sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Lido: Piropo

Piropo é uma crónica do Miguel Esteves Cardoso que, tão certo como o Sol nascer todos os dias a oriente, muito irritaria uma série de mulheres que eu conheço. Por ser sobre o piropo, mui marialvamente, claro, defendendo essa instituição nacional que é romântica e toda a gente gosta (acha ele... ou pelo menos achava), contra uma espécie de desembaraço mordenaço que tem vindo a destruir o bom, velho, conservador, romance. Que mauzão que ele é, o desembaraço. Que saudades dos tempos em que se namorava, meu deus!, hoje que um simples e banal "bute?" resolve tudo. Hoje que é como quem diz ontem, que isto data dos já antiguinhos anos 80 do século passado.

É uma crónica com alguma piada, é certo, mas pouca. Dá para alguns sorrisos, mas pouco mais. E garanto a pés juntos que quem não acha gracinha nenhuma a piropos irá sentir-se sobretudo irritado com toda a bonacheirice com que o MEC se enche de nostalgias pelas boas práticas românticas dos tempos antigos, ignorando olimpicamente tudo o que essas "boas práticas" tinham (e continuam a ter — não desapareceram por mais que Miguel Esteves Cardoso ache que sim) de opressivo.

Não gostei muito. O MEC tem muito melhor. Muito melhor.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Lido: Os Fantasmas

Os Fantasmas (bibliografia) é um interessantíssimo conto curto do Lorde Dunsany sobre, obviamente, fantasmas. O que eleva este conto da banalidade costumeira dos contos de fantasmas é a abordagem que Dunsany faz ao género. Sim, cá estão os clichés do casarão rural isolado, velha propriedade de família abastada, e sim, cá está também o relato em primeira pessoa típico do velho conto de contar à lareira, mas nem os fantasmas que nele aparecem são propriamente vulgares, nem a forma (ironicíssima) como o protagonista se livra deles é esperada.

E já que se fala de protagonista, diga-se que se trata de um homem, racionalista, que tem uma discussão com o irmão no casarão deste. Diz o irmão que existem fantasmas e que a sua casa está assombrada, e ele que não senhor, que não há fantasmas nenhuns e portanto a casa não pode estar assombrada. E assim ficam, ambos teimosos, concordando em discordar, indo cada um passar a noite para seu lado. E eis que, obviamente, lá surgem mesmo os fantasmas ao irmão cético.

Mas os fantasmas não são os espíritos de gente morta que estamos habituados a encontrar neste tipo de história; são pecados antropomorfizados. E são pecados cujo fito é levarem as vítimas das suas assombrações a cometer, também elas, os pecados mais horrendos. O protagonista a princípio deixa-se levar, deixa-se convencer, mas a razão vem em seu socorro. Como? Não vo-lo digo.

Digo apenas que este conto vale muito a pena ser lido. Mesmo. É um excelente conto.

Conto anterior deste livro:

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Lido: A Estranha Colheita

A Estranha Colheita é uma noveleta de Donald Wandrei onde se mistura horror e ficção científica numa atmosfera semelhante à de muitos dos episódios da série Twilight Zone. O ambiente é rural, uma área circunscrita algures no interior dos Estados Unidos. O leitor vai sendo apresentado a pouco e pouco a uma série de insólitos comportamentos das plantas cultivadas por vários agricultores da zona, que ora se derenraízam para se voltarem a plantar noutro sítio, ora se esquivam a maquinaria de ceifa, ora se enterram mais quando o agricultor tenta desenterrá-las, ora reagem das formas mais díspares aos gestos comuns da vida agrícola, tendo embora todos esses comportamentos em comum uma espécie de inteligência subitamente surgida, quando não mesmo uma clara hostilidade contra as pessoas. É uma boa história, bastante bem construída, num crescendo que, sem estar desprovido de humor (bem pelo contrário), consegue no entanto criar e sustentar curiosidade e uma certa tensão ao longo de toda a narrativa. É no final, de certa forma apoteótico, que mais vincado está quer o horror, quer a FC que a noveleta contém. Mas em geral estamos perante uma história que, de uma forma ao mesmo tempo ligeira e preocupante, não deixa de sublinhar a fragilidade humana perante uma natureza que talvez não esteja tão controlada como pode parecer à primeira vista... e que pode escapar-se-nos entre os dedos, seja por decisão própria, seja através de intervenções humanas talvez menos refletidas do que gostaríamos de supor.

E além disso, para portugueses, um dos pontos mais interessantes desta história é o quanto faz lembrar a noveleta Por Amor à Prole, do João Barreiros. Não que as linhas narrativas das duas histórias sejam iguais, ou sequer se assemelhem muito, mas o ambiente de natureza fugida ao controlo tem grandes pontos de contacto.

Gostei bastante.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Lido: A Infinita Fiadeira

A Infinita Fiadeira é um continho de ficção científica de Mia Couto. Sim, leram bem.

Não que seja um conto da ficção científica propriamente dita, daquela que tem nos grandes mestres anglófonos (com uma ou outra pegadazinha de outras nacionalidades) os seus grandes expoentes. É daqueles contos que, não sendo exatamente ficção científica, até acabam por sê-la, pelo menos um pouco. Daqueles contos mestiços, entre a FC, a fantasia, a fábula, a alegoria e a simples poesia, um pouco à semelhança do que Saramago fez n'O Ano de 1993 (podem ler-se aqui algumas notas sobre esse livro). Até porque a infinita fiadeira é uma aranha que fia sem parar, porque sim. Como quem escreve ou como quem pinta. E, como sempre acontece a quem se atira a tais trabalhos improdutivos, a família da aranha preocupa-se tanto que vai procurar ajuda. E que tem isto a ver com FC?, perguntarão. Só lendo o conto, respondo eu.

Gostei muito deste conto. Gosto de coisas esquisitas.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Lido: Os Olhos dos Mortos

Os Olhos dos Mortos é mais um continho de Mia Couto que pinga poesia a cada palavra, apesar da história que conta nada ter de poético. É a história de uma mulher abusada, aterrorizada pelas violências do marido, que um belo dia tem um gesto de revolta. Nada de especial, se não se contar o simbolismo: limita-se a atirar um retrato do casal ao chão, estilhaçando o vidro. Ou talvez não, ao certo não se sabe. Tudo o que nos é dito é que o marido depara com o retrato no chão, e a violência é consequente. E o resto se segue inapelável, até à rebelião — essa sim — derradeira.

É um bom conto. Talvez seja mesmo um conto muito bom. Não tanto pela poesia, talvez, ou pela qualidade do português, mas pela maestria e subtileza com que está construído.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Lido: Citações

Citações é mais um texto de José Alberto Braga de que se pode dizer que consta basicamente de uma lista. Esta, no entanto, é mais elaborada do que é hábito... e tem também algo de fantástico, não só na ideia em si, como parcialmente na concretização.

Trata-se, segundo o próprio autor explica, de "citações" (eis o título) que terá conseguido através da "psicografia de alguns autores famosos", a saber: Ivan Pavlov, Sigmund Freud, T. S. Elliot, Dostoievski e Franz Kafka. Só que as citações são, além de obviamente falsas (daã!), piadéticas, consistindo basicamente de uma série de trocadilhos que Braga arranja além das ideias e da obra destes autores... ou pelo menos daquilo que dessas ideias e obra extravasou para o imaginário popular.

O resultado tem algum interesse, mas teria bastante mais se tivesse havido um esforço para incutir alguma subtileza na ideia. Estas coisas funcionam tanto melhor quanto mais de mansinho o humor for introduzido em textos em aparência seriíssimos. Mas esse esforço não existiu, e portanto as cinco "citações" de Braga têm muito pouca piada. É pena.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Lido: Inglês-Português

Inglês-Português, ao contrário do texto anterior de José Alberto Braga, não é uma história, e tampouco tem literatura. Longe disso, na verdade. Aqui, estamos no campo da pura piadola, em mais uma das muitas listas que aparecem neste livro. Esta é de palavras ou expressões inglesas, que Braga "traduz" à sua maneira muitíssimo sui generis, parte trocadilho, parte ironia.

Não vi este texto lá com muito bons olhos, e aqui Braga explicaria que certamente será por usar óculos. Sim, o estilo é este. Um bocadinho básico. Um bocadinho, como se diz por aí, meh. Dá para o sorriso, aqui e ali, mas pouco mais do que isso.

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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Lido: Velhice Transviada

Velhice Transviada é um dos mais interessantes textos deste livro de José Alberto Braga. Escrito em torrente, na primeira pessoa, por um velho rabugento, é um pequeno conto do quotidiano com literatura inclusa, fugindo assim ao padrão habitual de Braga, que geralmente prefere o humor, mais ou menos bem sucedido, à literatura. Aqui, existe ironia, mais fina que o costume, e a forma como está escrito é bastante eficaz a sugerir a taralhoquice e resmunguice da idade. Até os trocadilhos que Braga tanto aprecia são aqui contidos. Existem só alguns, nos sítios adequados, sem se notar o que tantas vezes se nota nos textos que ficaram para trás: que a vertigem do gag se sobrepõe à história ou situação que se quer contar. Sim, acho mesmo que este texto é bom.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Lido: Neura

Neura é uma das famosas crónicas do Miguel Esteves Cardoso e é, para quem as conhece, uma crónica típica. Para quem não conhece, digamos que se trata de crónicas irónicas e com doses variáveis de subtileza, seja sobre as pequenezes do quotidiano, seja sobre as pequenezes da portugalidade ou, pelo menos, daquilo que o MEC vê como portugalidade. Neura pertence a este último grupo, e arranca logo com a expressão generalizante de "aos portugueses", seguindo por aí fora a debitar postas de pescada sobre a relação entre "os portugueses" e a neura, o que é o mesmo que dizer sobre aquilo que torna característica e única a neura portuguesa. O que as safa, em especial junto de quem, como eu, está muito saturadinho de ver construir-se à força uma noção de como "os portugueses" são que, não raro, tem muito pouco a ver com a real natureza da esmagadora maioria dos portugueses reais, todos diferentes uns dos outros tal como os membros dos outros povos, o que as safa, dizia, é que são postas de boa pescada. O MEC tem piada e escreve bem. Às vezes, o MEC tem muita piada e escreve muito bem. Aqui, na sua Neura, limita-se a ter piada e a escrever bem. O que já é bom.

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sábado, 15 de fevereiro de 2014

Lido: O Fantasma Inexperiente

O Fantasma Inexperiente (bibliografia) é um conto de H. G. Wells que... mas estou a repetir-me, não estou?

Estou, claro que estou. É que não há muito tempo (três anos e tal não é lá muito tempo) li este mesmo conto, nesta mesma tradução, noutra publicação. E disse aqui o que dele achei. Esta releitura não altera a opinião em praticamente nada. Talvez tenha gostado um pouco mais agora do que da primeira vez. Um pouco mais.

E assim continuamos a reencontrar velhos conhecidos em novas publicações.

Coisa chata.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Lido: O Fosso

O Fosso (bibliografia) é um conto de ficção científica de B. K. Filer que é francamente mau, ainda piorado por uma tradução tão tosca que chega ao ridículo de achar que tem de explicar quem foi Charles Darwin em nota de rodapé.

A história gira em volta de fósseis como, aliás, é logo dito na brevíssima apresentação do conto que se segue ao título, tão breve que consiste de uma única frase: "porquê aquela destruição sistemática dos fósseis?" É a descoberta deste porquê que serve de motor à história. Isso e os fósseis propriamente ditos, uns tais "blobs", que não se parecem com nada que se tivesse descoberto até então nos registos paleológicos e estão circunscritos a uma determinada camada geológica. As ideias, em si, não são inteiramente más — se bem que tampouco me pareçam boas; nos anos 60 já se sabia o suficiente para se fazer muito melhor —, mas estão aplicadas às três pancadas, em infodumps quase contínuos, acompanhados por um arremedo de enredo bastante infantil.

Quase tudo muito mauzinho. E no entanto, este conto foi publicado na If, uma das revistas reputadas da FC americana que chegou mesmo a ganhar prémios. É das tais coisas.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Lido: A Flor Sanguínea

A Flor Sanguínea é um conto de horror de Seabury Quinn com aquele ar clássico dos primeiros whodonits em que entram criaturas sobrenaturais. Com motivo: afinal, trata-se de obra quase com 100 anos, protagonizada por um francês, Jules de Grandin, reputado investigador das coisas paranormais, cheio de pontos em comum com aquelas personagens maiores que a vida que tão abundantes foram em várias ficções de género do início do século XX (e do fim do XIX, também), do Sherlock Holmes ao Hercule Poirot, do professor Challenger ao Dupin de Poe, e por aí fora. Tal como os outros, também de Grandin é senhor de um intelecto cujo funcionamento não está ao alcance dos demais, além de uma série de expressões características (pardieu!) que o individualizam. E tal como muitos dos outros, também ele tem um amigo, que narra a história e o vai acompanhando. Elementar, meus caros.

O problema, bem entendido, é que tudo isto, que à época era moda razoavelmente fresca, se transformou entretanto num surradíssimo cliché. E por isso, ao ler hoje esta história de lobisomens em que uma senhora bem de vida cai súbita e misteriosamente doente, a surpresa de que este tipo de história movida a enredo carece praticamente não existe. Tudo se torna previsível e até algo aborrecido, enquanto o excêntrico de Grandin vai sendo o único a ir compreendendo, e apenas aos poucos, algo que o leitor razoavelmente experiente já percebeu quase desde o início do conto. Mais uma vez, a pobreza literária dos velhos pulps movidos exclusivamente a enredo tem como consequência que o envelhecimento das histórias conduz à sua irrelevância. Ler isto, hoje, tem pouquíssimo interesse.

Contos anteriores deste livro: