domingo, 28 de fevereiro de 2016

Lido: Contos Memórias

Contos Memórias é mais uma das pequenas antologias que o DN e o JN publicaram há alguns anos, como leituras rápidas de verão. Esta contém "reflexões sobre a natureza humana," segundo vem indicado na capa, e desta vez concordo plenamente. São três contos, todos bons, que, uns de uma forma, outros de outra, falam aos leitores de uma ou outra faceta da vivência humana. São múltiplos os temas aqui abordados, o que é notável para um livrinho de 60 páginas. Fala-se de racismo, fala-se de violência, fala-se de justiça, fala-se de religião, fala-se de memória, fala-se de mentira, por aí fora.

Só falta uma unidade maior de tema para se poder até dizer que esta compilação de contos é mais do que a soma das partes que a compõem. Não é. Mas, como as partes são todas entre o bom e o muito bom, a soma acaba por ser um dos melhores livros desta coleção. Nem senti falta do fantástico que, já se sabe, é a literatura que geralmente prefiro e está aqui ausente por completo.

Eis o que achei dos três contos:
Este livro foi comprado.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Lido: A Velha e os Lobos

A Velha e os Lobos é mais uma historinha popular que partilha com a maior parte das anteriores algumas características entre as quais se destacam um certo pendor para a lengalenga e um desenvolvimento pouco significativo, o que, de resto, não surpreende numa historinha de pouco mais de uma página. Mas é mais interessante do que muitas das outras. Por um lado, porque tem mais potencial para que um escritor que a isso se dedique pegue nela e a desenvolva; por outro, porque tem semelhanças óbvias com uma das mais célebres histórias para crianças, o Capuchinho Vermelho. Aqui, no entanto, quem sai de casa e depara com lobos é uma velha que parte não para levar comida à avozinha doente mas à procura de um padrinho para o batizado do neto.

A história mete ainda uma segunda personagem, bastante prestável, e uma cabaça versejadora e não tem final feliz. Também não tem uma moral particularmente clara, à exceção do aviso que faz contra curiosidades extemporâneas.

Um conto popular dos mais interessantes, portanto. Pelo menos para já.

Contos anteriores deste livro:

Lido: A Porta no Muro

A Porta no Muro (bibliografia) é uma coletânea de H. G. Wells que reúne cinco contos datados originalmente da viragem do século XIX para o XX, e nos quais o fantástico predomina, ainda que a ficção científica também marque presença forte, inclusive com um conto muitíssimo interessante por se ambientar no mesmo universo ficcional da narrativa mais conhecida de toda a obra de Wells: A Guerra dos Mundos.

São em geral bons contos, bem escritos e bem concebidos. Para alguns leitores mais habituados ao Wells que melhor conhecemos, o grande percursor da ficção científica, pode ser algo surpreendente encontrar aqui uma faceta da sua obra que não corresponde a essa imagem. Mas a meu ver é uma surpresa boa. Um autor só sobe no meu apreço quando se revela multifacetado, em especial se consegue desenvencilhar-se a contento dos problemas que cada faceta lhe coloca. É, claramente, o caso de Wells. Estes contos são bons mesmo que, por vezes, alguns se mostrem de certa forma previsíveis para um leitor moderno com alguma experiência na leitura de contos fantásticos, visto seguirem por caminhos muito trilhados nos cento e tal anos decorridos desde a sua conceção inicial.

Tirando essa ressalva, que é mais responsabilidade do tempo do que do autor destas prosas, não há aqui um único conto que falhe. E quando ao conjunto ainda se acrescenta uma introdução de Jorge Luis Borges, também ela interessante apesar de curta, o resultado é um belo livro.

Eis o que achei de cada um dos cinco contos:
Este livro foi comprado.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Lido: Seres Sensatos

Seres Sensatos é mais uma vinheta de Luiz Bras, com a qual regressamos ao equilíbrio praticamente perfeito entre forma e conteúdo que tinha sido um pouco abandonado no texto anterior. É uma história que esboça rapidamente as vidas quotidianas dos seres sensatos da cidade mas que ao mesmo tempo se rebela, sugerindo que no mesmo mundo sensato dos seres sensatos vivem também outros seres, outras criaturas, aquelas criaturas de pesadelo em que os seres sensatos não acreditam.

Sensatamente, só posso concluir que este é outro conto muito bom.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Lido: Mort Cinder

Mort Cinder é mais um da série de álbuns de banda desenhada que li no outono passado e me reavivaram, de uma forma bastante inesperada, o interesse pelo género. Contudo, este, do argentino Hector German Oesterheld e do uruguaio Alberto Breccia, começou por parecer não ir de encontro às minhas preferências. E isso também seria inesperado, uma vez que a premissa do livro deveria agradar-me: uma série de histórias centradas no protagonista Mort Cinder, um imortal que foi vivendo momentos fulcrais da história humana e passa por mirabolantes aventuras acompanhado por um velho arqueólogo. O que há para não gostar?

Bem, há a parte gráfica da coisa que, por menos que eu me sinta capaz de a avaliar, umas vezes agrada-me, outras nem por isso. E o estilo que Breccia aqui usa está bem longe da linha clara dos franco-belgas que me satisfaz mais plenamente o sentido estético.

Mas como, apesar disso, o estilo gráfico também me parece muito adequado às histórias que aqui se contam, essa dessintonia entre ele e o meu gosto não chegaria para me levar a não gostar particularmente deste álbum. O que me pôs o pé atrás no início da leitura foi, portanto, sobretudo outra coisa: a estrutura da primeira história de maior fôlego.

A segunda das histórias de Mort Cinder é quase como se fosse a primeira pois aquela que realmente abre o livro é muito curta e funciona basicamente como preâmbulo. E faz lembrar as histórias pulp de super-heróis em algumas das suas piores características. O vilão, em especial, mau como as cobras, é um cientista enlouquecido pela ambição, que não para perante nada para levar a sua avante. Como se não bastasse esse cliché, o malandro ainda tem um gostinho especial por longas exposições de todas as malfeitorias que vai fazer aos heróis, dando a estes, claro, tempo para se prepararem e se lhe oporem. Tão típico!

E tão parvo.

Tivesse todo o livro sido assim, e eu teria terminado a leitura muito desapontado com ele.

Mas não, felizmente. Todas as outras histórias (são ao todo nove) são muito melhores do que essa, chegando até a tocar temas bastante profundos de uma forma muito adulta e, não raro, bastante subtil, mesmo sem perder o caráter de aventura inerente a toda a premissa.

Como consequência, fui gostando cada vez mais do livro à medida que lhe ia virando as páginas e, quando cheguei ao fim, descobri que tinha gostado bastante. Se aquela segunda história fosse melhor, teria até gostado muito e este livro teria entrado para a lista restrita das melhores leituras do ano. Assim, ficou perto mas não chegou lá.

Mas não dei nada por mal empregado o dinheiro que gastei nele.

Lido: O Homem que Fazia Milagres

O Homem que Fazia Milagres (bibliografia) é um bem-humorado conto de H. G. Wells sobre aquilo que o título indica: um homem que um belo dia, subitamente, descobre com completo assombro que é capaz de fazer milagres. A ideia base da história é refletir um pouco sobre o que aconteceria se um homem perfeitamente comum, sem nada de extraordinário, recebesse subitamente e sem qualquer preparação essa forma de omnipotência. Mesmo que fosse alguém de bom fundamento e portanto razoavelmente bem intencionado.

Não é difícil imaginar, pois não? Claro que as coisas não correm bem; claro que elas não poderiam nunca correr bem. E é o relato do que corre mal, de como corre mal do motivo por que corre mal que o conto faz, numa história tão bem elaborada e escrita como seria de esperar do autor de A Guerra dos Mundos... romance esse que, por sinal, foi publicado no mesmo ano deste conto.

Conto que é, resumindo e concluindo, bastante bom.

Conto anterior deste livro:

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Lido: Um Contrato com Deus

Um Contrato com Deus é, segundo afirma quem disto percebe (já sabem que não é o meu caso), mais um álbum de BD particularmente importante de mais um autor particularmente importante, Will Eisner, um dos percursores da forma de BD que ganhou o nome de novela gráfica. Precisamente com este livro.

Judeu, Eisner conta nestas páginas uma realidade que conhece bem: a do quotidiano das camadas pobres da população judaica de Nova Iorque nos anos 30 do século passado (embora tudo tenha origem muito antes e bem longe, nos ataques antissemitas de 1882 na Rússia imperial), focando-a num determinado prédio e nas pessoas que o foram habitando ao longo do tempo. Gente pobre, muita dela imigrante e refugiada, tornada mais pobre ainda pela Grande Depressão. O tom é quase neo-realista, ainda que a BD traga consigo um elemento significativo de caricatura.

São quatro histórias interligadas, desenhadas de uma forma que muitas vezes não respeita a divisão tradicional da BD em quadros, caso em que normalmente se espraia por toda a página à maneira dos cartunes. Há em todas um certo aspeto tragicómico, pois as suas personagens têm muito de patético mas ao mesmo tempo são quase sempre retratadas por Eisner com alguma ternura. Como quem diz "esta gente é estranha e talvez um pouco louca mas é a minha gente".

Foi mais um álbum de que gostei bastante mas sobre o qual, curiosamente, não tenho muito a dizer. E foi comprado, claro.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Carmen Maria Machado

Carmen Maria Machado que, apesar deste nome tão português, é americana, está presente nesta antologia com três textos, começando por

Inventory. Trata-se de um conto absolutamente brilhante, que consiste basicamente de uma lista. Um inventário, sim, isso, muitíssimo bem escrito, no qual uma mulher nunca identificada faz uma lista das pessoas com quem foi tendo relações sexuais ao longo da vida, descrevendo brevemente circunstâncias, aspetos físicos, temperamentos e a duração de cada relação. Detalhe de toda a importância: em pano de fundo, vai acontecendo um apocalipse, uma epidemia que vai dizimando inexoravelmente a espécie humana. Magnífico.

Especially Heinous: 272 Views of Law & Order SVU. Trata-se de uma noveleta. Mais uma lista, esta de todos os episódios de doze temporadas da série Law & Order, Special Victims Unit, série policial americana que é transmitida em Portugal sob o título de Lei & Ordem: Unidade Especial. Mas não dos episódios reais, naturalmente. Os episódios que Machado nos conta brevissimamente, às vezes em uma só linha, são bizarros, surreais, horroríficos, protagonizados não só pelos dois principais protagonistas da série verdadeira (os detetives Elliot Stabler e Olivia Benson) mas também pelos seus duplos, ou variantes, Abler e Henson, que talvez sejam malignos, que talvez queiram matá-los, enquanto à volta do quarteto vão sucedendo coisas de pesadelo. Outra história de grande originalidade, que no entanto peca por uma extensão talvez excessiva, acabando por tornar-se algo cansativa.

We Were Never Alone in Space. Outro conto. De novo muitíssimo bem escrito, de novo contando uma história através de uma espécie de lista. Mas desta vez é uma lista de cenas, de situações, o que tornaria o resultado mais corriqueiro se não fosse um detalhe: estão listadas de trás para a frente, a mais recente primeiro. E de novo estamos perante um apocalipse, embora de outra natureza, de novo misturando ficção científica (um rover marciano descobre uma cidade em Marte) com o horror que o reaparecimento dos mortos provoca. De novo uma abordagem muitíssimo original a temas que já não o são há muito, o que não podia ser mais pós-moderno.

Carmen Maria Machado é muito boa escritora. Muito boa mesmo.

Lido: O Homem da Tenda

O Homem da Tenda é um conto muito curto (não chega a três páginas) do islandês Hannes Pétursson sobre um homem, jornaleiro, que lê numa tenda enquanto lá fora passam as camionetas da carreira. E é isso. O homem está na tenda e lê, e o escritor descreve isso e mais umas coisas.

Oh, eu percebo que a ideia é fazer o contraste entre as viagens exteriores personificadas pelas camionetas, que o protagonista não faz porque não pode, e as interiores personificadas pelos livros, servindo estas, com vantagem, como substitutas daquelas. Mas essa ideia, por mais simpática que seja, está de tal forma batida que é preciso mais para me despertar algum interesse. E neste conto não há nada mais. É só isto. Uma descrição em três pinceladas da paisagem islandesa e um tipo a ler dentro de uma de várias tendas brancas.

De modo que a coisa mais positiva que posso dizer deste conto é que é muito curto.

Contos anteriores desta publicação:

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Lido: O Galo e o Pinto

O Galo e o Pinto é mais uma historinha popular, esta aqui contada em forma de texto teatral, que consiste de um diálogo bastante tosco, e até incoerente (milho, por exemplo, está a ser lavrado por bois ao mesmo tempo que já foi comido pelas galinhas), entre um galo e um pinto. Fica a sensação que, embora não se trate aqui, propriamente, de uma lengalenga (e daí...), este diálogo também poderia ser prolongado até onde a imaginação e a vontade do contador o permitisse, até porque não parece haver aqui qualquer espécie de conclusão, ou até história propriamente dita. O pinto, perguntador, vai fazendo perguntas em catadupa sobre onde está isto ou aquilo, e o galo, infinitamente paciente, vai-lhes dando respostas breves.

O mais desinteressante texto desde o início do livro.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Nas Ruínas do Laboratório Subterrâneo

Nas Ruínas do Laboratório Subterrâneo é mais um texto muito curto de Luiz Bras, quase um poema, na verdade, que transporta a metamorfose kafkiana (mas kafkiana mesmo, pois o protagonista desta história é chamado Gregor Samsa, só não fica claro se ironicamente ou não) para um cenário de laboratório decadente, típico da ficção científica. Literariamente muito forte, é daqueles contos que se preocupam apenas em traçar um cenário e sugerir a história ou as histórias subjacentes a esse cenário, sem chegarem a sequer tentar concretizá-las. Os fãs de FC mais tradicionais não costumam gostar de histórias destas. Eu gosto de algumas, mas esta deixou-me ambivalente: gostei muito da forma, menos do conteúdo.

Textos anteriores deste livro:

Lido: A Louca do Sacré-Coeur

A Louca do Sacré-Coeur é um mirabolante álbum de banda desenhada de Moebius e Alejandro Jodorowsky, dividido em três partes, que segue o lento mas inexorável mergulho de um tal Alain Mangel, seriíssimo (ou talvez não tanto) professor catedrático de filosofia na Sorbonne, no mais absoluto delírio místico-sexual.

O livro é, parece-me, no fundamental um grande gozo. Um gozo a uma certa forma pretensiosa e oca de intelectualismo, para começar. Mangel, a princípio um respeitado catedrático, decompõe-se sem qualquer esforço num caco humano, incapaz, cobarde e manipulável, incapaz de resistir à atração sexual por jovens vinte ou trinta anos mais novas (e invariavelmente loucas) e aos seus caprichos e às consequências que estes têm.

Um gozo, também, à crise masculina da meia idade, àquela pulsão que certos homens sofrem por partir numa busca frenética por qualquer coisa que lhes traga de volta a juventude perdida. No mundo real, esta pulsão é frequentemente destrutiva, mas é raro que o seja tanto como no caso de Mangel.

Um gozo, ainda, ao misticismo new age; embora esta história date dos anos 90, há aqui uma clara influência do substrato cultural dos anos 60 e 70. Drogas? Temos. Guerrilheiros nas selvas da América Latina? Temos. Xamãs? Temos. Mistura de sexo e misticismo? Temos, oh se temos! Particularmente hilariante é uma cena em que a seita de quatro em que Mangel se mete, mais ou menos a contragosto, e que tem como objetivo gerar o novo Messias, o batiza, dando-lhe o nome de Zacarias. Como é feito o batismo? Forçando-o a dar a sua semente a "Cristo-Maria" (uma das duas loucas da seita, filha de um barão da droga colombiano). Coisa que ele desejava muito fazer, aliás. O que Mangel não esperava era que a sessão de sexo acabasse com ele amarrado e... enrabado por "São José", o outro homem da seita, um pequeno criminoso cujo verdadeiro nome é Mohamed.

Sim, o livro tem bolinha vermelha ao canto superior direito. Aliás, a própria capa o sugere.

E sim, é muito divertido. Quase todo.

O que, a meu ver, o estraga é a última parte. O desenho perde consistência e torna-se abonecado e o gozo torna-se significativamente menos gozativo, pois tudo aquilo que até aí era misticismo sem consistência passa a ser apresentado como realidade. Temos aqui um dos raríssimos casos em que a introdução de uma fantasia mais concreta numa história (em oposição a um fantástico que pode ou parece ser apenas questão de imaginação de alguma personagem, o qual existe desde o início) acaba por a piorar. Quando as certezas estapafúrdias dos loucos que levam Mangel da Sorbonne à selva colombiana acabam por se concretizar numa sessão alucinatória de onde Mangel sai sarado de todas as suas maleitas e rejuvenescido, num final feliz delicodoce, quase à filme de Hollywood, toda a troça que fica para trás perde fôlego e consistência. E isso é de lastimar.

Com um desenlace diferente, teria gostado muito deste livro. Com este...

Bem, mesmo com este não posso dizer que não tenha gostado; afinal de contas, o final não consegue apagar o que ficou para trás. Mas que deixa um gostinho um pouco amargo na boca, isso deixa.

Mais um livro comprado.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Encontro de editores na Eurocon de Barcelona

Fui contactado pela Sofia Rhei a pedir a divulgação de um encontro de editores especializados em ficção científica e fantástico, a ter lugar durante a convenção europeia de FC de Barcelona, a Eurocon 2016. O que ela pede para divulgar é, em tradução ligeiramente adaptada, o seguinte:

No âmbito da Eurocon 2016 está a ser organizado um encontro dos pequenos editores europeus de FC, fantasia e horror. Pretende-se aumentar o nível de comunicação entre estes editores a fim de tornar mais fácil a socialização, os intercâmbios e as colaborações. O objetivo: aumentar o número de livros traduzidos de e para todas as línguas europeias. A extensão e profundidade desse encontro irá depender do número de pequenas editoras que se inscreverem, e a ideia é espalhar esta informação por forma a chegar a quem possa estar interessado em vender livros que tiver em catálogo e/ou a comprar direitos de FC, Fantasia e Horror estrangeiros no âmbito europeu.

Como registar a sua editora? Não é necessária qualquer taxa adicional! Basta estar presente na Eurocon 2016, na soalheira e espantosa Barcelona, e enviar um email a Sofia Rhei, para o endereço smallpress@eurocon2016.org. Também é possível contactá-la no Facebook.

Toda a informação sobre a convenção, incluindo Relatórios de Progresso, está acessível em
http://www.eurocon2016.org.


O que é preciso fazer para o encontro? Preparar uma comunicação de 5 minutos sobre um livro que se recomende especialmente (ou sobre 2 livros que caibam em 5 minutos). O livro, ou livros, devem ter sido escritos originalmente em português e deverão ter sido publicados pela editora de quem os apresentar. Procuram-se livros especiais e originais, com potencial para vendas, livros que mereçam ser traduzidos, as jóias de cada catálogo. Haverá que explicar aos restantes editores europeus o que torna o(s) livro(s) escolhido(s) interessante(s) e adequados a leitores estrangeiros, de preferência usando breves conceitos-chave e chamarizes. Convirá também levar cartões de visita, panfletos, catálogos, material de merchandising e talvez uns quantos livros para oferecer. Haverá um espaço de socialização agradável, alguns livros espanhóis para oferecer, e petiscos.

Fica então dado o recado, embora eu não conheça, em Portugal, nenhuma editora que se enquadre no conceito de small press a que a Sofia Rhei apela; nós temos editoras profissionais, não especializadas, com uma parte mais ou menos significativa do catálogo composta por FC&F (a Saída de Emergência, a Presença, a Asa/Gailivro, etc.), ou pequeníssimos projetos amadores (Imaginauta, Corte do Norte, etc.) e autoeditores, sem nada no meio. Não sei se alguma daquelas se interessará pela Eurocon, não sei se algum destes terá a coragem e autoconfiança necessárias para achar que se enquadra no pedido e tem em catálogo alguma obra minimamente adequada, mas seja como for estão informados.

Lido: O Toque a Finados

O Toque a Finados (bibliografia) é um curioso conto de Stephen Vincent Benét, cuja verdadeira natureza só se compreende mesmo na última página. Com efeito, o conto parece inteiramente mundano, realista e até algo fora de moda pois, tendo sido escrito em 1935, parece algo saído de uma pena oitocentista ou, no máximo, da virada do século. Epistolar, consiste de uma série de cartas enviadas por um nobre inglês que se aborrece no sul de França enquanto tenta curar-se de uma maleita não identificada (mas a doença da moda era a tuberculose e tudo aponta para aí), até que trava relações com um homem interessante e com a sua família. Só quando compreendemos quem é esse homem, o que pode acontecer antes caso o leitor seja perspicaz mas, se não o for, ocorre de certeza na última página, é que nos apercebemos de que estivemos o tempo todo a ler não uma história realista e banal, mas um interessante exercício de história alternativa, que aproveita para refletir sobre o modo como as oportunidades ou a falta delas podem determinar de forma absoluta o curso de uma vida.

Muito curioso, sim senhores.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Lido: O Blusão de Couro

O Blusão de Couro é um conto de infância de Cesare Pavese. Narrado na primeira pessoa, conta a relação entre o jovem protagonista e um barqueiro, que admira e a cuja barraca vai sempre que tem oportunidade, e também a sua mulher, que teme e despreza. Trata-se de um daqueles contos mainstream focados sobretudo na psicologia das personagens e nas suas relações interpessoais, para os quais o enredo é coisa algo (ou totalmente, por vezes) secundária. Aqui, o fulcro de tudo é a relação entre o barqueiro e a mulher, uma relação sem amor e com bastante abuso, na qual a mulher é apresentada como principal fonte de instabilidade, ainda que o olhar muito pouco imparcial do jovem (que manifesta repetidas vezes a sua repulsa por mulheres) tenha necessariamente influência sobre a luz a que os factos são apresentados. Creio que Pavese faz bastante bem aquilo que se propõe fazer, muito embora este tipo de conto não me desperte grande interesse.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: Em Busca de Peter Pan

Em Busca de Peter Pan, do suíço Cosey, é um bucólico álbum de banda desenhada que, apesar das múltiplas referências ao traquinas fantasista e voador de Barrie, nada tem de fantástico. Conta uma história branda, protagonizada por um tal Sir Melvin Woodworth, inglês, escritor de sucesso no meio de uma crise de inspiração, que decide ir procurar o meio-irmão desaparecido para o último lugar de onde recebera notícias dele: uma aldeola suíça, ameaçada pelo avanço de um glaciar.

Avanços de glaciares são coisa impossível nos dias que correm, em que o globo aquece e os glaciares vão derretendo um pouco por todo o mundo, mas nos anos 30 do século passado, época em que se ambienta esta história, ainda iam acontecendo. Pois é precisamente numa aldeia que a ameaça do glaciar força a evacuar, e de onde o protagonista, preso aos fios que o irmão deixara, acaba por não sair, que o grosso desta história se vai desenrolar.

Não é só uma história bucólica, na qual a imponência e força irresistível da natureza têm uma importância central, mas também uma história de procura e encontro (ainda que este não seja necessariamente aquilo que se procurava), uma história de aventura em alta montanha, uma história de amor e uma história de contrabandistas e fora-da-lei. Tem, portanto, a sua riqueza. Mas a verdade é que não me agradou por aí além. E não por quaisquer questões gráficas (de resto, o estilo franco-belga, apesar de eu não perceber nada disto, é o que mais me agrada... e o de Cosey faz-me lembrar as bandas desenhadas de Alix, do Jacques Martin); é por causa de um certo estilo contemplativo de contar histórias em BD que me aborrece solenemente. Foi também muito por causa disso que não gostei do álbum do Jiro Taniguchi que li dez anos antes.

Gostei mais deste, é certo. Não só é menos contemplativo, como é mais rico em conteúdo. Mas mesmo assim, esteve longe de ser leitura que me enchesse as medidas. Não desgostei da experiência mas, para o meu gosto pessoal, este álbum conta-se entre os mais dispensáveis desta série da Levoir.

Este livro foi comprado.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Lido: A Confissão de Lúcio

A Confissão de Lúcio (bibliografia), porventura a mais conhecida obra em prosa de Mário de Sá-Carneiro, é uma longa novela todorovianamente fantástica, que navega também pelos territórios do policial, muito à semelhança do que Poe faz em vários dos seus contos. Lúcio, o protagonista/narrador, é um criminoso condenado por assassínio, e o texto é a sua confissão, embora não de uma culpa mas de uma inocência.

Sendo depoimento, e estando tingido pelas cores do sobrenatural, o texto obedece à definição clássica do fantástico proposta por Todorov, pois pretende deixar no ar a dúvida sobre se o que é narrado sai mesmo da experiência quotidiana; o narrador garante a veracidade do que escreve, mas ele mesmo reconhece logo a abrir o texto que decerto não irão acreditar.

E depois disso lança-se numa longa explanação de vários anos da sua vida de literato ocioso, entre Paris, cidade-fétiche dos intelectuais do tempo, e Lisboa. O início, em que Sá-Carneiro descreve o ambiente dos círculos cultos e endinheirados da capital francesa, chega a ser divertido, com um friso curioso de personagens caricaturais, presunçosas, fúteis. Somos apresentados, entre outros, a um tipicíssimo e pedantíssimo hipster; embora, no momento em que Mário de Sá-Carneiro escreve esta história, essa designação esteja ainda cerca de um século no futuro, o conjunto de personalidades e atitudes que ela designa parece ser tão antigo como a presunção. Somos apresentados também a uma dançarina/coreógrafa underground, cujo espetáculo (festa?) é uma mistura de dança com bacanal lésbico. E somos apresentados a Ricardo de Loureiro, poeta português por quem o jovem Lúcio ganha imediata amizade.

Este é diferente dos demais. Tão terra-a-terra quanto os outros são extravagantes, partilha com Lúcio ideias e pontos de vista e os dois jovens unem-se na rejeição de todo aquele intelectualismo oco, passando a conviver mais um com o outro do que com todos os demais. E durante algum tempo, a novela não mostra grande vontade de sair deste mundanismo brando.

A coisa muda de figura quando Ricardo de Loureiro volta para Portugal e casa com uma tal Marta. E esta não é uma mulher como as outras... pelo menos segundo afirma o homem que se confessa. Informados logo a abrir de que o casamento como que feminiliza Ricardo, e de que este partilha com Marta uma surpreendente identidade de pontos de vista e atitudes, vamos assistindo a cenas mais ou menos fantasmagóricas ao mesmo tempo que assistimos ao fascínio crescente de Lúcio por Marta, que desemboca em adultério e sexo. Mas ao mesmo tempo, alusões e atitudes cada vez mais explícitas vão levando o leitor a suspeitar de que Marta pouco mais é do que uma imagem, um truque literário, que corporiza a atração homossexual entre Lúcio e Ricardo. No final, muita dessa suspeita é confirmada, quando, pouco antes do desenlace do drama, este explica àquele que encontrou uma forma de desdobrar a alma, criando assim a mulher. Para quê? Para o poder amar.

A Confissão de Lúcio é uma novela muito curiosa, muito bem elaborada, muito bem escrita e muitíssimo ambígua, na qual as obsessões de Sá-Carneiro (como o suicídio, por exemplo) estão bem presentes mas se revestem de roupagens algo diferentes das de obras anteriores. Também nisso, na capacidade de variar dentro de um tema obsessivo, afastando assim o aborrecimento que a repetição simples causaria, esta história está bem conseguida.

Uma novela francamente boa.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Lido: A Romãzeira do Macaco

A Romãzeira do Macaco, mais uma historinha popular, continua sem sair do domínio da lengalenga. Um macaco, ao comer romãs empoleirado numa oliveira, deixa cair um grão de romã, que germina. E o macaco, que prefere romãs a azeitonas, vai pedir ao dono da oliveira para arrancar a árvore a fim de que a romãzeira tenha possibilidade de crescer, o que o dono recusa. Mas o macaco não se fica, e vai pedindo a um e a outro bicho, personagem ou força da natureza um novo favor para pressionar o anterior a responder-lhe favoravelmente. Todos recusam até que chega a um que aceita, a morte. E desse ponto em diante, volta tudo para trás e todos os que lhe tinham antes negado os favores agora foram-nos concedendo.

Se as histórias populares são um espelho das culturas que as geram e perpetuam, o que esta indica sobre a nossa é muito pouco agradável. Porquê? Ora, porque o que há por aí de macacos à procura de favorzinhos não tem descrição. E o que há de bicharada sem coluna vertebral, que a qualquer pressãozinha verga e logo desdiz o que pouco antes dissera, menos ainda.

Algumas destas histórias são divertidas. Esta, no entanto, é sobretudo deprimente.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Foi Assim a Guerra das Trincheiras

Foi Assim a Guerra das Trincheiras, de Tardi, é uma reconstituição obsessiva da I Guerra Mundial, contada sob o ponto de vista de quem combatia nas trincheiras. Quem julgue que este álbum, por ser banda desenhada, traz para o tema alguma espécie de leveza, desengane-se. Ao esforçar-se por retratar com a maior crueza e realismo o quotidiano da guerra, e em especial de uma guerra tão cruel e sem sentido como a primeira grande guerra, Tardi criou um livro duríssimo, ora revoltante, ora comovente, em que as grandezas e misérias da condição humana são expostas até ao osso.

Nem todos os leitores terão a mesma impressão, pois nem todas as pessoas leem as mesmas coisas, mas eu fui-me lembrando várias vezes, vivamente, do romance A Oeste Nada de Novo, de Erich Maria Remarque. Quem julga que a experiência da guerra é dominada pelo lado em que se está pode achar isto estranho, pois Remarque retrata-a pelo lado alemão e Tardi pelo francês, mas encontrei uma identidade quase absoluta no que as duas obras retratam. A mesma desesperança, a mesma miséria humana, os mesmos truques nascidos do desespero, a mesma camaradagem e, acima de tudo, a mesma irracionalidade. Em um e no outro, não há bons nem maus. Há homens encurralados, mergulhados no horror de uma situação sobre a qual não têm qualquer espécie de controlo e lhes vai roubando as vidas aos bocados até que um tiro, um obus ou uma nuvem de gás lhas rouba de vez. E tudo para quê?

Foi Assim a Guerra das Trincheiras tem de ser lido sem flacidez na boca do estômago, porque este álbum pretende no-la esmurrar e fá-lo com regularidade ao longo das suas pouco mais de 100 páginas. Com o texto, sim, mas sobretudo com as imagens. Não que eu perceba muito disto, mas parece-me que no caso deste livro é sobretudo a violência do que se vê que contribui para a violência do todo (ao contrário, por exemplo, do álbum de Altarriba, cuja componente literária me parece preponderante).

O resultado é, julgo, muito bom. Um livro cheio de conteúdo, uma obra de arte claramente pacifista, ao ponto de alguns patetas poderem até chamar-lhe panfletária, mas que no entanto consegue transmitir com total clareza a ideia de que a guerra é absurda sem recorrer a mais do que à ilustração o mais realista possível dos seus absurdos. Recomendo-a sem reservas, muito em especial a todos aqueles que gostam de falar com leveza da guerra e dos que dela fogem.

Gostei. Francamente. Dei por muito bem empregue o dinheiro gasto a comprar este livro.

Lido: Declaração do Engenheiro-Chefe à Imprensa

Declaração do Engenheiro-Chefe à Imprensa é uma vinhetazinha que consiste de uma rápida exposição dos problemas técnicos envolvidos no teletransporte de seres humanos e da solução que o departamento de engenharia encontrou para lhes obviar.

Ficção científica? De certa forma. Poderá falar-se no máximo de uma FC bizarríssima, surreal, infinitamente improvável ao jeito das ficções que o velho II recebia e publicava, mais dedicada a fazer sorrir do que a fazer pensar. Há quem deteste; eu gosto. E por isso mesmo, este conto fez-me sorrir; a solução é mesmo à engenheiro.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Lido: A Guardiã da Espada

A Guardiã da Espada (bibliografia) é um romance de Bruno Martins Soares que mistura ficção científica e fantasia de uma forma que não fica particularmente clara ao longo do texto. Esta falta de clareza é, aliás, a grande pecha de todo o romance, e aquilo que mais contribui para que a leitura não decorra com a fluidez mais desejável.

Mas vamos por partes.

O romance é ambicioso, talvez em demasia. A história é complexa, a narrativa está entrecortada por saltos muito rápidos no espaço e no tempo, avançando numa frenética sucessão de cenas de uma ou duas páginas, raramente mais, ocasionalmente menos ainda, que saltitam entre um Marte futuro em cuja colónia humana rebenta uma guerra e vários locais de um planeta distante e ainda mais futuro mas cujo nível civilizacional é medieval. Não medieval especificamente europeu, atenção, pois nele se entrecruzam culturas claramente inspiradas não só pela europeia mas também pela árabe e pela chinesa. E se alguém ao ler a expressão "planeta distante" imaginou alienígenas de estranhas fisiologias, desengane-se. Toda a gente ali pertence, claramente, à espécie Homo sapiens.

Esse frenesi, repleto de ação, tem várias consequências.

Provavelmente agradará a quem aprecie descrições de combates e de batalhas, pois estas compreendem uma proporção considerável do texto no qual transparece um fascínio do autor, julgo que genuíno, pelas artes marciais e pela estratégia militar de séculos pretéritos. Proporção não maioritária, mas considerável. Não contei páginas, nem nada que se pareça, mas terminei a leitura com a sensação de que entre um quinto e um terço do texto corresponde a esse tipo de conteúdo. Convenhamos: é muito.

Quem, por outro lado, de bom grado trocaria a pirotecnia por um pouco de solidez provavelmente acaba desapontado. As personagens atropelam-se umas às outras em grande número, tornando impossível ou extremamente difícil ficarmos realmente a saber quem é quem e por que motivo faz o que faz. A exceção é só uma: Alex 9, a protagonista de toda a história, a única personagem caracterizada com alguma solidez.

Com mais exceções, mas ainda poucas, as razões por trás dos acontecimentos são totalmente misteriosas, o que cria a impressão de que muito daquilo é gratuito, um mero truque para manter um ritmo elevado e conservar a atenção dos leitores mais superficiais. Manda a justiça que se faça a ressalva de que é perfeitamente possível que o desenrolar da história no resto da série venha a contradizer esta impressão. Na verdade, embora este romance tenha tido publicação independente, ele não termina de uma forma minimamente conclusiva, o que faz suspeitar de que no fundo pouco passa de preâmbulo e, apesar disso, no fecho do epílogo surge-nos a informação mais relevante de todo o texto, a qual coloca algumas das coisas que mais me andavam a roer a suspensão da descrença sob uma luz mais benévola.

Há quem goste de escrever assim as séries, mas eu confesso que não sou fã. George R. R. Martin, por exemplo, fá-lo ocasionalmente, ainda que prefira estruturar os seus livros em volta de arcos narrativos secundários que permitem que haja no fim de quase todos uma espécie de pequena conclusão numa história que continua, o que me satisfaz muito mais enquanto leitor. De resto, Martin é um tremendo escritor; mesmo quando deixa finais escancarados fá-lo quase o melhor que é possível fazê-lo. Soares, porém, não parece ter nenhum arco narrativo para fechar no final desta primeira parte (os seus arcos narrativos são vários, mas parecem manter-se todos abertos para o volume seguinte) e está muito longe desse nível enquanto escritor; tem as inseguranças naturais da inexperiência e uma prosa com algumas falhas e alguns ridículos (um homem que grita já se entende em pleno — e quando não se entende há outras palavras mais enfáticas que se podem usar em vez de "gritar"; pô-lo a "gritar AAAAAAAAAHHHHHH" é um bocadito pateta) que não ajudam. Ou seja: ajuizando por esta primeira parte, a publicação dos três romances em volume único terá sido, provavelmente, a melhor ideia que a editora teve.

Sim, porque se eu tivesse lido este primeiro romance na sua edição autónoma provavelmente não teria pegado nos outros. Não creio que seja um mau romance, propriamente, mas está de tal forma cheio de pontas soltas, de personagens unidimensionais, de confusão narrativa e de potencial (ainda?) desaproveitado que seria com desconfiança e relutância que encararia os livros seguintes. Assim, com tudo num livro só, tendo a dar mais importância aos sinais de que, na história que ainda aí vem, as coisas vão melhorar. Também existem, a começar por aquele bocadinho fulcral de informação de que falo mais acima. Portanto prossigo a leitura, já menos confuso do que andei durante toda esta primeira parte, e esperançado numa experiência melhor.

Veremos se a esperança se confirma.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Lido: A Arte de Voar

A Arte de Voar, de Antonio Altarriba (guião) e Kim (arte), foi uma das grandes surpresas das minhas leituras do ano passado. Eu, que da BD espanhola só conhecia mal e porcamente algumas coisas do Salamão e Mortadelo (ou será Mortadela? Nunca sei), mais uma prova clara de que não sou bedéfilo, foi com algum espanto que dei por mim a mergulhar nesta adultíssima biografia em banda desenhada e foi com assombro que descobri, ao fechar a contracapa, que a tinha adorado.

Há nisso, de resto como há sempre, uma mistura de razões objetivas com outras absolutamente subjetivas. Entre as primeiras, avulta uma forma muito literária de narração e de construção da história. Exemplo claro disso são os últimos três quadros das três páginas que funcionam como prólogo, nos quais, entre pensamentos do protagonista, o narrador narra o seguinte: "Posso por isso assegurar que foi assim que [o meu pai] se suicidou. Posso igualmente assegurar que, ainda que parecessem apenas segundos, o meu pai demorou noventa anos a cair do quarto andar..."

Entre as razões subjetivas, a mais importante é também a mais simples: esta história mexeu comigo de uma forma muito, muito profunda. À semelhança do livro de Jean Renoir sobre o pai, tambérm este é a reconstrução da vida de um homem, feita pelo seu filho, deixando transparecer nas entrelinhas uma enorme ternura pelo pai desaparecido. Este é, decididamente, um ponto fraco meu; isso ficou bem claro nas leituras do ano passado. Ainda por cima, neste álbum fui encontrar um homem que, embora diferente do meu pai em muitas coisas, também era semelhante em muitas outras. Era semelhante na condição de homem de aldeia transplantado para a cidade, na condição de homem de esquerda vivendo a maior parte da vida em tempos de ditadura de direita, no entusiasmo com o fim da ditadura e na desilusão com o que veio depois. O pai de Altarriba suicidou-se no fim da vida; o meu só não fez o mesmo porque não teve forças para isso.

Antonio Altarriba escreveu esta história para compreender a morte do pai, sabendo que para lhe compreender a morte teria de lhe compreender a vida. E eu, ao lê-la, ao compreender a vida e a morte do pai dele, compreendi também melhor as do meu.

Juntando a isso, e isso só por si já é muito, uma arte que não só é de grande qualidade (dizem-no os peritos; quem sou eu para negar?) como está muito próxima do tipo de traço de que eu mais gosto desde miúdo, umas sequências oníricas, ou até talvez alucinatórias, que trazem o meu querido fantástico para o terreno biográfico em que, em princípio, lhe seria impossível ganhar raízes, e uma história movimentada pelos tempos mais turbulentos do século XX europeu, o ramalhete de qualidades deste livro fica variado e frondoso e explica com total clareza por que motivo o escolhi para integrar o trio de melhores livros do ano.

Não sei se o livro é realmente excelente e, na mais pura das verdades, nem me interessa saber. Sei que gostei muitíssimo dele. Isso é mais que suficiente.

Este livro foi comprado.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Alena McNamara

Com Alena McNamara voltamos aos contos, no caso apenas um e intitulado

As Large as Alone. Trata-se de uma história de fantasia, com toques razoavelmente fortes de horror e notas ainda mais fortes de homoerotismo lésbico, bem escrita, sobre duas irmãs muito jovens que conhecem uma sereia e se apaixonam por ela. Ou talvez apaixonar seja a palavra errada, pois o beijo da sereia cria nelas uma necessidade física, orgânica, de estar com ela.

O conto, como disse, está bem escrito, e mostra originalidade na abordagem ao mito das sereias. No entanto, há nele qualquer coisa de insatisfatório e de esquecível. O final, bastante aberto, não tem impacto. Sabe a pouco. Por outro lado, é um conto que tem em boa quantidade algo que geralmente me agrada bastante: subtileza. E por isso gostei dele. Não muito mas sim, gostei.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Lido: Beterraba: A Vida Numa Colher

Beterraba: A Vida Numa Colher é um álbum de BD do português Miguel Rocha, bastante estranho por vários motivos, o que neste caso é qualidade.

Quando há algum tempo falei da minha relação com a BD, disse que a vertente gráfica do género nunca me interessou muito e que, portanto (embora não por estas palavras), aquilo que menos me sinto qualificado para avaliar num álbum de BD é a sua parte gráfica. E isso levanta-me um problema com este álbum do Miguel Rocha: a vertente gráfica (francamente invulgar... tanto quanto a minha fraca cultura de BD consegue avaliar) é aqui absolutamente fulcral.

A capa dá uma boa ideia do grafismo de todo o álbum: cores fortes, saturadas e muitas vezes inesperadas (céus esverdeados ou vermelhos vivos, por exemplo) e desenhos que parecem apenas esboçados em pinceladas largas, como se se tratasse de pinturas impressionistas, criam uma experiência de leitura muito diferente de toda a BD que eu tinha lido até este álbum. Lê-lo foi, portanto, quase como descobrir um género inteiramente novo. Vou tentar explicar em que medida.

Quando leio um álbum "normal" de BD, os olhos primeiro captam o todo da imagem (mais raramente da página) e de seguida põem-se a saltitar de pormenor em pormenor ou de pormenor em balão. Mas aqui não há muitos pormenores, o que causa uma espécie de corte no processo e leva a uma preponderância maior do texto. Mas ao mesmo tempo, a força da cor chama a atenção para as imagens, afastando-a do texto (e o tipo de letra usado, que não é tão claro como poderia ser, também contribui para isso), o que tem como resultado uma sensação de certa forma paradoxal. E, para mim, um bom bocado incómoda.

Junte-se uma história bizarra, ambientada num lugar não identificado mas com inconfundíveis traços alentejanos, sobre um homem, de alcunha Beterraba, que cisma que dê lá por onde der há de arrancar beterrabas a um terreno estéril e improdutivo, surdo a todos os avisos, numa obstinação inabalável, não só se mergulhando a si na obsessão, mas também à mulher que a dado passo arranja e a uma autêntica ninhada de filhas que a mulher vai pondo no mundo com o passar do tempo, encerrando-se, e a elas, numa espécie de mundo privativo, onírico, fantástico e surreal. De resto, a própria falta de definição das imagens ajuda a tornar toda a história mais onírica, assemelhando-a a um daqueles sonhos de cujas imagens nos lembramos vagamente ao acordar.

Dir-se-ia pelo que acima ficou dito que gostei muito deste álbum, não é? Mas não. Gostei de o ler, é verdade, mas não muito. Em parte por questões de gosto (julgo que a sua qualidade é superior ao prazer que a leitura me causou, consequência de eu preferir a BD mais "limpa"), mas também porque a falta de detalhe de algumas das imagens prejudicou a compreensão das cenas... e por causa de uma calinada que me irritou de tal forma que pus o livro de parte durante vários dias, até a esquecer. Com que então, caro Rocha, os filhos "saem há mãe"? Ugh!

Mas que me parece uma experiência muitíssimo interessante, isso sem dúvida. Mesmo não sendo eu bedéfilo.

Mais um livro comprado.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Lido: 2014 Campbellian Anthology - Jodi McIsaac

Jodi McIsaac é mais uma autora presente nesta antologia com um excerto de romance. No caso dela, o romance intitula-se

Through the Door. Trata-se de uma história de fantasia urbana, centrada numa mulher cujo namorado afirmava que a magia existia, antes de subitamente desaparecer, deixando-a grávida. Anos mais tarde, a filha começa a manifestar poderes mágicos, abrindo o que parecem ser portais para outros mundos. Ou para outros lugares do mesmo mundo.

Com a habitual ressalva sobre os perigos de tirar conclusões a partir de algumas dezenas de páginas de excerto, este não parece ser um mau livro, mas também não é livro cujo início me tenha deixado particularmente curioso. Em parte isso deve-se, julgo, a ser um início demasiado introdutório, sem realmente deixar uma ideia minimamente sólida sobre os caminhos que a autora pretende seguir com desbobinar do enredo. Parece tratar-se de uma história sobre o abandono e a busca pelo pai/namorado ausente, uma história centrada no mistério do desaparecimento e nos problemas originados pelo uso de capacidades mágicas, mas o excerto não é suficiente para o poder afirmar com alguma segurança.

Creio que o livro talvez seja razoável, mas duvido que passe disso.

Lido: A Morte da "Chota"

A Morte da "Chota" é um conto bastante breve de Castro Soromenho, autor português de quem eu nunca tinha lido nada até agora mas de que talvez venha a ler mais coisas no futuro. É um exemplar curioso de história de um português apaixonado por África e pelas suas culturas e por isso perseguido pelas autoridades coloniais e fascistas. Esta história, de pendor sociológico ou etnográfico, baseia-se na cultura tradicional dos lundas, em Angola, fazendo referência a várias tradições daquele povo enquanto relata uma história de vingança que até se pode ver como feminista. Vasto conteúdo para conto tão pequeno. Muito interessante.

Contos anteriores desta publicação: