domingo, 31 de outubro de 2021

Leiturtugas #126

Então boas. Prontos para mais uma lista de Leiturtugas? Vamos lá.

É uma lista curta, das mais curtas que temos tido nos últimos tempos. Entre os participantes oficiais, arrancou com o Artur Coelho e a sua opinião sobre a antologia Na Imensidão do Universo, uma compilação de histórias de space opera publicada este ano pela Divergência. O Artur já tem os mínimos do ano cumpridos, pelo que não vale a pena continuar a fazer a sua contabilidade. Mas o livro é de FC.

E quanto a oficiais fechou com ele. Mas tivemos também duas participações oficiosas.

Tivemos a Anabela Risso a opinar sobre mais um livrinho infantil, uma fábula de Carlos Nuno Granja intitulada A Zanga das Letras Comadres. Publicado pela Opera Omnia em 2013, este é mais um livro sem qualquer cheiro a FC.

E tivemos também a Isabel Daires, que opinou sobre a coletânea de horror de Mafalda Santos Conta-me, Escuridão, uma edição da Suma de Letras datada deste ano. De novo, nada aqui existe de FC. Ambos estes blogues, de resto, aparecem com frequência nestas listas mas parecem fugir da FC portuguesa como o diabo da cruz.

De FC é o Sally, o meu livrinho, cujo sorteio fiz na antepenúltima destas notas e sobre o qual falei na última informando que ainda não tinha encontrado casa nova. Pois agora já encontrou: vai para casa da Inês Montenegro, onde espero que seja feliz. Parabéns para ela!

E estamos sem nada para sortear. Já sabem: se algum autor ou editor quiser colaborar nisto, venha falar comigo.

Quanto às Leiturtugas, voltam para a semana. Até lá.

Irmãos Grimm: O Espírito na Garrafa

Ai julgavam que as histórias sobre espíritos (ou génios) presos em garrafas (ou em lâmpadas mágicas) eram só coisa das Mil e Uma Noites, é? Que eram só histórias das arábias? Ná. A verdade é que quanto mais contos populares leio, e não me refiro só a estes alemães mas a todos, mais me convenço de que um bom quinhão destas históries têm muito pouco a ver com a cultura específica de um lugar específico e muito a ver com um fundo cultural comum que abrange vastas áreas do planeta. Afinal, desde os tempos mais distantes que os seres humanos deambulam pela grande área continental euroasiatico-africana, e com eles sempre viajaram as suas histórias. E sendo nós como somos, é fácil de ver que assim que surgisse algum rudimento de língua em comum começaria de imediato a surgir também a troca de histórias, lendas, anedotas, enfim, de tudo aquilo de que se compõe a literatura popular.

Não que este O Espírito na Garrafa seja uma simples variante da história de Aladino. Está até bastante longe de o ser. Mas tem vários elementos em comum, a começar, obviamente, pela entidade mágica fechada na garrafa, em tudo semelhante ao génio que só sai da lâmpada quando alguém a esfrega. Nesta história, que não parece ser daquelas que os Irmãos Grimm não alteraram de todo mas também não é das "reconstruídas" a partir de várias fontes, conta-se a história de como um filho de lenhador se transforma num médico rico e famoso (há até versões que a associam a Paracelso). Que tem isso a ver com espíritos em garrafas? Bem...

Tem porque o rapaz vai ajudar o pai para a floresta, de machado em riste, e a dada altura depara com uma voz que vem de dentro de uma árvore. Investigando, descobre a tal garrafa num buraco na árvore. E dentro desta está o tal espírito. Espírito esse que é maligno e tenta matá-lo assim que se vê livre, mas também é estúpido o suficiente para o rapaz o dominar com um truque simples. Vendo-se de novo encurralado, promete-lhe mundos e fundos caso seja libertado, e desta vez cumpre.

Não é dos melhores contos que se podem encontrar por aqui, mas já vi esta ideia retrabalhada em livros de fantasia, o que é um bom indicador de também não ser dos piores. A fantasia literária (e não só) tem vindo beber muito nestas águas mas não bebe em todas. Só nas que considera inspiradoras.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Rainer Maria Rilke: A Fuga

Isto é engraçado. Levei anos a pegar neste livrinho, convencido (ou pelo menos com receio) de que as "histórias românticas" que o título alardeia fossem daquelas tragédias delicodoces e insuportavelmente sentimentalonas tão do agrado dos escritores do século XIX. Afinal, agora que o leio, descubro que não é nada disso. Preconceitos. São sempre uma bodega.

A Fuga, no entanto e a princípio, parece. Um casal de jovens, apaixonadíssimos e confrontados com resistências familiares, faz planos vagos de fugir de casa e partir para algures, juntos. Rainer Maria Rilke parece preparar-se para desenvolver um daqueles dramalhões de faca e alguidar, à moda antiga. Mas depois chega o momento de concretizar os planos, e a proverbial porca torce o rabo.

O rapaz descobre que os arroubos de paixão não resistem ao confronto com a destruição da vida que uma fuga daquelas originaria. Ao descobrir isso, descobre também que a paixão, se calhar, nem é tanta quanto isso. Que, em suma, assim que começa a pensar o romantismo perde para o pragmatismo. E vai tudo por água abaixo. Ou pelo contrário, talvez.

É um conto interessante, este. E, mais do que ser um conto romântico, é um conto que faz uma crítica ao romantismo.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Leiturtugas #125

E muito pouco tempo depois da anterior, aqui temos mais uma nota sobre Leiturtugas. Não foi ainda ao domingo, como é da praxe, mas foi à segunda-feira, que é quase a mesma coisa. Ahem.

Pois esta semana tivemos de tudo.

Tivemos participantes oficiais, começando, uma vez mais, pelo Artur Coelho, que publicou a sua opinião sobre mais um livro velhinho de ficção científica portuguesa: A. D. 2230, romance de Amílcar de Mascarenhas publicado em 1936 pela Parceria A. M. Pereira. Começa a aproximar-se do centenário, este livro. E o Artur passa assim a sinalefar 6c12s e cumpre os objetivos do projeto. A partir daqui é lucro.

Também tivemos uma opinião da Carla Ribeiro, desta feita sobre um daqueles livros infantojuvenis cheios de monstros e coisas horrendas. Com o título de A Criatura do Lago, escrito por Bruno Matos e ilustrado por Raquel Carrilho, suponho que seja basicamente um conto, publicado no mês passado pela Booksmile. Não tem é FC, aparentemente. A Carla passa assim a 3c11s.

O tal Jorge Candeias, que continuo sem fazer a mais pequena ideia de quem possa ser, apareceu a seguir com a sua opinião sobre mais um conto publicado em ebook pelo Fantasy & Co. Datado de 2014, O Caçador é de autoria de Pedro Pereira e trata-se de uma fantasia urbana com uns ecos de horror. FC? Nada. 5c3s para o gajo que opina.

Ah, mas calma que o gajo não se ficou por aí e opinou também sobre mais um conto publicado pelo Fantasy & Co. O Industrioso SL4V3 é de Ricardo Dias, data de 2015 e é uma história de FC, pelo que a sinalefa passa a 6c3s. E assim de repente faltam só três títulos para o objetivo ser cumprido. Vivam os contos, pá!

Quanto aos oficiosos, esta semana trouxe-nos dois:

A Daniela, cuja opinião sobre Ensaio Sobre o Dever, de Rute Simões Ribeiro, só me chegou agora apesar de ter sido publicada ainda em agosto. Bizarrias dos leitores RSS; são extremamente úteis mas às vezes destrambelham um bocadinho. Este livro é um romance distópico publicado em 2017 em edição da autora. Com FC, portanto.

E o Nuno Coelho, que desta vez opinou sobre Os Livros que Devoraram o Meu Pai, de Afonso Cruz, um livro publicado em 2010 pela Caminho que, tanto quanto eu saiba, não tem nenhum sinal de FC.

Para terminar, fica a notinha sobre ainda não termos ganhador do exemplar do Sally. A primeira publicação contactada não respondeu nas 48 horas da praxe, e a segunda está a meio do prazo. Vamos ver se no próximo domingo já cá poderemos revelar o feliz contemplado, como é de bom tom dizer-se. Até lá.

domingo, 24 de outubro de 2021

Bob Kurosaka: Quem Pode, Faz

Nunca tinha lido nada de Bob Kurosaka e, olhando para a quantidade de coisas de sua autoria listadas no ISFDB, o mais certo é nunca mais o voltar a ler. É, ou era, daqueles autores bissextos, que raramente escrevem ou raramente publicam. E não é, realmente, grande coisa como escritor. Mas se tudo o que escreve for como este Quem Pode, Faz (bibliografia) tem pelo menos alguma piada.

Trata-se de uma história de fantasia mais ou menos urbana. Estamos numa sala de aula universitária, e um estudante contrafeito confronta o professor de matemática para que este lhe explique a utilidade da matéria. Acha que para ele, pelo menos, não tem nenhuma, visto que o rapaz tem um dom. É mágico. E quando o professor ironiza com as suas vistas curtas, resolve mostrar o que sabe fazer. Não contava era ter pela frente um adversário mais do que à altura.

Há nesta história uma ironia que vai muito além da superfície da narrativa. Uma ironia que toma como alvo os estudantes universitários e a sua autossuficiência nascida de ideias equivocadas sobre os conhecimentos que realmente adquiriram ou os talentos com que nasceram. E essa ironia tem piada. É a sua melhor qualidade. Porque de resto, é uma historinha banal, sem grandes motivos de interesse.

Conto anterior desta publicação:

Ricardo Dias: O Industrioso SL4V3 (#leiturtugas)

Ah. Este conto é bom.

Estamos num planeta distante, a bordo de uma nave de exploração, a Vasco da Gama, de onde algum tempo antes de nós, leitores, lá chegarmos, os tripulantes saíram a fim de explorarem o planeta, deixando O Industrioso SL4V3 a cuidar da manutenção e proteção da nave. SL4V3 é um robô, e Ricardo Dias consegue com a essa designação de conotações desagradáveis criar logo à partida um clima de inquietação e ameaça, que no entanto não se concretiza de imediato. E já sabem: vai haver SPOILERS.

Quer dizer, existe desde o início ameaça, mas não o tipo de ameaça que a designação agoira. Por algum motivo que SL4V3 não compreende, os nativos do planeta insistem em atacar a nave, que ele vai defendendo como pode, mas com eficácia. Os nativos, no entanto, parecem tão industriosos como SL4V3, ou talvez mais ainda, e não se detêm nem perante fortes baixas, insistindo, insistindo sempre. E o robô lá vai congeminando novos planos de defesa, tendo em conta as reservas cada vez mais reduzidas de que dispõe, sabendo que a continuar assim será só questão de tempo até ser derrotado. E a tripulação, por onde andará?

No fim percebemos por onde anda a tripulação, embora não fosse nada de que não se suspeitasse já. Dias, no entanto, faz bem a revelação, sem deixar as pistas tão óbvias que a tornem dececionante, mas também sem incorrer noutro erro bastante comum em autores pouco experientes (e mesmo em alguns experientes), o deus ex machina.

Com uma prosa que não é famosa mas é funcional, e com um enredo bem concebido, este é dos melhores contos que encontrei até agora no Fantasy & Co.

Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

José Viale Moutinho: «Negra Sombra, Negra Sombra!»

Caraças! Que conto!

José Viale Moutinho leva-nos aqui à raia minhota e aos tempos da guerra civil espanhola, na época em que as tropas franquistas, já dominantes na Galiza, andam à caça de republicanos, reais ou imaginários, a fim de os prenderem, torturarem ou simplesmente assassinarem. Mas não nos leva diretamente; leva-nos através de cartas que um dos membros dos pelotões franquistas envia ao neto de uma das suas vítimas, não se percebe porquê. Ele, nas cartas, diz que é para pedir perdão, mas não parece lá muito. Há uma sombra bem negra sobre tudo, sim, como o título de «Negra Sombra, Negra Sombra!» (sim, com as aspas) bem indica.

A história é contada de modo episódico, entrecruzando-se o passado descrito pelas cartas com o presente, época em que o destinatário daquelas procura descobrir quem é o homem e o que há de verdade ou mentira no que lhe escreve. Pois as cartas são anónimas e enviadas de lugares diferentes, o que só adensa o mistério. E também há narrações de acontecimentos contemporâneos aos descritos nas cartas, mas vistos do lado de cá da fronteira, onde só chegam os ecos e os clarões dos tiros dados em Espanha e um ou outro galego fugido à guerra, sob o olhar atento da instituição que antecedeu a PIDE. O impacto do conto, no entanto, está todo na brutalidade franquista. Ou melhor, na mistura de brutalidade com a forma como o das cartas se pinta em jovem: um tipo normal que se deixa levar pela pressão de grupo e faz assim coisas imperdoáveis. E no fim, temos uma surpresa, que vistas bem as coisas não devia ser surpresa nenhuma.

Este é um conto muito bom. Mesmo muito bom. O melhor do livro até ao momento.

Contos anteriores deste livro:

Pedro Pereira: O Caçador (#leiturtugas)

Sempre achei algo bizarras as histórias contadas em primeira pessoa nas quais o protagonista/narrador acaba por morrer. Especialmente quando são escritas no passado. Há nelas uma violação que sempre me pareceu um bom bocado grosseira de uns quantos princípios de verosimilhança necessários para a suspensão da descrença indispensável para desfrutar de uma obra de ficção. Afinal, quem narra? O morto? E como é que o morto narra, exatamente? Hm?

Não que seja impossível fazê-las bem; há uns truques que, se bem aplicados, até resultam. Mas na generalidade dos casos os autores não usam esses truques e a coisa fica presa numa espécie de uncanny valley de onde não consegue sair.

E sim, se já supõem o que aí vem o mais certo é terem acertado. Pedro Pereira não usou esses truques. E a consequência é a primeira parte de O Caçador cair nesse uncanny valley, o que só é exacerbado pela mudança de ponto de vista na segunda parte. Compreende-se bem o que ele pretendeu fazer, mas o resultado é... bizarro. Sim, a palavra é essa. Bizarro. Atenção que vêm SPOILERS.

Na primeira parte do conto estamos em plena perseguição, na pele (porque a narração é em primeira pessoa, lá está) do perseguido. Parece-nos homem, sentimo-lo como homem, comiseramos com ele por ser homem. Mais bem escrito do que está, este trecho podia até ser bom, uma vez que Pedro Pereira até consegue criar alguma intensidade narrativa... até que o narrador morre e entramos no tal vale de que falo acima. Quem diabo narrou aquilo, afinal? E como?

Na segunda parte, muito curta, mudamos para a pele do caçador... e passamos, incongruentemente, a uma narrativa em terceira pessoa. Esta parte, na verdade, serve exclusivamente como final surpresa, para virar do avesso as expetativas do leitor. O caçado, afinal, não é um homem a ser perseguido por um monstro, mas um monstro a ser perseguido por um homem. É esta a ideia que o autor teve para o conto, e sem a bizarria anterior até talvez funcionasse. Mas como está, não funciona. É pena.

Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui.

Leiturtugas #124

Bem... isto desta vez atrasou bué. É esse o termo técnico: bué. Mas finjamos que não aconteceu, pelo menos até chegar o momento de explicar porquê, e façamos o post como habitualmente, referindo-se apenas à semana propriamente dita e não aos (muitos) dias que decorreram desde domingo.

Eis uma semana de Leiturtugas diferente. Porquê? Porque temos vídeo. E sorteio.

Mas antes, temos também aquilo que mais importa, as leiturtugas propriamente ditas. Chegam-nos pela mão do Artur Coelho, que prossegue o seu mergulho na obra de Altino do Tojal, opinando desta vez sobre Viagem a Ver o que Dá, romance fantástico publicado em 1993 pela Dom Quixote. Sem FC, o Artur passa assim a 5c12s.

E chegam-nos também pela mão da Carla Ribeiro, que desta feita nos fala de BD. O livro intitula-se Alma Mãe, primeiro volume da série Umbigo do Mundo, e os autores são Penim Loureiro e Carlos Silva. Edição deste ano d'A Seita e, sendo BD, conta como "sem FC". A Carla passa assim a 3c10s.

E chegam-nos também pela mão de um gajo que tem andado muito desaparecido, um tal Jorge Candeias, não sei se estão a ver quem é. Pois esta semana houve uma pequena desforra, com o aparecimento não de um post relativo às Leiturtugas, não de dois, mas de três.

Em dias sucessivos, falei aqui de três contos publicados pela Fantasy & Co. O primeiro é de autoria de Ricardo Dias, intitula-se Icarus Blues e é um conto de FC publicado em 2015. O segundo é de Pedro Pereira, data de 2013, e é um conto fantástico intitulado O Acordo. E o terceiro, também de Pedro Pereira e também de 2015, é outra história de FC, esta intitulada O Artefacto. Duas histórias com FC e uma sem, o que me leva à sinalefa de 5c2s.

E foi tudo o que aconteceu na semana. Tem sido bastante comum haver semanas só com participações oficiosas, mas acho que é a primeira vez que temos uma só com oficiais, desde que comecei a incluir os outros nestes posts, naturalmente.

Mas vamos aos outros. Temos um vídeo para mostrar. Cá está ele:


Este vídeo é o motivo do atraso deste post. É que não queria publicá-lo sem ter o sorteio do Sally feito, e esta semana tive enorme dificuldade em conjugar os momentos em que estava disponível para gravar isto com aqueles em que havia aqui à volta o sossego necessário para a gravação. Não é por acaso que o vídeo começa com "bom, vamos lá a ver se é desta": fiz várias tentativas, só conseguindo ser interrompido em todas. Ou quase todas. Grumpf.

Mas pronto, lá se fez. Agora vou contactar quem ficou em primeiro, a Despenteada, e se ela não quiser o livro (ou se não responder até domingo) passo à próxima e assim sucessivamente até alguém o querer. Se caírem aqui sem saberem o que raio é isto, está tudo explicado no último post. Onde também está uma fotografia do Sally, para quem não sabe o que é.

E pronto, já está. Retomaremos a programação normal no próximo domingo.

Espero eu.

domingo, 17 de outubro de 2021

Pedro Pereira: O Artefacto (#leiturtugas)

Este texto vem classificado como conto, mas não é um conto. Será porventura um primeiro capítulo de um texto mais extenso, o qual talvez nunca tenha sido escrito, mas conto, decididamente, não é. E isso é um problema.

Não sou, confesso, grande fã de finais em aberto. Principalmente porque acho difícil fazê-los bem. Um final, supostamente, deverá encerrar um arco de história, quando não encerra a história toda. E neste caso convém que o arco que encerra seja mais interessante do que aquele(s) que deixa em suspenso para que o leitor termine a leitura com alguma satisfação. Não sei se Pedro Pereira quis fazer isto (ou sequer se concorda comigo; pode ter outra opinião), mas se quis não conseguiu. Aquilo que fica em suspenso no final deste O Artefacto é bastante mais interessante do que o que se encerra.

O conto cheira a Star Wars por todo o lado. Num planeta habitado por uma espécie autóctone, os sakuki, há duas fações que procuram um certo artefacto de tecnologia avançada, produzido por uns tais inai. A protagonista é uma caçadora de prémios que é contratada para recuperar (i.e., roubar) o artefacto, mas acaba por descobrir ter-se metido em assuntos algo mais sérios do que julgava. E depois... não perca as cenas dos próximos capítulos.

E é pena a coisa ser assim cortada de forma tão incerimoniosa, porque aqui Pedro Pereira até conseguiu construir uma história com um ritmo interessante, pese embora o seu caráter altamente derivativo, e sem grandes fragilidades de escrita. Se fosse realmente um conto, esta história poderia ser significativamente melhor que as outras histórias suas que li até agora. Mas assim, a insatisfação que aquele final deixa para trás não permite que o seja.

Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui.

Ângelo Brea: Por Causas Naturais

Começo dizendo que este conto é incomparavelmente melhor que o anterior, o que não o impede de ter os seus problemas. E são vários, mas o principal mal deste Por Causas Naturais, onde voltamos a encontrar um Ângelo Brea igual a si próprio, com tudo o que isso iimplica, é ser tão previsível. Que quero eu dizer com isto? Bem...

Estamos em Marte, nos primeiros tempos da colonização do planeta, uma fase em que vão chegando pessoas novas em cada nave que faz o trajeto vindo da Terra, mas ainda em número reduzido. Numa dessas naves chega uma mulher, e vem grávida. Um daqueles azares: embarcara sem se saber grávida e quando se apercebera era tarde demais. E Brea faz questão de sublinhar que a imprensa tem a mania de especular sobre quem será a primeira pessoa a morrer em Marte. E a nascer, também. E nesse momento, o leitor que não seja completamente tapado fica a saber o fim do conto.

Para chegarmos a esse final, Brea destaca a mulher num posto de comunicações, afastado da base principal. Por que motivo um posto de comunicações haveria de ficar longe da colónia? Não é explicado e, sem ser explicado, não faz qualquer sentido. É dos tais artifícios que são usados apenas para dar mais tensão ao enredo, mas que acabam por ter o efeito oposto, desgastando a verosimilhança. E não chega, pois o autor ainda tem de arranjar uma das tempestades de poeira que por vezes envolvem o planeta inteiro. E assim a mulher fica isolada na altura do parto, sem que se saiba bem que efeitos poderá ter o ambiente marciano no desenvolvimento do feto. Soa tudo muito a coisa forçada para se atingir um fim determinado, o que torna esse fim completamente previsível.

E quando se junta a isso aquelas características que já se esperam das prosas do autor, a FC escrita à moda antiga e um tom excessivamente didático em que as personagens explicam umas às outras coisas que ambas sabem porque Brea acha que os leitores não sabem, o resultado é mais um conto bastante fraco. Brea já mostrou que é capaz de muito melhor que isto.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 16 de outubro de 2021

Pedro Pereira: O Acordo (#leiturtugas)

Existe um artifício narrativo que conheço pela sua designação inglesa, foreshadowing, mas julgo poder-se traduzir corretamente como "prefiguração", embora não saiba se é ou não essa a palavra usada pelos estudiosos da coisa literária quando escrevem em português. Consiste em antecipar elementos narrativos futuros, fornecer pistas ao leitor atento para o que está por vir. Pode ser extremamente eficaz em fornecer ao leitor aquela sensação satisfeita de "a-ha! Percebi-te!" Mas convém usá-lo com cautela: se a pista é demasiado óbvia é fácil destruir a surpresa e com ela a tensão narrativa, transformando a satisfação em aborrecimento.

E foi isso mesmo o que Pedro Pereira fez neste conto: deixou tudo tão óbvio que o final, que pretendia ser surpreendente, nada teve de surpresa.

O Acordo é um conto que vai beber profusamente ao velho e muito reutilizado mito de Fausto. O protagonista é um condenado à morte, segundo ele injustamente, e quando o Diabo lhe aparece com uma proposta que lhe poupa a vida ele não tem de pensar muito antes de aceitar. OK, já vimos centenas de coisas muito semelhantes. Mas o autor teve uma ideia que achou poder resgatar o conto do cliché, e resolveu fazer foreshadowing. Má ideia. O foreshadowing não funciona bem em textos tão curtos, porque uma coisa é dilui-lo no meio de uma floresta de outros factoides, outra bem diferente é pô-lo quase sozinho num conto que se lê em minutos. Fica tudo tão óbvio que dói, e a tentativa de foreshadowing transforma-se em mero spoiler. E sim, vêm aí spoilers. Que nem são propriamente spoilers, dado que o próprio autor os faz.

A questão é que o Diabo avisa o homem que lhe poupa a vida em troca da alma, trocando-o de corpo com alguém que está a assistir à execução. Todo o cenário é muito americano, sim; neste conto pouco há de português. Mas também o avisa de que o acordo só abrange esse momento; qualquer acidente que lhe possa acontecer depois está fora da alçada do combinado. E neste momento o leitor já sabe o que aí vem: o tipo vai sair vivo da cadeia mas pouco depois bate a bota num acidente qualquer. Óbvio, dolorosamente óbvio. E é precisamente o que acontece.

O resultado? Um conto com muito pouco interesse.

Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Ricardo Dias: Icarus Blues (#leiturtugas)

É possível escrever histórias interessantes com base em clichés? Sem dúvida. Mas ajuda não exagerar na dose de cliché, usá-los com uma certa conta, peso e medida e arranjar motivos de interesse que ultrapassem o cliché. E escrever bem, já agora, também é bastante útil. E antes de avançarem mais, tomem lá um aviso: daqui em diante há SPOILERS com fartura.

Ricardo Dias parece ter-se inspirado no Toy Story para escrever este conto. Mais especificamente no personagem Buzz Lightyear, o intrépido (mas algo desastrado) astronauta, eternamente vestido com o seu ultrassofisticado fato espacial. O fato do protagonista desta história, Icarus de seu nome, é um fato desses, capaz até de viajar pelo hiperespaço entre planetas separados por muitos anos-luz.

E é o que faz, experimentalmente, mas um imprevisto desastroso faz com que o faça de forma precipitada. O resultado é ir parar a algum lugar desconhecido (e eu lembrei-me de todo um arco narrativo do Star Trek), onde é capturado por aliens. E sim, quando falo de aliens não estou simplesmente a falar de extraterrestres; falo dos tipos que, segundo as lendas urbanas, andam por aí e enfiar sondas retais nas pessoas e a raptar vacas. Enfim, tudo corre mal. Icarus Blues.

Mas claro, a coisa acaba por se resolver, graças a um étê que, à revelia dos outros étês, se alia ao prisioneiro humano. Já vimos este filme milhentas vezes, é só mais um cliché a juntar a todos os outros que, se fossem diluídos numa história mais longa, com outros elementos mais originais a afastar deles a atenção de quem lê, poderiam passar, mas sendo tantos numa história tão curta o resultado é uma densidade demasiado elevada para não saltarem à vista. E como o português não é propriamente perfeito, o resultado é um conto fraco.

Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Lloyd Biggle Jr.: Maneira Doida de Lecionar

Uma das coisas a que mais graça sempre achei naquela conversa habitual de "isso é só ficção científica" proferida por quem pretende dizer que a ideia é coisa descabelada, sem pés nem cabeça, que só mesmo num livro de FC poderia encontrar cabimento, é lembrar-me das milhentas ocasiões em que coisas que eram "só ficção científica" se transformaram passado algum tempo em realidade pura e dura, apanhando, invariavelmente, as pessoas que assim falam completamente de surpresa. Ainda recentemente tivemos uma surpresa desse género, englobando o planeta inteiro, quando a pandemia obrigou a medidas drásticas de contenção. E no entanto, ninguém parece ter-se dado conta de quão insensata essa conversa de "é só FC" realmente é, nem o género pareceu ter ganho mais um pouco de respeito ao ver-se repentinamente no centro da realidade quotidiana de um planeta inteiro. Acho isto francamente bizarro. Mas é só mais uma bizarria no meio de tantas outras.

Também sempre achei muita graça a uma outra conversa que não é por ser desmentida, literalmente, todos os dias que deixa de ressurgir com regularidade: a de que a arte (ou esse seu ramo que é a ficção científica) e a política não se misturam. Falo, evidentemente, da política propriamente dita, não do seu sucedâneo falsificado que é a politiquice partidária: a discussão sobre o que poderá ser melhor para a vida em sociedade destes macacos nus que somos.

Vem isto a propósito, obviamente, desta Maneira Doida de Lecionar (bibliografia), uma noveleta de ficção científica que Lloyd Biggle Jr. publicou no já longínquo ano de 1966. É uma daquelas histórias cautelares, desde sempre abundantes na FC, que pretendem alertar para os potenciais problemas que poderão surgir caso a sociedade futura decida seguir um determinado rumo. Que rumo? É aqui que vocês sorriem um pouco: o rumo é a educação das crianças à distância; elas em casa, os professores num estúdio de televisão.

Faz lembrar alguma coisa?

Pois é, passámos por isso durante este último ano de pandemia, e se calhar vamos voltar a passar durante o ano que começou há pouco, embora de forma mais limitada. E sim, parte dos efeitos para que Biggle alerta verificam-se, embora as coisas não sejam tão extremas como ele as apresenta. A história de Biggle insere-se naquela corrente, que já existe na FC pelo menos desde que ela chegou à modernidade com Frankenstein, que alerta contra a desumanização que pode advir da mecanização da sociedade, e entretanto aprendemos que os efeitos perversos das máquinas têm mais a ver com a revelação do pior que existe na humanidade do que com a desumanização propriamente dita.

A conjuntura deu a esta história um interesse acrescido; fazendo um pequeno exercício de imaginação e pensando em qual seria a minha opinião caso a tivesse lido antes da pandemia, concluo que não gostaria muito. Não me parece que esta seja uma história realmente boa. Biggle arranja uma professora "à antiga", que chega à Terra depois de uma carreira inteira a lecionar no sistema educativo de um Marte colonizado, indo deparar com um sistema completamente diferente daquele com que estava habituada. É um choque cultural dos grandes, mas claro que vai conseguir, sozinha, mudar tudo. Essa é uma das fragilidades da noveleta, mas não a única; há nela também uma certa superficialidade e simplismo no tratamento daquilo que envolve a educação, que pouco ultrapassa a dicotomia máquinas e televisão = mau, professores de carne e osso em sala de aula = bom. Mas sendo a conjuntura a que é, a leitura tornou-se interessante.

É das tais coisas: a leitura nunca se faz num vácuo e é sempre influenciada por aquilo que a rodeia, mesmo quando não nos damos conta disso.

Tammy Plotner: What's Up 2006

Desde miúdo que sinto vontade de arranjar algum instrumento ótico que me permita fazer um pouco de astronomia amadora, nem que fossem só uns binóculos. Foi uma vontade nunca concretizada, por vários motivos entre os quais avultam a falta de dinheiro e o facto de morar numa cidade costeira, sujeita a toda a poluição luminosa e à fraca visibilidade que viver junto ao mar, no meio de casas e de luzes urbanas, origina (e também ao facto de não me apetecer muito fazer expedições a Monchique para ver estrelas). Mas a altura em que esteve mais perto de se ver concretizada foi há cerca de 15 anos. Então, cheguei ao ponto de me andar a informar sobre os melhores instrumentos em termos de relação qualidade/preço para quem mora em lugares como o meu. E quase comprei uns binóculos. Quase.

O timing coincidiu com o lançamento deste livro por um site que eu frequentava quase todos os dias, o Universe Today. A versão que me veio parar às mãos, um PDF, foi disponibilizada pelo site previamente ao lançamento do livro físico, e é, claramente, uma versão preliminar, pois tem uma relativa abundância de gralhas e alguns erros de formatação que cortam um par de textos. A What's Up This Week era uma coluna regular que a Tammy Plotner tinha no site, destinada a astrónomos amadores, uma coisa descontraída com informação geral pouco aprofundada, sugestões e dicas de observação, e este What's Up 2006 é basicamente a mesma coisa, mas com um texto para cada dia do ano de 2006. A ideia era comprar os binóculos e depois usar o livro como referência para uns bocadinhos de noite divertidos a tentar descobrir umas coisas lá em cima. Não aconteceu. E o livro ficou esquecido nas catacumbas do meu disco rígido.

Recentemente, quando me pus a vasculhar o que tinha por cá para ser lido, voltei a encontrá-lo. E "folheei-o", e resolvi lê-lo. É que se é verdade que o grosso do livro se compõe de sugestões de observações a serem feitas pelos astrónomos amadores, e algumas dessas sugestões se referem a acontecimentos celestes específicos do ano de 2006 (pelo menos no que toca aos momentos em que acontecem; há uma série de coisas periódicas cujos períodos não correspondem ao ano terrestre), não é menos certo que Plotner acompanha as sugestões com informação menos específica, efemérides, notas anedóticas sobre este ou aquele acontecimento, descoberta ou personalidade, etc., e isso é interessante mesmo estes anos todos depois.

E outra coisa que é interessante é ser muito fácil de entrever, nas sugestões que ela faz e na forma como as faz, como é o hobby do astrónomo amador, como é a vida das pessoas que se dedicam a ele. Pelo menos nos Estados Unidos, embora eu imagine que noutros pontos do globo terá pelo menos muitos detalhes em comum, mesmo que não seja exatamente igual. Foram estas duas coisas que sustentaram o meu interesse por esta leitura, mesmo não sendo propriamente o seu público-alvo, em especial passados todos estes anos. Foi curioso ler isto.

E acabei de ir à procura e descobri que este livro já não está disponível no site. Parece ser daquelas edições cujo destino é perder-se no tempo. É pena.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Mário de Carvalho: O Padre Alentejano

Pois que li este O Padre Alentejano (bibliografia), sim senhor, e agora quero um livro inteiro cheio das aventuras e desventuras e casos e descasos e desastres provocados pelo padre alentejano! Mas assim, tipo, já!

Mas claro que não vai acontecer. Mário de Carvalho há muito que partiu para outra, deixando para trás o Beco das Sardinheiras e os insólitos que lá se passam. Para ele, o padre alentejano será apenas mais um desses insólitos. Mas é pena, muita pena. É uma personagem e peras; bem desenvolvida dava pano para muitas mangas.

Pois que o padre alentejano aparece no Beco das Sardinheiras, recém-responsável pela paróquia do lugar, e perdoe-se-me o facto de me referir a ele sempre como vem no título mas Mário de Carvalho, que dá nome a quase toda a gente, resolveu não lhe dar nome algum. Ora acontece que o padre é um tipo estranho. É um padre inventor, passando mais tempo às voltas com experiências e criatividades de todos os tipos do que propriamente com as necessidades espirituais da paróquia. Não será o primeiro, e não só na ficção, mas é francamente engraçado porque as experiências que faz e as coisas que inventa tendem a ter efeitos secundários bastante imprevistos. E bastante destrutivos também. Tanto que acabam por correr com ele.

E para mim esta história ainda tem o bónus adicional de trazer um leve odor a ficção científica. É mesmo porreirinha, portanto. Soube-me a pouco, mas é mesmo, mesmo porreirinha.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Irmãos Grimm: Doutor Sabe-Tudo

E eis-nos de volta aos contos que não parecem ter sido grandemente alterados pelos Irmãos Grimm. E também de volta à farsa.

E não é, em si mesma, uma farsa particularmente interessante ou divertida, mas tem bastante interesse sociológico. É que o Doutor Sabe-Tudo não é doutor nenhum, é apenas um camponês que um belo dia, ao ver como os doutores comem bem, se encheu de inveja e resolveu ser também doutor. Como? O doutor explica: basta arranjar um livro com ar sábio, pendurar uma tabuleta a dizer "Doutor Sabe-Tudo" e ficar à espera da clientela. Ou seja: basta ser burlão.

Ou melhor, talvez: basta ser burlão e ter uma sorte desmedida, ainda que a credulidade alheia ajude bastante. É que o novel "doutor" dá repetidas mostras da sua sapiência, resolvendo crimes para cuja resolução se limita a dizer coisas que lhe vêm à cabeça e só a interpretação dos outros permite transformar em verdades. E assim se vai safando.

O interesse sociológico deriva precisamente daí: contos como este mostram que o anti-intelectualismo que põe hoje carradas de gente a recusar vacinas ou a defender que a Terra é plana, entre muitos outros disparates do mesmo calibre, é coisa velha de muitos séculos. Este conto é um sintoma dessa velha doença da humanidade, que não parece haver forma de erradicar, até porque os intelectuais muitas vezes não ajudam, preferindo encerrar-se nas suas torres de marfim a descer à plebe e falar com ela de forma que ela entenda.

Pessimista, eu? Impressão vossa.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Bernardo Rodrigues: Sismo

«Partida de novo para este pensar do pensar. O que disturba a mente e impede o voo interno, os olhos do pensamento.» Assim arranca este texto que Bernardo Rodrigues achou por bem intitular como Sismo. E já ficaram com uma ideia excelente do conteúdo. É precisamente aquilo que as pessoas de fora associam ao pior da escrita académica: prosa pretensiosíssima, hermética, repleta de palavras esdrúxulas no sentido alegórico desta palavra, enfim e em suma, chata. Que nem toda a escrita académica seja assim, ou que também surjam coisas destas fora da academia, pouco importa: a associação existe e é sólida, e o surgimento de textos destes em revistas publicadas por universidades só a reforça.

Pretende Bernardo Rodrigues com este texto contrastar tipos diferentes de inquietações que fazem mover as personagens literárias, ilustrando a ideia com duas delas. Pelo menos à superfície. Mais profundamente, pretende agregar-se, ou pelo menos mostrar-se agregado, a uma tribo. É essa a função principal de textos como estes: a sua impenetrabilidade, o seu pretensiosismo, são marcas tribais que servem para identificar os membros face aos que não o são. Fazer um texto claro, que qualquer pessoa entenda, corre o risco de deixar qualquer um entrar nos rituais sagrados da tribo; assim, esse risco não existe, ou pelo menos qualquer alguém que consiga (e queira) desbastar a palha literata será um alguém com as qualidades necessárias para ser aceite como neófito. E é isto o que realmente interessa neste texto e noutros como ele; tudo o resto é secundário.

Não faço, nem nunca farei, parte desta tribo. Felizmente.

Textos anteriores desta publicação:

domingo, 10 de outubro de 2021

Leiturtugas #123

Ora bem. Esta foi uma semana curiosa. Depois de uma série delas sempre a somar Leiturtugas, pareceu que toda a gente fez greve, uma greve que ainda por cima coincidiu com o fim das coisas que eu encontrei por aí quando me pus à procura. Não que tenhamos ficado em branco, que não ficámos. Mas para termos alguma coisa de que falar houve que importá-la do Brasil. E nem sequer foi uma opinião publicada esta semana; foi uma opinião encontrada esta semana.

É uma opinião que veio do Brasil e de uma edição brasileira, embora com participação portuguesa. Falo da opinião do Wilbur D. sobre a antologia Vaporpunk, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Luís Filipe Silva e publicada pela Draco em 2010. É uma antologia com FC, ou não fosse steampunk, e como a opinião ainda foi publicada antes de outubro entra nas contas do sorteio do Sally.

E por falar no sorteio do Sally, ele será feito esta semana que entra. Já sabem que é exclusivo para as publicações a que eu tenho chamado por comodidade "participantes oficiosos nas Leiturtugas", ou seja, as que vêm em azul na tabelinha abaixo. A vasta maioria. O livro é este que aqui está ao lado. Pequenino e maneirinho. Os participantes oficiais já passaram por vários sorteios, já deverão saber como isto se faz, mas entre os oficiosos muitos estarão completamente a leste pelo que convém explicar tudo.

Então é assim: a ideia das Leiturtugas é promover a leitura e comentário de obras portuguesas de ficção científica (sobretudo), fantasia e todas as outras vertentes da literatura fantástica em sentido lato, com uns pezinhos de outros géneros e de BD metidos ao barulho de vez em quando. De vez em quando há um sorteio de algum livro oferecido para o efeito, e as possibilidades que cada um tem de ganhar têm a ver com a sorte, obviamente, mas dependem também de quantos comentários produziu. Para tal, a aleatoriedade do sorteio é ponderada com um quociente que no caso dos participantes oficiais tem a ver com o grau de cumprimento dos objetivos estabelecidos, valendo um ponto por mês cumprido, e no dos oficiosos vale meio ponto por cada leitura com ficção científica e um quarto de ponto por cada leitura sem. Na tabela abaixo isto está abreviado com Xc (i.e., X leituras com FC) e Ys (i.e., Y leituras sem FC).

Tudo isto é feito via excel e filmado. São feitos cinco sorteios e o que vale é o último dos cinco. O resultado é uma lista ordenada. Ganha quem fica no topo da lista, mas se esse blogue depois de contactado não quiser o prémio ele passa para o seguinte e depois para o seguinte e por aí fora até alguém o querer. Para este sorteio, porque é para pessoas com as quais, em princípio, tenho menos contacto (muitas vezes não tenho nenhum) vou instituir mais uma regra: há 48 horas para responder ao contacto. Se após 48 horas não receber resposta, partirei do princípio de que a resposta é negativa e passarei ao seguinte.

Tudo esclarecido (espero; se houver alguma dúvida, estão aqui as caixas de comentários e também podem encontrar-me no twitter ou no facebook), passemos à tabela de potenciais candidatos (e também ao ponto da situação dos participantes oficiais) com o quociente de cada um. Como veem, a lista é extensa.

PublicaçãoJá cumpridoFalta cumprirQuoc.
O Prazer das Coisas objetivo ultrapassado 28
Intergalactic Robot 5c11s 1 (1c) 33
Rascunhos 5c7s 1 (1c) 33
As Leituras do Corvo 3c9s 3 (3c) 10,33
O Senhor Luvas 0c9s 6 (6c) 21
A Lâmpada Mágica 3c1s 8 (3c) 26
O Diário de uma Despenteada 3c3s - 2,25
Deus me Livro 0c8s - 2
Livros de Cabeceira e Outras Histórias 3c1s - 1,75
Livros e Saltos 0c7s - 1,75
Livros? Gosto 3c0s - 1,5
A Liliana Raquel 1c3s - 1,25
Abrir o Livro 1c3s - 1,25
Marcador de Livros 2c1s - 1,25
Bloguinhas Paradise 1c2s - 1
Boas Leituras 2c0s - 1
Notícias de Zallar 0c4s - 1
Por Detrás das Palavras 1c2s - 1
Quando se Abre um Livro... 1c2s - 1
Tudo Sob Linhas 2c0s - 1
A Viciada dos Livros 0c3s - 0,75
Book Tales 1c1s - 0,75
Gotika 1c1s - 0,75
Marta - O Meu Canto 1c1s - 0,75
O Tempo Entre os Meus Livros 1c1s - 0,75
Palavras Sublinhadas 1c1s - 0,75
Postal do Algarve 1c1s - 0,75
Toupeira 1c1s - 0,75
A Biblioteca da João 1c0s - 0,5
A Prateleira Mais Alta 1c0s - 0,5
A Sério, Outro Blog 1c0s - 0,5
Activa 1c0s - 0,5
Algodão Doce Para o Cérebro 1c0s - 0,5
Armazém de Ideias Ilimitada 1c0s - 0,5
As Leituras da Fernanda 1c0s - 0,5
Atmosfera dos Livros 0c2s - 0,5
Ficção Científica em Português 1c0s - 0,5
Joana's Bookshelf 1c0s - 0,5
Karina Padilha 1c0s - 0,5
Leituras Descomplicadas 1c0s - 0,5
Ler por Aí 1c0s - 0,5
Livros e Papel 1c0s - 0,5
Marcas de Leitura 1c0s - 0,5
Ministério dos Livros 0c2s - 0,5
Não Me Apetece Estudar 1c0s - 0,5
No Conforto dos Livros 1c0s - 0,5
O Aroma dos Livros 1c0s - 0,5
O Informador 1c0s - 0,5
Papéis e Letras 0c2s - 0,5
Portugueses Contemporâneos 1c0s - 0,5
Quem Me Lera 1c0s - 0,5
Wilbur D. 1c0s - 0,5
A Outra Menina Bennett 0c1s - 0,25
Armando Frazão 0c1s - 0,25
As Leituras do Fiacha 0c1s - 0,25
Books Coffee Break 0c1s - 0,25
D311nh4 0c1s - 0,25
De Rerum Natura 0c1s - 0,25
Estante de Livros 0c1s - 0,25
Faces de Marisa 0c1s - 0,25
Geocrusoe 0c1s - 0,25
Gothic Clare 0c1s - 0,25
Horas Extraordinárias 0c1s - 0,25
Ler y Criticar 0c1s - 0,25
Livros 2009 0c1s - 0,25
Livros de Vidro 0c1s - 0,25
My Best Toys 0c1s - 0,25
Não Digas Nada a Ninguém 0c1s - 0,25
O Livro Pensamento 0c1s - 0,25
Profissão: Leitor 0c1s - 0,25
The Girl Who Reads Books 0c1s - 0,25

Então vamos a isso. Resta-me apenas desejar-vos boa sorte, boas leituras e despedir-me até para a semana.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Que editoras estão a publicar contos?


Giro. Aparentemente, o blogger não me deixa responder a comentários no meu próprio blogue.

Vai por aqui, então.

A Olinda perguntou-me, aqui, que editoras estão agora a publicar contos. E o que eu tentei responder-lhe foi que...

Quando falei do estigma estar a ficar menos intenso referia-me ao dos leitores, não tanto ao das editoras.

Seja como for, e agora de repente, lembro-me de quatro editoras com publicação recente de livros de contos na área da FC&F: Imaginauta, Divergência, On-y-Va e Coolbooks. E dando uma olhadela na secção de contos da Wook provavelmente encontrar-se-iam mais.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Escrita de setembro


Tal como ameacei na nota de agosto sobre o que vou escrevendo, setembro foi o mês em que a escrita de nova ficção começou realmente a entrar em velocidade de cruzeiro. Ainda não muito elevada, ainda longe, por exemplo, dos meses realmente produtivos do ano passado, mas mesmo assim a produção do mês ficou só muito ligeiramente abaixo da do mês mais produtivo deste ano, abril.

Foram quase 5300 palavras novas, cerca de 16 páginas, todas para o tal romance incompleto que resolvi completar. Mais ou menos uma página de dois em dois dias.

Continuando a este ritmo é possível que o livro fique escrito para o ano que vem, mas também pode perfeitamente só ficar pronto em 2023. Ele foi interrompido ainda no início, mal tinha chegado ao tamanho de novela, e julgo que é coisa para se tornar razoavelmente extensa. Umas 300 páginas ou mais. Provavelmente mais; talvez bastante mais. É possível que atinja as 100 antes do fim de 2021 — se a produção acelerar atinge de certeza — em especial se eu não fizer pausas para ir escrevendo outras coisas nos entretantos. Não sei; veremos. Para já, vai avançando.

Quem quiser saber como vai isto evoluir só tem de ficar atento a este espaço. Daqui a um mês voltaremos a falar.

domingo, 3 de outubro de 2021

Leiturtugas #122

Mais uma semana, mais Leiturtugas. E desta vez vai mesmo chegar ao fim o material que fui descobrir no meu refrescamento da lista de fontes. Mas antes...

... mas antes temos os participantes oficiais no projeto, cuja presença está esta semana nas mãos da Tita, que nos traz uma opinião em vídeo sobre dois livros de Rute Simões Ribeiro. Um deles, O Homem que Sonhou, parece ser uma peça distópica autopublicada em junho via Amazon. Com FC, portanto.

O outro, O Escritor e o Prisioneiro, é uma noveleta também autopublicada na Amazon em 2018 e parece pender mais para um certo horror psicológico, ou seja, entra na coluna dos "sem FC". A Tita soma e segue, mesmo depois de cumprir os mínimos. Assim é que é! Sigam o exemplo da Tita, não o do Jorge, que vai atrasadíssimo.

Quanto aos oficiosos, temos uma opinião atrasada da semana passada, visto que o Paulo Serra resolveu os problemas que teve no blogue. A obra de que ele fala é o romance fantástico de Julieta Monginho, Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, uma edição da Porto Editora. Sem FC.

Já esta semana, a Júlia Martins opinava sobre mais um livrinho infantil que parece estar entre o maravilhoso e a fábula. O Mistério da Meia Desaparecida, de Vitória Alves e ilustrado por Sandra Sofia Santos, é uma edição da Tcharan (e olhem que nome para uma editora, hã?). FC? Népia.

Depois foi o Nuno Coelho a estrear-se aqui graças à sua opinião sobre um romance que parece ter mergulhado de cabeça no realismo mágico. O título é A Balada do Medo, o autor é Norberto Morais, e o livro foi publicado em 2019 pela Relógio d'Água. FC? Não há.

De seguida tivemos a Toupeira a opinar sobre um livro de José Rodrigues dos Santos. Publicado pela Gradiva em 2006, A Fórmula de Deus tem um cheirinho mais ou menos ténue a FC, como de resto é comum acontecer na literatura inspirada por Dan Brown.

E a encerrar o mês, o Tomé publicou uma opinião sobre um livro de que também a Tita falou esta semana: a peça O Homem que Sonhou, de Rute Simões Ribeiro.

Por fim, vamos lá a concluir a lista de coisas que encontrei por aí nas minhas pesquisas.

Encontrei, por exemplo, a opinião da Maria João Covas sobre o muito lido Segredo Mortal, de Bruno M. Franco. Por esta altura, mesmo que só passem uma vista de olhos sobre estas notas de vez em quando, já sabem tudo o que há para saber sobre esse livro.

Também encontrei a opinião do José Pacheco sobre um livro que já encontrámos aqui hoje: Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio de Julieta Monginho. É ver acima.

Encontrei a opinião de alguém que já apareceu aqui hoje, o Nuno Coelho, sobre um livro que não apareceu hoje mas apareceu em outras notas semanais: Palavra do Senhor, o livro de fundo cristão (ou não) de Ana Bárbara Pedrosa. Edição Bertrand, deste ano. Sem FC.

E encontrei a opinião da Maria do Rosário Pedreira sobre outra fábula infantil: Histórias de (En)Contar de Um Lobo Que não Gostava de Matemática. A autora é Maria Francisca Macedo, a edição é da Fábula e data do ano passado.

E pronto, tá feito. Segue agora a programação normal.

Ah, sim, já me esquecia. O sorteio do Sally, exclusivo para os participantes oficiosos, não está esquecido e vai ser feito com base no número de leituras de cada publicação até este post. Não publico ainda a tabelinha, que este post já vai demasiado longo. Fica para a semana. Quanto ao sorteio em si, ficará provavelmente para a outra semana. Até lá.

João Barreiros: A Arder Caíram os Anjos

E no princípio foi A Arder Caíram os Anjos (bibliografia).

Vá, imagino-vos aí a dizer, não sejas enigmático. Desembucha lá. Que raio queres tu dizer com essa bizarra referência bíblica? Algo a ver com os anjos do título?

Sim, mas não. É que esta é a noveleta que deu origem a todo este Terrarium. Existe na anglosfera um termo de que não há tradução estabelecida em português, fix-up novel (João Barreiros e Luís Filipe Silva chamam-lhe romance em mosaicos, eu tenho preferido romance-colagem), isto é, um romance feito pelo menos parcialmente a partir de textos com existência autónoma anterior, e esta noveleta de João Barreiros foi o texto, publicado originalmente no Brasil e aí premiado, que levou ao desenvolvimento deste romance-colagem e à parceria com o seu coautor.

E é um texto "à Barreiros". Quem não conhece ficou na mesma, quem conhece sabe perfeitamente do que estou a falar. Pancadaria a rodos, montes de coisas desfeitas "com o máximo prejuízo", mas também uma construção de ambiente muito sólida servida por uma imaginação invejável, um protagonista completamente ultrapassado pelos acontecimentos mas capaz de se desenvencilhar dos escolhos aparentemente intransponíveis que o universo lhe põe no caminho, sem saber como nem porquê, e raízes profundamente inseridas no imaginário popular.

Aqui, a parte do imaginário popular a que Barreiros faz referência é muito cristã. Sim, o título para aí aponta, mas como sabemos os títulos por vezes induzem em erro. Não é o caso. A história arranca com a chegada à Terra de uma "potestade", transfigurada em arcanjo; um elemento de uma espécie alienígena incompreensivelmente avançada e poderosa, a espécie responsável pelo êxodo de outros alienígenas do centro da galáxia e sua chegada à Terra. O que a atrai ao nosso planeta periférico é sequência direta dos acontecimentos das primeiras histórias: o roubo ao Mr. Lux e a entrada em funcionamento de tecnologia alienígena avançada, e por conseguinte proibida, que esse roubo pôs em mãos que não deviam ter a ela acesso.

Quanto ao Mr. Lux, esse também se transfigura, mas de outra forma. Desde as histórias anteriores sabemos que ele não é bem o que aparenta ser, ou não tivesse na sua posse precisamente a tal tecnologia proibida que está no fulcro de tudo. Mas aqui começa a ganhar mais um pouco de solidez, ao assumir o papel de... hm... Repararam na semelhança? Lux, palavra latina que significa luz, e está na raiz de outra palavra que também significa luz apesar de designar habitualmente um tal Senhor das Trevas? Apanharam? Lúcifer?

Claro que o uso da mitologia cristã não é literal. No mundo criado por Barreiros, os anjos, caídos ou não, são apenas máscaras com que os alienígenas decidem apresentar-se. Mas a guerra da luz com as trevas que está muito enraizada na mitologia judaico-cristã e transcende em muito a mera escala humana corresponde a uma guerra igualmente transcendente entre as ultrapoderosas criaturas que dominam o universo de Barreiros. Esta noveleta narra um episódio dessa guerra; e a sua principal qualidade, além do uso inteligente (e bastante pós-moderno) de mitologias prévias para aumentar a eficácia da transmissão da ideia ao leitor, consiste no facto de nada correr inteiramente de feição a nenhum dos intervenientes.

E além disso, todo o universo continua aqui a ser ampliado. No Terrarium como um todo, e nas histórias que o compõem em particular, não encontramos muita daquela exposição frequentemente entediante que explica ao leitor tintim por tintim toda a ideia, o ambiente, as personagens, por aí fora. Os infodumps. Não. Aqui a informação vai sendo transmitida aos poucos, por vezes à medida que vai sendo necessária, por vezes apenas onde faz sentido. E é também por isso que esta história é — estas histórias são — tão boa.

Venha a próxima.

Contos anteriores deste livro: