Elegía é a tradução espanhola do conto Elegia, do italiano Ugo Malagutti. Tal como no caso de La Muerte del Capitán Futuro, também este conto não parece estar disponível legalmente online na sua língua original, mas está em espanhol, aqui.
Malagutti parece ser figura grada na FC&F italiana, e pelo exemplo deste conto percebe-se que sabe escrever. Mas isso é tudo o que tenho de bom a dizer acerca dele. Ao abrir o conto deparamos com o papa, o grande rabino e um guru nas margens do Ganges, depois da Terra ter sido "esterilizada" de seres humanos por uma espécie alienígena, deixando-os apenas aos três, ao mesmo tempo que aos animais era dado o dom da linguagem para "poderem exprimir a sua inteligência". Os três mui longevos membros do clero (e são mui longevos porque não são humanos; a coisa passa-se no futuro) esperam uma revelação, obviamente religiosa, depois de passado o Dia do Juízo que fez desaparecer a Humanidade. E esta, claro, chega. Afinal de contas, o autor tem de explicar o que pretende com o conto. Deus ex machina? Sim e não. É isso e não é bem isso.
Estou a ouvir por aí um coro de "mehs"? Pois. Realmente é caso para meh. E só não é mais porque o conto até está bem escrito, como foi dito acima, e porque já tem mais de duas décadas de idade. Mesmo assim, há nele um certo ambiente new age razoavelmente ufológico que, para o fim dos anos 80, é positivamente anacrónico. Basta dizer que a melhor FC portuguesa da época já tinha há muito ultrapassado essa fase.
Só recomendável a quem goste de ficção alegórica (esses talvez apreciem uma subtilezazinha final que, de facto, é das melhores coisas que o conto tem) e a quem se pele por um bom continho místico. Os outros, entre os quais me incluo, o melhor que fazem é passar adiante.
segunda-feira, 31 de maio de 2010
Lido: A Nova Verónica
A Nova Verónica é uma espécie de crónica com conto dentro, de José Saramago, na qual ele pede ao leitor para imaginar um mundo vazio de gente e dos animais que à gente servem de companhia e sustento, e a aterragem de uma nave com seres lá dentro, "desses que a ficção científica nos promete", como ele diz. E depois confronta esses extraterrestres com um muro, que haverá em Hiroshima, onde a bomba atómica terá delineado uma silhueta humana. E imagina a reação deles. É uma violenta acusação contra a desumanidade humana. Pessoalmente, teria gostado mais se fosse mesmo um conto, mesmo que tivesse a crónica lá dentro. Mas nunca seria tão curto como a crónica, e a ele, na altura, pagavam-lhe era para escrever crónicas, não contos.
Lido: A Esfinge de Caveira
A Esfinge de Caveira (bib.) é um conto curto de Edgar Allan Poe que troça de algumas convenções dos contos fantásticos. Um homem, de férias nas margens do rio Hudson, olha para um monte distante e vê um monstro a descê-lo — uma coisa horripilante, com uma caveira pintada. Perturbado, julgando tratar-se a visão do monstro de um presságio de morte, o homem acaba por contá-la a um amigo, o qual lhe explica tintim por tintim o que o "monstro" de facto é. É um pequeno conto divertido, ainda que não me pareça particularmente bem escrito. E não, o problema não está na tradução: confirmei-o lendo o original que, como toda a obra de Poe, já caiu no domínio público e está disponível na web. Aqui, por exemplo.
Lido: O Camarote 105
O Camarote 105 (bib.), de Marion Crawford, é mais um conto clássico de fantasmas, desta vez ambientado num vapor, em alto mar. Um passageiro descobre que o seu companheiro de camarote desaparece, e é depois informado pela tripulação de que já não é a primeira viagem em que algo de anormal se passa naquele camarote. Como muitas vezes acontece neste tipo de histórias (e é o próprio autor desta a explicar, pela boca do seu protagonista, que, se assim não fosse, não haveria mais história para contar, o que é um pormenorzinho delicioso), o protagonista, cético, não dá ouvidos ao que se conta e insiste em permanecer no camarote aziago. Só para acordar a meio da noite, cheio de frio, com a vigia aberta, um intenso cheiro a maresia no camarote... e um espectro no beliche de cima.
Não contarei o resto. Digo apenas que é uma excelente história de fantasmas, bem escrita e muito bem construída, que tem a vantagem de explorar territórios que não se vieram a tornar demasiado populares mais tarde e que por isso mantém ainda hoje a frescura intacta. Muito bom.
Não contarei o resto. Digo apenas que é uma excelente história de fantasmas, bem escrita e muito bem construída, que tem a vantagem de explorar territórios que não se vieram a tornar demasiado populares mais tarde e que por isso mantém ainda hoje a frescura intacta. Muito bom.
domingo, 30 de maio de 2010
Lido: Escambos com Nativos
Escambos com Nativos (bib.) é mais um conto de Gerson Lodi-Ribeiro pertencente ao universo Taikodom. Apresenta-nos um cenário algo diferente das histórias anteriores, um cenário mais próximo à space-opera: o espaço humano está a ser atacado por uma espécie alienígena com motivações desconhecidas. E os confusos habitantes do espaço, sem ideias para compreender ou contrariar os ataques, têm a ideia enlouquecida de pedir opinião aos tribais terrestres. É que, embora a Restrição não permita que nada de material atravesse o campo de forças que envolve a Terra, deixa passar a radiação eletromagnética. E apesar da maior parte da população terrestre ter morrido durante as epidemias que se seguiram à Restrição, há núcleos de sobreviventes, e num desses núcleos reside um especialista na velha ficção científica do século XX.
Este é o conto que menos me agradou entre os que li até agora no respetivo livro. Não tanto por causa das ideias, embora estas não me agradem lá muito, mas principalmente devido à forma como termina. A maior parte do conto apresenta-nos uma série de conversas entre o homem que teve a ideia de consultar os terrestres, um geólogo (palavra que no Taikodom adquire um significado algo diferente do que lhe damos) que vive num habitat em órbita terrestre, e os habitantes da Terra. Mas as últimas duas páginas são uma espécie de epílogo em que se descreve em traços gerais o que acontece depois dessas conversas. Mas sem conclusão. Isto é: é-nos descrita a estratégia sugerida pelo intérprete da velha ficção científica, mas não os seus resultados... o que torna a descrição da estratégia bastante estéril. Podia ter sido integrada nas conversas sem prejuízo nenhum, ou até simplesmente omitida. Assim como ficou é que não me parece que fique bem.
Não é um mau conto, note-se. Mas não ne parece que passe do razoável, em boa parte por causa daquele fim insatisfatório.
Este é o conto que menos me agradou entre os que li até agora no respetivo livro. Não tanto por causa das ideias, embora estas não me agradem lá muito, mas principalmente devido à forma como termina. A maior parte do conto apresenta-nos uma série de conversas entre o homem que teve a ideia de consultar os terrestres, um geólogo (palavra que no Taikodom adquire um significado algo diferente do que lhe damos) que vive num habitat em órbita terrestre, e os habitantes da Terra. Mas as últimas duas páginas são uma espécie de epílogo em que se descreve em traços gerais o que acontece depois dessas conversas. Mas sem conclusão. Isto é: é-nos descrita a estratégia sugerida pelo intérprete da velha ficção científica, mas não os seus resultados... o que torna a descrição da estratégia bastante estéril. Podia ter sido integrada nas conversas sem prejuízo nenhum, ou até simplesmente omitida. Assim como ficou é que não me parece que fique bem.
Não é um mau conto, note-se. Mas não ne parece que passe do razoável, em boa parte por causa daquele fim insatisfatório.
Lido: The Intergalactic Host Program
The Intergalactic Host Program é um poema de Laurel Winter. Ou por outra, é uma espécie de termos de serviço em verso, através dos quais uma entidade alienígena toma posse provisória de um ser humano, selecionado aleatoriamente para participar de um tal "programa de hospedaria intergaláctica", e o informa dos seus direitos e deveres ao abrigo do dito programa. A ideia é curiosa e os versos são divertidos, mas não gostei lá muito. Falta poema ao poema, por assim dizer.
Lido: O Vírus Entranhado
Pois: mais um caso de título repetido. O Vírus Entranhado, ou por outra, este vírus entranhado, é o livro que inclui o outro. Trata-se, claro, de um livro de contos, alguns bons, outros maus, outros assim-assim. Tudo somado, é um livro razoável que podia ser melhor se o autor tivesse mais vezes resistido à tendência de subir para o púlpito e botar discurso, pregar moral, muitas vezes sem a devida subtileza, em vez de simplesmente escrever as suas ficções, deixando ao leitor a tarefa de tirar conclusões. E também se tivesse resolvido melhor um problema, que se repete, com o modo de encerrar as suas histórias, pois várias foram as que seguiram bem até chegarem ao fim, e aí descambaram. Tinha o potencial para ser um bom livro, mas infelizmente parece-me que não chegou lá. Apesar disso, vale a pena pelos bons contos que contém.
No que toca aos géneros, o fantástico mais clássico surge com frequência, e aqui e ali há alguns sinais de outros géneros como o horror ou a ficção científica, embora a alegoria predomine relativamente a um tratamento realmente "de género" (seja isso o que for) das histórias. Igualmente frequentes, contudo, são os contos puramente mainstream, realistas.
São ao todo 13 contos:
- O Zumbido
- "Shopping Center"
- O Tesouro da Arca
- O Incêndio
- A Fórmula
- O Candidato
- Ponte Franca
- A Verdadeira História de uma Descoberta
- O Jardineiro Descalço
- Toda a Nudez
- O Vírus Entranhado
- Morse de Morte
- A Exploração do Buraco
No que toca aos géneros, o fantástico mais clássico surge com frequência, e aqui e ali há alguns sinais de outros géneros como o horror ou a ficção científica, embora a alegoria predomine relativamente a um tratamento realmente "de género" (seja isso o que for) das histórias. Igualmente frequentes, contudo, são os contos puramente mainstream, realistas.
São ao todo 13 contos:
- O Zumbido
- "Shopping Center"
- O Tesouro da Arca
- O Incêndio
- A Fórmula
- O Candidato
- Ponte Franca
- A Verdadeira História de uma Descoberta
- O Jardineiro Descalço
- Toda a Nudez
- O Vírus Entranhado
- Morse de Morte
- A Exploração do Buraco
Lido: A Exploração do Buraco
A Exploração do Buraco é um conto fantástico e bastante interessante de Arsénio Mota, no qual um homem, ao passar distraído as mãos por uma parede de sua casa, descobre um ponto de fraqueza, um ponto em que a parede se esboroa a um toque, e dá acesso a um buraco que, com a continuação (febril) da escavação, se vai tornando cada vez mais fundo. Além de estar bastante bem escrito, este conto está também bem concebido e contém em si algumas inquietações de índole mais metafísica que lhe aumentam a valia. Só o final me pareceu menos bem conseguido, o que aliás não é a primeira vez que acontece com os contos deste autor. Ainda assim, é um bom conto, um dos melhores do livro.
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Lido: Morse de Morte
Morse de Morte é um pequeno conto fantástico, ou até talvez de horror, de Arsénio Mota, escrito na primeira pessoa por uma personagem perturbada com o insólito de ter, no quarto alugado que ocupa, um aquecedor de parede que parece tentar comunicar consigo através de batidas em código morse as quais, no entanto, formam palavras numa língua desconhecida. Magia? Seres do outro mundo? Demónios ou almas perdidas? Algo mais prosaico? O conto não diz, e não é preciso. É um conto que podia ser razoável, ou até talvez bom, mas que é arruinado por um final que se pretende de efeito mas que falha redondamente. É que é difícil criar um efeito final eficaz quando este é revelado logo no título! À parte esse detalhe de primeira importância, o conto constrói bem um ambiente opressivo e nervoso, embora talvez leve um pouco longe demais uma certa tendência para remoer as mesmas ideias. Também não é dos melhores contos do livro, portanto.
Lido: As Jaulas Nada Subtis
As Jaulas Nada Subtis é um pequeno conto surrealista de Rhys Hughes, no qual um viajante visita um jardim zoológico e, aí chegado, e ao deparar com uma jaula cheia de outras jaulas dentro umas das outras, decide, num impulso, comprar uma. A ideia é criar o seu próprio pequeno jardim zoológico e ganhar algum dinheiro com ele. Mas o que acontece não é bem isso. Trata-se de um continho entre o irónico e o onírico, como é da praxe nos contos que surrealizam o mundo. Gostei.
Lido: A Cidade na Charneca de Mallington
A Cidade na Charneca de Mallington é um conto do Lorde Dunsany que descreve as buscas feitas por um veraneante em férias na Inglaterra rural (ou será em Gales? O conto sugere mas não esclarece) após ouvir contar histórias sobre uma misteriosa cidade erguida numa charneca desolada da região. É imediatamente claro que se trata de uma cidade fantasma, daquelas que aparecem e desaparecem por entre as brumas. E foi em parte por isso que não gostei muito do conto; achei-o demasiado óbvio. Dos piores que o livro me apresentou até agora.
quinta-feira, 27 de maio de 2010
Lido: La Muerte del Capitán Futuro
La Muerte del Capitán Futuro é a tradução espanhola de uma novela vencedora de um prémio Hugo: The Death of Captain Future, de Allen Steele. O original em inglês não parece estar disponível para leitura online ou download por meios legais, mas a tradução espanhola está, aqui.
Trata-se de uma história de ficção científica que presta uma homenagem dúbia a uma personagem da era dos pulps, o Capitão Futuro, herói intrépido do espaço, que foi muito popular nas revistas dos anos 40 e 50 mas depois caiu num esquecimento quase total... e provavelmente bem merecido. A homenagem é dúbia precisamente por isso. A novela recupera a personagem, de certa forma, e os ambientes, até certo ponto, mas fá-lo com muita ironia dirigida principalmente contra os consumidores desse tipo de historieta.
O protagonista é um selenita desesperadamente em busca de emprego, que acaba por aceitar um lugar a bordo da nave com pior reputação de todo o Sistema Solar. Pertence essa nave a um comandante que se auto-intitula Capitão Futuro mas, ao contrário da vigorosa personagem pulp original, é um homenzinho baixo e gordo e, pior um pouco, meio louco, que vive a vida parcialmente mergulhado no mundo de fantasia das velhas revistas que o fascinam. A alfinetada a certo tipo de público que enche as convenções de FC e banda desenhada é bem evidente, mas a verdade é que a própria história de Steele acaba por seguir com bastante fidelidade o esquema que as revistas popularizaram, mesmo que o herói tenha aqui muito de anti-herói (ou seja: é humano) e que o final feliz só o seja realmente para duas das três personagens principais.
Em geral, achei nesta novela uma releitura bastante interessante dos pulps. Uma releitura ambivalente, em parte tingida de cinismo, em parte de nostalgia. Isso pareceu-me mais importante do que a história em si, que pouco sai duma banalidade provavelmente propositada. Mas este tipo de ficção autorreferencial tem um problema sério: só funciona com quem faz pelo menos uma ideia daquilo que está por trás. Quem desconheça o que eram os pulps, quem julgue o termo por reinvenções modernas como o Pulp Fiction do Tarantino, pura e simplesmente não percebe. Não pode perceber. E não tem obrigação nenhuma de perceber. Daí que se corra o risco da autorreferencialidade degenerar em autofagia e ir encerrando o género num casulo cada vez mais impenetrável povoado por uma meia dúzia cada vez mais reduzida. Embora perceba a tentação de procurar inspiração no passado do género, e até goste de alguns dos resultados, não gosto nada da ideia.
Desta história, entretanto, gostei. Não posso dizer que tenha gostado assim muito, mas gostei.
Trata-se de uma história de ficção científica que presta uma homenagem dúbia a uma personagem da era dos pulps, o Capitão Futuro, herói intrépido do espaço, que foi muito popular nas revistas dos anos 40 e 50 mas depois caiu num esquecimento quase total... e provavelmente bem merecido. A homenagem é dúbia precisamente por isso. A novela recupera a personagem, de certa forma, e os ambientes, até certo ponto, mas fá-lo com muita ironia dirigida principalmente contra os consumidores desse tipo de historieta.
O protagonista é um selenita desesperadamente em busca de emprego, que acaba por aceitar um lugar a bordo da nave com pior reputação de todo o Sistema Solar. Pertence essa nave a um comandante que se auto-intitula Capitão Futuro mas, ao contrário da vigorosa personagem pulp original, é um homenzinho baixo e gordo e, pior um pouco, meio louco, que vive a vida parcialmente mergulhado no mundo de fantasia das velhas revistas que o fascinam. A alfinetada a certo tipo de público que enche as convenções de FC e banda desenhada é bem evidente, mas a verdade é que a própria história de Steele acaba por seguir com bastante fidelidade o esquema que as revistas popularizaram, mesmo que o herói tenha aqui muito de anti-herói (ou seja: é humano) e que o final feliz só o seja realmente para duas das três personagens principais.
Em geral, achei nesta novela uma releitura bastante interessante dos pulps. Uma releitura ambivalente, em parte tingida de cinismo, em parte de nostalgia. Isso pareceu-me mais importante do que a história em si, que pouco sai duma banalidade provavelmente propositada. Mas este tipo de ficção autorreferencial tem um problema sério: só funciona com quem faz pelo menos uma ideia daquilo que está por trás. Quem desconheça o que eram os pulps, quem julgue o termo por reinvenções modernas como o Pulp Fiction do Tarantino, pura e simplesmente não percebe. Não pode perceber. E não tem obrigação nenhuma de perceber. Daí que se corra o risco da autorreferencialidade degenerar em autofagia e ir encerrando o género num casulo cada vez mais impenetrável povoado por uma meia dúzia cada vez mais reduzida. Embora perceba a tentação de procurar inspiração no passado do género, e até goste de alguns dos resultados, não gosto nada da ideia.
Desta história, entretanto, gostei. Não posso dizer que tenha gostado assim muito, mas gostei.
quarta-feira, 26 de maio de 2010
Lido: Os Animais Doidos de Cólera
Os Animais Doidos de Cólera é um pequeno conto de José Saramago que descreve em tom de profecia uma revolta dos animais, datada para mil anos depois do momento que na altura era presente, isto é, para 2968. O conto é de um fantástico quase ficção científica, o qual, no entanto, serve a Saramago de parábola, para refletir com uma ironia pesada e deprimida sobre a tendência que os homens mostram para se andarem desde sempre a matar uns aos outros. A última frase, em especial, é demolidora.
Lido: O Hotel "A Queda do Alpinista"
O Hotel "A Queda do Alpinista" (bib.), dos irmãos Strugatski, é um romance francamente estranho. Começa por parecer uma espécie de comédia de costumes, sobre um improvável grupo de pessoas que se aloja num hotel de montanha para passar umas férias. Um inspetor de polícia, um famoso ilusionista, acompanhado por uma "criança" de sexo indeterminado, um homem misterioso com fama de gangster, um velho ranzinza com atitudes de rico e ares de superioridade, acompanhado por uma mulher jovem, um físico genial com atitudes infantis e uma gargalhada arrepiante que nunca se coíbe de soltar, etc. Às tantas, começam a acontecer coisas estranhas, talvez roubos, talvez simples travessuras, e o inspetor, que é o protagonista da história, vê-se na obrigação de começar a investigar. Mas o livro só assume realmente o tom de uma história policial de ambiente fechado, bastante típica, quando uma avalanche corta os acessos ao hotel e acontece um homicídio. O desfecho, contudo, mostra que, além de comédia de costumes e de mistério policial, o romance também é ficção científica, o que, aliás, seria de esperar atendendo a quem o escreveu.
Estou certo de que há muito quem se irrite ou se sinta repelido por tal misturada. Não foi o meu caso. Embora o início do livro não me tenha chamado muito a atenção (até por causa de uma tradução nem sempre bem sucedida), foi-me interessando cada vez mais à medida que ia avançando, e quando cheguei ao fim, e toda a esquisitice anterior se viu explicada a contento, descobri que tinha gostado. É um livro divertido, no qual os autores parece terem feito um esforço consciente, com muito de metaliterário, para brincar com os géneros, para os baralhar e voltar a dar. E isso, que se feito por autores mais pretenciosos resultaria provavelmente num maçudo compêndio de técnica literária, feito pelos Strugatski resulta numa leitura leve, rápida e irónica. Da qual gostei bastante.
Estou certo de que há muito quem se irrite ou se sinta repelido por tal misturada. Não foi o meu caso. Embora o início do livro não me tenha chamado muito a atenção (até por causa de uma tradução nem sempre bem sucedida), foi-me interessando cada vez mais à medida que ia avançando, e quando cheguei ao fim, e toda a esquisitice anterior se viu explicada a contento, descobri que tinha gostado. É um livro divertido, no qual os autores parece terem feito um esforço consciente, com muito de metaliterário, para brincar com os géneros, para os baralhar e voltar a dar. E isso, que se feito por autores mais pretenciosos resultaria provavelmente num maçudo compêndio de técnica literária, feito pelos Strugatski resulta numa leitura leve, rápida e irónica. Da qual gostei bastante.
Lido: O Sinaleiro
O Sinaleiro (bib.) é um conto de Charles Dickens sobre um homem, sinaleiro de caminhos de ferro, cujo posto é a boca de um túnel, e que é atormentado por visões fantasmagóricas e não sabe o que fazer. As visões são sempre semelhantes: um homem aparece à boca do túnel fazendo gestos estranhos, como que para avisar o sinaleiro contra um acidente específico. Dias depois, esse acidente dá-se. E depois de isto acontecer por duas vezes, o pobre homem está à beira de um colapso nervoso. Por um lado, porque a gesticulação do fantasma não é suficiente para lhe fornecer dados concretos e sólidos, e por outro porque sabe perfeitamente que se tentasse avisar alguém ninguém acreditaria naquilo, o julgariam louco e o mandariam para casa. Tudo isto é contado ao narrador, o qual é um cavalheiro em férias na região, como aliás é da praxe neste tipo de história. E no dia seguinte dá-se um desenlace surpreendente.
Dickens era um mestre deste tipo de histórias, e nesta, publicada apenas quatro anos antes da sua morte, isso é bem evidente. É um conto francamente bom, especialmente na estrutura, no modo como está construído, com tudo no sítio devido.
Dickens era um mestre deste tipo de histórias, e nesta, publicada apenas quatro anos antes da sua morte, isso é bem evidente. É um conto francamente bom, especialmente na estrutura, no modo como está construído, com tudo no sítio devido.
Lido: Guia Tertius do Taikodom Para o Turista Independente
E já que estamos a falar de violação das regras de como bem escrever ficção científica, fiquem com mais esta. Guia Tertius do Taikodom Para o Turista Independente (bib.) é uma novela de Gerson Lodi-Ribeiro que simula não ser nada disso, mas sim um guia turístico elaborado por uma tal Ursula Tertius e gravado enquanto esta serve de guia personalizada numa longa viagem por uma quantidade considerável dos mundos, pontos de salto e habitats que constituem o espaço humano no Taikodom. A gravação inclui apenas aquilo que Ursula vai dizendo enquanto vai descrevendo os vários locais por onde passa com o seu turista, e as respostas que dá às perguntas que lhe são feitas. Estas estão ausentes; adivinham-se apenas.
Puro infodump, portanto. Ou por outra, seria puro infodump se o autor não fosse contando duas histórias em paralelo, entretecidas nas descrições dos vários locais. Uma é a história da viagem turística propriamente dita, com as suas peripécias e acontecimentos inesperados (incluindo o fim). A outra, é a história da expansão humana pelo espaço periférico ao Sistema Solar. A primeira fornece um fio condutor para a novela. A segunda mostra-nos a grande riqueza e pormenor do ambiente criado para o jogo (e há que nunca esquecer que tudo isto serve de material de apoio para um jogo de computador), e é fascinante por mérito próprio. Em várias ocasiões, dá vontade de visitar aqueles locais, e isso é um bom indicador da qualidade de execução da novela/guia turístico. É precisamente para isso que serve um guia turístico: para despertar no cliente potencial a vontade de visitar os locais que promove e tornar-se assim cliente efetivo.
Gostei mesmo muito desta novela. E isso é tanto mais significativo por ter iniciado a sua leitura, depois de dar uma olhadela à estrutura do texto, mais ou menos convencido de que ela iria provavelmente ser penosa, convencido de que o texto seria puro infodump. Puro e longo. Não foi, longe disso. O texto prendeu-me e fascinou-me. E saiu do teste com um muito bom.
Puro infodump, portanto. Ou por outra, seria puro infodump se o autor não fosse contando duas histórias em paralelo, entretecidas nas descrições dos vários locais. Uma é a história da viagem turística propriamente dita, com as suas peripécias e acontecimentos inesperados (incluindo o fim). A outra, é a história da expansão humana pelo espaço periférico ao Sistema Solar. A primeira fornece um fio condutor para a novela. A segunda mostra-nos a grande riqueza e pormenor do ambiente criado para o jogo (e há que nunca esquecer que tudo isto serve de material de apoio para um jogo de computador), e é fascinante por mérito próprio. Em várias ocasiões, dá vontade de visitar aqueles locais, e isso é um bom indicador da qualidade de execução da novela/guia turístico. É precisamente para isso que serve um guia turístico: para despertar no cliente potencial a vontade de visitar os locais que promove e tornar-se assim cliente efetivo.
Gostei mesmo muito desta novela. E isso é tanto mais significativo por ter iniciado a sua leitura, depois de dar uma olhadela à estrutura do texto, mais ou menos convencido de que ela iria provavelmente ser penosa, convencido de que o texto seria puro infodump. Puro e longo. Não foi, longe disso. O texto prendeu-me e fascinou-me. E saiu do teste com um muito bom.
segunda-feira, 24 de maio de 2010
Lido: The Clear Blue Seas of Luna
São frequentemente propostas regras para se escrever bem ficção científica. Por vezes, não passam de invencionices com origem neste ou naquele dono da verdade sem talento, mas muitas delas são resultado das muitas experiências que foram sendo mal sucedidas ao longo da história do género. Originam-se na tentativa e erro e, como todas as regras que têm idêntica origem, são sobretudo afirmações de bom senso. Que a prosa poética não resulta bem na ficção científica caso o autor não se chame Bradbury e por isso é de evitar, por exemplo. Ou que é péssima ideia interromper a narrativa com longos despejos de informação, os infodumps. Etc. Há muitas dessas regras, e todas têm a sua razão de ser.
Mas, claro, sempre que surge uma regra, surge um escritor ansioso por violá-la.
Gregory Benford, cuja noveleta The Clear Blue Seas of Luna viola precisamente as duas regras que dei como exemplo, é um desses escritores. Nesta noveleta usa uma linguagem alegórica, extremamente rica de imagens, muito poética, para ir descrevendo a terraformação da Lua em longos infodumps tão bem escritos que são uma delícia de ler. A história subjacente tem muito de banal — um conflito entre o indivíduo-transformado-em-IA que coordena a terraformação do nosso satélite e um clã que pretende aceder aos seus recursos e interromper o processo ou mudar-lhe a direção, usando para isso a força, se necessário. E por isso acaba por ser muito secundária. Porque o que fica realmente na memória são as descrições que Benford faz do processo e o modo como as faz, virando do avesso as convenções de como escrever-se bem FC. Esta noveleta lê-se quase como um longo poema, ou uma longa carta de amor à ideia de manipular a natureza para insuflar vida num mundo morto. E, extraordinariamente, funciona.
É uma história que comprova uma vez mais que quem se compraz em tecer considerações sobre a frieza da ciência, ou dos cientistas (Benford é físico) não faz a mais pálida das ideias do que está a dizer.
Muito, muito bom.
Mas, claro, sempre que surge uma regra, surge um escritor ansioso por violá-la.
Gregory Benford, cuja noveleta The Clear Blue Seas of Luna viola precisamente as duas regras que dei como exemplo, é um desses escritores. Nesta noveleta usa uma linguagem alegórica, extremamente rica de imagens, muito poética, para ir descrevendo a terraformação da Lua em longos infodumps tão bem escritos que são uma delícia de ler. A história subjacente tem muito de banal — um conflito entre o indivíduo-transformado-em-IA que coordena a terraformação do nosso satélite e um clã que pretende aceder aos seus recursos e interromper o processo ou mudar-lhe a direção, usando para isso a força, se necessário. E por isso acaba por ser muito secundária. Porque o que fica realmente na memória são as descrições que Benford faz do processo e o modo como as faz, virando do avesso as convenções de como escrever-se bem FC. Esta noveleta lê-se quase como um longo poema, ou uma longa carta de amor à ideia de manipular a natureza para insuflar vida num mundo morto. E, extraordinariamente, funciona.
É uma história que comprova uma vez mais que quem se compraz em tecer considerações sobre a frieza da ciência, ou dos cientistas (Benford é físico) não faz a mais pálida das ideias do que está a dizer.
Muito, muito bom.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
Lido: O Vírus Entranhado
O Vírus Entranhado é um conto de Arsénio Mota, no qual um velho conservador usa da palavra numa reunião de uma tal "Sociedade" para apontar as coisas que, segundo ele, nela estão erradas (coisas essas que vão da irreverência pela autoridade até ao gosto por tatuagens) e a causa de todos esses problemas: o vírus entranhado do título. É um conto completamente alegórico que, fora a alegoria e o facto de estar escrito duma forma competente no que toca ao uso da língua, ainda que não na construção de um texto ficcional, não tem praticamente nada. Achei-o bastante fraco, um dos piores contos do livro.
Lido: O Ciclope Espanhol
O Ciclope Espanhol é um conto bastante curto de Rhys Hughes sobre um fabricante de lentes (espanhol, claro) que um belo dia resolve fazer um monóculo gigantesco para um cliente muito especial. Mas o monóculo acaba por ser dado, pela população da cidade em que vive, a um outro "cliente" que dele teria uma necessidade mais imediata, para desespero do artesão. O conto está bem escrito e bem concebido, mas deixou-me frio. Não consigo explicar porquê — não há, objetivamente, grandes diferenças entre este conto em concreto e outros de que gostei muito mais — mas o conto não me despertou interesse e muito menos me cativou. Também não me irritou nem desgostou. Deixou-me indiferente.
terça-feira, 18 de maio de 2010
Lido: Treze à Mesa
Treze à Mesa é um conto clássico de fantasmas do Lorde Dunsany, que acaba também por lhe servir de pretexto para falar um pouco sobre a forma como as coisas novas substituem as antigas. Um caçador, oriundo duma zona rural dos arredores de Londres, que vai sendo devorada pela cidade, parte em perseguição duma raposa e percorre montes e vales até chegar a um velho casarão decadente, cujo dono, membro da velha aristocracia rural inglesa, é presa de um grupo de fantasmagóricas meninas que se vingam do mal que ele lhes teria feito em jovem. E o caçador resolve-lhe o problema de uma forma inesperada. É, como disse, um conto clássico de fantasmas, bem concebido e bem executado, ao qual falta, no entanto, a frescura e a ironia de contos anteriores do mesmo livro.
Lido: El Superhéroe
El Superhéroe é um pequeno conto do espanhol José Vicente Ortuño que conta o modo como um fanático de BD acaba por, após várias tentativas infrutíferas (ou pelo menos muita reflexão sobre a maneira mais eficaz de atingir o objetivo), cumprir o seu sonho de se tornar super-herói... da forma mais inesperada. E embaraçosa. É um conto muito divertido, que brinca com muito humor com a BD de super-heróis, tudo aquilo que a rodeia e principalmente com o tipo de pessoa solitária e socialmente desadequada que, segundo reza o cliché, a consome em massa. Quem quiser, pode lê-lo mesmo no fim da tal página.
Lido: Receita Para Matar um Homem
Receita Para Matar um Homem é uma sentida crónica de José Saramago, na qual ele comenta, com clareza mas o muito cuidado indispensável em tempos de ditadura, censura e guerra colonial, o assassínio de Martin Luther King. Uma crónica, no fundo, sobre a cor da pele. E como tal (ainda) atual.
Lido: A Palavra Resistente
A Palavra Resistente é uma crónica de José Saramago sobre horizonte. Não sobre o horizonte propriamente dito, note-se, embora de certa forma também seja: sobre horizonte, a palavra que designa a coisa e seus múltiplos significados. É, parece-me que daí não passa, daquelas crónicas que se escrevem quando o tema se faz escasso e a inspiração não abunda. Não sendo das leituras mais estimulantes do mundo, longe disso, faz parte do que é de esperar da atividade do cronista.
Lido: Crónicas Marcianas
Crónicas Marcianas (bib.) é um dos livros clássicos de Ray Bradbury. Conta a história fragmentária da exploração inicial de Marte, sua posterior colonização e seu abandono porque na Terra rebenta a guerra, e conta-a conto a conto, nem sempre de um modo inteiramente coerente, mas sempre com o estilo poético caracteristicamente bradburiano. Os contos maiores fornecem a espinha dorsal do livro e da história que ele conta, e são intercalados por contos mais pequenos, alguns tão pequenos e interligados com o resto da estrutura do livro que funcionam mal enquanto contos independentes. Uma das consequências deste tipo de estrutura é permitir que este livro tenha conhecido várias versões, que diferem em alguns dos contos que delas constam, o que cria subtis diferenças no ambiente e na própria história global do livro. Mas seja qual for a versão, o livro é muito mais do que uma soma dos contos que o constituem, mesmo tendo em conta que alguns deles são obras-primas da ficção científica do século XX.
A história é profundamente americana como, aliás, é bastante típico do autor. Em Marte só põem pé americanos, e toda a história da exploração e colonização do planeta desértico, expulsando e acabando por aniquilar os últimos e moribundos marcianos, espelha com bastante fidelidade a história da expansão dos EUA para os seus territórios do Oeste. Mas vai além disso. No fundo, é um livro sobre o impulso destrutivo do homem, sobre o modo como, mesmo quando julgamos estar a construir alguma coisa, estamos na verdade a destruir outras coisas, quiçá bem mais valiosas do que as que construímos. A guerra que cai no fim sobre a Humanidade é disso espelho fiel, e o livro também é sobre isso, sobre a guerra, apesar de esta estar quase sempre ausente ou longínqua. Não surpreende, se tivermos em conta que o primeiro dos contos foi escrito em 1945 e os últimos em 1950, ano em que a primeira versão do livro viu a luz do dia.
Essas datas também explicam o Marte bradburiano. Não tem quase nada a ver com o Marte real, que tal como eu já disse noutros sítios é ao mesmo tempo mais alienígena e bastante mais interessante do que o mundo que Bradbury imaginou. Mas na época em que os contos foram escritos, os conhecimentos sobre o planeta era muitíssimo limitados, e a visão bradburiana de uma civilização moribunda à míngua de água, fortemente influenciada por obras anteriores de ficção científica e pela célebre tradução errada dos canalli de Schiaparelli, era inteiramente plausível. A realidade só colidiu com as visões da ficção científica quando as primeiras naves espaciais foram enviadas ao planeta, nos anos 60.
É esse o drama da ficção científica. Com as ideias que a inspiram a ser continuamente ultrapassadas pelos factos, a ficção só resiste se for mais do que ideia. Se, como neste caso, incluir também literatura. Se, como neste caso, for também sobre coisas que transcendem em muito a mera ideia futurista. Se este livro tivesse sido apenas sobre a exploração e colonização de um Marte vivo, estaria hoje morto e enterrado. Sendo como é sobre o impulso humano para a destruição, no momento em que a ideia científica morre, tem a metáfora a servir-lhe de sistema de suporte de vida. E assim sobrevive, mantendo a qualidade original praticamente intacta. E assim sobrevive como um clássico da FC.
Livros como este estão sempre ansiosos por ensinar-nos algumas coisas de grande relevo. A nós cabe aprender, se tivermos capacidade para isso.
A história é profundamente americana como, aliás, é bastante típico do autor. Em Marte só põem pé americanos, e toda a história da exploração e colonização do planeta desértico, expulsando e acabando por aniquilar os últimos e moribundos marcianos, espelha com bastante fidelidade a história da expansão dos EUA para os seus territórios do Oeste. Mas vai além disso. No fundo, é um livro sobre o impulso destrutivo do homem, sobre o modo como, mesmo quando julgamos estar a construir alguma coisa, estamos na verdade a destruir outras coisas, quiçá bem mais valiosas do que as que construímos. A guerra que cai no fim sobre a Humanidade é disso espelho fiel, e o livro também é sobre isso, sobre a guerra, apesar de esta estar quase sempre ausente ou longínqua. Não surpreende, se tivermos em conta que o primeiro dos contos foi escrito em 1945 e os últimos em 1950, ano em que a primeira versão do livro viu a luz do dia.
Essas datas também explicam o Marte bradburiano. Não tem quase nada a ver com o Marte real, que tal como eu já disse noutros sítios é ao mesmo tempo mais alienígena e bastante mais interessante do que o mundo que Bradbury imaginou. Mas na época em que os contos foram escritos, os conhecimentos sobre o planeta era muitíssimo limitados, e a visão bradburiana de uma civilização moribunda à míngua de água, fortemente influenciada por obras anteriores de ficção científica e pela célebre tradução errada dos canalli de Schiaparelli, era inteiramente plausível. A realidade só colidiu com as visões da ficção científica quando as primeiras naves espaciais foram enviadas ao planeta, nos anos 60.
É esse o drama da ficção científica. Com as ideias que a inspiram a ser continuamente ultrapassadas pelos factos, a ficção só resiste se for mais do que ideia. Se, como neste caso, incluir também literatura. Se, como neste caso, for também sobre coisas que transcendem em muito a mera ideia futurista. Se este livro tivesse sido apenas sobre a exploração e colonização de um Marte vivo, estaria hoje morto e enterrado. Sendo como é sobre o impulso humano para a destruição, no momento em que a ideia científica morre, tem a metáfora a servir-lhe de sistema de suporte de vida. E assim sobrevive, mantendo a qualidade original praticamente intacta. E assim sobrevive como um clássico da FC.
Livros como este estão sempre ansiosos por ensinar-nos algumas coisas de grande relevo. A nós cabe aprender, se tivermos capacidade para isso.
Sexo! Sexo! Sexo! E mais sexo!
Já perceberam, não é? A segunda parte do podcast do PODespecular sobre sexo na ficção científica e fantasia, em que eu participo, já está online, aqui. É basicamente a continuação da conversa divertida e algo caótica da primeira parte (ver aqui), após o que se segue uma secção mais focada sobre a antologia Como Era Gostosa a Minha Alienígena (bib.), na qual eu faço revelações inéditas sobre a origem do conto com que nela participo. E também falo de um outro conto erótico que escrevi, o Aniversário, e só ao ouvir o podcast me lembrei de que tinha prometido o link ao Paulo Elache. Esqueci-me por completo. Má onda, Paulo, desculpa aí.
Mas mais vale tarde do que nunca, não é? Então o conto pode ser lido aqui. Divirtam-se. Mas não se divirtam demasiado, vejam lá!
Mas mais vale tarde do que nunca, não é? Então o conto pode ser lido aqui. Divirtam-se. Mas não se divirtam demasiado, vejam lá!
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Lido: O Piquenique Milenar
O Piquenique Milenar (bib.) é um conto de Ray Bradbury que fecha muitíssimo bem o respetivo livro. Uma família chega a Marte na sua nave particular. Os pais sabem ao que vêm, mas os três filhos julgam tratar-se duma viagem de turismo, dumas férias, e é com surpresa que vão encarando as atitudes que os pais vão tomando. Mas aceitam-nas, com aquela aceitação que as crianças acabam geralmente por mostrar para com as bizarrias dos pais, embora a destas crianças em concreto seja ajudada pelo entusiasmo, pela expetativa de virem a ver os marcianos que o pai prometeu. É quando ele lhos mostra, nas águas dum velho canal marciano, que compreendem tudo. É mais um dos grandes contos que este livro contém.
sábado, 15 de maio de 2010
Hábitos de leitura
Anda por aí um meme giro, até mesmo útil, essencialmente para reforçar a ideia de que "o leitor" é coisa que não existe: existem "os leitores", cada um com as suas próprias características, gostos e hábitos, todos procurando coisas diferentes na leitura. E eu sou mais um. É um questionário. E aqui têm as minhas respostas:
Petiscas enquanto lês? Se sim, qual é o teu petisco favorito?
Normalmente, não. Mesmo não sendo propriamente daquelas pessoas que mal abrem os livros para não estragar a lombada, a ideia de andar a passar páginas com mãos empetiscadas não me atrai.
Mas se a situação se proporcionar, acontece. É raro, a atirar para o muito raro. Mas já tem acontecido.
Qual é a tua bebida preferida enquanto lês?
No que toca à leitura, bebida é petisco. É tão raro beber enquanto leio que nem chego a ter uma bebida preferida.
Costumas fazer anotações enquanto lês, ou a ideia de escrever em livros horroriza-te?
Anotações nos livros? Nunca. Nem mesmo quando andava a estudar as fazia. Afinal de contas, o gajo que inventou o bloco de notas fê-lo para alguma coisa. Ou o outro, o dos post-its. Quando é necessário tirar apontamentos, há alternativas muito melhores do que andar a estragar livros com rabiscos. Não é que me horrorize a ideia de escrever em livros, mas odeio ler livros sarrabiscados. Por mim, ou seja por quem for. De modo que não o faço.
Como é que marcas o local onde ficaste na leitura? Um marcador de livros? Dobras o canto da página? Deixas o livro aberto?
Normalmente, marcador, ou algo de papel razoavelmente grosso que faça as vezes de marcador. Na sua ausência, se vou só ali deixo-o muitas vezes aberto (e virado para baixo, claro); se a paragem for mais demorada viro o cantinho à página. Se é livro que estou constantemente a consultar, uso muitas vezes algo volumoso, que o mantenha fácil de abrir no sítio certo: uma caneta, um canivete, algo assim. E os livros em processo de tradução ficam abertos com um vidro em cima. Mas as leituras normais são quase sempre marcadas com marcador.
Ficção, não-ficção, ou ambos?
Em livro, fundamentalmente ficção. Online, fundamentalmente não-ficção. Acho que pesando o tempo gasto a ler uma e outra coisa, acabo por ler mais não-ficção do que ficção.
És do tipo de pessoa que lê até ao final do capítulo, ou paras em qualquer sítio?
Prefiro ler até ao fim do capítulo, sempre que possa. Quando não dá, tendo a procurar um marco qualquer: uma pausa, o primeiro parágrafo duma nova página, etc.
És leitor para atirar um livro para o outro lado da sala ou para o chão quando o autor te irrita?
Às vezes apetece mesmo. Mesmo. Mas não, nunca fiz isso. Ainda se o baque da queda servisse para baralhar as letras e as palavras e transformasse as porcarias que dão essa vontade em coisas legíveis...
Se te deparares com uma palavra desconhecida, paras e vais procurar o seu significado?
Nem pensar nisso. Geralmente procuro entendê-las pelo contexto, e geralmente consigo. Só em casos muito particulares faço uma notazinha, quase sempre mental, e quando interrompo a leitura vou verificar. Não há melhor ginástica para a massazinha cinzenta do que raciocinar sobre palavras que não se entende às primeiras; sobre a sua construção, sobre o modo como são empregues, sobre a posição que ocupam nas frases, etc. Etimologia, sintaxe, essas coisas. Geralmente, isso é mais que suficiente para acrescentar uma palavra nova ao nosso repertório. E nos raros casos em que não é, esse raciocínio prévio ajuda sempre a compreender a palavra quando se vai enfiar o nariz no dicionário.
O que é que estás a ler actualmente?
Estou a ler... deixa cá contar... um, dois, três... hum... onze livros, quase todos de contos. Mas o principal, aquele que mais tempo me ocupa, é a mais recente tradução. Estou em plena revisão. Quase, quase a acabar.
Qual foi o último livro que compraste?
Os últimos livros que me chegaram a casa, muito aconchegadinhos um ao outro, foram duas antologias: Brinca Comigo! e E Outros Belos Contos de Natal.
Lês só um livro de cada vez, ou consegues ler mais que um ao mesmo tempo?
Como já devem ter compreendido, leio muitos livros ao mesmo tempo. Quase todos livros de contos. Naqueles onze de que falei acima, só um é romance. Ou antes, dois: a tradução também é.
Tens um lugar/altura do dia preferido para ler?
Quando tenho tempo, não. Leio em qualquer sítio e em qualquer altura, desde que me apeteça.
Quando não tenho tempo, quando tenho os meus dias ocupados com trabalhos e coisas dessas, leio principalmente à noite, na caminha, antes de dormir. E no trono de porcelana.
Preferes livros incluídos em séries ou independentes?
Prefiro livros independentes. As séries normalmente não me atraem.
Há exceções.
Existe algum livro ou autor específico que estejas sempre a recomendar?
Tendo a recomendar mais alguns, mas como sempre achei uma parvoíce fazer-se recomendações indiscriminadas, sem se tomar em conta as características, gostos e antecedentes da pessoa a que se faz a recomendação, não recomendo os mesmos livros a toda a gente. Há livros de que eu gostei muito e sei perfeitamente que não irão agradar à pessoa X ou Y, de modo que não os recomendo. Aqueles que recomendo mais são aqueles que me parecem suscetíveis de agradar a mais tipos diferentes de leitores e/ou de introduzir suavemente certos géneros a leitores que normalmente andam por outras paragens. Livros de FC mais literária, por exemplo. Fantasia com forte componente humana. Coisas dessas.
Como é que organizas os teus livros?
Onde cabem, basicamente. Embora tenha aquelas coleções que têm os livros todos do mesmo tamanho organizadas por autores. E muitas vezes em fila dupla.
E pilhas de livros por toda a parte.
Pensando bem, olha, não os organizo.
Petiscas enquanto lês? Se sim, qual é o teu petisco favorito?
Normalmente, não. Mesmo não sendo propriamente daquelas pessoas que mal abrem os livros para não estragar a lombada, a ideia de andar a passar páginas com mãos empetiscadas não me atrai.
Mas se a situação se proporcionar, acontece. É raro, a atirar para o muito raro. Mas já tem acontecido.
Qual é a tua bebida preferida enquanto lês?
No que toca à leitura, bebida é petisco. É tão raro beber enquanto leio que nem chego a ter uma bebida preferida.
Costumas fazer anotações enquanto lês, ou a ideia de escrever em livros horroriza-te?
Anotações nos livros? Nunca. Nem mesmo quando andava a estudar as fazia. Afinal de contas, o gajo que inventou o bloco de notas fê-lo para alguma coisa. Ou o outro, o dos post-its. Quando é necessário tirar apontamentos, há alternativas muito melhores do que andar a estragar livros com rabiscos. Não é que me horrorize a ideia de escrever em livros, mas odeio ler livros sarrabiscados. Por mim, ou seja por quem for. De modo que não o faço.
Como é que marcas o local onde ficaste na leitura? Um marcador de livros? Dobras o canto da página? Deixas o livro aberto?
Normalmente, marcador, ou algo de papel razoavelmente grosso que faça as vezes de marcador. Na sua ausência, se vou só ali deixo-o muitas vezes aberto (e virado para baixo, claro); se a paragem for mais demorada viro o cantinho à página. Se é livro que estou constantemente a consultar, uso muitas vezes algo volumoso, que o mantenha fácil de abrir no sítio certo: uma caneta, um canivete, algo assim. E os livros em processo de tradução ficam abertos com um vidro em cima. Mas as leituras normais são quase sempre marcadas com marcador.
Ficção, não-ficção, ou ambos?
Em livro, fundamentalmente ficção. Online, fundamentalmente não-ficção. Acho que pesando o tempo gasto a ler uma e outra coisa, acabo por ler mais não-ficção do que ficção.
És do tipo de pessoa que lê até ao final do capítulo, ou paras em qualquer sítio?
Prefiro ler até ao fim do capítulo, sempre que possa. Quando não dá, tendo a procurar um marco qualquer: uma pausa, o primeiro parágrafo duma nova página, etc.
És leitor para atirar um livro para o outro lado da sala ou para o chão quando o autor te irrita?
Às vezes apetece mesmo. Mesmo. Mas não, nunca fiz isso. Ainda se o baque da queda servisse para baralhar as letras e as palavras e transformasse as porcarias que dão essa vontade em coisas legíveis...
Se te deparares com uma palavra desconhecida, paras e vais procurar o seu significado?
Nem pensar nisso. Geralmente procuro entendê-las pelo contexto, e geralmente consigo. Só em casos muito particulares faço uma notazinha, quase sempre mental, e quando interrompo a leitura vou verificar. Não há melhor ginástica para a massazinha cinzenta do que raciocinar sobre palavras que não se entende às primeiras; sobre a sua construção, sobre o modo como são empregues, sobre a posição que ocupam nas frases, etc. Etimologia, sintaxe, essas coisas. Geralmente, isso é mais que suficiente para acrescentar uma palavra nova ao nosso repertório. E nos raros casos em que não é, esse raciocínio prévio ajuda sempre a compreender a palavra quando se vai enfiar o nariz no dicionário.
O que é que estás a ler actualmente?
Estou a ler... deixa cá contar... um, dois, três... hum... onze livros, quase todos de contos. Mas o principal, aquele que mais tempo me ocupa, é a mais recente tradução. Estou em plena revisão. Quase, quase a acabar.
Qual foi o último livro que compraste?
Os últimos livros que me chegaram a casa, muito aconchegadinhos um ao outro, foram duas antologias: Brinca Comigo! e E Outros Belos Contos de Natal.
Lês só um livro de cada vez, ou consegues ler mais que um ao mesmo tempo?
Como já devem ter compreendido, leio muitos livros ao mesmo tempo. Quase todos livros de contos. Naqueles onze de que falei acima, só um é romance. Ou antes, dois: a tradução também é.
Tens um lugar/altura do dia preferido para ler?
Quando tenho tempo, não. Leio em qualquer sítio e em qualquer altura, desde que me apeteça.
Quando não tenho tempo, quando tenho os meus dias ocupados com trabalhos e coisas dessas, leio principalmente à noite, na caminha, antes de dormir. E no trono de porcelana.
Preferes livros incluídos em séries ou independentes?
Prefiro livros independentes. As séries normalmente não me atraem.
Há exceções.
Existe algum livro ou autor específico que estejas sempre a recomendar?
Tendo a recomendar mais alguns, mas como sempre achei uma parvoíce fazer-se recomendações indiscriminadas, sem se tomar em conta as características, gostos e antecedentes da pessoa a que se faz a recomendação, não recomendo os mesmos livros a toda a gente. Há livros de que eu gostei muito e sei perfeitamente que não irão agradar à pessoa X ou Y, de modo que não os recomendo. Aqueles que recomendo mais são aqueles que me parecem suscetíveis de agradar a mais tipos diferentes de leitores e/ou de introduzir suavemente certos géneros a leitores que normalmente andam por outras paragens. Livros de FC mais literária, por exemplo. Fantasia com forte componente humana. Coisas dessas.
Como é que organizas os teus livros?
Onde cabem, basicamente. Embora tenha aquelas coleções que têm os livros todos do mesmo tamanho organizadas por autores. E muitas vezes em fila dupla.
E pilhas de livros por toda a parte.
Pensando bem, olha, não os organizo.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Lido: O Menino de Cabul
O Menino de Cabul é um romance de Khaled Hosseini que tem todo o aspeto de ser parcialmente autobiográfico. O protagonista (o menino de Cabul do título) é um rapaz, filho duma personalidade de etnia pashtun, influente e bem instalada na vida durante o período monárquico, que foge com o pai para o estrangeiro quando rebenta a guerra civil e o país se torna palco de um dos períodos menos "frios" da guerra entre os blocos liderados pelos EUA e a URSS, acabando por fixar-se nos Estados Unidos. É esse percurso que o romance segue, acompanhando primeiro uma infância dominada pela amizade com o amigo Hassan, filho de um criado pertencente a uma minoria étnica e religiosa, os hazara, e pela constante desaprovação do pai, depois a vida do agora jovem e de seu pai enquanto imigrantes pouco abonados na costa ocidental dos EUA, e por fim o regresso ao Paquistão e ao Afeganistão dominado pelos talibãs, para tentar resgatar o que resta do seu passado.
O tema principal do livro é a culpa e a expiação. O protagonista, o seu pai, um amigo da família que incentiva o protagonista a pôr em prática e desenvolver o seu talento para a escrita, um jovem rufia, meio alemão, que começa por ser nazi e acaba em talibã, até mesmo o filho do amigo Hassan, todos são consumidos e atormentados pela culpa, todos têm no passado sombras que os perseguem, algumas justificadas, outras nem tanto, e que determinam o modo como vivem a vida e interagem com os outros. Sob esse ponto de vista, no que toca à exploração íntima dos dilemas pessoais das personagens, a história pareceu-me bem sucedida. Isso, o livro faz bem, e quem procure fundamentalmente esse tipo de coisa nos livros que lê tem aqui um belo acepipe.
Mas a mim interessam sobretudo outras coisas.
Ter-me-ia interessado mais a sociedade afegã do que aquele microcosmo familiar, por exemplo. E se é certo que as tensões étnicas estão retratadas no romance com algum detalhe, através da relação entre o protagonista e o seu amigo/criado, e da discriminação e humilhações que este sofre às mãos dos rufias e do próprio protagonista, não há, só para falar de um detalhe que teria sido igualmente interessante ver retratado, quase sinal de mulheres durante os períodos afegãos do romance, nem no primeiro, nem no segundo. Terá sido propositado? Destinado a retratar a mulher como elemento ausente da sociedade afegã? E no entanto, elas sempre lá estiveram, algures.
A parte política também me pareceu deixar muito a desejar. O tempo da monarquia é retratado como um tempo idílico, quando a realidade era que se tratava duma monarquia absolutista, que mantinha a paz social com o recurso à repressão como em qualquer ditadura. A verdade é que o Afeganistão é há muito palco de violentas tensões politico-religiosas, entre uma versão do Islão particularmente conservadora e fundamentalista e forças que pretendem a sua modernização, tanto à esquerda, entre os comunistas, como à direita, entre parte da base de apoio da monarquia e as forças que desencadearam o golpe republicano em 1973 e instauraram no país uma ditadura de direita. Ora, embora seja compreensível que este período seja retratado duma forma mais benigna do que os da guerra civil, da intervenção sovética e do particularmente violento regime taliban, teria sido tão fácil traçar um retrato dessas tensões políticas pré-existentes como foi mostrar as étnicas. Não é esse o caminho escolhido pelo autor, que também escolhe omitir por completo o papel desempenhado pelos EUA no eclodir da guerra civil que precipitou a intervenção soviética. E que escolhe cair no simplismo caricatural de retratar os talibã através de um psicopata pedófilo ex-nazi e meio alemão, quando as raízes daquele fundamentalismo violento são muito mais profundas e muito mais vastas do que isso. E, num livro em que a culpa e a redenção são temas tão importantes como o facto de ter sido escrito por um emigrante afegão e ter protagonistas e ambientes afegãos (mesmo o ambiente americano é fortemente afegão), passar por alto essas culpas deixa um sabor desagradável na boca.
Assim, na parte que mais me interessa o livro deixou-me um forte sabor a falso. A uma certa desonestidade intrínseca. E isso, para o leitor que sou, anula aquilo de bom que a bem conseguida exploração das contradições íntimas das personagens trouxe ao romance. O saldo final é mais negativo do que positivo. E a tradução/revisão nem sempre ajuda. Ninguém sai do Afeganistão levantando voo de Islamabad, caramba. Esta é, tão-só, a capital do Paquistão. Não me parece possível que a origem desse disparate esteja no autor, e ele é suficientemente recorrente para que não possa tratar-se duma troca de nomes casual, duma gralha.
O tema principal do livro é a culpa e a expiação. O protagonista, o seu pai, um amigo da família que incentiva o protagonista a pôr em prática e desenvolver o seu talento para a escrita, um jovem rufia, meio alemão, que começa por ser nazi e acaba em talibã, até mesmo o filho do amigo Hassan, todos são consumidos e atormentados pela culpa, todos têm no passado sombras que os perseguem, algumas justificadas, outras nem tanto, e que determinam o modo como vivem a vida e interagem com os outros. Sob esse ponto de vista, no que toca à exploração íntima dos dilemas pessoais das personagens, a história pareceu-me bem sucedida. Isso, o livro faz bem, e quem procure fundamentalmente esse tipo de coisa nos livros que lê tem aqui um belo acepipe.
Mas a mim interessam sobretudo outras coisas.
Ter-me-ia interessado mais a sociedade afegã do que aquele microcosmo familiar, por exemplo. E se é certo que as tensões étnicas estão retratadas no romance com algum detalhe, através da relação entre o protagonista e o seu amigo/criado, e da discriminação e humilhações que este sofre às mãos dos rufias e do próprio protagonista, não há, só para falar de um detalhe que teria sido igualmente interessante ver retratado, quase sinal de mulheres durante os períodos afegãos do romance, nem no primeiro, nem no segundo. Terá sido propositado? Destinado a retratar a mulher como elemento ausente da sociedade afegã? E no entanto, elas sempre lá estiveram, algures.
A parte política também me pareceu deixar muito a desejar. O tempo da monarquia é retratado como um tempo idílico, quando a realidade era que se tratava duma monarquia absolutista, que mantinha a paz social com o recurso à repressão como em qualquer ditadura. A verdade é que o Afeganistão é há muito palco de violentas tensões politico-religiosas, entre uma versão do Islão particularmente conservadora e fundamentalista e forças que pretendem a sua modernização, tanto à esquerda, entre os comunistas, como à direita, entre parte da base de apoio da monarquia e as forças que desencadearam o golpe republicano em 1973 e instauraram no país uma ditadura de direita. Ora, embora seja compreensível que este período seja retratado duma forma mais benigna do que os da guerra civil, da intervenção sovética e do particularmente violento regime taliban, teria sido tão fácil traçar um retrato dessas tensões políticas pré-existentes como foi mostrar as étnicas. Não é esse o caminho escolhido pelo autor, que também escolhe omitir por completo o papel desempenhado pelos EUA no eclodir da guerra civil que precipitou a intervenção soviética. E que escolhe cair no simplismo caricatural de retratar os talibã através de um psicopata pedófilo ex-nazi e meio alemão, quando as raízes daquele fundamentalismo violento são muito mais profundas e muito mais vastas do que isso. E, num livro em que a culpa e a redenção são temas tão importantes como o facto de ter sido escrito por um emigrante afegão e ter protagonistas e ambientes afegãos (mesmo o ambiente americano é fortemente afegão), passar por alto essas culpas deixa um sabor desagradável na boca.
Assim, na parte que mais me interessa o livro deixou-me um forte sabor a falso. A uma certa desonestidade intrínseca. E isso, para o leitor que sou, anula aquilo de bom que a bem conseguida exploração das contradições íntimas das personagens trouxe ao romance. O saldo final é mais negativo do que positivo. E a tradução/revisão nem sempre ajuda. Ninguém sai do Afeganistão levantando voo de Islamabad, caramba. Esta é, tão-só, a capital do Paquistão. Não me parece possível que a origem desse disparate esteja no autor, e ele é suficientemente recorrente para que não possa tratar-se duma troca de nomes casual, duma gralha.
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