segunda-feira, 30 de novembro de 2020

anónimo: Dados Biográficos

Não sei se as compilações de casos médicos também costumam ter uma secção dedicada aos Dados Biográficos (bibliografia) dos autores que contribuíram para esse tipo de volume, mas o que sei é que nas antologias de ficção elas são comuns, ainda que seja igualmente comum que cada autor tenha a sua notinha individualizada antes da sua contribuição para o todo. Por outro lado, não se trata de ficção, pelo que não me surpreenderia que aí desse lado houvesse quem estivesse agora a coçar a cabeça, tentando perceber por que raio está este gajo aqui a dar a sua opinião sobre um conjunto de pequenas biografias. Bem, é que neste caso as biografias são inteiramente ficcionais.

Sim, os nomes correspondem (quase sempre) aos verdadeiros autores dos vários textos do livro. Mas as biografias são as dos médicos (se calhar convinha pôr aqui unas aspas em "médicos") que eles fingem ser, não as deles, pelo que este texto, ou conjunto de textos, é tanto uma obra de ficção como tudo o resto. E é anónimo porque não está assinado, ainda que o mais certo é cada autor ter escrito a sua própria "biografia". Até porque elas são bastante diferentes, apesar da ironia ser generalizada; algumas são muito divertidas, outras nem tanto, umas falam de Lambshead, a maioria não, há quem assuma a charlatanice, outros fogem dela como uma mosca do trapo que se aproxima a grande velocidade para a transformar em polpa. Mas de uma forma geral estes textos são bastante divertidos e é isso o que se pretende. Sucesso, pois.

domingo, 29 de novembro de 2020

Akutagawa Ryunosuke: Sennin

Um dos aspetos mais interessantes desta antologia de literatura fantástica que tenho andado a ler é sair um pouco do tradicional eixo linguístico anglo-franco-alemão, integrando alguns textos e autores de outras proveniências. Nomeadamente do oriente. É o caso deste Sennin (bibliografia), do japonês Akutagawa Ryunosuke.

A princípio, o conto nada parece ter de fantástico, embora tenha bastante de insólito. Narra a história de um homem que procura emprego como sennin e da família de aproveitadores que lho dá. Por assim dizer. É que sennin é um mago imortal e eremita, e a família que lhe dá trabalho não lhe dá emprego, dizendo-lhe apenas que se trabalhar para eles sem ganhar qualquer salário durante vinte anos, no fim desse período lhe ensinam a ser sennin. A família, ou antes, a mulher do casal, que o homem é razoavelmente boa pessoa... só razoavelmente porque afinal de contas cede ao maquiavelismo da mulher e aproveita-se da situação tanto quanto ela. Claro que nem um nem o outro faz a mais pequena ideia de como se passa a ser sennin; querem apenas explorar o desgraçado.

E quando acaba o período de exploração, ela, completa psicopata, ordena-lhe que suba a uma árvore e se largue. Porque é assim que se torna sennin, diz-lhe. Porque é assim que se vai ver livre dele, pensa. Mas tem uma surpresa.

O que este conto tem de mais interessante é mostrar uma abordagem ao fantástico e um conjunto de atitudes perante as coisas que são simultaneamente absolutamente idênticas e bastante diferentes das ocidentais. Não creio que se trate de um grande conto, não é daqueles que me irão perdurar na memória. Mas é bom.

Textos anteriores deste livro:

Leiturtugas #78

E cá estamos nós para mais uma semana de Leiturtugas atrasadas, aproximando-nos com rapidez do presente. Aqui fala-se das leituras que foram comentadas entre 9 e 15 de novembro. Ou falar-se-ia, se tivesse havido alguma. Como não houve, e na semana seguinte também não, olhem, estamos em dia.

E estamos em dia com leiturtugas a registar. Nomeadamente a opinião da Cristina Alves sobre um livro de fantasia publicado já este ano pela Imaginauta: A Última Vida de Sir David, romance de Pedro Galvão. Não tem FC, pelo que a Cristina passa a contar 4c10s e continuam a faltar-lhe duas leiturtugas com FC para cumprir o ano.

E aproveito o ensejo para começar a falar-vos de mudanças que tenho planeadas para o ano nas Leiturtugas. Numa frase: vou ampliar isto para fora de quem está oficialmente no projeto. É que há por aí mais gente a comentar material português de ficção científica e fantástico, mesmo que por vezes mal se aperceba disso (de que o que comenta é FC&F, não de que é português), e já me anda a incomodar há algum tempo — desde o fim do Ficção Científica Literária, basicamente, porque era um trabalho que o FCL fazia (pelo menos para a FC) e deixou de fazer — que comentários inteiramente válidos passem ao lado só porque as pessoas não querem alinhar nisto ou nem sabem da existência desta iniciativa. Claro que quem está oficialmente dentro terá vantagens, nomeadamente na probabilidade de receber em casa um livrinho de vez em quando e num destaque maior para aquilo que publica, mas vai começar a aparecer por aqui mais gente, por enquanto de forma experimental, para afinar a coisa, e a partir de janeiro de uma forma mais consistente.

Por exemplo a Adelaide Bernardo, que publicou uma breve opinião sobre um livro de quase FC de José Saramago, O Ano de 1993. Ou até a Raquel, com uma brevíssima opinião sobre um chick lit de Ana Silvestre que parece ter elementos de fantasia urbana, Sinto-te.

sábado, 28 de novembro de 2020

Stepan Chapman: A Obscura História da Medicina do Século XX

De longe o texto mais extenso que se pode encontrar neste volume, um de apenas dois que atingem o tamanho de noveleta, A Obscura História da Medicina do Século XX (bibliografia) é precisamente o que o título sugere: uma história, apesar de tudo breve, da medicina ao longo do século XX. Não da medicina, claro. Da medicina excêntrica e desacreditada. Da medicina obscura, segundo uma das duas interpretações possíveis da ambiguidade do título original, que desaparece no traduzido (o qual escolhe a outra interpretação).

Não que se trate de uma noveleta propriamente dita, mesmo que em variante de pseudofactual. O que Stepan Chapman aqui escreveu foi um conjunto de pequenas e pequeníssimas vinhetas, as quais mencionam outros tantos acontecimentos e personalidades da história verdadeira do século XX, apresentando explicações alternativas para os acontecimentos ou para esta ou aquela característica das personalidades, as quais têm invariavelmente a ver com alguma doença excêntrica que a historiografia oficial silencia mas sobre a qual o Guia do Dr. Lambshead deita luz.

Felizmente isto é literatura. Fora dela contam-se histórias igualmente estapafúrdias como se fossem factos, as teorias da conspiração, reunindo multidões de crentes à volta de ideias tantas vezes imbecis, dos chemtrails à Terra oca, da Terra plana ao criacionismo. Procurasse essa gente fazer literatura, talvez conseguisse criar textos tão divertidos e inofensivos como este... se bem que provavelmente não conseguisse ganhar a vida com eles. O vigarismo resulta em contas bancárias significativamente mais chorudas do que a literatura. E isso explica muita coisa.

Mas divago...

Sim, este texto, ou esta compilação de textos, é francamente divertido (ainda que por vezes de forma um bom bocado arriscada) e vagueia algures entre a mais pura fantasia surrealista e uma ficção científica muitíssimo impura. Mao como clone de si mesmo, Freud a ter talvez sido assassinado discretamente por Lambshead, Roosevelt morto pela KGB através de um piolho elétrico, são apenas alguns exemplos das ideias que aqui se podem encontrar. É um divertimento de sorriso, de cumplicidade, de "estou a ver o que fizeste aí", intercalado de vez em quando com esgares de "ui, que essa foi forte". Não um divertimento de gargalhada. Mas o facto é que esta coleção de mais de 30 resumidíssimas historietas se lê muito bem.

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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Anatole France: A Missa das Almas

Há certos contos que até podem ser bons, em termos de estrutura, do tratamento da língua, dessas coisas de que também se constrói a literatura, mas que assim que se leem logo se esquecem. São contos, normalmente, que trazem consigo uma forte sensação de "já vi isto em algum lado", ideias batidas, abordagens seguidas um sem-número de vezes por outro sem-número de autores e sem grande rasgo que os faça destacar-se do pelotão. No âmbito da literatura fantástica também tendem a ser contos muito seguidores dos preceitos e da mitologia cristãs, que por esse motivo se tornam ainda mais previsíveis. E A Missa das Almas (bibliografia), de Anatole France, é um desses contos.

Trata-se de um daqueles contos de fantasmas de ouvir contar, muito em voga na literatura de uma certa época, a qual mimetizava o que é comum acontecer em momentos de convívio, não necessariamente alcoólico (se bem que neste caso o era), nos quais as conversas dos convivas tendem a derivar para a narração de histórias. Aqui temos um sacristão filho de coveiro a contar ao narrador, presumivelmente o próprio France, uma história trágica de amor, morte e loucura. Algo que um número incontável de autores fez milhares e milhares de vezes.

Até é uma história bonita, daquelas de fazer palpitar os corações das donzelas oitocentistas... e provavelmente novecentistas e... hm... doismilistas? (como raio nos referimos às pessoas da nossa época?) E está tão bem escrita como seria de esperar. Uma história sobre uma velha senhora que um belo dia depara com uma missa espectral na igreja da paróquia, onde reencontra o amado há muito morto, o qual lhe explica o que é aquilo, e a história acaba tão tragicamente como seria de esperar. É uma boa história. Mas tão previsível, tão cheia de clichés, que se torna aborrecida.

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Shelley Jackson: Os Putti

Não existe quase nada de caso clínico neste conto de Shelley Jackson, e nada nele existe que remeta aos pseudofactuais borgesianos que tão prevalentes têm sido neste livro. O que existe, e com fartura, é literatura. Da boa. E, claro, existem Os Putti (bibliografia). E uma dose gigantesca de imaginação.

Os putti são uns bicharocos curiosíssimos. Secos, são usados como droga (e sabe-se lá se a autora andou a consumi-los para imaginar tal coisa), mas a sua proveniência é o que de mais curioso têm. Encontram-se no interior do corpo humano, ocasionalmente cá fora, mas não é muito difícil apanhá-los mediante delicadas (e por vezes sanguinolentas) operações. Jackson conta tudo isto e numa prosa que chega frequentemente à poesia, o que dificilmente poderia afastá-la mais do texto seco, (pseudo)científico, dos casos clínicos propriamente ditos que se encontram em outras secções do livro. Mas não se trata de purple prose; é uma prosa de muito boa qualidade que enquadra da melhor forma a exuberância imaginativa do conto.

Jackson conta tudo isto, como disse, e muito mais, pois tudo no seu texto é sinuoso, repleto de apartes e becos sem grande saída. A interpelar diretamente o leitor como uma professora pouco segura do que está a dizer. Até a sugestão de ficção científica, de que os putti poderão na verdade ser uns alienígenas quaisquer vindos de algures, é acompanhada de dúvidas. Certeza só parece haver uma: a de que os putti existem. E eu também só fiquei com uma certeza: este conto é muito bom.

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terça-feira, 24 de novembro de 2020

Mia Couto: A Rua de Pernas Para o Ar

Há um certo ar de realismo mágico neste conto, embora na realidade não haja nada no texto que propriamente o justifique. Além, talvez, do insólito de toda a situação que Mia Couto descreve e que é, não pela primeira vez, uma forma muito irónica, muitíssimo oblíqua, de falar do que o apoquenta na forma de ser e de estar do seu Moçambique na década de 1980.

A história começa quando o protagonista ouve um barulho fora de casa e decide ir ver o que se passa. Vai. Descobre na rua um camião militar virado ao contrário, com o motorista, imperturbável, lá dentro. Vai tentar socorrê-lo, mas o outro teima que o seu veículo está normalíssimo, que a rua é que está virada ao contrário e sim, claro, é essa a origem do título de A Rua de Pernas Para o Ar. Quer dizer, teima é forma de expressão porque ninguém teima com ele; o que Couto nos diz, basicamente, é que não se teima com os militares, por maiores que sejam os absurdos que saiam das bocas deles.

Daí que se gere a comoção na rua mas ninguém chame maluco ao militar que vai barafustando contra a irregularidade de deixarem aquela rua assim de pernas para o ar, o que não só lhe causou transtorno evidente a ele, que ainda tem o camião com as rodas para baixo, como vai obrigá-los a todos à delicada operação de virar o camião também de pernas para o ar a fim de que ele possa seguir caminho. O que é feito. E lá fica a rua, como sempre esteve. De pernas para o ar, aparentemente.

Deliciosa ironia coadjuvada com o delicioso trabalho com a língua habitual neste autor, e o resultado só poderia ser um bom conto.

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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Rudyard Kipling: Rikki-Tikki-Tavi

Que eu tenha conseguido desfrutar deste conto de Rudyard Kipling, mesmo não o considerando propriamente uma obra-prima, comprova que sou perfeitamente capaz de me abstrair de ideias prévias sobre os autores e acolher cada obra enquanto tal: uma obra, fechada em si mesma e independente do autor e das outras obras do autor, mesmo que não de forma absoluta porque o contexto é sempre relevante. É que se não o fosse, a absoluta repugnância que o último conto que li de Kipling me causou podia ter-me impedido de sequer ler isto, quanto mais de gostar.

E de facto gostei, ainda que não muito. Rikki-Tikki-Tavi (bibliografia) é um conto que faz lembrar O Livro da Selva, do mesmo autor, na medida em que se trata de uma fábula cheia de animais antropomorfizados e baseada nas histórias tradicionais indianas. O título é nome de bicho, mais concretamente de mangusto, e a história narra como o heroico mangusto protege uma casa (de colonos britânicos, obviamente) e os animais que vivem na propriedade de um par de malignas serpentes, decididas a matar tudo o que mexa.

E eu digo fábula, mas não se pense que isso quer dizer que esta história respeita o que se entende geralmente por fábula na literatura tradicional europeia. Não existe aqui a típica liçãozinha moral e há uma maior atenção ao comportamento natural dos vários animais, o qual nas fábulas europeias está normalmente muito estilizado, ainda que este seja explicado com impulsos e motivações humanas. Numa comparação talvez espúria, eu diria que esta história está mais ou menos a meio caminho entre a fábula da tradição europeia e os textos daqueles documentários sobre a vida selvagem em que, numa tentativa de criar no espetador identificação e despertar o interesse pelo destino das várias criaturas, são dados nomes a cada leão, a cada babuíno, a cada hiena, e conta-se as suas histórias quase como se fossem pessoas.

E, tal como acontece com os documentários, também este conto tem como público alvo sobretudo a gente jovem, o que provavelmente explica em parte por que motivo eu até gostei mas não muito. Há aqui um simplismo e um maniqueísmo que tende a afastar-me, anulando parcialmente o gosto que dá ler prosa de tão boa qualidade. Porque a prosa é realmente bastante boa. Kipling sabia escrever, por mais duvidoso que por vezes fosse o que escrevia.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 22 de novembro de 2020

Leiturtugas #77

E cá estamos com mais um post de divulgação das Leiturtugas. Continuamos atrasados, mas o atraso já é inferior a um mês, pelo que este post se refere à semana de 2 a 8 de novembro.

Pois nessa semana só temos registo de uma leiturtuga, mais um dos breves posts que o Artur Coelho faz no seu blogue e que remetem para um maior desenvolvimento noutro sítio. São todos sobre BD, e este não é exceção, debruçando-se sobre o livro O Penteador, de Paulo J. Mendes, publicado já este ano pela Escorpião Azul. E o Artur passa a 5c13s.

Outras novidades: o livro Disney no Céu Entre os Dumbos já tem dono. Não é o Marco, que declinou a oferta por já ter um exemplar, mas sim o Eduardo Jauch. Parabéns a ele e obrigados ao Marco. Ainda não o enviei, mas enviarei em breve (espero eu).

E também já temos livro para o próximo sorteio! O António Bizarro chegou-se à frente com um exemplar do seu O Invisível, a Sua Sombra e o Seu Reflexo, e será esse o livro a ser sorteado na primavera. Em princípio será na primavera; se entretanto aparecerem mais livros para sortear, este sorteio poderá ser antecipado. Ou poderá haver outro antes deste. Seja como for, eu aviso por aqui.

E até às próximas Leiturtugas. Estamos quase a ficar em dia.

Irmãos Grimm: A Raposa e o Gato

Esta é mais uma da série de fábulas que os Irmãos Grimm recolheram, centradas na personagem astuciosa da raposa, todas muito curtas e com todo o aspeto de não terem o dedo dos Grimm, além de alguns ajustes estilísticos. Mas esta A Raposa e o Gato não é uma fábula como as outras: aqui, ao contrário do que é hábito, a raposa não se sai bem.

Depois de vários contos em que a raposa engana e leva a melhor a vários animais, sobretudo lobos, aqui, com o gato, mostra-se arrogante e essa arrogância vai ser o seu fim. Não que o gato faça muito por isso; limita-se a saltar para os ramos de uma árvore quando aparece um grupo de pessoas. Mas a raposa, que não trepa, não tem a possibilidade dessa fuga e é apanhada. A moral é clara: cuidado com as arrogâncias, as vaidades e as gabarolices, que não dão bom resultado. E até pode ser verdade, mas outra verdade é que o continho é muito simples, sem grande interesse.

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sábado, 21 de novembro de 2020

M. St.-J. N. S. Moorcock: Febre de Mordida da Ratazana Samoana Gigante

Outro misto de caso clínico e história-mesmo-história, e outro caso em que o design das páginas adquire relevância para o desfrute do conto, esta Febre de Mordida da Ratazana Samoana Gigante (bibliografia), do "reverendo" M. St.-J. N. S. Moorcock é, basicamente, uma história de tentação e queda.

A grande ironia da história está no facto de Michael Moorcock — assim se chama o autor por trás do pseudónimo — escrever na pele de um reverendo. Esse facto também explica a razão desta história não respeitar os padrões do caso médico estabelecidos na primeira parte do livro, uma vez que o autor não é médico mas sim paciente. Descreve a forma como ele próprio contraiu a doença e enumera os sintomas desta não como texto clínico para orientação de outros médicos, mas como um aviso e um apelo ao cuidado, um sacerdote a exortar as suas ovelhas para evitarem o pecado.

Sim, porque há aqui pecado, e em quantidade. Um dos efeitos da doença são pulsões sexuais incontroláveis, além de outros impulsos antissociais, como o roubo, e também uma série de sintomas físicos geralmente repugnantes. Que seja um reverendo, essa imagem da santidade sacerdotal, a sofrer tudo isto, e apenas por ter sentido curiosidade, acabando mordido e infetado pela ratazana, é o grande achado de Moorcock para uma história que, fora isso, poderia ser apenas curiosa. O protagonista eleva-a a outro nível.

E também há uns elementos adicionais, mais subtis, a elevá-lo. Há genericamente um forte anacronismo em toda a história. A paginação remete para publicações de, no máximo, meados do século XX, ao passo que no texto surgem referências a acontecimentos históricos de finais do século, o que é sublinhado numa "nota do tradutor" (que não é do tradutor), a qual arranja uma explicação de ficção científica para o facto. Por tudo isso, este é um conto bastante bom.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Franz Kafka: Josefina, a Cantora, ou O Povo dos Ratos

E voltou a acontecer. Mais uma vez me reaparece neste livro um texto que já tinha lido noutros, e neste caso foi há muito pouco tempo, ainda por cima. Sim, que este Josefina, a Cantora, ou O Povo dos Ratos (bibliografia) consta do Bestiário de Franz Kafka, e li-o e comentei-o no início deste ano, aquando da leitura desse livro. Em circunstâncias normais, não teria, portanto, grande coisa a dizer sobre este conto (noveleta?) que não tivesse sido dita há uns meses. Mas por acaso desta vez até tenho.

Não que a minha opinião sobre o conto propriamente dito seja diferente. É aquela que escrevi em fevereiro, com muito pouco a acrescentar. O que há a acrescentar vem da pequena introdução que o antecede — nesta edição, como de resto acontece com frequência em livros deste género, cada história é precedida por uma breve introdução que a enquadra. Aí, diz-se que esta história é uma alegoria da "história e destino do povo judeu", e eu, que na primeira leitura não identifiquei nela nada que me pudesse fazer supor que era disso que se tratava, passei esta segunda leitura à procura desses sinais.

E confesso que continuei sem ver nele grande alegoria ao povo judeu. O conto é obviamente alegórico, mas a alegoria, parece-me, centra-se na relação entre a arte e a população em geral, podendo ser interpretado como uma crítica dos artistas que se acham no direito de subir mais alto que os outros, ou como uma crítica à ignorância das massas, incapaz de reconhecer e premiar o talento onde ele se encontra. Tudo isto me parece universal, muito longe de estar restrito a um povo ou outro. E mesmo se se considerar que Josefina é a representação alegórica do "povo eleito", que segundo alguns judeus são eles próprios, o que é uma interpretação possível mas julgo que bastante forçada, a reação dos outros ratos para com ela tem muito pouco a ver com a história secular de perseguições e repressão que é o melhor resumo possível da história do povo judeu até à criação de Israel. Os outros ratos não são hostis a Josefina; são-lhe quase indiferentes. Encaram as suas excentricidades com bonomia, lidam com ela como se lidaria com um filho birrento mas, em última análise, querido. Não vejo aqui grande paralelo com os judeus, francamente.

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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Nathan Ballingrud: A Maleita das Cidades Fantasmagóricas

Mais um caso clínico que não é propriamente um caso clínico (este parece ser, de resto, o principal traço de união das histórias desta parte do livro), este A Maleita das Cidades Fantasmagóricas (bibliografia) poderia ser o que resultaria se A Biblioteca de Babel de Borges e As Cidades Invisíveis de Calvino fizessem amor e tivessem um filho.

Isto na ideia, mas também a concretização dessa ideia, apesar de mostrar, obviamente, o estilo próprio de Nathan Ballingrud, deve muito à abordagem de Borges aos seus textos pseudofactuais, o que de resto é perfeitamente assumido. Este é dos tais contos que se leem como ensaios. Um ensaio, ainda que breve, sobre uma "doença metafísica" bastante peculiar, que leva quem dela padece primeiro a isolar-se nalgum lugar remoto e depois a transformar-se numa cidade abandonada, ou povoada apenas por espectros, na qual, escondida algures, existe uma biblioteca cujos livros contém elementos da personalidade profunda das vítimas.

A ideia é magnífica, e Ballingrud consegue explorá-la de forma a sublinhar o que ela tem de fascinante. Também Borges e Calvino o fazem nas respetivas ficções, o que constitui uma parte do que as eleva tão alto. A de Ballingrud não sobe tanto, no entanto. Há nela um certo caráter derivativo que a impede de ser brilhante. Mas é um conto francamente bom, que narra a descoberta dos primeiros casos da doença (raríssima) e descreve as suas características. Quase como se fosse um caso clínico, sim, mas este texto afasta-se da maioria dos outros na ausência de quaisquer pistas terapêuticas, por mais vagas que pudessem ser.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

David Soares: A Sombra Sem Ninguém

Antes de começar propriamente a falar deste conto tenho de fazer uma ressalva: a sua leitura foi seriamente prejudicada pela vida, e é natural que esse facto se reflita na opinião que dele me ficou. Estava a meio quando a minha mãe partiu a perna, houve ali um período razoavelmente longo, de umas três semanas, em que não li nada em papel, tendo-me limitado a leituras digitais (especialmente o livro que estou agora a traduzir mas também outras coisas), e quando recomecei a ler em papel e voltei a pegar neste A Sombra Sem Ninguém (bibliografia), muito francamente, não estava com a cabeça muito virada para este tipo de literatura, nem com grande atenção para as subtilezas que contos deste género costumam conter.

De modo que, olhem, o que segue vale o que vale. Isto é sempre verdade (e não só aqui na Lâmpada; é uma verdade universal, que se aplica desde as opiniões mais básicas nos Goodreads e Amazons da vida às elaboradas teses académicas em faculdades de prestígio), mas neste caso é-o um pouco mais do que é costume por aqui.

Começando pelo estilo literário, nesta história, e suspeito que em todo este livro (o que mais tarde confirmarei ou desmentirei), David Soares já tinha dado início ao caminho que o iria levar a um estilo tão eriçado de bizarrias lexicais que se torna penoso de ler, mas ainda não o levara a todas as suas consequências pelo que o conto até se lê bem, pesem embora uns sobressaltozinhos aqui e ali.

E a história até é interessante, ou seria se a minha cabeça tivesse estado para aí virada. Com uns pozinhos de horror cósmico, um vago cheirinho a ficção científica (ou não tão vago assim, uma vez que termina no futuro longínquo), conta a história de alguém que é capaz de ver umas estranhas criaturas, aparentemente transdimensionais, a que Soares chama "elementais". De ver e de interagir com elas, o que tem efeitos desastrosos.

Mas como a minha cabeça não esteve particularmente sintonizada nele ao longo da leitura, este conto aborreceu-me. Talvez um dia o volte a ler numa altura mais propícia, especialmente se os contos seguintes me interessarem mais do que este interessou. Se assim for é provável que o refira aqui na Lâmpada, e a opinião "que vale" passe a ser essa. Mas pelo menos por enquanto esta é a que temos.

Leiturtugas #76

Estas são as Leiturtugas correspondentes à semana de 12 a 18 de outubro. Ou melhor, seriam, porque nessa semana não houve nada a assinalar. Poderiam corresponder às duas semanas de 12 a 25 de outubro, mas a segunda ficou tão em branco como a primeira, pelo que o prazo se estende até 1 de novembro.

E aí, na terceira semana, de facto tivemos novidades. Ou melhor, novidade, pois só a opinião da Tita sobre o romance que Carlos M. Queirós publicou já este ano pela Cultura, A Rapariga Invisível, fez mexer os números. Trata-se, aparentemente, de uma fantasia urbana que nada tem de FC, pelo que a Tita passa a 1c3s.

E já que acabámos outubro, vamos lá também fazer finalmente o sorteio. Quem quiser ver o vídeo, cá está ele:


Como podem ver no vídeo, depois de ameaçar ir parar ao Prazer das Coisas, ao Rascunhos, à Lâmpada Mágica (o que seria um tudo-nada inútil) e às Leituras do Corvo, o livro acabou por se dirigir direitinho para O Senhor Luvas. Parabéns ao Marco, e agora vou contactá-lo para ver se o quer.

Se o Marco não o quiser, o próximo a ser contactado será o Eduardo Jauch, depois o Jorge Candeias (que avisa já que não o quer), a Maria e por aí fora. A lista ordenada está no vídeo.

Quando ficar estabelecido o feliz contemplado, avisarei por aqui. O envio será feito à primeira oportunidade (que dependerá sobretudo do tamanho da bicha para o correio).

E o próximo sorteio será feito lá para a primavera de 2021, a menos que algum autor ou editor queira contribuir com um livro e fazê-lo antes. Se for o caso, contactem-me. Se não for, até à próxima.

Horacio Quiroga: A Insolação

E depois há contos brilhantes.

Às vezes é só questão de mudar o ponto de vista, embora este "só" seja tudo menos questão de somenos. Mudando o ponto de vista, daqueles comezinhos para algum que seja invulgar ou inesperado, pode dar-se nova vida a velhas histórias e elevar aquilo que poderia correr o risco de ser banal ao brilhantismo. Se o autor o souber fazer bem.

Horacio Quiroga soube. Pelo menos neste A Insolação (bibliografia). Pegou numa história que podia ser comezinha, já escrita milhentas vezes, a história de um velho agricultor que tem por destino próximo o derradeiro encontro com a Morte antropomorfizada, e deu-lhe a volta, centrando-a no ponto de vista não do agricultor nem de nenhum membro da família, nem sequer da Morte que o vem buscar, mas dos seus cães. Cães esses que veem a Morte a aproximar-se, como uma aparição fantasmagórica com o aspeto do dono mas diferente o suficiente para que pelo menos alguns deles compreendam do que se trata, antes de qualquer outra criatura se dar conta da sua presença.

O resultado é magnífico. Uma história fúnebre, muitíssimo bem escrita, com o seu quê de poético, já com aquele tom que décadas mais tarde viríamos a identificar com o realismo mágico latino-americano, apesar de ter sido publicada em 1917. Dos melhores contos que li este ano.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Kage Baker: Demência de MacCreech

Já aqui falei de forma pouco abonatória sobre histórias-mesmo-histórias que não conseguem sê-lo de forma integrada no espírito deste livro, apontando-as como exceção à minha tendência de preferir esse tipo de texto aos que funcionam como pastiches do caso médico mais ou menos científico. Pois bem: esta Demência de MacCreech (bibliografia), de Kage Baker, é também uma história-mesmo-história que não se integra perfeitamente no espírito do livro... e no entanto é ótima, em parte porque Baker explica essa dessintonia de uma forma simples mas absolutamente eficaz: não se trata de um texto escrito de propósito para publicação no Almanaque, mas sim da republicação de uma carta endereçada a um jornal. O que é completado pelo grafismo das páginas, o qual remete a folhas datilografadas em máquina de escrever.

Quanto à história propriamente dita, é, como de resto é próprio de uma carta, escrita em forma de depoimento e narra a investigação levada a cabo por um polícia e pela própria Baker (i.e., a Dra. Kage Baker) numa terreola das ilhas exteriores da Escócia, afetada por uma bizarra epidemia de visões fantasmagóricas. Estas, no entanto, não são a vulgar visão ectoplasmática dos contos de fantasmas que todos conhecemos. São todas fantasmas de gente famosa há muito morta, eminências do passado, reconhecidas nas mais variadas atividades, da política à arte, passando por muitas outras. Mais: são fantasmas de mortos famosos... e absolutamente lascivos.

Conto de fantasia, como se vê. Mas também tem elementos de policial, com o mistério a ser investigado por aquele improvável par de detetives, e de ficção científica, pois quando a explicação surge ela é de caráter científico.. Não a revelarei. Digo apenas que tem a ver com uns alcatrazes secos, que as pessoas da ilha, por escassez de tabaco, resolveram tentar fumar, e com uns bolores. E digo também que a história está muito bem contada e é bastante divertida, cheia de pequenas ironias francamente interessantes. Tem tudo no sítio, e é um bom exemplo de como bem subverter regras.

Textos anteriores deste livro:

Charles Nodier: Inês de las Sierras

Quando Todorov formulou a sua definição de fantástico (aquelas obras que deixam a pairar no ar a dúvida sobre o que realmente acontece, sobre a existência ou não em jogo de forças sobrenaturais) decerto teria em mente textos como esta novela de Charles Nodier, que começa por narrar acontecimentos muito claramente sobrenaturais, fantasmagóricos, para depois os explicar de forma inteiramente mundana, embora esta explicação deixe o leitor, já antes enganado, com mais dúvidas que certezas.

Tudo se passa em Espanha, durante uma das variadas ocasiões em que, após a revolução francesa, as tropas gaulesas acharam boa ideia invadir a Península Ibérica. Os protagonistas são um grupo de soldados franceses e a Inês de las Sierras (bibliografia) do título, uma estranha espanhola, meio louca, que os conhece quando eles decidem passar a noite num velho e arruinado casarão que tem na região fama de assombrado. E já estão a ver o caminho que a coisa leva, certamente.

Mas não estarão a vê-lo por inteiro, aposto. O grupo de soldados franceses é algo esquemático. Há o homem que conta a história, o mais inteligente da companhia e aquele que a comanda, há uma espécie de poeta, uma «alma ardente» como Nodier lhe chama, e há o seu diametral oposto, uma espécie de bronco que, sendo Nodier o beato que era, só podia ser cético, alguém que nunca acreditava em nada de transnatural. A compor o ramalhete do grupo de homens, há também um ator espanhol, que acompanha os franceses por conveniência de transporte, e o condutor da carruagem de quatro lugares que os leva, obviamente também espanhol.

No casarão, os homens instalam-se para jantar e depois passar a noite, e entretanto vão conversando sobre a possibilidade ou não de existência de assombrações. Ambiente montado, eis que surge a Inês de Las Sierras, que todos tomam como um espírito de outro mundo mas à qual cada um reage à sua maneira. Os espanhóis pouco participam, o comandante observa para depois relatar, o «alma ardente» apaixona-se à primeira vista e o bronco cético torna-se bronco crente num estalar de dedos. Mas no fundo nada realmente acontece; é apenas uma noite estranha na qual uma mulher de aparência ectoplásmica aparece e desaparece, deixando um grupo de soldados confuso e muito pronto para partir assim que chega a manhã.

Depois, temos uma segunda parte da novela, passada alguns anos mais tarde, na qual o comandante do grupo de soldados relata o que aconteceu aos seus homens depois dessa cena, mas narra sobretudo a história da Inês de las Sierras, retratando-a como uma mulher normal, ainda que maltratada pela vida e por isso enlouquecida, uma mulher que de fantasma nada tem. E assim, a sobrenaturalidade do conto depende de se acreditar mais nesta segunda parte ou na primeira.

É uma história bastante boa, esta. Mais sofisticada do que parece à primeira vista, ainda que para o meu gosto peque um pouco pelo caráter esquemático das personagens, que parecem revelar um interesse maior em Nodier pela criação de arquétipos do que propriamente de pessoas de carne e osso, pelo menos nesta novela. Mas está bem concebida e francamente bem escrita. É boa literatura.

domingo, 15 de novembro de 2020

Saki: Sredni Vashtar

Gostaria de saber o que passou pela cabeça de Saki para dar um título tão russo a uma história que de russa, pelo menos à primeira vista, nada tem. Não que Sredni Vashtar (bibliografia) seja russo puro; "vashtar" de russo só tem a sonoridade, embora seja uma palavra que existe de facto numa das línguas não eslavas que se falam na Federação Russa (o mari, falado numa faixa de território a leste dos Montes Urais). Mas "sredni" é realmente uma palavra russa que significa "médio". Pode ser mera casualidade, mas fiquei curioso.

O Sredni do título levou-me a pensar, antes de começar a ler o conto, que o título tinha alguma conotação geográfica e se ambientaria algures no espaço russófono. Completo engano. O Sredni Vashtar de Saki é uma doninha, ou talvez um deus totémico qualquer.

Sim, que o conto é uma história protagonizada por um jovem que inventa uma religião pessoal, circunscrita ao seu ambiente próximo e centrada num barracão onde mora uma galinha e uma doninha. O jovem tem problemas de saúde que levam os médicos a dar-lhe pouco tempo para viver, mas para ele o pior são os cuidados sádicos e repressivos da prima que faz as vezes de progenitora. É esta repressão que o leva a refugiar-se na sua peculiar religião, nas orações a Sredni Vashtar, e em última análise no pedido que acaba por lhe fazer. Um pedido mortífero.

Este é um conto bastante bom, mas algo diferente dos contos de Saki (ou H. H. Munro) que li anteriormente na medida em que pouco humor aqui descortinei. Há ironia, alguma, mas esta é sobretudo situacional, não se refletindo lá muito no enredo propriamente dito, o qual é mais sombrio que outra coisa. Mas ainda não foi desta que encontrei uma história de Saki que não me tenha agradado, e isso é o mais importante.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 14 de novembro de 2020

Rikki Ducornet: Várias Doenças de Cabeça da Dra. Rikki Ducornet

Estas Várias Doenças de Cabeça da Dra. Rikki Ducornet (bibliografia), de, naturalmente, Rikki Ducornet, quase não merecem o nome de miniconto, pois não passam de uma série de ilustrações de doenças de cabeça, acompanhadas por legendas breves (e francamente difíceis de ler). São ilustrações curiosas e divertidas, especialmente quando emparelhadas com a respetiva legenda, mas não creio que passem disso. Há também uma introdução, como em todos os textos desta secção, que não sei por quem terá sido escrita (pode ter sido pela própria, pode não ter sido) e constitui a parte mais ficcional de tudo isto.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Gahan Wilson: Espasmo de Tuning

Tenho dito com alguma frequência que entre as histórias que o são mesmo e aquelas que se limitam a mimetizar o texto científico dos casos médicos, tendo a preferir as primeiras, e é verdade. Mas isso não quer dizer que todas as histórias-histórias me agradem mais que todas as histórias-caso-médico. Este Espasmo de Tuning (bibliografia) é um bom exemplo.

E é um bom exemplo porque não me parece que este conto seja bom, apesar de se tratar de uma história mesmo história. Gahan Wilson conta uma história de terror, protagonizada por um médico chamado Owen Tuning (sim, isto não tem nada a ver com carros), o qual é consultado por um paciente com estranhos sintomas que vêm mais tarde a revelar o seu cariz sobrenatural. E conta-a como uma história propriamente dita, com final surpresa e tudo. E se calhar, neste caso concreto, o problema é precisamente esse.

É que existe um equilíbrio fino entre a vontade de contar uma história e conservá-la credível enquanto caso médico num almanaque de doenças, por mais bizarras que estas sejam. Ora, as histórias anteriores que foram mesmo histórias conseguiram alcançar esse equilíbrio, e esse foi um dos motivos por que me agradaram tanto. Wilson parece não ter percebido que num livro destes esse equilíbrio é necessário, ou se percebeu não quis saber. E o resultado é mauzinho; esta história é um corpo estranho neste volume.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Isaac Asimov: As Lutas de Primavera

Se há coisa que me cansa são as americanices em volta da vida estudantil, com as suas regrinhas, os seus jocks e os seus nerds e as cheerleaders e o diabo a sete, e todo o interminável e monumental cliché de tudo aquilo. Não que seja impossível fazer boas histórias nesse ambiente, mas está tão absolutamente explorado, há uma saturação tão grande devido a milhares e milhares de filmecos soníferos e historietas noutras formas de expressão que dificilmente arranjo paciência para mais uma. E As Lutas de Primavera (bibliografia) é mais uma.

Tenta ser irónico, o velho Isaac Asimov. A coisa é declaradamente anti-jock, a história de um nerd, i.e., um tipo que pretende mesmo aprender alguma coisa com a estadia na universidade, que é por isso mesmo a vergonha da família, pois segundo as normas do meio social em que se move (de topo, claro, tipos cheios de guito) a universidade serve para socializar, não para aprender seja o que for. O que importa são os contactos.

Onde entra nisto o Azazel? Bem, é que a vergonha da família além de querer aprender não quer mesmo, mesmo, andar à bulha com ninguém. Até porque, se andar, apanha; é certo e sabido. Mas há uma rapariga na história, de quem o rapaz gosta, sentimento que até é razoavelmente correspondido por ela. Razoavelmente mas não o suficiente: prefere o bully da escola, um jock, evidentemente, só músculo e sem cérebro, mas irresistível para o sexo fraco. Misoginia? Ná! Impressão vossa. O Asimov é lá capaz de misoginia! De modos que lá vão falar com o diabretezinho para ver se este arranja forma do estudioso lingrinhas derrotar o calmeirão obtuso. E ele arranja, mas, claro, com consequências que acabam por se revelar desastrosas.

Esta é mais uma história sem interesse praticamente nenhum. O lado bom é que já só faltam duas e acabou-se o Azazel. E até pode ser que alguma das que faltam seja boa; há sempre essa esperança.

Contos anteriores deste livro:

Leiturtugas #75

Estas são as Leiturtugas correspondentes à primeira semana completa de outubro, de 5 a 11.

Ou por outra, esta é a leiturtuga correspondente a essa semana, pois só houve uma. Chega-nos por intermédio do Artur Coelho e trata-se da sua opinião sobre o romance de Aquilino Ribeiro, reeditado em 2019 pela Bertrand, Terras do Demo. Nada tem de FC, claro, pelo que o Artur passa a somar 5c12s.

Ainda não tive tempo para fazer o sorteio, pelo que por esta semana foi só isto. Daqui a dias teremos aqui as leiturtugas da semana seguinte. Até já.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Ângelo Brea: Lembranças da Terra

Já aqui falei de ficção científica portuguesa, já aqui falei de ficção científica brasileira, até já falei de aproximações a ficção científica angolana pela mão do Agualusa. Agora, e durante alguns meses, vou falar-vos de ficção científica vinda de outro ponto do mundo lusófono: a Galiza. E àqueles que possam achar estranho eu estar aqui a integrar a Galiza no mundo lusófono, pois oficialmente o galego é uma língua distinta do português, aconselho primeiro um saltinho ao artigo sobre o reintegracionismo na Wikipédia e explico depois que Ângelo Brea escreve aqui em galego reintegracionista, cuja distância face ao português não é maior do que a que existe entre os vários dialetos da nossa língua. Chame-lhe galego quem quiser, para mim este livro está simplesmente escrito em português. Numa variante um pouco diferente da minha, mas português.

Mas sobre o livro falarei mais adiante, depois de o ler todo. Para já, o que me traz aqui é o primeiro conto, Lembranças da Terra.

Este é uma ficção científica muito clássica e bastante seca, que enquanto fui lendo me fez lembrar os contos de António Bettencourt Viana que li não há muito tempo, tanto pelo estilo quanto por questões temáticas. Pelo menos neste primeiro conto as influências de Brea parecem ser mais ou menos as mesmas: a FC americana da golden age, talvez com foco em Asimov. A história é uma conversa não particularmente convincente entre um filho e os seus pais, os quais explicam ao jovem as origens deste. É que neste futuro de Brea não só há marcianos como existem marcianos que pretendem a independência do planeta face à Terra, e o jovem é um deles. Só que a história de origem, que Brea conta com muitas digressões algo acessórias, que usa para estabelecer os vários aspetos do universo ficcional que cria, radica precisamente na Terra.

Não sendo um conto particularmente estimulante, quer em termos literários, quer enquanto ficção científica, ganha algum interesse quando nos lembramos de que o autor é galego e a questão de uma eventual independência de Espanha, ou pelo menos de uma maior autonomia face ao governo central, está muito presente na política galega e de outras regiões periféricas do estado espanhol nas últimas décadas. O mundo real parece ter interferido na inspiração de Brea... o que de resto é uma constante na ficção científica.

domingo, 8 de novembro de 2020

Escrita de outubro

Uma imagem de desolação poderá ser spoiler?
(fonte)

Dizia eu sobre setembro que tinha sido um mês péssimo, não dizia? Heh. Pois olhem, outubro foi pior.

Pior ao ponto deste post ter este tamanhinho. É que realmente quase nada há para dizer: o mês ficou quase todo em branco, só tendo sido realizado algum trabalho já quase no fecho. Que trabalho? Ainda a revisão do romance, claro. O lado positivo é que essa revisão chegou ao fim. A coisa está feita, mas não está acabada porque durante a revisão cheguei à conclusão de que precisa de uma introdução, a qual também comecei a escrever ainda em outubro. O resultado é um total de texto escrito que nem a 300 palavras chega. Quase parece que voltei no tempo a 2018 e anos anteriores.

Como será novembro? Também não deve ser famoso, mas dificilmente será pior. Em dezembro saberemos. Até lá.

sábado, 7 de novembro de 2020

Guillaume Apollinaire: O Desaparecimento de Honoré Subrac

O que faz um sedutor não particularmente dotado no que toca a propensão para a violência, e menos ainda no quesito coragem, quando o marido corneado, que ainda por cima é brutamontes, decide que o primeiro objetivo da sua vida é limpar-lhe o sebo? Foge, naturalmente. E se se vir perseguido e na iminência de ser apanhado? Bem... há o sempre recurso in extremis ao mimetismo.

Pelo menos é essa a premissa deste conto de Guillaume Apollinaire. É por isso que desaparece o Honoré Subrac de O Desaparecimento de Honoré Subrac (bibliografia), pelo menos a princípio. Na verdade, ele não chega propriamente a desaparecer: usa a estratégia do polvo, nunca chega a perceber-se bem como, e funde-se com o que o rodeia. É para isso, de resto, que anda sempre vestido apenas com um sobretudo e pouco mais. Se lhe aparece o inimigo à frente, larga a roupa, fica nu, e mimetiza.

O mais curioso deste conto, para mim, já se deixa entrever no que ficou dito acima: o início é francamente divertido. Toda a situação e a estratégia do sedutor para se escapar ao cornudo são engraçadas e mais que um pouco ridículas. Mas no desenlace o conto muda de natureza, tomando um súbito tom trágico que tem mais impacto pelo contraste que faz com a leveza do que fica para trás. À partida, eu teria imaginado que algo assim não funcionaria, mas o facto é que funciona. O conto é interessante. Não será dos melhores contos que aqui se encontram, nem é dos contos mais elaborados que se possam imaginar — até porque é bastante curto — mas é francamente interessante.

Escrita de setembro


Setembro foi, de muito, muito longe, o pior mês desde que recomecei a escrever com regularidade. Não todo ele, que o princípio até foi bastante razoável. Mas o fim foi um desastre. É o termo certo. Um desastre.

Mas vamos por partes.

Comecei o mês a terminar o conto com que tinha acabado agosto. É um conto curto, portanto depressa se deixou concluir, ainda que não tenha saído lá muito bom. É possível que venha um dia a ser reescrito de cima a baixo, mas para já está feito. E depois, passei a tratar de algo que já estava pendente há demasiados meses: a revisão daquele romance que acabei mesmo no início do ano. Correu bem, a princípio. Umas pares removidas, umas partes acrescentadas, e o trabalho foi avançando depressa... até me cair o céu em cima da cabeça. Com estrondo.

Depois disso... nada. A mesma paralisação que aconteceu aqui na Lâmpada aconteceu em todo o trabalho literário próprio, isto é, tudo o que não fosse tradução. O resultado foi o mês terminar com um saldo de um pouco menos que 2000 palavras, quase insignificante quando comparado com o que tinha vindo a ser hábito nos meses anteriores. Foi um mês mau. Mas não foi o pior.

Daqui a dias falo-vos do pior.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Stepan Chapman: Doença Dirigível Birmanesa

Mais um conto/doença francamente bom, esta Doença Dirigível Birmanesa (bibliografia) saída da imaginação de Stepan Chapman, autor que assim de repente, sem confirmar, me parece que terá sido, e com alguma vantagem, o mais prolífico dos autores que contribuíram para a lenda de Thackery T. Lambshead. E chamo-lhe conto/doença em boa medida porque se trata mesmo de um conto, uma daquelas histórias-mesmo-histórias que de uma forma geral tendem a agradar-me bastante mais do que os textos que mais de perto tentam imitar a secura do texto clínico.

Como o nome indica, a doença foi identificada na Birmânia, na época em que os dirigíveis eram uma visão razoavelmente comum nos céus, e o conto relata como uma atividade de limpeza do interior dos balões cheios de hidrogénio, para a qual são usados (e explorados de forma francamente cruel, como era o padrão da época) trabalhadores locais, meros rapazes, sobretudo, tem como resultado a bizarra doença: o aparecimento de bolhas cheias de hidrogénio na sua pele. E o conto é tão conto que nem sequer termina com as habituais informações terapêuticas ou cirúrgicas, mas sim com um desfecho misterioso, claramente literário.

Este não será o pastiche de literatura médica (excêntrica ou não) mais bem sucedido que se encontra neste livro, estará até longe de o ser, mas é um conto bastante bom.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Leiturtugas #74

Estive aqui alguns dias a pensar (nos intervalos de coisas mais importantes, obviamente) na melhor forma de pôr em dia as Leiturtugas, e cheguei à conclusão de que o melhor era fazê-lo semana a semana, seguindo, portanto, o esquema habitual. Isto é, não com um post por semana, mas juntando em cada post as leiturtugas relativas a uma semana específica, às quais há de acrescer o tal sorteio que foi adiado mas não está esquecido. Correndo tudo bem, até porque vou dar prioridade a isto, deverei conseguir pôr-me em dia em duas ou três semanas, no máximo. Este post será, portanto, relativo à semana de 28 de setembro a 4 de outubro.

Os protagonistas foram os do costume. Setembro praticamente fechou com um daqueles posts do Artur Coelho sobre BD, nos quais ele dá uma breve opinião e faz uma chamada para um texto mais desenvolvido que publica noutro lado. Desta feita, a opinião é sobre o álbum Desvio, de Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho, publicado já este ano pela Planeta Tangerina. BD, portanto sem FC mesmo quando a tem, e o Artur passa a 5c11s.

E outubro praticamente abriu com um post da Carla Ribeiro, no qual ela divulga a sua opinião sobre uma edição que parece ser fantasia urbana. Falo de Correntes, uma novela, ou talvez noveleta, que foi edição da autora, Patrícia Novais. Não tem FC, portanto a Carla passa a 3c8s.

Ora bem, para o tal sorteio contam apenas as leiturtugas até ao fim de setembro, e até ao fim de setembro (isto é, sem contar com esta última da Carla) a situação era esta da tabela abaixo. Havia três participantes em dia, que portanto vão ter "cotação completa" no sorteio, mas o resto de nós vai com atrasos entre o recuperável e o só muito dificilmente recuperável, a não ser que nestes últimos três meses se dedique a sério a ler e comentar material português (sobretudo contos, em certos casos).

Publicação Já cumprido Falta cumprir Mês de início
Intergalactic Robot 5c11s 0 (1c) janeiro
Rascunhos 4c9s 0 (2c) janeiro
As Leituras do Corvo 3c7s 2 (3c) janeiro
Ideias de Leitora 1c0s 5 (2c) janeiro
A Lâmpada Mágica 3c3s 6 (3c) janeiro
O Prazer das Coisas 1c2s 9 (5c) janeiro
O Blog do Jauch 0c0s 12 (6c) janeiro
O Senhor Luvas 0c0s 12 (6c) janeiro
Portuguese Portal of Fantasy and Science Fiction 0c0s 12 (6c) janeiro
Words a la Carte 0c0s 12 (6c) janeiro

E é isto, por esta semana. A semana seguinte segue dentro de momentos, possivelmente já com o sorteio feito. Depende de o post ficar escrito antes ou depois de eu conseguir fazer o videozinho e metê-lo no youtube. De qualquer forma se não vier com as 75as. Leiturtugas virá com as 76as., ou assim. Até lá.

domingo, 1 de novembro de 2020

G. J. Couzens: Síndroma Gástrica Pré-Linguística

O texto anterior abre uma nova secção deste livro, uma secção retrospetiva das "edições anteriores" do Almanaque. Mas na verdade, e à parte esse texto em concreto, o conteúdo desta nova secção é muito semelhante ao conteúdo principal do livro: trata-se também aqui de descrições de estranhas maleitas, ainda que estas talvez pendam mais um pouco para o lado das "desacreditadas" do que das simplesmente "excêntricas".

Não será muito o caso deste Síndroma Gástrica Pré-Linguística (bibliografia), de G. J. Couzens, uma estranha (e quais não o são?) doença de estômago que, embora à superfície pareça uma simples úlcera quando é vista mais de perto ganha características bastante mais interessantes... e também bastante mais escabrosas.

A coisa revela-se nas autópsias dos escassíssimos casos confirmados da doença, as quais revelam que as paredes internas do estômago estão cobertas por estranhas marcas semelhantes a hieróglifos mas indecifráveis... o que explica o nome da doença/título. O escabroso fica por conta de uma sugestão razoavelmente sólida de que a forma de contração da doença é... ahem... sexo. Com cavalos. Hm... pois.

Esta é uma das histórias-mesmo-histórias que este livro contém, pelo que por essa via me agrada. Mas não é das melhores histórias-mesmo-histórias que aqui se encontram, pelo que acabou por não me ter agradado assim muito.

Textos anteriores deste livro: