segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Leiturtugas #171

Ainda atrasado, mas menos, eis o post onde se divulgam as Leiturtugas da semana que terminou no último domingo.

E voltámos a ter a coisa bastante deserta no que toca aos participantes oficiais. Nem uma opiniãozinha para amostra.

Já os oficiosos não param, apesar das oscilações. Esta semana começámos com o Paulo Nóbrega Serra e uma opinião sobre um livro infanto-juvenil de José Saramago. Publicado pela Porto Editora já este ano, julgo que pela primeira vez de forma autónoma, Uma Luz Inesperada é um texto extraído de A Bagagem do Viajante e, ajuizando pela opinião do Paulo, parece conter algum fantástico. E nenhuma FC.

Por seu turno, o Carlos Faria opinou sobre A Dança dos Ossos, a antologia de conto gótico luso-brasileiro organizada por Ricardo Lourenço e publicada pela E-Primatur em 2020. Também aqui julgo não haver FC.

Por fim, a Daniela encerrou a semana com uma opinião sobre um livro que já cá tinha aparecido na semana anterior: o romance distópico de João Reis publicado este ano pela Quetzal, Cadernos da Água. É o único sítio onde se encontra FC esta semana.

Esperemos que a próxima nos traga mais. Logo saberemos.

domingo, 25 de setembro de 2022

Albano Mendes de Matos: O Ninho

Um conto intitulado O Ninho pode ser muitas coisas, mas o mais comum é tratar-se de relato campestre em órbita de alguma ave, mãe esforçada de um breve bando de pintos presos ao lugar em que nasceram. Especialmente naqueles géneros literários que não batem a asa para longe do realismo, deixando-se quedar pelos voos rasantes do comezinho, mesmo quando este se torna extraordinário. Sim, que na FC, por exemplo, um ninho poderia ser mesmo qualquer coisa. No neorrealismo, pelo contrário, já não. E este conto de Albano Mendes de Matos é neorrealista.

Logo, é um relato campestre, protagonizado por um miúdo que descobre um ninho de rola e tem prazer em acompanhar a vida da ave que o construíra e dos pintos que nascem dos ovos que essa ave põe. Até ao dia em que uma cobra estraga tudo.

Está bem escrito, o conto. Bem escrito e bem concebido, apesar de não trazer realmente grande coisa de novo. Um conto sobre os encantos e horrores do mundo natural e também sobre a amizade, um conto que funciona. Mas lá está: eu prefiro coisas mais imaginativas. Portanto não gostei tanto dele como outros leitores certamente gostariam. Em todo o caso, é um bom arranque para este livrinho.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Leiturtugas #170

Ora viva! Sim, sim, eu sei, venho atrasado. Coisas que acontecem, como de resto bem sabe quem costuma acompanhar aqui as Leiturtugas. Coisas.

E quem costuma acompanhar aqui as Leiturtugas já sabe: quando há atrasos ponho-me em dia semana a semana, pelo que esta listinha se refere apenas ao que apareceu por aí até domingo último. Até dia 18. Vamos a isso?

Vamos a isso.

Leiturtugas oficiais? Não temos. E por aí estamos conversados.

Leiturtugas oficiosas? Ah, aí temos. E várias.

Começou pela «Charneca», que nos trouxe a sua opinião sobre Cadernos da Água, um livro de João Reis que a Quetzal publicou já este ano. Trata-se de um romance em ambiente distópico, pelo que contém FC. Alguma.

Continuou com o Tiago, que opinou esta semana sobre o romance de fantasia de M. G. Ferrey, o primeiro volume da série Aquorea, Inspira. Este livro, publicado pela Suma de Letras no ano passado, parece tratar-se de fantasia bastante "pura", sem nenhuma contaminação de FC.

Foi também sobre M. G. Ferrey que opinou a Tânia Oliveira, mas não sobre o mesmo livro. Continua é na mesma série, com o segundo volume, intitulado Shore Desvendado. Também publicado pela Suma de Letras, mas este ano, continua a parecer ser só fantasia.

E também a Andreia Ferreira andou pelo reino da fantasia, mas o livro e a autora sobre os quais ela opinou são outros. A autora é Sandra Carvalho e o livro intitula-se Lágrimas do Sol e da Lua, o terceiro volume da série das Pedras Mágicas. E já tem uns aninhos: foi publicado pela Presença em 2006. O que não tem é FC. Nenhuma.

Por fim, a Almerinda trouxe-nos a sua opinião sobre o livro que lançou definitivamente José Saramago. Sabem qual foi, certamente. Isso mesmo, Memorial do Convento, o romance de realismo mágico que a Almerinda parece ter lido mesmo na edição original, da Caminho, de 1982. Ainda antes das capas amarelas. Também aqui há fantástico com fartura mas nenhuma FC.

E por esta semana é tudo. Siga para a próxima, daqui a poucos dias.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Irmãos Grimm: Ir de Viagem

Este Ir de Viagem é mais um conto em que o prodígio de estupidez tenta fazer rir. Terá conseguido vezes suficientes para sobreviver na tradição popular e acabar recolhido e provavelmente alterado, pelo menos um pouco, pelos Irmãos Grimm, mas confesso-me imune a este tipo de humor. Ao ponto de nem esboçar um arremedo de sorriso.

Arranca com um filho de casa pobre que deseja ir de viagem e arranja um estratagema infalível para o fazer sem dinheiro: dizer sempre "não muito, não muito, não muito". Porquê? Ora, porque sim. Porque haveria de ser?

Claro que acaba por acontecer que a frasezinha é dita na pior altura possível, e em consequência o jovem leva uma surra. Depois pergunta a quem lha deu o que devia ter dito, e o surrador explica. A seguir, a cena repete-se várias vezes, e em todas o jovem diz o que era adequado dizer na última situação, não naquela em que está, acabando repetidamente surrado sem perceber que o contexto é tudo.

Sim, é tudo uma estupidez pegada. Há quem se divirta. Eu? Meh.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Escrita de agosto


Olá a vocês que estão interessados no que eu escrevo. E sim, escrevo e continuo a escrever, mas a verdade é que não há muito a dizer sobre o que fui produzindo em agosto. Aquilo que disse em agosto sobre a escrita de julho aplica-se praticamente sem alterações ao que poderia dizer agora sobre a escrita de agosto. A imagem é a mesma por isso mesmo. E este texto vai ser breve, como de resto já terão reparado.

Tal como em julho, em agosto não escrevi nada além de páginas de romance. Quantas? Cerca de 21, o que dá pouco mais que 7100 palavras. Sim, foi mais do que em julho, mas não muito. Seja como for, a continuar a este ritmo será em setembro que o manuscrito alcança as 200 páginas, o que já é um tamanho razoável mas ainda fica algo longe do texto mais extenso que já escrevi — outro romance, ainda inédito (e que provavelmente ficará inédito durante bastante tempo porque faz parte de uma história mais ampla à qual ainda faltam algumas partes importantes e que ainda não decidi como publicar... ou se publicarei). E ainda fica longe do fim.

Em agosto disse aqui que isto estava para durar. Pois. Isto está para durar. Mas vai avançando, e isso é o mais relevante.

Em outubro voltaremos a conversar, mesmo que a conversa seja basicamente esta. Ou não. Até lá, talvez aconteçam outras coisas. Quem sabe? Não tenho uma bola de cristal para ver o futuro e, mesmo que tivesse, isso não é aparelhómetro que funcione no mundo real.

Logo veremos. E logo nos veremos, como sempre neste espaço.

Lygia Fagundes Telles: Endereço Desconhecido

Uma brasileira em crise de meia-idade, divorciada, sozinha de filhos e amantes, recorda a sua paixão portuguesa perdida e prepara-se para partir em busca do homem misterioso por quem se apaixonara. Uma viagem sem grande esperança, apesar de cheia de esperanças, pois as suas últimas cartas foram devolvidas com a indicação de Endereço Desconhecido, e assim fica explicado o título. Mas o fulcro do conto não é a viagem, é a história de amor em si mesma, um mergulho nas memórias longínquas da protagonista, e também nas suas expetativas e desilusões.

Não é o tipo de história que habitualmente mais me agrade, mas Lygia Fagundes Telles escreve magnificamente e isso compensa bastante a falta de interesse que o tema me desperta. Todo o conto está muito bem construído, com um jeito sinuoso e repetitivo que me fez lembrar Lobo Antunes, mas sem cair no exagero em que este cai com frequência. E o português é de primeira água.

Contudo, claro, o meu desinteresse pelo tema tem o seu efeito. Quando me sentei para escrever esta opinião, algumas semanas depois de ter lido o conto, já só trazia a ideia de uma história muito bem escrita e... nada mais. Foi preciso regressar ao texto, ler alguns excertos, para a memória voltar. E isso não é bom. Mas será de mim ou da autora? Julgo que é de mim, mas a bem dizer não tenho a certeza. Há sempre um mas. E neste conto o mas é esse: é um conto muito bem escrito, mas.

Problema meu, decerto.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Irmãos Grimm: O Monte Simeli

Apesar de várias ameaças, foi com bastante surpresa que deparei com uma história claramente aparentada com a do Ali Babá neste livro dos Irmãos Grimm. Sim, que O Monte Simeli (que na verdade não se chama Simeli) e o Sésamo onde os quarenta ladrões guardam os tesouros roubados são irmãos gémeos.

Tal como no conto árabe, também aqui a montanha se abre com o recitar de um encantamento simples e direto, e também aqui o seu interior está cheio com os maiores tesouros. E também este é um conto sobre a cobiça e a capacidade, ou incapacidade, de gastar judiciosamente as riquezas que nos vêm parar às mãos, embora esta história seja muito mais simples e muito mais curta do que a do Ali Babá. Ou do que as versões que eu conheço, pelo menos. Ao contrário da história árabe, este é daqueles contos que contrastam as personalidades opostas de duas personagens, no caso dois irmãos, e o resultado que têm os atos a que essas personalidades levam. É um conto cautelar, semelhante a muitos outros.

Só a referência às Mil e Uma Noites lhe confere real interesse, na verdade. Mas pelo menos pela parte que me toca isso confere-lhe bastante interesse. Este é dos contos mais interessantes deste fim de livro.

Contos anteriores deste livro:

Manuel Machado: Comboio Presidencial

Tão irónico como o conto anterior, mas com bastante menos daquela piada imediata que dá sorriso aberto e por vezes até gargalhada, este segundo conto de Manuel Machado é sobre a artificialidade na política. Como o título de Comboio Presidencial indica, é sobre um presidente e um comboio, mas desengane-se quem achar que se trata de um comboio presidencial propriamente dito e que o presidente o é de alguma república. Não. O presidente é apenas de um partido e o comboio só é presidencial porque o presidente nele viajou... junto com carradas e carradas e povo.

Ora, o problema é que tinha à espera uma manifestação espontânea de simpatizantes, devidamente organizada mas sem levar em linha de conta que nenhum presidente aguenta tanto povo durante tanto tempo, pelo que o conto é uma página inteira de explicações e solicitações para que a manifestação espontânea de apoio seja adiada para outro momento e lugar, a fim de que o presidente e a digníssima esposa tenham tempo para descansar do sufocante contacto com o povaréu. E quem percebe ironia já a percebeu, e quem não percebe não perceberá nem lendo o conto.

Gostei. Divertiu-me menos do que Reciprocidade Amável, mas gostei.

Textos anteriores desta publicação:

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Irmãos Grimm: O Cordeirinho e o Peixinho

Mais um conto mauzinho, este, o que provavelmente tem a ver com aquilo que os Irmãos Grimm explicam na nota que o acompanha: o final está incompleto. Fora isso, este O Cordeirinho e o Peixinho é mais uma história com algumas semelhanças com a da Branca de Neve, pois narra as desventuras de um casal de irmãos, que gostavam muito um do outro e só queriam brincar e ser felizes, perante as malvadezes que a madrasta bruxa fez cair sobre eles. E, claro, a forma como se salvam de tão daninha megera.

É talvez sintomático que os Grimm tenham decidido não mexer nesta história. Afinal, é comum encontrar nas notas que acompanham cada conto informações (ainda que muitas vezes vagas) sobre as alterações feitas aos contos tais como saem da tradição oral. Outros contos, possivelmente tão incompletos como este, foram retocados e sofreram acrescentos, por vezes vindos de outras histórias. Este não. Imagino porque os Grimm não o acharam interessante o suficiente. E eu concordo que não é, apesar de até ter potencial para daqui sair uma história infantil razoável.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 11 de setembro de 2022

Leiturtugas #169

Se dependesse de nós, os participantes oficiais nisto das Leiturtugas, esta semana teria ficado em branco. Mas felizmente não depende.

Ah, sim, pois. Olá e bem-vindos.

Pois, esta semana só deu oficiosos. Começou pela Carla Sofia Eiras, que publicou uma opinião sobre um livro do Afonso Cruz. O título? Vamos Comprar um Poeta. É um romance de ambiente distópico que Cruz publicou em 2016 na Caminho. E sim, não sendo de FC, tem FC.

Seguiu-se o «Calhariz» e a sua muito breve opinião sobre Nepenthos, de D. D. Maio. Trata-se de um romance de fantasia que a autora autoeditou em 2020. E não, aqui não existe FC.

Como curiosidade, ambas estas opiniões foram publicadas em blogue alheio.

Mas nem todas as opiniões da semana saíram em blogue alheio. Também tivemos a «Toupeira» a opinar sobre um livro de José Saramago, mais um Saramago. Qual? Aquele que chega mesmo, mesmo a roçar na história alternativa. Já sabem qual é, certo? História do Cerco de Lisboa, publicado originalmente em 1989, também na Caminho. Ignoro em que edição a «Toupeira» o leu. E sim, tem alguma FC, uma vez que eu tendo a incluir a HA na FC.

E foi isto o que a semana rendeu. Não foi muito, mas já houve semanas piores. Como será a próxima? Só depende de vocês.

E de mim também, sim, eu sei.

Até domingo.

João Barreiros e Luís Filipe Silva: A Madrugada dos Deuses

É com esta história, em que pela primeira vez as vozes de João Barreiros e Luís Filipe Silva se misturam, que a narrativa deste livro começa a tornar-se mais sequencial. Até aqui, cada nova noveleta ou novela levava-nos a um novo cenário e/ou a um novo conjunto de personagens, com pouca ligação entre umas e outras (a exceção notável é a de Mr. Lux, personagem ou protagonista de mais que uma história, o qual entretanto desapareceu há muitas páginas). Mas em A Madrugada dos Deuses (bibliografia) vamos reencontrar Joel, ainda contaminado pela tecnologia avançada das potestades, e Ka-lir, o seu "irmão" vulpis, chegados diretamente da história anterior.

O cenário, no entanto, muda. No fim de A Agonia da Arte Reprimida, os dois põem-se em fuga, impelidos por uma inteligência artificial avançada que se associara ao jovem Joel, ajudando-o a sobreviver. Aqui vamos descobri-los no destino dessa fuga: a selva colombiana, local onde um barão da droga preside a um vasto império criminal, apoiado por um exército de muchagueros.

E o que fazem um adolescente humano e um adolescente alienígena, este último em desobediência direta às ordens do seu perigoso pai, no território de um barão da droga? Não é por vontade própria que vão lá parar; é a entidade associada a Joel (por simbiose? parasitismo?) que ora os convence ora os coage a isso. Porquê?

É esse porquê que faz mover a história. Esta é tão movimentada como seria de esperar, cheia de peripécias e de revelações, mas o que lhe confere realmente interesse é o mistério que está na base da longa viagem.

Esse mistério é revelado após uma longa sequência alucinatória em que Joel mergulha de cabeça na fonte da droga comercializada pelo barão. É óbvio desde o início de que está tudo ligado à presença alienígena em volta da Terra e no próprio planeta, mas o modo como exatamente as coisas se ligam é revelado agora. O barão da droga, para começar, não é humano. E, mais importante do que isso, a droga também não é terrestre, sendo necessária à entidade que contaminara Joel para completar o seu controlo sobre o jovem. É como se fosse para ela uma espécie de alimento. Um alimento que lhe confere poder e lhe dá novas capacidades.

Essa entidade, já agora, é um ixyitil, ou pelo menos um constructo artificial criado por essa espécie alienígena todo-poderosa que se opõe (desde tempos imemoriais) às potestades. E, se as potestades surgem no início deste livro sob a forma (e o nome) de anjos, encarnações do bem, os ixyitil desempenharão o papel de encarnações do mal, o que parece ser confirmado pela utilização de Joel como mera ferramenta, de uma forma completamente indiferente ao seu destino, vida e autonomia. Mas se calhar não é bem assim.

Certo é que o que os autores aqui fazem é deixar o leitor a torcer pelos ixyitil; afinal, são a parte mais fraca, a parte que está em fuga, perseguida por forças aparentemente mais poderosas. E se o que fazem causa danos, bem, serão os famigerados danos colaterais. Afinal, uma guerra é uma guerra.

Esta história continua a ser bastante boa. No entanto, tem uma natureza transicional que faz com que não funcione tão bem, se lida isoladamente, como as histórias anteriores. É sobretudo um preparar de cena para a história seguinte. Um mosaico, neste "romance em mosaicos", que só faz real sentido quando integrado no todo.

Então, seja. Passemos à história seguinte.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Irmãos Grimm: O Pessoal da Casa

Não gosto de lengalengas, como já disse tantas vezes que já se vai transformando em lengalenga. Mas há lengalengas e lengalengas. Algumas ainda têm algum interesse, apesar de serem lengalengas. Normalmente pela premissa, estragada pelas intermináveis repetições e iterações. Outras, como este O Pessoal da Casa, não têm interesse rigorosamente nenhum. Que interesse poderá ter uma lista de nomes de pessoal de uma casa? Só as rimas, mas os Irmãos Grimm (ou terá sido a tradução?) resolveram transformar a lengalenga em prosa tirando-lhes evidência.

Não. Decididamente não. Este texto é para esquecer.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Irmãos Grimm: A Moça de Brakel

Mais um continho muito curto que também não parece ter sido grandemente alterado pelos Irmãos Grimm. E mais um continho que tem no humor a sua principal característica. Aqui a história é sobre A Moça de Brakel, ou uma das moças de Brakel (é uma cidadezinha alemã, Brakel), e um episódio de confusão em que ela diz alto o que lhe vai na alma, na capela, o sacristão responde e ela julga que está a falar com a Virgem.

Nada de interessante. Só uma faceciazinha que provavelmente divertiria os camponeses que contavam a história às visitas mas a mim não divertiu. E nada tem de fantástico, ainda por cima.

Contos anteriores deste livro:

Gerson Lodi-Ribeiro: Estranhos no Paraíso

Gostaria de ter gostado mais deste romance do Gerson Lodi-Ribeiro do que gostei. Afinal, não é todos os dias que um tipo lê um livro que abre com uma dedicatória coletiva na qual está incluído, uma honra de todo imerecida que o Gerson resolveu conceder-me, vá-se lá saber porquê. Gostaria, portanto, de poder corresponder a essa honra com uma opinião entusiástica sobre este Estranhos no Paraíso (bibliografia)... mas a verdade é que não creio que o livro mereça tal entusiasmo e não há volta a dar-lhe. Este é um romance com qualidades mas também com defeitos, que poderão ser mais ou menos sérios consoante o que cada leitor procurar na leitura.

Julgo provável que os problemas do romance nasçam da sua génese. Trata-se de um fix-up, isto é, um romance construído a partir de histórias escritas e, no caso, publicadas independentemente umas das outras. Muitas vezes, os fix-ups são compostos por histórias que já se ambientavam no mesmo universo ficcional, o que facilita a sua integração num todo maior (nem sempre, mas geralmente), mas no caso deste livro a ligação entre as duas histórias que lhe deram origem (um conto intitulado Bárbaros nos Portões e uma noveleta intitulada Missão Secundária) parece ser ténue, e digo "parece" porque não li uma dessas histórias, pelo que só a posso avaliar pelo conteúdo encontrado neste livro. Seja como for, seja ou não ténue essa ligação, seja ou não esse o problema de base, o facto é que falta ao romance uma linha narrativa forte o suficiente para lhe dar estrutura enquanto texto singular, o que faz com que as duas histórias se mantenham muito presentes no resultado final em vez de se fundirem num todo harmonioso e único.

E é pena porque aquilo que está na base da história, isto é, o worldbuilding, é realmente muito bom. Na verdade, é precisamente por isso que eu disse ali em cima que "os defeitos do livro poderão ser mais ou menos sérios consoante o que cada leitor procurar na leitura". Um leitor particularmente sensível aos detalhes de construção do universo ficcional encontrará aqui um acepipe raro na ficção científica lusófona; já um leitor que se preocupe sobretudo com outros aspetos da criação literária poderá sair da leitura algo desapontado. Especialmente se esperar ação.

O romance narra uma viagem pelo espaço e o que acontece depois da expedição regressar à Terra (ou não regressar; ver mais adiante). Essa expedição ruma a Delta Pavonis, uma estrela real e próxima, semelhante ao Sol, distando quase 20 anos-luz do Sistema Solar, em torno do qual não se descobriram planetas... ainda (há um candidato não confirmado). Mas no universo ficcional criado pelo Gerson há planetas a girar em volta da estrela. Na verdade não se limita a haver planetas: há planetas com vida, dois, com vida inteligente, um, e com uma civilização capaz de comunicar através de distâncias interestelares.

Em coerência com a muito elevada qualidade do worldbuilding, tudo isto é sólido e perfeitamente credível. Os planetas, sendo ficcionais, são completamente possíveis à luz dos conhecimentos científicos atuais, e o mesmo se pode dizer dos seus habitantes. Os quais, já agora, são realmente alienígenas, não os Homo sapiens com orelhas de borracha e pele pintada que aparecem em tanta FC... e não me refiro apenas à audiovisual.

A primeira parte do romance gira em volta dos planetas de Delta Pavonis e da civilização nascida num deles: os pavonianos. Também gira em volta da tripulação da nave e da civilização que esta deixou para trás. Como o cuidado dedicado ao worldbuilding pode levar a suspeitar, tudo é descrito em detalhe: a civilização terrestre é uma sociedade utópica nascida das cinzas de uma guerra termonuclear global que quase elimina a espécie humana, a tripulação da nave é composta por génios panssexuais com uma indomável líbido (há qualquer coisa de Star Trek: Voyager nesta nave... mas uma Star Trek: Voyager com muito mais sexo), e os pavonianos são uma civilização que o contacto interestelar apanha num estado mais atrasado de desenvolvimento e que, talvez por isso, vai acabar por seguir as pisadas da Terra... com piores resultados. Tudo sólido, tudo interessante, mas...

... tudo bastante parado.

À parte as abundantes cenas centradas nas relações interpessoais, de cariz sexual ou não, não é muita a ação nesta parte do romance ou, na verdade, em todo ele. Tudo é descrito em tom de depoimento (por motivos que o final do livro torna claros), com um único ponto de vista, o da comandante, e a abordagem é por isso amplamente descritiva, sem deixar muito lugar para uma ligação mais direta entre o leitor e as várias personagens. Mesmo quando a ação e o perigo surgem, o tom distante da narração tende a afastar-nos deles em vez de nos colocar . O que é narrado é de um modo geral francamente interessante (graças ao tal worldbuilding, sobretudo), mas suspeito que para muitos leitores não chegue.

E quando a nave parte do sistema de Delta Pavonis de regresso a casa, iniciando a sua missão secundária, as coisas não mudam muito de figura. Com a agravante de, pelo menos para mim, o universo ficcional criado aqui ter menos interesse do que o da primeira parte.

Mas não para o Gerson, aposto.

Como bem sabe quem sabe alguma coisa sobre as FC&F lusófonas, Gerson Lodi-Ribeiro é dos principais cultores da história alternativa na nossa língua, se não for mesmo o principal. Assim, não é surpresa encontrar um forte elemento de HA nos seus livros, e este não é exceção. Mas ao contrário do que muitas vezes acontece, a HA aqui presente tem tudo a ver com ficção científica.

É que a missão secundária que a nave vai executar é a investigação de uma tal "descontinuidade permeável", fenómeno espacial misterioso situado mais ou menos de caminho entre Delta Pavonis e o Sistema Solar. E não, este não existe; aqui estamos no domínio da ficção pura.

Ora, vem-se a descobrir que a descontinuidade permeável é uma região que permite, de forma muito limitada, a transferência de massa entre universos diferentes. E eis que a nave terrestre é apanhada desprevenida... e vai parar a um universo diferente. A um universo no qual a civilização terrestre se desenvolveu por outras vias.

Também aqui a construção do universo ficcional é sólida. As ideias sobre a descontinuidade permeável e os universos adjacentes vêm de especulações cosmológicas recentes baseadas na interpretação de muitos mundos da mecânica quântica, e a evolução alo-histórica que o Gerson cria poderá ser altamente improvável (essencialmente pela perenidade da civilização delas resultante, parece-me) mas certamente não é impossível. E se tivermos em conta que uma das principais inferências da interpretação de muitos mundos diz que se algo é possível, por mais improvável que seja, existe pelo menos um universo em que esse algo existe, fácil se torna compreender que a via histórica criada aqui não viola nenhuma regra de verosimilhança. Sim, pois é facto histórico que houve contactos entre as civilizações clássicas da bacia mediterrânica e as civilizações orientais, e o "e se?" que está na base desta especulação ucrónica é a possibilidade de, na sequência desses contactos, não ter sido o cristianismo a implantar-se no mundo romano, mas sim o budismo.

E eis que volta a haver aqui um acepipezinho de worldbuilding, agora muito em particular para quem gosta de história alternativa, pois o Gerson explora detalhadamente as diferenças (bastante grandes) que um tal ponto de divergência causaria na história da Humanidade, ao descrever a sociedade que os tripulantes da nave vão encontrar naquela Terra alternativa. Mas, de novo, ação é coisa que não abunda de todo, e aqui finalmente fica claro que o principal motivo para tal é todo o livro corresponder simplesmente à narração que a comandante da nave faz sobre a sua viagem para benefício das pessoas daquele universo diferente.

E a história termina com as dificuldades de adaptação de alguns dos tripulantes a um mundo que não é o deles. Por choque cultural, sim, mas sobretudo por incapacidade de encontrar naquela sociedade mais avançada e bastante diferente alguma atividade em que possam sentir-se úteis. De novo, tudo narrado com um certo distanciamento, apesar de os acontecimentos tocarem muito de perto a narradora, e com um estilo muito descritivo.

Feitas as contas, fica uma linha narrativa global razoavelmente fraca, a unir com pouca solidez uma série de episódios cujas linhas narrativas são muito mais fortes, uma construção de universo ficcional de excelente qualidade, e um ênfase na descrição que deixa a ação muito para trás. É um daqueles livros que propiciam experiências de leitura muito diferentes a leitores diferentes. No fundo todos o fazem, mas aqui talvez haja mais motivos para isso do que é hábito.

Para mim foi um bom livro, mas não um livro muito bom. Saboreei com gosto os muitos detalhes de worldbuilding que ele contém mas também me causaram um certo aborrecimento algumas das partes mais paradas ou mais centradas na dinâmica afetiva e sensual da tripulação. Imagino que quem ache mesmo que a FC é a literatura das ideias poderá adorar este livro, pois ideias é coisa que aqui não falta. Imagino também que quem, por outro lado, exija das suas leituras a tensão de um page-turner provavelmente não goste. Para mim, foi algo intermédio, embora mais próximo dos primeiros que dos segundos. Até porque também eu escrevo, também eu crio mundos, e as técnicas de worldbuilding que o Gerson aqui emprega foram para mim extremamente interessantes.

Não é livro para toda a gente, isso é certo. Terão de descobrir pessoalmente se é ou não para vocês.

Este livro foi-me oferecido pelo autor.

domingo, 4 de setembro de 2022

Leiturtugas #168

Semaninha escassa, esta. Mas mesmo nas semaninhas escassas temos leiturtugas a divulgar. Só não as temos se a semana for parada de todo, o que também acontece, ainda que raramente.

Esta foi escassa, não parada, mas tê-lo-ia sido se não fosse a atividade do Ricardo Trindade. Foi ele o único a publicar alguma coisa relevante, começando pela sua opinião sobre Recife, o primeiro volume da série Prisioneira do Tempo de Patrícia Madeira. Publicado no ano passado pela Cultura, costumo incluir este livro no grupo dos que têm (alguma) FC, e é o que vou fazer também agora.

Mas não se resumiu a isso a atividade do Ricardo esta semana. Publicou também a sua opinião sobre um romance de Maria Francisca Gama que me parece incluir pelo menos uma certa atmosfera de realismo mágico e/ou horror, mesmo que o seu foco principal seja outro. Posso ter compreendido mal, mas ajuizando pelo texto do Ricardo pareceu-me que há qualquer coisa de fantástico naquele enredo, pelo que vou incluí-lo aqui. A Profeta é edição deste ano da Suma de Letras.

E quanto a esta semana estamos conversados. Daqui a sete dias deveremos ter mais assunto sobre que conversar. Até lá.

Luís Filipe Silva: Dormindo com o Inimigo

O Luís Filipe Silva é daqueles autores que quando acertam são excelentes — ele escreveu alguns dos melhores contos da ficção científica portuguesa, afinal — mas nem sempre acertam, pelo que quando pego num conto dele estou sempre esperançado de encontrar o melhor mas preparado para o não tão bom. Sendo que "não tão bom" não é sinónimo de mau: os piores contos dele são histórias medianas, com qualidades suficientes para se tornarem interessantes mas também com problemas que as impedem de ser realmente boas.

Neste Dormindo com o Inimigo (bibliografia) não encontrei o melhor LFS mas também não encontrei o pior. Trata-se de uma história de futuro distante, com o seu quê de fantasia científica, como as histórias de futuro distante tendem a ter, por algum motivo que ainda não compreendi bem (a dificuldade de realmente imaginar um futuro distante, talvez? Não sei).

O protagonista é o último homem sobre a Terra, que vive uma vida solitária e involuntariamente celibatária porque, simplesmente, não tem com quem não o ser. O derradeiro incel, portanto. Mas eis que um belo dia descobre uma fêmea.

E sim, a palavra certa é mesmo fêmea, não mulher, pelo menos no entendimento dele. Não se trata da última mulher sobre a Terra, parecendo pertencer a uma espécie pós-humana qualquer cuja evolução tenha sido feita com base em atavismos, adquirindo características claramente simiescas a par de outras inegavelmente humanas. Pelo menos aparentemente. Mas nada disso importa ao protagonista; um incel é um incel e age como incel sempre que o desejo não correspondido e insatisfeito levanta a sua feia cabeçorra. Consequentemente, depois de um período de sedução feito com base na oferta de alimento, siga para a violência e a violação.

No fim, a coisa termina num final surpresa que, embora seja um final adequado para a forma de agir do último homem sobre a Terra, me pareceu demasiado próximo de um deus ex-machina para realmente funcionar. Um deus ex-machina que resolve o enredo com base numa biologia que não faz sentido e não é explicada de nenhuma forma. Fantasia que se intromete numa história que até aí era (ou parecia ser) FC propriamente dita, apenas porque era necessário arranjar uma forma de haver consequências para os atos do protagonista.

É este o principal motivo por que não me parece que este conto chegue realmente a ser bom, embora também não o ache apenas mediano. Sê-lo-ia se fosse oco, mas não é: tem conteúdo. Portanto parece-me estar algures na transição entre mediano e bom, talvez mais perto deste do que daquele.

sábado, 3 de setembro de 2022

Irmãos Grimm: Knoist e os Seus Três Filhos

Faz-se de um parágrafo e um par de versos, este Knoist e os Seus Três Filhos, um contículo muito disparatado e muito surreal que os Irmãos Grimm talvez não tenham alterado quase nada. Trata-se, basicamente, de uma anedotazinha que joga com o nonsense e tem o seu quê de lengalenga. E também tem o seu quê de fantástico, que a vida de Knoist e dos seus filhos está cheia de coisas prodigiosas. Não lhe encontrei grande interesse, mas certamente alguém encontrará.

Contos anteriores deste livro:

Miguel Carqueija: A Rainha Secreta e Outras Histórias

Como digo repetidamente, a meu ver um livro de contos ou número de revista valem a leitura se incluírem pelo menos uma história muito boa ou várias boas, mesmo que no conjunto também venham histórias más ou muito más. Mas existe nesta ideia uma zona cinzenta que depende da definição de "várias": quantas histórias correspondem a "várias"?

Pior: essa pergunta não tem resposta, pois uma coisa é um livro de 50 páginas e 3 contos conter uma história boa, outra é um livro de 500 páginas e 30 contos conter quatro histórias boas. O primeiro é claramente melhor que o segundo, mesmo tendo menos histórias a contar para o "vários".

Claro, tudo se resolveria com uma história muito boa, mas é frequente essa história não existir. E neste livro de Miguel Carqueija não existe.

Mas, a par de uma série de contos fracos, ou até maus, e um par de contos razoáveis, há aqui duas histórias boas: O que Existe Entre as Estações do Metrô e, sobretudo, Urros no Porão. Curiosamente, ou talvez não, são ambas histórias de horror, género a que me parece que o estilo do autor se ajusta melhor do que aos outros, e se esta coletânea tem uma qualidade é a de mostrar com certa clareza as várias facetas da escrita de Carqueija.

Dito isto, serão essas duas histórias suficientes para fazer com que a leitura de A Rainha Secreta e Outras Histórias (bibliografia) tenha valido a pena?

Está no limite, mas a minha resposta é não. Seria claramente sim se alguma dessas histórias fosse o prato principal do livro, por assim dizer. A história mais extensa, a que dá mais leitura, a que serve como âncora à volta das quais se aglomeram as outras. A que dá título ao livro. Mas A Rainha Secreta não passa do razoável, e um razoável a atirar para o fraco. Não acontece muitas vezes, mas neste caso o tamanho importa.

Em suma, esta é uma coletânea medíocre que contém um par de boas histórias. Não me bastou.

Eis o que achei de cada um dos contos deste livro:
Embora, tanto quanto me lembro, eu o tenha descarregado de outro sítio, à data da publicação deste post este livro está disponível gratuitamente na internet, em formato PDF, em pelo menos dois locais: no Issuu e no fdocumentos.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Irmãos Grimm: As Três Princesas Pretas

Depois da experiência do penúltimo conto, não é difícil calcular qual foi o primeiro pensamento que me passou pela cabeça ao deparar com um título como As Três Princesas Pretas. Disseram "mais racismo?" Então acertaram.

E sim, há um pouco de racismo nesta história, que os Irmãos Grimm não parecem ter alterado de todo. Mas nada que se compare com a penúltima; aqui é muito mais subtil, podendo mesmo argumentar-se sobre a sua ausência. Na verdade, até se poderia partir desta história para uma discussão sobre até que ponto o ancestral temor humano face à escuridão e à noite pode ter influído nas atitudes dos povos de pele clara quando pela primeira vez encontraram povos de pele escura. Mas não é uma discussão que me interesse fazer aqui; é coisa demasiado complexa para este espaço. Aqui quero falar da história propriamente dita.

É uma história muito apressada, cheia de peripécias mas mal desenvolvida, parecendo-me mesmo incompleta pois há várias cenas que parecem um pouco caídas de paraquedas na sequência narrativa. Fala das aventuras de um filho de pescador da Índia Ocidental que vai parar a uma espécie de reino dentro de uma montanha (que se abre, à Ali Baba) onde encontra três princesas enfeitiçadas. Na maioria dos contos em que príncipes ou princesas enfeitiçadas procuram livrar-se dos feitiços, o instrumento dessa libertação cumpre as instruções à risca, por menos sentido que elas façam, e o feitiço desfaz-se. Mas aqui não, e é esse o aspeto mais interessante da história. O resto, enfim... talvez pudesse transformar-se num bom conto se fosse mais bem desenvolvido, mas como aqui está não o é.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Irmãos Grimm: João-de-Ferro

Já este conto, que os Irmãos Grimm construíram a partir de várias fontes, é bastante extenso (pelo menos para o que é hábito nestas histórias) e bastante mais interessante do que a vasta maioria dos contos que o rodeiam. Tem, como não podia deixar de ser, muito em comum com muitas outras histórias, mas também tem elementos próprios em quantidade suficiente para não parecer uma mera variante de histórias já conhecidas.

Sem surpresa, conta a história de João-de-Ferro, um "homem selvagem" que vive numa floresta onde faz desaparecer quem tem a má ideia de nela entrar, mas apesar de ser um homem selvagem dispõe de grande riqueza e poder. O poder tem muito de mágico, e a riqueza também, fazendo em alguns dos seus pormenores lembrar a origem da riqueza do rei Midas.

João-de-Ferro é até uma personagem interessante, um tanto ou quanto distante daquele tão típico unidimensionalismo das personagens dos contos populares, que tendem a pouco passar de antropomorfizações de uma qualidade ou de um defeito. Fulano é bom, Beltrano mau, Sicrano estúpido e por aí fora. João-de-Ferro não funciona assim. É mau mas não é mau, é perigoso mas tem coração, comete crimes mas tem os seus motivos. E no fim, descobre-se que é simplesmente um rei enfeitiçado, a tentar livrar-se do feitiço.

Este conto é bom. Não tanto como os melhores contos dos Grimm, aqueles que passaram a clássicos, mas bom.

Contos anteriores deste livro:

Irmãos Grimm: A Noiva Branca e a Noiva Preta

Contos tradicionais alemães, recolhidos ainda no início do século XIX. E de repente aparece um título como A Noiva Branca e a Noiva Preta. Qual é a pergunta que de imediato vos assalta a mente? A mim é: "Racismo?" Não é nada contra os Irmãos Grimm. Mas a fruta da época é a fruta da época, e uma época muito racista (se há racismo hoje, e há, e muito, há 200 anos havia muito mais) produz ou promove obras literárias muito racistas. E este conto é, de facto, extremamente racista.

Tem algumas semelhanças com a história da Gata Borralheira, mas com racismo à mistura. É uma história sobre uma mãe, sua filha e sua enteada, que um dia encontram no campo deus vestido de pobre. A mãe e a filha tratam-no mal, a enteada trata-o bem. Como consequência, deus transforma esta em branca bela e aquelas em pretas feias. Ou seja: a branca é bela e boazinha; as pretas são feias e más. Mais racista que isto é difícil. Ah, sim, e a mãe ainda por cima é bruxa.

Depois o resto da história lá segue como tantas outras histórias de encantar, ainda que um tanto ou quanto incongruente. A enteada (boa, branca e bela) tem um irmão que é pintor mas trabalha como cocheiro do rei. O irmão pinta um retrato seu, que o rei, viúvo, acaba por ver, apaixonando-se de imediato, depois há uma série de feitiços e enganos que transformam a enteada em pata e levam as feias, pretas e más a substituí-la na afeição real, e no fim, com mais reviravoltas da magia, lá se recompensam os bons (e brancos) e se punem os maus (e pretos) como era inevitável.

A Gata Borralheira é muito melhor do que este conto. Não só pelo racismo, mas também.

Contos anteriores deste livro: