Cada vez me dou menos ao trabalho de rebater afirmações caluniosas ou aquelas insinuaçõezinhas torpes que tão frequentes são no modo de agir daquelas pessoas que, tantas vezes a coberto do anonimato, vêm para a internet destilar veneno. Hoje, excecionalmente, vou fazê-lo como meio de mostrar algumas diferenças.
Num dos comentários a este post, um tal "Mario" que finge não ser anónimo usando um nome comum, mas na verdade é-o porque tem um perfil vazio e mais nada, acusa-me dissimuladamente de ser alguém que "à primeira oportunidade tenta agradar aos "grandes", e enche-se de razão e finge-se [sic] saber mais do que sabe." Provas do que diz? Não dá, claro. É a típica acusaçãozinha rasteira, não substanciada e vazia que este tipo de gente tanto gosta de usar.
O que eles deviam fazer, para que alguma hipótese houvesse de terem a mínima relevância no debate era, para começar, terem a coragem básica de se identificarem quando estão a falar com gente identificada. E em segundo lugar, de consubstanciarem o que dizem com algo que pelo menos se assemelhe a factos.
Dou um exemplo.
O mesmo "Mario" produz a seguinte afirmação, plena de elegância: "O problema dos acordistas é fazerem olho cego ao verdadeiro problema do Acordo: É uma imposição de traços ditatoriais. Nenhum deles tem testículos para discutir esse ponto."
Ou seja, segundo ele, o Acordo Ortográfico, ratificado por larga maioria na Assembleia da República pelos deputados eleitos pelo povo, o mesmo tendo acontecido com os protocolos retificativos, o último dos quais, lembro-me bem, foi ratificado em cumprimento de uma promessa eleitoral, é "uma imposição de traços ditatoriais". Ora eu, baseando-me nos factos supracitados, digo que esta afirmação é absolutamente idiota e revela que o nosso comentador anónimo nada sabe sobre o que é a democracia. Para ele, as coisas são democráticas quando são do seu agrado; se não são, trata-se de "imposições de traços ditatoriais".
Eis o ponto discutido por um "acordista". Pelos vistos tenho testículos. Viva eu.
Mas o verdadeiro ponto que aqui quero sublinhar é este: rebater um argumento com factos faz parte da discussão. Anular uma afirmação de totalitarismo com os factos a respeito do modo como o acordo foi aprovado pelas instituições democráticas deste país é, realmente, produzir argumentos. E avaliar os conhecimentos ou a ignorância de quem faz uma tal afirmação com base no resultado desses argumentos é legítimo e inteiramente válido.
Pelo contrário, atirar retórica insubstanciada e caluniosa ao ar não passa de lixo.
Já há demasiado lixo por aí. Não façam mais. Mas se não conseguirem resistir, e bem sei que há por aí muita gente que não consegue resistir a produzir lixo, não esperem que eu me dê ao trabalho de vos dar alguma atenção. Vão ficar a falar sozinhos. Temos pena.
domingo, 29 de abril de 2012
sábado, 28 de abril de 2012
Lido: Ajolote
Ajolote é um conto de ficção científica do argentino Santiago Oviedo que postula um futuro biologicamente distópico, no qual a humanidade caiu vítima de uma epidemia para a qual não se consegue encontrar cura, ao mesmo tempo que as cidades vão submergindo, provavelmente inundadas em consequência do aquecimento global, muito embora isso nunca chegue a ser afirmado taxativamente. Pareceu-me um conto muito bem escrito, com uma linguagem cuidada, em especial no princípio, embora caia aqui e ali em infodumps que não me parecem particularmente bem interligados com o resto do conto. À parte essa questão dos infodumps, também me pareceu bem elaborado, no sentido de ter tudo mais ou menos no sítio certo. Um bom conto, portanto?
Mais devagar.
É que no que toca às ideias... custou-me muito engolir algumas. Há a recuperação de velhos conceitos New Age sobre a Terra como organismo vivo e consciente, a teoria de Gaia. Há uma certa atmosfera ludita, que encara o Homem e a sua tecnologia como uma doença que Gaia tenta expulsar. É isso que explica a epidemia. O Homem e a civilização que construiu estão a ser exterminados por uma espécie de sistema imunológico (e vão ter de ler para ficarem a saber qual é o principal — ou será único? — vetor desse sistema) de Gaia-enquanto-superorganismo, como se não passássemos de bactérias ou de vírus.
São ideias razoavelmente comuns nos meios ecologistas, mas eu julgo que são profundamente erradas e que fazem mais mal que bem. Não vou entrar aqui numa discussão dos motivos mas, em pinceladas muito esquemáticas, posso dizer que têm a ver com o facto de que num sistema biológico tudo influencia tudo, tudo tem impacto no sistema como um todo e, consequentemente, nós não somos exceção, e com eu pensar que a tecnologia é uma ferramenta, moralmente neutra, que tanto pode ser usada para criar os problemas como para os resolver. Não creio que o problema seja de tecnologia, ou sequer de natureza humana. Creio que está na ideologia, na ignorância e na atitude perante a sociedade e o mundo que nos rodeia, tudo coisas alteráveis, com maior ou menor esforço.
Portanto não, não creio que este conto seja bom. Mas é, isso com toda a certeza, um conto interessante. Um conto com sumo. E isso, só por si, é bom. Mas nada como avaliarem por vós próprios. O conto está aqui.
Mais devagar.
É que no que toca às ideias... custou-me muito engolir algumas. Há a recuperação de velhos conceitos New Age sobre a Terra como organismo vivo e consciente, a teoria de Gaia. Há uma certa atmosfera ludita, que encara o Homem e a sua tecnologia como uma doença que Gaia tenta expulsar. É isso que explica a epidemia. O Homem e a civilização que construiu estão a ser exterminados por uma espécie de sistema imunológico (e vão ter de ler para ficarem a saber qual é o principal — ou será único? — vetor desse sistema) de Gaia-enquanto-superorganismo, como se não passássemos de bactérias ou de vírus.
São ideias razoavelmente comuns nos meios ecologistas, mas eu julgo que são profundamente erradas e que fazem mais mal que bem. Não vou entrar aqui numa discussão dos motivos mas, em pinceladas muito esquemáticas, posso dizer que têm a ver com o facto de que num sistema biológico tudo influencia tudo, tudo tem impacto no sistema como um todo e, consequentemente, nós não somos exceção, e com eu pensar que a tecnologia é uma ferramenta, moralmente neutra, que tanto pode ser usada para criar os problemas como para os resolver. Não creio que o problema seja de tecnologia, ou sequer de natureza humana. Creio que está na ideologia, na ignorância e na atitude perante a sociedade e o mundo que nos rodeia, tudo coisas alteráveis, com maior ou menor esforço.
Portanto não, não creio que este conto seja bom. Mas é, isso com toda a certeza, um conto interessante. Um conto com sumo. E isso, só por si, é bom. Mas nada como avaliarem por vós próprios. O conto está aqui.
quarta-feira, 25 de abril de 2012
Lido: O Caçador Gracus
O Caçador Gracus (bib.) é um conto curto de Franz Kafka sobre a chegada, numa barca, a altas horas da noite, do Caçador Gracus do título à cidade de Riva. Recebido pelo burgomestre, é de uma conversa entre os dois que o resto do conto consiste, na qual é explicado quem é o Caçador Gracus, que faz ele ali, e porque veio à cidade daquela forma algo sub-reptícia depois de terem sido avisadas as autoridades. Que há no conto de horror? Ditas as coisas assim, não parece haver nada. Mas o mais interessante neste conto é precisamente a forma como vai sendo transmitida a quem o lê a informação sobre quem é o tal Gracus.
É que o homem está morto.
Contos anteriores desta publicação:
É que o homem está morto.
Contos anteriores desta publicação:
Do provincianismo pacóvio
O provinciano pacóvio tem uma porcaria de casa, suja, pobre, desmazelada e desarrumada, mas que inclui uma linda (acha ele) sala de visitas cheia de bibelôs, mobília de mogno e a omnipresente estante envidraçada que contém as duas ou três pratas e porcelanas que foi conseguindo arranjar por portas travessas e com grande sacifício, destinadas a mostrar uma prosperidade que não existe. Nunca ninguém vai a essa sala, exceto quando há visitas, não vá calhar partir-se alguma coisa, riscar-se o tampo da mesa, sujar-se alguma almofada de alguma cadeira, acontecer algum outro desastre do mesmo tipo, cair o Carmo e a Trindade. Nunca, exceto uma vez por semana, para limpar, sacudir o pó e as teias de aranha, mantê-la "apresentável".
O provinciano pacóvio só se preocupa com uma coisa: parecer. O centro da sua vida é a imagem externa e, para arranjar uma imagem externa que seja consentânea com aquilo que pretende aparentar, entra em tais contorcionismos que para qualquer pessoa com coluna vertebral seriam um prodígio dos mais prodigiosos. Mas o provinciano pacóvio desembaraça-se com desenvoltura, pois não passa de um molusco de corpo mole, sem qualquer vestígio de espinha.
O provinciano pacóvio não é, obviamente, exclusivo da província. O seu provincianismo é um estado de espírito e uma filosofia de vida, uma verdadeira ideologia. Na capital há tantos provincianos pacóvios como na província. Ou mais, quiçá. Mas é um sinal de atavismo. Já nos textos de Eça, com século e meio de existência, se encontram precisamente os mesmos provincianos pacóvios que nos rodeiam hoje em dia. E até em alguns dos de Gil Vicente, bem mais antigos. É um nacional atraso de vida, uma velhíssima erva daninha com raízes bem profundas, e que para piorar as coisas tem a irritante tradição de invadir todo o tipo de "elites" neste desgraçado país.
Estou, claro, a falar do Cavaco. E de todo o nosso governo atual, sempre tão obcecado com o que os estrangeiros vão pensar. Ambos, vai-se tornando cada vez mais claro, herdeiros diretos do mais pacóvio de todos os regimes, o salazarismo.
Mas o provincianismo pacóvio não é exclusivo da política, muito longe disso. Aparece por todo o lado, neste país cheio de provincianos pacóvios, mais preocupados em parecer prósperos e competentes e tantas outras qualidades do que em realmente fazerem um pequeno esforço para serem prósperos e competentes, para terem de facto essas qualidades. Para o verem, até, talvez, em vós próprios, basta abrirem os olhos.
Pois é precisamente essa a sugestão que vos deixo neste 25 de Abril de 2012: abram os olhos.
O provinciano pacóvio só se preocupa com uma coisa: parecer. O centro da sua vida é a imagem externa e, para arranjar uma imagem externa que seja consentânea com aquilo que pretende aparentar, entra em tais contorcionismos que para qualquer pessoa com coluna vertebral seriam um prodígio dos mais prodigiosos. Mas o provinciano pacóvio desembaraça-se com desenvoltura, pois não passa de um molusco de corpo mole, sem qualquer vestígio de espinha.
O provinciano pacóvio não é, obviamente, exclusivo da província. O seu provincianismo é um estado de espírito e uma filosofia de vida, uma verdadeira ideologia. Na capital há tantos provincianos pacóvios como na província. Ou mais, quiçá. Mas é um sinal de atavismo. Já nos textos de Eça, com século e meio de existência, se encontram precisamente os mesmos provincianos pacóvios que nos rodeiam hoje em dia. E até em alguns dos de Gil Vicente, bem mais antigos. É um nacional atraso de vida, uma velhíssima erva daninha com raízes bem profundas, e que para piorar as coisas tem a irritante tradição de invadir todo o tipo de "elites" neste desgraçado país.
Estou, claro, a falar do Cavaco. E de todo o nosso governo atual, sempre tão obcecado com o que os estrangeiros vão pensar. Ambos, vai-se tornando cada vez mais claro, herdeiros diretos do mais pacóvio de todos os regimes, o salazarismo.
Mas o provincianismo pacóvio não é exclusivo da política, muito longe disso. Aparece por todo o lado, neste país cheio de provincianos pacóvios, mais preocupados em parecer prósperos e competentes e tantas outras qualidades do que em realmente fazerem um pequeno esforço para serem prósperos e competentes, para terem de facto essas qualidades. Para o verem, até, talvez, em vós próprios, basta abrirem os olhos.
Pois é precisamente essa a sugestão que vos deixo neste 25 de Abril de 2012: abram os olhos.
domingo, 22 de abril de 2012
Transignorâncias 5: Mutantis mutandis
O Universo em que vivemos, diz-nos a física, é composto por duas coisas: energia, nas suas várias formas (incluindo a matéria), e tempo. Diz-nos também a física que quando se junta energia ao tempo obtém-se movimento. E movimento é igual a mudança.
Tudo no universo muda. Umas coisas mais depressa, outras tão lentamente que para as que mudam depressa parecem imutáveis. A velocidade da mudança depende diretamente da energia nela envolvida. Fenómenos de alto gasto energético, como a vida, mudam depressa; fenómenos onde os fluxos energéticos são baixos, como as reações químicas não vulcânicas na litosfera, mudam devagar. É por isso que a vida dos organismos passa num piscar de olhos, e os fósseis que eles geram perduram por aquilo que nos parece ser eternidades. É por isso que a vida é mudança e o fóssil, o esqueleto, a morte, são permanência.
É também por isso que as únicas línguas que não mudam são as mortas. As línguas vivas mudam, e quanto mais vivas são mais depressa mudam. Essa mudança é uma força constante, irresistível como um tsunami. É fútil tentar impedi-la. Na verdade, é pior que fútil: é estúpido.
Perante a mudança linguística há duas atitudes possíveis, as mesmas que existem na relação que vamos tendo com as inundações. Há quem tente erigir muros contra a mudança, construir diques, blindá-los, criar ilhas de imutabilidade, isolar-se das águas que as assolam. E têm sucesso enquanto a cheia é pequena. Mas quando ela é grande, e mais tarde ou mais cedo ela acaba mesmo por ser grande, a falha dos diques, inevitável, torna a catástrofe muitíssimo mais devastadora. Entre outras coisas, foi isso que nos ensinou o Katrina. De modo que a engenharia moderna procura outro caminho. Em vez de erguer barreiras contra as cheias, prefere construir pontos de fuga e escape, por onde a cheia possa seguir sem causar danos de maior às infrastruturas que temos como mais importantes. Em lugar de tentarmos reter as águas da mudança, tentamos dirigi-las, conduzi-las para locais seguros.
São também essas as duas atitudes que podemos ter perante a mudança linguística. Há quem resista a todas as mudanças, procurando criar diques cada vez mais altos, isolando-se em ilhazinhas cada vez mais pequenas de irredutível "pureza" (que nada tem de puro, visto ser fruto de milénios da mesmíssima mudança que eles procuram agora interromper... mas eles julgam que tem). Com isso só conseguirão adiar o inevitável, e ser depois completamente varridos do mapa quando o inevitável finalmente acontecer.
Outros, preferem acompanhar a mudança, tentando dirigi-la, incentivando as partes dela que consideram seguras ou benignas, e erguendo pequenas barreiras contra aquela que julgam poder causar maiores estragos. É o que fazemos nós, os que apoiamos a reforma ortográfica. Apoiamo-la por ser uma daquelas mudanças que, globalmente, dirige a vertente escrita da língua por caminhos que pouco ou nenhum estrago poderão causar no futuro. Porque sem termos de perder tempo a ensinar às criancinhas regras incongruentes e cheias de exceções sobre escrever-se, ou não, certas letras em certas palavras, talvez consigamos usar esse tempo a explicar-lhes que escreverem coisas como "nós faze-mos" é muito, muito mau. Porque se tivermos uma ortografia com alguma coerência, uma ortografia que se ensine depressa e bem, talvez consigamos arranjar espaço nos currículos e nas salas de aula para explicar aos pivôs dos telejornais, anos antes de eles se tornarem pivôs dos telejornais, enquanto ainda estão sentados nos bancos da escola, que dizer coisas como "há vinte anos atrás" é um disparate, pois o "há" já indica, por si só, que estamos a falar do passado. Em suma, porque incentivando a mudança que não estraga poderemos dedicar-nos a combater a mudança que estraga.
Há cem anos (sem "atrás" nenhum, se me fizerem esse grande favor), fez-se uma grande reforma ortográfica na língua portuguesa, tão grande que mete a atual num chinelo de insignificância. Nessa época não faltaram profetas da desgraça a antever o fim do mundo. Pois bem: o mundo ainda cá está, a língua também, houve durante estes cem anos quem a usasse com uma qualidade superlativa, quem nela inovasse sabendo muito bem o que estava a fazer e porquê, quem aproveitasse e adaptasse as melhores das mudanças para com elas fazer arte, ao mesmo tempo que, com essa seleção, combatia as piores. Houve e há grandes poetas e escritores a usar a língua com enorme qualidade, em todos os pontos do mundo em que ela vive, e o número de pessoas que dela se servem quotidianamente multiplicou-se muitas vezes. Há cem anos, não passávamos de alguns milhões os que estávamos expostos a ela todos os dias; hoje, é toda a população do planeta com uma ligação à internet, porque esta nossa língua em eterna mudança é, entre as milhares de línguas da Terra, a quinta mais usada online.
Foi este o "fim do mundo" que aconteceu após 1911. E é parecido com este o "fim do mundo" que podemos esperar desta reforma ortográfica. Um "fim do mundo" feito de crescimento e desenvolvimento, que devíamos todos acolher de braços abertos. Mas há quem não consiga perceber estas coisas. Nada a fazer.
Outros, contudo, percebem. E é com eles, e só com eles, que o futuro conta.
Transignorâncias anteriores:
Tudo no universo muda. Umas coisas mais depressa, outras tão lentamente que para as que mudam depressa parecem imutáveis. A velocidade da mudança depende diretamente da energia nela envolvida. Fenómenos de alto gasto energético, como a vida, mudam depressa; fenómenos onde os fluxos energéticos são baixos, como as reações químicas não vulcânicas na litosfera, mudam devagar. É por isso que a vida dos organismos passa num piscar de olhos, e os fósseis que eles geram perduram por aquilo que nos parece ser eternidades. É por isso que a vida é mudança e o fóssil, o esqueleto, a morte, são permanência.
É também por isso que as únicas línguas que não mudam são as mortas. As línguas vivas mudam, e quanto mais vivas são mais depressa mudam. Essa mudança é uma força constante, irresistível como um tsunami. É fútil tentar impedi-la. Na verdade, é pior que fútil: é estúpido.
Perante a mudança linguística há duas atitudes possíveis, as mesmas que existem na relação que vamos tendo com as inundações. Há quem tente erigir muros contra a mudança, construir diques, blindá-los, criar ilhas de imutabilidade, isolar-se das águas que as assolam. E têm sucesso enquanto a cheia é pequena. Mas quando ela é grande, e mais tarde ou mais cedo ela acaba mesmo por ser grande, a falha dos diques, inevitável, torna a catástrofe muitíssimo mais devastadora. Entre outras coisas, foi isso que nos ensinou o Katrina. De modo que a engenharia moderna procura outro caminho. Em vez de erguer barreiras contra as cheias, prefere construir pontos de fuga e escape, por onde a cheia possa seguir sem causar danos de maior às infrastruturas que temos como mais importantes. Em lugar de tentarmos reter as águas da mudança, tentamos dirigi-las, conduzi-las para locais seguros.
São também essas as duas atitudes que podemos ter perante a mudança linguística. Há quem resista a todas as mudanças, procurando criar diques cada vez mais altos, isolando-se em ilhazinhas cada vez mais pequenas de irredutível "pureza" (que nada tem de puro, visto ser fruto de milénios da mesmíssima mudança que eles procuram agora interromper... mas eles julgam que tem). Com isso só conseguirão adiar o inevitável, e ser depois completamente varridos do mapa quando o inevitável finalmente acontecer.
Outros, preferem acompanhar a mudança, tentando dirigi-la, incentivando as partes dela que consideram seguras ou benignas, e erguendo pequenas barreiras contra aquela que julgam poder causar maiores estragos. É o que fazemos nós, os que apoiamos a reforma ortográfica. Apoiamo-la por ser uma daquelas mudanças que, globalmente, dirige a vertente escrita da língua por caminhos que pouco ou nenhum estrago poderão causar no futuro. Porque sem termos de perder tempo a ensinar às criancinhas regras incongruentes e cheias de exceções sobre escrever-se, ou não, certas letras em certas palavras, talvez consigamos usar esse tempo a explicar-lhes que escreverem coisas como "nós faze-mos" é muito, muito mau. Porque se tivermos uma ortografia com alguma coerência, uma ortografia que se ensine depressa e bem, talvez consigamos arranjar espaço nos currículos e nas salas de aula para explicar aos pivôs dos telejornais, anos antes de eles se tornarem pivôs dos telejornais, enquanto ainda estão sentados nos bancos da escola, que dizer coisas como "há vinte anos atrás" é um disparate, pois o "há" já indica, por si só, que estamos a falar do passado. Em suma, porque incentivando a mudança que não estraga poderemos dedicar-nos a combater a mudança que estraga.
Há cem anos (sem "atrás" nenhum, se me fizerem esse grande favor), fez-se uma grande reforma ortográfica na língua portuguesa, tão grande que mete a atual num chinelo de insignificância. Nessa época não faltaram profetas da desgraça a antever o fim do mundo. Pois bem: o mundo ainda cá está, a língua também, houve durante estes cem anos quem a usasse com uma qualidade superlativa, quem nela inovasse sabendo muito bem o que estava a fazer e porquê, quem aproveitasse e adaptasse as melhores das mudanças para com elas fazer arte, ao mesmo tempo que, com essa seleção, combatia as piores. Houve e há grandes poetas e escritores a usar a língua com enorme qualidade, em todos os pontos do mundo em que ela vive, e o número de pessoas que dela se servem quotidianamente multiplicou-se muitas vezes. Há cem anos, não passávamos de alguns milhões os que estávamos expostos a ela todos os dias; hoje, é toda a população do planeta com uma ligação à internet, porque esta nossa língua em eterna mudança é, entre as milhares de línguas da Terra, a quinta mais usada online.
Foi este o "fim do mundo" que aconteceu após 1911. E é parecido com este o "fim do mundo" que podemos esperar desta reforma ortográfica. Um "fim do mundo" feito de crescimento e desenvolvimento, que devíamos todos acolher de braços abertos. Mas há quem não consiga perceber estas coisas. Nada a fazer.
Outros, contudo, percebem. E é com eles, e só com eles, que o futuro conta.
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sábado, 21 de abril de 2012
Les bons esprits se rencontrent
Li há dias alguém dizer que a maioria das pessoas que conhece prefere ler segundo a antiga ortografia.
Tenho a certeza absoluta de que é a mais pura das verdades. Mas a maioria das pessoas que eu conheço prefere ler coisas bem escritas e bem elaboradas, seja qual for a ortografia. Tanto lhes dá se é a moderna, se é a antiga, se é a portuguesa, se é a brasileira, se é, até, a orthographia pseudo ethymologica anterior a 1911. Para isso, estão-se basicamente nas tintas, e são suficientemente inteligentes e flexíveis para saltar de uma para outra sem qualquer dificuldade (ou sem grande dificuldade quando é a anterior a 1911, que é a que mais se afasta de todas as outras). Porque o que a maioria das pessoas que eu conheço quer mesmo é ler coisas interessantes, escritas em bom português.
Mas repito: não tenho a mínima dúvida de que o que a tal pessoa de que falei no princípio disse é a mais absoluta das verdades. É que les bons esprits se rencontrent. Great minds think alike. E etc.
E o inverso também é verdadeiro.
Tenho a certeza absoluta de que é a mais pura das verdades. Mas a maioria das pessoas que eu conheço prefere ler coisas bem escritas e bem elaboradas, seja qual for a ortografia. Tanto lhes dá se é a moderna, se é a antiga, se é a portuguesa, se é a brasileira, se é, até, a orthographia pseudo ethymologica anterior a 1911. Para isso, estão-se basicamente nas tintas, e são suficientemente inteligentes e flexíveis para saltar de uma para outra sem qualquer dificuldade (ou sem grande dificuldade quando é a anterior a 1911, que é a que mais se afasta de todas as outras). Porque o que a maioria das pessoas que eu conheço quer mesmo é ler coisas interessantes, escritas em bom português.
Mas repito: não tenho a mínima dúvida de que o que a tal pessoa de que falei no princípio disse é a mais absoluta das verdades. É que les bons esprits se rencontrent. Great minds think alike. E etc.
E o inverso também é verdadeiro.
domingo, 15 de abril de 2012
Lido: O Golfinho Malhado
O Golfinho Malhado (bib.) é uma vinheta fantástica e surreal de Bruce Holland Rogers que conta a história de uma família, na qual um dos membros não se conforma com a vida que supostamente cabe a cada um. Em vez de seguir o caminho habitual, os estudos, as relações, o casamento, os filhos e o trabalho, isto é, em vez de se deixar levar pela vida, o rapaz prefere escolher o seu próprio caminho, e viaja, deixando-se fascinar tanto com o mundo e as coisas, que a certo ponto começa a transformar-se nele. Um continho bastante bom sobre o inconformismo, mas também sobre aquilo de que este obriga a abdicar. Curto, mas fica-se a pensar.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Lido: Ritinha
Ritinha (bib.) é um conto curto próximo do horror, de José de Lemos, contado na primeira pessoa por um jovem que se casa, mais por conveniência do que outra coisa, com uma conhecida de infância, filha do sócio do pai. A Ritinha, precisamente. Mas a Ritinha não é uma pessoa vulgar; é uma pessoa que se vai desfazendo em fantasma, que se vai tornando incorpórea, que vai perdendo os laços que prendem as pessoas vulgares ao mundo vulgar de todos os dias. E que, para grande horror do marido, tenta levá-lo consigo para onde quer que se situe o sítio extramaterial para o qual se retira. É um conto interessante, embora, aqui e ali, um pouco ridículo, que termina com um final em aberto inquietante... pelo menos para o protagonista.
O que achei mais curioso neste conto foi o que me pareceu entrever por trás: a velha irritação e resistência masculinas perante as tentativas mais ou menos denodadas que as mulheres que se cruzam connosco na vida têm tendência a desenvolver para mudarem quem somos, como agimos e como encaramos o mundo. O protagonista só quer continuar calmamente na sua, mas isso não o salva de ser atormentado por uma Ritinha cada vez mais alienada da realidade. O homem que nunca sentiu o mesmo que lhe atire a primeira pedra.
Apesar de não ter achado este conto nada de superlativo, gostei.
O que achei mais curioso neste conto foi o que me pareceu entrever por trás: a velha irritação e resistência masculinas perante as tentativas mais ou menos denodadas que as mulheres que se cruzam connosco na vida têm tendência a desenvolver para mudarem quem somos, como agimos e como encaramos o mundo. O protagonista só quer continuar calmamente na sua, mas isso não o salva de ser atormentado por uma Ritinha cada vez mais alienada da realidade. O homem que nunca sentiu o mesmo que lhe atire a primeira pedra.
Apesar de não ter achado este conto nada de superlativo, gostei.
Lido: El Interrogatorio
El Interrogatorio, do mexicano Carlos R. Flores Gutiérrez, é um pequeno conto de ficção científica de laboratório que joga de forma interessante com paradoxos temporais. Contado na primeira pessoa, o protagonista é um cientista que resolve abreviar o procedimento de testes da sua recém-desenvolvida máquina do tempo, enviando-se a si próprio ao futuro para uma breve viagem. Para quê fazer metodicamente os testes todos, se é possível dar um saltinho ao futuro, conversar consigo próprio e ficar logo a saber se tudo funciona convenientemente? Não é? Só que ao chegar ao futuro, o nosso protagonista depara com o laboratório incendiado. E as coisas correm cada vez pior a partir daí.
Não sendo nenhum prodígio de originalidade, longe disso, é, contudo, um continho com algum interesse e bem concebido. Dos quatro contos desta página, este foi o que mais me agradou. É qualquer coisa.
Não sendo nenhum prodígio de originalidade, longe disso, é, contudo, um continho com algum interesse e bem concebido. Dos quatro contos desta página, este foi o que mais me agradou. É qualquer coisa.
quinta-feira, 12 de abril de 2012
Sobre RSI, caridadezinha e burrice
Estou positivamente farto do Mota Soares e de toda a supinamente imbecil conversa do CDS sobre aquilo a que se costuma chamar Rendimento Mínimo ou, na simpática terminologia da extrema-direita, "subsídio à preguiça". Porquê?
Façamos uma experiência de lógica, sim?
Para princípio de conversa, é falso que quem esteja a receber o RSI seja alguém que não quer trabalhar. É igualmente falso que os recebimentos sejam fraudulentos. Haverá casos de ambas as coisas, sem dúvida, mas a maioria dos casos não é assim, em particular numa altura como a que atravessamos em que o desemprego sobe de forma galopante e há todos os dias novas famílias a cair em situações de carência absoluta, com vontade de trabalhar ou sem ela.
Mas para a nossa experiência de lógica suponhamos que sim. Suponhamos que todos os beneficiários do RSI sejam gente que não quer trabalhar e/ou pessoas que recebem o "subsídio à preguiça" de forma fraudulenta. E perguntemos a nós próprios o seguinte: que fará essa gente se o RSI lhes for cortado?
A resposta não é difícil de encontrar, até porque é o próprio governo a incentivar a alternativa.
Essa gente salta do RSI para a caridadezinha. Passa a frequentar as misericórdias, a comer nas sopas dos pobres, torna-se subitamente muito católica, muito agradecida a nosso senhor. Porque é evidente que para quem não quer trabalhar tanto lhe dá se a comida é entregue pelo Estado ou pela Santa Madre ICAR, e quem engana o Estado não terá o mínimo escrúpulo em enganar o padre ou as beatas da Misericórdia.
Certo?
Só que há aqui um mas. E o mas é que iniciativas como o RSI sempre vieram com regras e fiscalização atrás. Não é um regabofe, um fartar vilanagem. Umas e outras serão insuficientes, porque o são sempre, mas existem. E isso quer dizer que há algum controlo sobre se aquelas pessoas estão realmente a (re)inserir-se na sociedade ou não, se realmente precisam dos apoios ou se se estão simplesmente a aproveitar deles.
E na caridadezinha não há.
Na caridadezinha é o fartar vilanagem.
Recentemente morreu o padre aqui da minha zona. Era um homem bom (há uns quantos), que oferecia refeições aos necessitados, e era o primeiro a admitir que não fazia a mínima ideia se as pessoas que lhe apareciam seriam realmente necessitadas ou não. Nem tinha como saber. A operação que geria não tinha fiscais; era ele e um punhado de voluntários. Se ele não fosse um homem bom (também há uns quantos; eu acho que muito mais numerosos do que os bons, vocês lá saberão o que acham), provavelmente faria o controlo de uma forma simples e pragmática: vais à igreja, mereces, não vais, não mereces. Mas aquele era um homem bom, portanto todos os que lhe iam bater à porta eram servidos.
E a caridadezinha é isto.
Portanto, as mesmas pessoas preguiçosas e fraudulentas que na nossa experiência mental deixam de receber RSIs fiscalizados passam a ir servir-se, com total à-vontade e desfaçatez, à caridadezinha dos homens bons, ou então a submeter-se às regras arbitrárias e motivadas por coisas bem menos nobres do que o apoio a cidadãos caídos em situação de carência da caridadezinha dos homens maus.
Qual dos dois sistemas é o melhor? Caridadezinha ou RSI? Eu não tenho a mais pequena dúvida: o RSI. Mesmo se todos os seus beneficiários forem os canalhas e abusadores de que a extrema-direita tanto gosta de falar. E como nem todos o são, como a maioria não o é, mais ainda. Porque acho peferível que alguns vigaristas se escapem entre as malhas da fiscalização do que não haver fiscalização alguma ou uma fiscalização arbitrária baseada em critérios que nada têm a ver com as reais carências das pessoas.
Porque, em suma, substituir um sistema em que existe uma fiscalização imperfeita por outro em que a fiscalização é coisa nenhuma é, numa palavra, uma burrice.
Façamos uma experiência de lógica, sim?
Para princípio de conversa, é falso que quem esteja a receber o RSI seja alguém que não quer trabalhar. É igualmente falso que os recebimentos sejam fraudulentos. Haverá casos de ambas as coisas, sem dúvida, mas a maioria dos casos não é assim, em particular numa altura como a que atravessamos em que o desemprego sobe de forma galopante e há todos os dias novas famílias a cair em situações de carência absoluta, com vontade de trabalhar ou sem ela.
Mas para a nossa experiência de lógica suponhamos que sim. Suponhamos que todos os beneficiários do RSI sejam gente que não quer trabalhar e/ou pessoas que recebem o "subsídio à preguiça" de forma fraudulenta. E perguntemos a nós próprios o seguinte: que fará essa gente se o RSI lhes for cortado?
A resposta não é difícil de encontrar, até porque é o próprio governo a incentivar a alternativa.
Essa gente salta do RSI para a caridadezinha. Passa a frequentar as misericórdias, a comer nas sopas dos pobres, torna-se subitamente muito católica, muito agradecida a nosso senhor. Porque é evidente que para quem não quer trabalhar tanto lhe dá se a comida é entregue pelo Estado ou pela Santa Madre ICAR, e quem engana o Estado não terá o mínimo escrúpulo em enganar o padre ou as beatas da Misericórdia.
Certo?
Só que há aqui um mas. E o mas é que iniciativas como o RSI sempre vieram com regras e fiscalização atrás. Não é um regabofe, um fartar vilanagem. Umas e outras serão insuficientes, porque o são sempre, mas existem. E isso quer dizer que há algum controlo sobre se aquelas pessoas estão realmente a (re)inserir-se na sociedade ou não, se realmente precisam dos apoios ou se se estão simplesmente a aproveitar deles.
E na caridadezinha não há.
Na caridadezinha é o fartar vilanagem.
Recentemente morreu o padre aqui da minha zona. Era um homem bom (há uns quantos), que oferecia refeições aos necessitados, e era o primeiro a admitir que não fazia a mínima ideia se as pessoas que lhe apareciam seriam realmente necessitadas ou não. Nem tinha como saber. A operação que geria não tinha fiscais; era ele e um punhado de voluntários. Se ele não fosse um homem bom (também há uns quantos; eu acho que muito mais numerosos do que os bons, vocês lá saberão o que acham), provavelmente faria o controlo de uma forma simples e pragmática: vais à igreja, mereces, não vais, não mereces. Mas aquele era um homem bom, portanto todos os que lhe iam bater à porta eram servidos.
E a caridadezinha é isto.
Portanto, as mesmas pessoas preguiçosas e fraudulentas que na nossa experiência mental deixam de receber RSIs fiscalizados passam a ir servir-se, com total à-vontade e desfaçatez, à caridadezinha dos homens bons, ou então a submeter-se às regras arbitrárias e motivadas por coisas bem menos nobres do que o apoio a cidadãos caídos em situação de carência da caridadezinha dos homens maus.
Qual dos dois sistemas é o melhor? Caridadezinha ou RSI? Eu não tenho a mais pequena dúvida: o RSI. Mesmo se todos os seus beneficiários forem os canalhas e abusadores de que a extrema-direita tanto gosta de falar. E como nem todos o são, como a maioria não o é, mais ainda. Porque acho peferível que alguns vigaristas se escapem entre as malhas da fiscalização do que não haver fiscalização alguma ou uma fiscalização arbitrária baseada em critérios que nada têm a ver com as reais carências das pessoas.
Porque, em suma, substituir um sistema em que existe uma fiscalização imperfeita por outro em que a fiscalização é coisa nenhuma é, numa palavra, uma burrice.
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