inês Montenegro. Falou ela sobre Alice do Lado Errado do Espelho, a coletânea de fantasia de Pedro Rodrigues publicada no ano passado pela Cultura.

E também tivemos uma brevíssima opinião da Carla sobre A Fada Oriana, conto de fantasia infantojuvenil de Sophia de Mello Breyner Andresen, que ela parece ter lido numa edição da Porto Editora de há quase precisamente um ano.

Por fim, a Maria Manuel Magalhães encerrou a semana com a sua opinião sobre Correria dos Pássaros Presos, romance de FC de Ana Gil Campos publicada em edição da autora no ano passado.

E agora vamos lá então fechar 2020.

Mesmo a acabar dezembro, o Pedro Miguel Silva escrevia sobre, entre outras coisas, Tropel de Manuel Jorge Marmelo. E também sobre Felicidade de João Tordo.

Também a acabar dezembro, a Daniela falava sobre Sombras, de Patrícia Morais.

Por fim, também em dezembro mas a meio do mês a anónima autora de Um Tom Diferente divulgava o que pensa sobre outro livro de Andreia Ramos, intitulado A Força da Escuridão.

E pronto, está feito. A partir de agora, é tudo deste ano. A ver vamos o que aparece por aí. E quando.

sábado, 13 de março de 2021

Urbano Bettencourt: Provincianismo

Às vezes, aos autores dá-lhes para falar de si na terceira pessoa. Parece ser precisamente o que Urbano Bettencourt aqui faz neste Provincianismo, um miniconto bem feito sobre um autor açoriano, prolífico e prolificamente publicado, que se sente triunfal por finalmente conseguir uma nota de rodapé num suplemento literário lisboeta. Ou talvez não seja, talvez seja algum Beltrano que ele conheça. Ou que imagine. Seja como for, o miniconto está bem feito, ainda que eu não lhe tenha achado grande interesse pois raramente me interessam os textos construídos em volta do umbigo do meio literário.

Ângelo Brea: Nas Montanhas de Magadar

Se dúvidas houvesse de que Ângelo Brea é fã de Isaac Asimov (e, em geral, dos autores de FC dessa geração... mas sobretudo de Asimov), elas certamente se dissipariam ao ler esta noveleta de ficção científica e reparar no comportamento e atitude do robô pessoal da família que a protagoniza. Trata-se de um robô positrónico asimoviano, em tudo menos no nome, incluindo mesmo referências mais ou menos encapotadas às célebres três leis da robótica.

De resto, até é possível que o facto de Asimov ter sido um judeu russo, emigrado muito novo para os Estados Unidos, muito poucos anos depois de nascer numa aldeia da região de Smolensk, esteja na base de todo o ambiente de Nas Montanhas de Magadar, embora isto seja pura especulação da minha parte. É que estamos perante uma história de ficção científica que tem lugar numa colónia planetária colonizada por russos (todo o setor, de resto, parece ser ter sido colonizado por russos), e a língua russa, a "língua antiga", como as personagens de Brea se lhe referem, faz numerosas aparições ao longo do texto. Em caracteres cirílicos e tudo, sim.

Brea parece nutrir um interesse especial pela linguística, o que dá um sabor especial a algumas das suas histórias. Caso desta.

E não é só esse o seu único ponto de interesse. Esta podia ter sido uma história realmente boa, pois o ambiente de um planeta em guerra civil, com um governo democrático a ser derrotado por uma insurreição armada, que provoca a fuga do protagonista e família para as montanhas (sim, de Magadar, e eis o título explicado), está bastante bem criado, acompanhado por personagens credíveis e por um desenvolvimento da história bastante agradável.

O problema é não ser uma história, mas o princípio de uma história. Podia funcionar perfeitamente como início de um romance ou pelo menos de uma novela, mas não, cria uma situação e não a resolve. Ora, finais em aberto são uma técnica literária inteiramente válida e por vezes muito satisfatória, mas costumam exigir que haja alguma resolução subjacente à história óbvia, um nível de leitura mais subtil que permita que o final em aberto se torne mesmo num final em vez de ser apenas uma coisa escancarada que como que grita "estou incompleta". Pode ser qualquer coisa; uma descoberta, um momento de crescimento de algum protagonista, um fim de viagem, etc., etc. Mas neste texto não vislumbrei nada disso; ele gritou-me mesmo "estou incompleto".

Talvez seja de mim. Mas não creio que seja.

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sexta-feira, 12 de março de 2021

Mia Couto: Sangue da Actriz no Cinema da Vida

Tinha de acontecer um dia, era inevitável. Por mais que se goste do que escreve o autor xis, é impossível gostar de tudo o que o autor xis escreve. Há sempre algum trecho, ou conto, ou crónica, ou romance, ou lista de compras, ou o que seja, que nos deixa com uma sensação de desagrado e deceção após a leitura. E de pena. Aquela sensação de «pronto, borraste a pintura». Por isso, de resto e perdoe-se-me o parêntesis, a leitura de uma só obra nunca poderá servir para avaliar até que ponto Fulano escreve de forma que nos agrade.

Pois eu, que gosto muito de Mia Couto, senti isso mesmo ao terminar a leitura deste seu Sangue da Actriz no Cinema da Vida.

É um conto sem nada de fantástico, mas não foi isso o que me desagradou nesta história de namoro e tentativa de sexo, tentativa apenas, frustrada por incapacidade do homem em manter a ereção. O que me desagradou foi a súbita violência, muito gratuita, e a forma dir-se-ia compreensiva com que Mia Couto a retrata. Incomoda. E, pior do que incomodar, é incongruente em absoluto com o tom poético da prosa.

Não. Não gostei desta história. Venha a próxima.

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quarta-feira, 10 de março de 2021

Mia Couto: O Homem com um Planeta Dentro

Há sempre, ou quase, qualquer coisa de alegoria nas histórias fantásticas de Mia Couto, mas de vez em quando aparece uma em que esse qualquer coisa parece inchar em coisa toda. O Homem com um Planeta Dentro é uma dessas histórias.

A alegoria é bastante clara. O protagonista da história é um homem que um belo dia deu em sonhador, afastando-se do lado prático da vida e deixando-se ficar sentado a ver tudo o que tinha dentro. Que tudo é esse foi o que o médico que foi consultar lhe explicou: um planeta inteiro, provavelmente a Terra, com todas as vidas e por inerência as histórias que um planeta pode conter.

Trata-se, bem entendido, de um conto em defesa dos criadores de histórias. Não só dos escritores como o próprio Couto mas também dos escritores. Um conto que procura mostrar que o ser humano precisa de histórias para sobreviver, tal como precisa de pão, que as histórias, a imaginação, a fantasia, são inerentes à própria condição humana. E que, por isso, os criadores de histórias devem merecer todo o respeito. Que lhes devem ser dadas as condições para que as criem.

Só tenho simpatia por tais sentimentos.

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domingo, 7 de março de 2021

Leiturtugas #92

Ora cá deveríamos ter a última das notas sobre Leiturtugas que incluem material de 2020. Mas como também há material de 2021 a registar, vamos a ele primeiro e deixemos 2020 para mais tarde, pode ser? Vamos lá.

E como em semanas anteriores, o primeiro dos participantes oficiais a chegar foi o Marco Lopes, trazendo mais um livro do Filipe Faria. Se na semana passada tinha sido o 5º volume das Crónicas de Allariya, nesta foi o sexto, O Fado da Sombra, publicado pela Presença em 2009. Mais uma vez nada nele existe de FC, pelo que o Marco passa a 0c6s.

Dias depois surgiu a Cristina Alves com a sua opinião sobre o mais recente livro de António Ladeira, Montanha Distante, publicado em final de 2020 pela On y Va. Trata-se desta vez de um romance, mas mantém as características dos livros de contos, ou seja, é uma FC distópica. E a Cristina passa assim a 3c5s.

Também a Tita apareceu nas lides esta semana, publicando uma opinião exclusivamente em vídeo sobre o livro que ganhou no sorteio de fevereiro, o conto O Último Extraterrestre, de Jorge Borbinha. Publicado no ano passado pela Imaginauta, é um livrinho de FC, pelo que a Tita estreia o ano com 1c0s.

Mas nem só de oficiais se fez a semana, pois desta vez também tivemos umas quantas opiniões vindas de outros sítios.

Como por exemplo da Inês Montenegro, que falou sobre um romance lésbico de fantasia de Diana Pinguicha, publicado no ano passado em inglês pela Entangled e intitulado A Curse of Roses.

Ou do António Bizarro, que escreveu sobre um conto premiado de Mónica Cunha, publicado também no ano passado pela Imaginauta e pelo Portuguese Portal of Fantasy and Science Fiction: Projecto: MOTHER. Este é ficção científica.

Ou da Ana, que refletiu sobre uma coletânea de Pedro Rodrigues inspirada em Carroll e nos contos de fadas: Alice do Lado Errado do Espelho. Também é de 2020 e saiu pela Cultura. Não parece conter nenhuma FC, mas tem fantasia com fartura.

Bem. 2020. Olhem, sabem que mais? Este post já ficou longo mesmo só com o material desta semana, que foi bastante movimentada. E se deixássemos o que resta de 2020 para uma semana mais fraquinha? Hm? É boa? Então está combinado.

E até para a semana.

sábado, 6 de março de 2021

Mário-Henrique Leiria: Conto do Natal para Crianças

Conto do Natal Para Crianças (sim, do natal; é o que foi escrito pela mão de Mário-Henrique Leiria, e não Conto de Natal, como aparece no índice) é um texto muito diferente dos anteriores. Na verdade não é propriamente um texto, pois o seu significado só se completa pela justaposição do texto propriamente dito, ingénuo, quase infantil, manuscrito em letra de primária, às imagens que o acompanham. Estas são quase sempre fotografias de guerra, de barbaridades, de criminosos. Quase todas. A historieta, brevíssima, é a de alguém que decide ir assistir a um espetáculo e sai desapontado; as imagens mostram concretamente de que espetáculo se trata. O espetáculo do mundo, com todo o seu longo cortejo de crueldade, canalhice e violência.

Mas não é um texto desesperado. A esperança fica reservada para o fim, com uma imagem completamente diferente das anteriores e a ideia explícita de que nem tudo está perdido. Talvez fruto de algum espírito natalício, talvez de uma noção genuína de que afinal de contas, por mais que por vezes não pareça, nem tudo é mau. Talvez. Uma coisa é certa: isto só por ironia será um texto para crianças. É um texto para adultos. E interessante.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 5 de março de 2021

Mia Couto: Entre a Missa e as Misses

Aqui, neste Entre a Missa e as Misses, encontramos um Mia Couto em modo comédia de costumes, e de uma forma bastante pura, sem nada de fantástico a temperar a história.

Tudo gira em volta de uma rapariga, o orgulho da família. Que só tem olhos para os estudos, sem qualquer interesse em coisas mais mundanas como namorados, ao ponto até de preocupar os pais por a verem tão alheada da ideia de constituir família. Mesmo linda como é, e em especial por lhe verem ideias de carreira que não são coincidentes com as suas. Que, já depois de empregada, passa a sair apenas para trabalhar e, aos domingos, para ir à missa. Prendada? Oh, sim, até em demasia.

Mas eis senão quando sucede algo que nada parece ter a ver com o resto da história: o pai é convidado pelo chefe para ir com ele a um concurso de misses. E o que lá encontra, ou melhor, quem lá encontra, deixa-o absolutamente chocado. De resto, o mesmo acontece com o chefe, ainda que por outros motivos. O que, por sua vez, deixa o pobre do pai à beira de um ataque de nervos.

É curioso ler Mia Couto neste registo. Não me parece que seja aquele a que o seu estilo muito próprio mais se adequa, mas é curioso. E tenho a certeza de que outros leitores acharão que é pena não escrever mais nele.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 3 de março de 2021

Escrita de fevereiro

Escreveria eu mais se tivesse um espaço assim onde escrever?
É possível. Mas duvido.

Tudo indica que este ano vai ser significativamente menos produtivo do que o ano passado, a menos que algo de substancialmente diferente aconteça nos próximos meses. É o que se depreende do que já ficou para trás: dois meses bastante fracos, cuja produção se quedou pelas 10 páginas de texto novo ou menos cada um.

Dito isto, fevereiro acabou por ser bastante melhor que janeiro. Fechei mais um conto, aquele que vinha escrevendo desde dezembro, revi outro e dei início a um terceiro, que há de ser escrito ao longo de março. Ou de março e abril, se a coisa correr mal e/ou ele quiser crescer mais do que o previsto. 3200 palavras ao todo, mais coisa, menos coisa, o que é fracote mas não é propriamente o mesmo que zero. É o que vê quem olha para o copo e o acha meio cheio.

Publicar?

Bem, isso é outra conversa. E é conversa para outras alturas. Para já, digo apenas que tenho umas ideias. Vagas, muito vagas, admito sem qualquer pejo. Mas alguma coisa sairá, um dia. Quando e como e onde é que ainda está completamente no ar. No entanto, se ficarem por aí hão certamente de saber. E daqui a um mês, mais dia menos dia, cá virei falar da produção de março. Encontramo-nos lá, se não nos encontrarmos entretanto.

terça-feira, 2 de março de 2021

Irmãos Grimm: Da Morte da Galinha

É-me sempre curioso o descaso com que nestas histórias tradicionais se encara a morte. É certo que Da Morte da Galinha é uma fábula, que mais uma vez parece não ter sido muito alterada pelos Irmãos Grimm, à parte, provavelmente, um apuro literário que o original contado à lareira não teria. É certo que, sendo fábula, as suas personagens são animais e por isso é menos relevante que morram ou não do que se fossem gente, mas não é menos certo que são animais que falam e pensam, o que de certa forma lhes confere alguma humanidade. E no entanto, a sua morte é aqui tratada com absoluta indiferença.

E são mortes em catadupa. Tudo começa quando uma galinha tenta engolir um miolo de noz demasiado grande e fica com ele entalado na garganta, pondo o frango num corrupio para tentar ajudá-la. Com elementos de lengalenga, neste conto o frango pede ajuda, quem (um animal ou objeto inanimado) recebe o pedido negoceia um favor prévio antes de prestar auxílio, e lá corre o frango a tentar satisfazer o favor. Claro que a galinha morre. Mas está longe de ser só ela a morrer. A moral da história parece ser "não te metas, deixa-te ficar sentadinho, não faças nada, não tentes ajudar ninguém, os outros que se governem e se não se governarem azar o deles", porque sempre que alguma personagem acaba por ceder à ideia de prestar alguma espécie de auxílio acaba morta. Um elogio do egoísmo mais completo.

É um conto asquerosozinho, sim. Já não é o primeiro que aqui se encontra e muito provavelmente não será o último.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 1 de março de 2021

Mia Couto: Um Pilão no Nono Andar

Ah, os vizinhos, essa praga. Gente que não tem a mais pequena consideração pela vida em comunidade forçada, que faz qualquer chinfrim a qualquer hora, perfeitamente borrifando para a necessidade de sono ou de sossego que quem mora perto poderá ter, que lança pela janela todos os tipos de lixo porque aparentemente todo o território em volta da pocilga onde moram é a sua lixeira pessoal, que, como no caso desta história, tem Um Pilão no Nono Andar. Que, que, que...

Mia Couto, aparentemente, conhece-os bem. É o que deduzo deste seu vizinho dos infernos, que resolve instalar no seu apartamento um pilão onde a família faz farinha quando lhe dá na real gana. Tunc, tunc, tunc, horas nisto. Um vizinho, incomodado, tenta explicar-lhe que não está sozinho no Universo, muito menos no prédio, que os outros em redor também têm as suas necessidades, os seus quereres, e os seus não-quereres, e que um desses não-quereres é o tunc, tunc do pilão, pedindo-lhe com toda a calma e boa educação para passar a pilar fora do apartamento, nalgum terreno em volta, na cave, algures. Mas depara-se primeiro com uma floresta de impossibilidades e depois, quando finalmente consegue arranjar uma solução que o do pilão aceita, confronta-se com o espírito abusador típico de tais criaturas.

Não é dos contos de Mia Couto que mais me agradaram, este. Mas é demasiado real. Talvez por isso...

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