quinta-feira, 30 de abril de 2020

J. A. Fernández Madrigal: El Evangelio Según San Marcus

Embora costume associar-se a ficção científica a um certo olhar ateísta, ou pelo menos agnóstico, sobre o desenvolvimento da humanidade, o que tem origem no facto de a maior parte — mas nem todos — dos melhores e mais consagrados autores de FC da história terem esse tipo de visão, sempre houve uma corrente ciencioficcional que foi buscar inspiração às religiões, e sobretudo aos vários ramos do cristianismo. Um título como El Evangelio Según San Marcus só não faz imediatamente supor que este conto se insere nessa corrente porque não há nada nele que indique que o conto é de FC. Mas quando se começa a ler esta história de J. A. Fernández Madrigal percebe-se que sim, é isso mesmo, tudo isso.

O «e se?» (essa pergunta que tanta FC gera) que deu origem a esta história parece ter sido: «e se um homem com todos os poderes que a mitologia atribui a Jesus Cristo (e mais alguns, talvez) surgisse hoje em dia ou num futuro próximo?» Como? Bem, estamos em território de FC, portanto qualquer coisa genética, uma mutação improvável, arruma a questão. Mas pouco importa. Porque, como tantas vezes acontece na ficção científica, o que é realmente importante não é o mecanismo pelo qual as coisas acontecem, mas sim a reação das pessoas e da sociedade como um todo ao acontecimento.

Madrigal mostra-no-la sobretudo por intermédio de uma espécie de apóstolo do novo messias (o qual nega sê-lo com graus variados de veemência). É ele que funciona como narrador da história, e em parte também como protagonista, descrevendo ao leitor o que vai sentindo à medida que ela se desenrola. E o que vai fazendo, também.

O conto está bem escrito, e consegue manter com sucesso um equilíbrio delicado entre a reverência perante a mitologia que lhe serve de base e a análise do que aconteceria se no mundo moderno (ou um pouco à frente) surgisse um homem todo-poderoso. Talvez por não ir muito fundo nessa análise — afinal, para o fazer seria necessário escrever um romance, não um conto — e portanto acabar por seguir com alguma fidelidade o rumo dos acontecimentos que a mitologia determina. Mas alcança uma profundidade suficiente para não ser daqueles contos pastilha-elástica, sem grande conteúdo e por isso mesmo irrelevantes. E além disso está bem escrito.

Este é um bom conto.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

David Reed: Manhã

Uma das coisas que me atraem nos contos é a capacidade que o formato curto tem de explorar ideias arriscadas sem o investimento necessário para uma ficção mais longa. Quando corre bem, o resultado pode mesmo chegar a inserir-se no grupo das histórias mais originais e fascinantes que existem na literatura. E quando não corre, fica pelo menos no leitor a sensação de que OK, o resultado pode não ter sido o melhor mas o esforço é meritório. Certo, nem sempre. Mas com frequência.

É um pouco o que acontece com este Manhã (bibliografia), de David Reed. Trata-se de uma história estranha, passada integralmente num vasto castelo. Este, propriedade de um tal Conde de Luna, é simultaneamente uma armadilha montada pelo conde, pois este decidira matar todos os que convidara para uma festa. Não com veneno ou alguma espécie de violência, mas de uma forma bastante mais sofisticada. Através de um campo de estase (que a péssima tradução transforma num quase pornográfico "campo de êxtase"... patético) cujo alcance vai lentamente subindo, da base do castelo até à mais elevada das torres.

Sim, a coisa é bizarra. Aparentemente, o tal Conde de Luna tinha andado a viajar por lugares (dimensões? mundos?) distantes e tinha trazido de lá muitas coisas estranhas e maravilhosas. Leia-se: tecnológicas. E uma dessas coisas é o tal campo de estase, totalmente desconhecido pelos seus conterrâneos, e bastante incompreendido por ele próprio, uma vez que confunde com morte a paralisação de toda a atividade, uma espécie de paragem do tempo, que é o significado adotado na FC para um termo médico que significa apenas a paragem da circulação dos líquidos orgânicos.

É bom, o conto? Não sei bem. Em parte porque qualquer qualidade literária que pudesse ter foi basicamente destruída pela tradução, e em parte porque não creio que a reflexão que o autor parece pretender fazer sobre a multiplicidade das respostas humanas à iminência da morte esteja particularmente bem conseguida ou seja razoavelmente profunda. Esta é uma fantasia científica que me deixa com bastante mais dúvidas do que opiniões sólidas, mas que não me parece ultrapassar a mediania.

Contos anteriores desta publicação:

terça-feira, 28 de abril de 2020

Ondjaki: Košava: um Vento que Chegava aos Sonhos

O Ondjaki é um escritor e peras, sabem? E isso vê-se bem neste conto, com o estranho título de Košava: um Vento que Chegava aos Sonhos, e de que não sei bem como falar sem estragar o que o autor pretende fazer com ele. Que pretende e consegue, sublinhe-se. O facto de cumprir integralmente o que pretende fazer mostra o domínio que tem sobre a sua arte.

O conto é basicamente uma conversa, ou uma série de conversas, entre um padre e uma paroquiana. Há nele uma certa dança das cadeiras, uma vez que as posições típicas do padre enquanto confessor dos pecados alheios e dos pecadores que vão confessar-se ficam... hm... bastante diluídas, digamos assim. Essa dança é em certos trechos razoavelmente literal, não só para sublinhar a alegoria como para permitir encaixar melhor o conto no tema do livro que o inclui. E também isso é bem feito.

E o ambiente é fantástico. Não só porque Ondjaki se socorre de algumas técnicas bastante usadas no realismo mágico, mas também porque há nesta história muito de terror. Para começar, há terror psicológico no padre, por saber o que lhe vai acontecer, e porquê. E esse porquê também traz em si uma dose bastante razoável de terror. Não que o objetivo da história seja causar medo. Mas causar desconforto sim, e um desconforto crescente, tanto devido à situação em si quanto por causa da ambiguidade moral relacionada com o desfecho que se adivinha para a história.

Este conto é francamente bom. Mas nem todos gostarão dele.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Benigno Salteador: Uma Verdade: Felicidade não Prospera na Eternidade

De repente não consigo decidir se este conto de um tal Benigno Salteador, óbvio pseudónimo pseudoarcádico de alguém que tem ótimos motivos para não querer dar a cara, é uma sátira, um exercício de trollagem, ou coisa escrita a sério. E gostaria de conseguir, porque dessa decisão depende a opinião com que saio desta leitura. Mas vamos por partes.

Analisado sem contexto, este conto é muito mau. Mas mesmo muito mau. Começa logo pelo título de Uma Verdade: Felicidade não Prospera na Eternidade (bibliografia), que leva a supor estarmos perante um daqueles textos desastrosamente pretensiosos, com uma vontade louca de serem filosóficos mas só conseguindo ser absolutamente banais. E vai por aí fora no texto propriamente dito, cumprindo fielmente o que fica anunciado no título e acrescentando-lhe umas tentativas maljeitosas de poetizar.

Mas lá pelo meio da leitura desta história desconexa e hiperadjetivada, a princípio sobre um cágado, depois já sobre outras coisas, rebenta a gargalhada e surge a dúvida no leitor: e se isto for um grande gozo? Se não tiver sido escrito a sério mas for na verdade uma sátira? E eis-nos no território da Lei de Poe adaptada à literatura. É que se isto é satírico é francamente bom. Mas só o autor pode saber se o é ou não.

Eu, por mim, fico na dúvida.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 26 de abril de 2020

Em março falou-se de...

Vá, vocês já sabem como isto funciona, e não é por este post ter chegado mais tarde do que é hábito (tudo em mim anda atrasado; até a vida) que vai funcionar de forma diferente. Primeiro digo-vos que o mês foi fraquinho, depois não vos digo mais nada porque me lembro que há sempre a possibilidade de vir cá cair alguém que não saiba como isto funciona e por isso passo ao parágrafo seguinte.

E cá está o parágrafo seguinte. Nele se diz aquelas coisas que se dizem sempre: que a explicação sobre o que é isto, que limitações tem e que propósitos procura alcançar se pode encontrar no primeiro destes posts, aqui, que o que se foi e irá publicando ao longo do tempo se reúne numa tag (ou label, o etiqueta, como queiram chamar-lhe) comum, a leituras fc, e que logo após as listas que já devem estar a espreitar aqui por baixo haverá os comentários que elas me suscitam. E está feito. Vamos às listas.


Ficção portuguesa
  1. A Anos-Luz, de Carmen Garcia
  2. Imortal, de José Rodrigues dos Santos
  3. Cecità / Ensayo Sobre la Ceguera / Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago (11x)
  4. Maresia, de Fernando Correia da Silva
  5. Probabilidades, de António Bettencourt Viana (conto)
Ficção brasileira
  1. Prodígio, de Daniela Arezzo
  2. Mnemomáquina, de Ronaldo Bressane
  3. O Mistério dos Planos Roubados, de A. Z. Cordenonsi
  4. O Problema dos Cálculos Maquinares, de A. Z. Cordenonsi
  5. Leia Mulheres, vol. 1, org. Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques
  6. O Espelho, de Nelson Leirner (conto)
  7. A-LII, de Ana Macedo
  8. Sem Sinal, de Delson Neto (conto)
  9. Contratempo, de Henri B. Neto
  10. O Silêncio dos Livros, de Fausto Luciano Panicacci (2x)
  11. Fruto Podre, de M. M. Santos
  12. A Torre Acima do Véu, de Roberta Spindler
  13. Por uma Vida Menos Ordinária, de Lady Sybylla (conto)
  14. A Máquina Sonha Deus, de Lidia Zuin (conto)
  15. Deus Sonha o Homem, de Lidia Zuin (conto)
  16. Dies Irae, de Lidia Zuin (conto) 
  17. O Homem Sonha a Máquina, de Lidia Zuin (conto)
Ficção internacional
  1. Short Trips, org. ??
  2. As Cavernas de Aço, de Isaac Asimov (2x)
  3. Fogo do Inferno, de Isaac Asimov (conto)
  4. O Cair da Noite, de Isaac Asimov (conto)
  5. O Sol Desvelado, de Isaac Asimov
  6. MaddAddão, de Margaret Atwood
  7. O Conto da Aia / A História de uma Serva, de Margaret Atwood (3x)
  8. Arranha-céus, de J. G. Ballard
  9. Ficções, de Jorge Luís Borges
  10. Inesquecível, de Alexandra Bracken
  11. Farenheit 451, de Ray Bradbury (3x)
  12. 4 Contra o Apocalipse, de Max Brallier
  13. A Marcha dos Zumbis, de Max Brallier
  14. Guerra Mundial Z, de Max Brooks
  15. Who?, de Algis Budrys
  16. Flash Gold, de Lindsay Buroker (conto)
  17. Despertar, de Octavia E. Butler
  18. O Teste, de Joelle Charbonneau
  19. História da Sua Vida e Outros Contos, de Ted Chiang
  20. Cidade nas Trevas, de Adam Christopher
  21. Encontro com Rama, de Arthr C. Clarke
  22. Belles, de Dhonielle Clayton
  23. A Cidade das Máscaras, de Genevieve Cogman
  24. A Página em Chamas, de Genevieve Cogman
  25. Jurassic Park, de Michael Crichton
  26. Pines, de Blake Crouch
  27. Recursão, de Blake Crouch (3x)
  28. Geartown, de John M. Davis (conto)
  29. Phasma, de Delilah S. Dawson
  30. Mais Fortes, Mais Velozes, Mais Belos, de Arwen Elys Dayton
  31. Ubik, de Philip K. Dick (2x)
  32. O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry
  33. Seres Mágicos e Histórias Sombrias, org. Neil Gaiman, Al Sorrantino e Peter Straub
  34. Herland: A Terra das Mulheres, de Charlotte Perkins Gilman
  35. Metro 2034, de Dmitry Glukhovsky
  36. Estrelas Perdidas, de Claudia Gray
  37. A Curva do Sonho, de Ursula K. Le Guin
  38. April in Paris, de Ursula K. Le Guin (conto)
  39. The City, de A. M. Halkyard (conto)
  40. O Armazém, de Rob Hart
  41. Sandworms of Dune, de Brian Herbert e Kevin J. Anderson
  42. Messias de Duna, de Frank Herbert
  43. Serotonina, de Michel Houellebecq
  44. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
  45. A Dança da Morte, de Stephen King
  46. Os Estranhos, de Stephen King
  47. Belas Adormecidas, de Stephen King e Owen King
  48. Justiça Ancilar, de Ann Leckie
  49. O Chamado de Cthulhu e Outras Histórias, de H. P. Lovecraft
  50. O Chamado de Cthulhu e Outros Contos, de H. P. Lovecraft
  51. O Despertar de Cthulhu, de H. P. Lovecraft
  52. Warcross, de Marie Lu
  53. O Começo, org. George R. R. Martin
  54. Máquinas Como Eu, de Ian McEwan
  55. Zeta Major, de Simon Messingham
  56. Cinder, de Marissa Meyer
  57. Cress, de Marissa Meyer
  58. Scarlet, de Marissa Meyer
  59. Winter, de Marissa Meyer
  60. Kenobi, de John Jackson Miller
  61. Mais Forte que o Mar, de Kassandra Montag
  62. Os Tempos do Ódio, de Rosa Montero
  63. Quem Teme a Morte?, de Nnedi Okorafor
  64. 1984, de George Orwell
  65. The Umbrella Conspiracy, de S. D. Perry
  66. A Bússola de Ouro, de Philip Pullman
  67. Trail of Lightning, de Rebecca Roanhorse
  68. Complô Contra a América, de Philip Roth
  69. Território Lovecraft, de Matt Ruff
  70. O Dueto Sombrio, de Victoria Schwab
  71. Frankenstein, de Mary Shelley
  72. Dry, de Neal Shusterman e Jarrod Shusterman
  73. O Ceifador, de Neal Shusterman (2x)
  74. X-Wing: Rogue Squadron, de Michael A. Stackpole
  75. X-Wing: The Bacta War, de Michael A. Stackpole
  76. X-Wing: The Kryptos Trap, de Michael A. Stackpole
  77. X-Wing: Wedge's Gamble, de Michael A. Stackpole
  78. O Médico e o Monstro e Outros Experimentos, de Robert Louis Stevenson
  79. É Difícil Ser Deus, de Arkady e Boris Strugastky
  80. Piquenique na Estrada, de Arkady e Boris Strugatsky
  81. Reboot, de Amy Tintera
  82. Ghost Ship, de Keith Topping
  83. O Homem Invisível, de H. G. Wells
  84. The New Accelerator, de H. G. Wells (conto)
  85. Maître du Monde, de Jules Verne
  86. Viagem ao Centro da Terra, de Jules Verne
  87. Café da Manhã dos Campeões, de Kurt Vonnegut
  88. Artemis, de Andy Weir
  89. O Mundo dos Draags, de Stefan Wul
  90. Nós e Outras Novelas, de Evguéni Zamiátin
Não-ficção internacional
  1. Is Science Fiction Art? A Look at H. G. Wells, de J. O. Bailey (2x)
  2. As Fronteiras do Possível, de Jacques Bergier
  3. Science Fiction, a New Mythos, de Ednita P. Bernabeu
  4. The Classics: Aldous Huxley’s Brave New World, de Thomas D. Clareson (2x)
  5. Major Trends in American Science Fiction, de Thomas D. Clareson e Edward S. Lauterbach 
  6. Science Fiction and the Idea of Progress, de Mark R. Hillegas
  7. Science Fiction as Cultural Phenomenon: a Re-Evaluation, de Mark R. Hillegas
  8. H. P. Lovecraft, Contra o Mundo, Contra a Vida, de Michel Houellebecq
  9. Monstros Fabulosos, de Alberto Manguel
  10. The Art of Space, de Ron Miller
  11. The Artistic Problem: Science Fiction as Romance, de Lionel Stevenson (2x)
Sim, o mês foi fraco no que toca à FC portuguesa. Mas a avaliação varia bastante, dependendo da forma como ele é encarado. Se formos pelo número de títulos mencionados, então foi mesmo francamente mau, pois cinco títulos não é praticamente nada. Mas se formos pelo número de referências, o caso muda de figura. Porquê? Bem, por causa de Saramago, claro. Isto do Covid-19 transformou de repente o Ensaio Sobre a Cegueira no livro de FC portuguesa que anda nas bocas do mundo... literalmente, que o FCL apanhou opiniões sobre ele não só em português mas também em espanhol e em italiano. Ao todo foram 11, essas opiniões. O mês foi inteiramente de Saramago.

E quanto ao Brasil? Quanto ao Brasil foi razoável. Esteve algo distante dos meses em que o material foi mais abundante, mas um total de 17 títulos é respeitável, mesmo quando uma porção significativa desses títulos, 7, corresponde a contos. O mês foi de Lidia Zuin, com 4 opiniões distribuídas por outros tantos títulos, merecendo ainda destaque A. Z. Cordenonsi, com 2 opiniões sobre dois títulos, e Fausto Luciano Panicacci, ainda a recolher os frutos da leitura conjunta ao seu romance que organizou, corporizados em mais duas opiniões.

A parte internacional da festa esteve abundante, como sempre, a bater quase nos 100 títulos, e quase todos relativos a livros (isto é, não há aqui muitos contos). Foram 90. Entre estes há alguns nomes que se destacam, nomeadamente Isaac Asimov, que teve direito a 5 comentários a 4 títulos diferentes, Margaret Atwood, que recebeu 4 comentários a dois títulos, Blake Crouch, também com 4 comentários a dois títulos, Marissa Meyer, ainda com 4 comentários, mas a outros tantos títulos, e Michael A. Stackpole, também com 4 comentários a outros tantos títulos. Alguns são habituais nestes destaques, outros não; estes últimos tendem a surgir como resultado de um só leitor se dedicar a ler e comentar uma série de obras do mesmo autor. Coisa que só muito raramente acontece entre os lusófonos, curiosamente.

Por fim, há que mencionar a não-ficção internacional que, sobretudo graças a um par de sites brasileiros (que republicam os textos um do outro, motivo pelo que existem na lista vários títulos com dois comentários), parece ter-se tornado presença constante e razoavelmente abundante nestas listas. Como os sites republicam os textos um do outro, não creio que valha a pena destacar essas republicações, mas há um nome a destacar por ter sido alvo de dois comentários a dois títulos diferentes: Mark R. Hillegas.

E por março é só. O que houver a dizer a respeito de abril não demorará certamente tanto tempo.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Théophile Gautier: A Morta Apaixonada

Na opinião sobre o último conto deste livro, também de Théophile Gautier, falei um pouco sobre quem o autor foi e qual a sua abordagem literária, e sugiro que não faz mal nenhum quem estiver a ler este texto e não tiver lido esse lhe dê uma vista de olhos agora porque ajuda a contextualizar parte do que vou dizer aqui.

Nesse texto aviso que vou falar em breve "de uma das obras mais conhecidas" do romantismo. Pois bem: aqui estamos. Este A Morta Apaixonada (bibliografia) é um clássico. E percebe-se bem porquê: muitíssimo bem escrita, esta noveleta está também muito bem concebida e realizada, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo movimento, permitindo uma série de interpretações que facilmente podem ser encaradas como outros tantos níveis de leitura. E no entanto, reconhecendo tudo isto, foi-me penoso lê-la.

O mero facto de conter vários níveis de leitura basta para mostrar que a história não é propriamente simples, embora tenha elementos bastante simplórios. Um jovem, recém-ordenado padre, perde-se de amores (instantaneamente, claro; o amor à primeira vista é inevitável nestas histórias) por uma mulher misteriosa e, depois de hesitar algum tempo e acabar por ceder aos apetites, passa a viver uma vida dupla, o que lhe causa um grande peso na consciência — pelo menos quando para para pensar no que anda a fazer, coisa que nem sempre acontece — e um significativo desgaste físico. Ao leitor com alguns livros lidos no currículo não deverá ser difícil imaginar o que Gautier faz com estes elementos, e em grande medida a imaginação vai corresponder à realidade. E eis parte do motivo por que este texto custou a entrar: está carregadinho de clichés.

Há que reconhecer que não será culpa de Gautier. A grande maldição do sucesso é gerar um sem fim de imitações. Por mais inovadora que a obra seja antes de ser imitada até à exaustão, os imitadores reciclam-na de tal forma que passado algum tempo se transforma numa pilha de clichés, e o leitor, que até pode reconhecer intelectualmente o pioneirismo, acaba sempre por sofrer o efeito dessa transformação na experiência de leitura. É bem sabido que o desfrute da leitura depende até certo ponto do inesperado; quando este desaparece, desaparece com ele uma porção de prazer, porção essa que, dependendo da obra, pode ser maior ou menor.

Mas em parte até é culpa de Gautier, porque há elementos nesta história que já eram clichés quando ela foi escrita. O amor romântico, por exemplo, instantâneo e arrebatado (e arrebatador), motivado por um mero olhar. Ridículo. Claro que a história vai muito além disso, e por isso é clássica, uma história paradigmática de um género. O facto de o protagonista ser padre, por exemplo, e a sua amada uma criatura das trevas, uma morta-viva, uma vampira que se alimenta e de certa forma sobrevive da vida dele, permite a Gautier transmitir o que pensa sobre o pecado, a tentação, as mil e uma formas de perdição. O contraste da vida dupla do protagonista, o austero padre diurno e o libertino noturno que desfruta alegremente de tentações exóticas, e a tensão que esse contraste gera, permitem-lhe também matutar um pouco sobre a tensão sociológica que esses mesmos contrastes causam na sociedade em geral, na qual a amada representa também um papel alegórico de estrangeiro com os seus próprios costumes em choque com os mais pacatos costumes locais.

E as referências, alusões e possibilidades interpretativas não se ficam por aqui. A história é complexa e está bastante bem escrita. É boa literatura, não há disso a menor dúvida. Mas com o meu gosto literário colide com alguma violência. Acontece-nos a todos uma vez por outra, quer nos demos conta disso, quer não.

Textos anteriores deste livro:

Susana Lorena de Souza: Vermelho

Não esperava encontrar tantos autores brasileiros neste livro, mas Susana Lorena de Souza é mais uma. E o seu conto, Vermelho (bibliografia), cheira a Buffy por todos os lados.

Trata-se de uma fantasia urbana daquelas de pancadaria (lá está: Buffy) sobre uma jovem bruxa (a-hã: Buffy), que se defende magicamente de uma espécie de lobisomens que vêm tentar raptá-la. Há aqui uma série de ideias interessantes para desenvolvimento numa fantasia urbana juvenil, ainda que nelas não se encontre grande originalidade, mas o que a autora apresenta está ainda longe de um produto realmente interessante. A estruturação desta história é deficiente e, embora esteja algo longe de ser o conto mais mal escrito que se pode encontrar nas páginas deste livro, a escrita não deixa de ser também algo deficiente.

Mais um exemplo de potencial mal aproveitado. Há muitos neste livro.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Michael T. Cisco: Doença de Ledru

A Doença de Ledru (bibliografia) criada por Michael T. Cisco dá uma volta à ideia expressa poeticamente entre nós pela expressão "cantar até que a voz doa", se bem que neste caso não haja propriamente dor. Mas há sangue.

Cisco vai buscar uma figura conhecida do folclore nórdico, o bardo, e inventa uma estranha enfermidade que transforma os afetados em cantores particularmente dotados, criando novas câmaras de ressonância nas suas gargantas, ao mesmo tempo que as deixa sujeitas a hemorragias constantes.

E com isso só lhe falta criar mesmo uma história nas entrelinhas — não a história do descobrimento da doença, que essa existe, mas uma história em que esta funcione como fio condutor — para que este conto me agrade mesmo. Infelizmente para o meu gosto literário, Cisco fica-se pelo pseudofactual. É um pseudofactual interessante, mas é só um pseudofactual.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 19 de abril de 2020

Leiturtugas #58

Ora cá temos mais um destes posts, e mais uma vez ele inclui Leiturtugas a divulgar. Isto este ano parece vir em ondas, com uns participantes atrás dos outros a publicar material relativo ao projeto, recolhendo-se depois a outras leituras. Sim, voltou a ser da Carla Ribeiro que veio uma opinião relevante, ainda em clima de fantasia de inspiração cristã: o romance O Despertar do Nefilim, de David Costa, publicado pela Cordel d'Prata. Nada tem a ver com FC, claro, pelo que a Carla passa a 0c2s.

E depois... bem, depois fiz o sorteio do Sally. E foi filmado, e está aqui em baixo, provando, como se necessário fosse, que eu não percebo népia de vídeos. Mas como a ideia não é ganhar notas artísticas mas oferecer um livrinho, serve.


Viram o vídeo? Então já sabem que quem ganhou o sorteio foi o Artur. O que não quer dizer que seja ele a ficar com o livro: pode não o querer. Vou contactá-lo, se ele não quiser contacto o seguinte, e por aí fora até haver quem queira. Eu aviso já que não quero. Para a semana aqui direi quem quis.

Então até lá. Depois falaremos de um próximo sorteio. Gostaria de fazer outro, nos mesmos moldes, daqui por uns seis meses, e se houver autores ou editores interessados em entrar nisto, ótimo. Se houver autores ou editores interessados, de resto, até pode ser antes de seis meses.

E se houver mais malta interessada em aderir ao projeto, a porta está sempre aberta.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Ebook grátis!

É assim que se faz, não é? Já que está tudo a anunciar ebooks grátis deixem-me fazer o mesmo e, assumindo-me hipster, acrescentar que o meu já estava grátis antes de ser moda. Improbabilidades de Fecho é uma antologia com quase 300 páginas e pode ser obtida aqui, onde a encontram em três versões: PDF, para aquela malta que gosta de ter tudo muito paginadinho e pipi, MOBI, para aquela malta que não sai de casa sem os kindles (quer dizer, agora não sai de casa, ponto parágrafo... certo?), e EPUB, para aquela malta que gosta de poder ler os seus ebooks no aparelhómetro que lhe der na realíssima gana. A minha malta, basicamente.

Lamento é não poder oferecer-vos aqui o que muita gente parece andar à procura: uma história que de alguma forma espelhe a epidemia que nos assola. Não há cá nenhuma distopia à best-seller repentino tipo Ensaio Sobre a Cegueira ou A Peste. O mais perto disso que aqui se chega talvez seja na noveleta do Miguel Hernâni Guimarães, Para Cada Verdade as suas Consequências, que imagina uma consequência possível, ainda que improvável, de tudo isto se tudo correr muito, muito mal. Ou a do Tibor Moricz, Variável da Imponderabilidade, mais improvável ainda, caso se siga a isto a tomada absoluta de poder pelos incels nos EUA. Curiosamente, são duas das três histórias mais longas que aqui estão.

Seja como for, é um ebook grátis. E que não vai deixar de ser grátis. Estão à vontade. Sirvam-se.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Lançamentos de FC de março 2020 (segundo o FCL)

Cá estou eu mais uma vez, com outra lista das edições de FC (e arredores) anunciadas no mês anterior, desta feita março. As limitações, os critérios e patati, patata, podem ser encontrados no primeiro post destes, aquele que se refere a janeiro último. Deem-lhe uma vista de olhos, sim? Mas o que interessa mesmo é sabermos que tal correu o mês. Este.

Há, no entanto, uma notazinha prévia a fazer: o FCL terminou o mês de março muito atrasado, pelo que estas listas, provavelmente, não correspondem à totalidade do mês, sendo o restante reunido com o que vier por aí em abril. Mas mesmo assim...

Pois.

O mês correu mal, claro. E desta vez foi mal em tudo; não só o material português só não está a zeros por ter sido editado no Brasil um livro muitíssimo periférico relativo à FC, como até as traduções foram bastante escassas e, também elas, bastante periféricas. Safa-se um fanzine autoral, que na verdade não faço a mínima ideia se contém FC ou não (até porque ainda não vi por aí uma única opinião a números anteriores; a pecha do costume por escassez de produção de opinião) apesar de se afirmar de ficção especulativa em geral. De outra forma, o deserto seria absoluto. Dá vontade de dizer "escrevam, bolas!" e "publiquem, raisparta!" Seja lá como for. Hoje em dia há n maneiras de publicar, não tem de ficar toda a gente à espera das editoras.

(Ou será que até estão a escrever e a publicar, mas fazem um trabalho tão mau a divulgar edições que ninguém sabe delas? Também é possível.)

(E sim, eu, o gajo que faz o apelo, também estou do outro lado a ouvi-lo. Só posso dizer que vou escrevendo. Devagarinho, mas vai saindo alguma coisa. Publicar? Bem... veremos. Saiu há dias um continho aqui na Lâmpada, mas esse praticamente não conta. Veremos.)

Mas depois de passar o desabafo, até se compreende. A epidemia enfiou-nos numa crise profunda, e não sabemos bem quando e como dela vamos sair. Muitas editoras, se não todas, puseram-se na retranca, adiando lançamentos, algumas talvez até desistindo deles. Segundo as últimas notícias, as vendas de livros em março reduziram-se a menos de metade das que haveria em circunstâncias normais. E iniciativas individuais também precisam de público. Estará esse público disponível nesta altura? Ajuizando por mim, com o pouco que tenho lido no meio de tudo isto, se calhar não. Compreende-se, pois. O que não quer dizer que se goste.

Que isto ao menos sirva para prepararmos um novo impulso assim que o ciclo mudar; tem-se falado tanto de FC nos últimos tempos que no mínimo a curiosidade terá certamente aumentado. Cabe a nós aproveitá-la. Ou, mais uma vez, desperdiçá-la.

Adiante.

No Brasil também houve uma redução, ainda que pouco significativa, mas mais uma vez só se encontram aqui nomes novos. Um deles, de resto (a única moça), é um nome tão novo que recebeu uma imensidão de exposição na imprensa lá do lado ocidental do mar oceano, maior que toda a exposição combinada dos nomes consagrados das várias FCs lusófonas ao longo de vários anos. Caiu-me o queixo, confesso.

Quanto à ficção traduzida, finalmente cá temos o que eu já previa que acontecesse mais tarde ou mais cedo: um enorme desequilíbrio entre o material publicado cá e o material publicado lá, com vantagem para o que saiu lá, obviamente. Fruto sobretudo de um aumento apreciável nas edições brasileiras, ainda que as portuguesas também tenham ajudado, diminuindo.

Por fim, resta assinalar a reedição em ebook de um ensaio português sobre um escritor que roçou pela (proto-)ficção científica, o já referido fanzine e um par de lançamentos de periódicos brasileiros. E siga para o mês que vem, na esperança de que corra melhorzinho.

Ficção portuguesa
  1. Vamos Comprar um Poeta, de Afonso Cruz (publicado no Brasil)
Ficção brasileira
  1. Acid+Neon, nº 2, org. Washington Albuquerque
  2. Alguns Contos Estranhos e uma Novela, de Lucas Victor de Freitas
  3. Ruínas da Escuridão, de Beatriz Di Felice Soriano 
  4. Sangue Vermelho, de J. de J. Batista
  5. Sementes, de Sérgio Barretto 
  6. Titanium, de Leonardo M.
Ficção internacional

Edições portuguesas
  1. 1984, de George Orwell
  2. A Assistente Virtual, de S. K. Tremayne
  3. Esperarei por Ti Toda a Vida, de Megan Maxwell
Edições brasileiras
  1. A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, de Suzanne Collins
  2. A Comunidade Secreta, de Philip Pullman
  3. A Diabólica, de S. J. Kincaid
  4. A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin 
  5. Apenas Humanos, de Sylvain Neuvel
  6. Bloodshot, de Gavin Smith e Vin Diesel
  7. Box Terríveis Mestres, de Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Arthur Conan Doyle
  8. Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke 
  9. Mais Fortes Mais Velozes Mais Belos, de Arwen Elys Dayton
  10. O Chamado de Cthulhu, de H. P. Lovecraft
  11. Qualityland, de Marc-Uwe Kling
  12. Sonhos Elétricos, de Philip K. Dick
  13. Vingança, de V. E. Schwab
Não-ficção portuguesa
  1. O Essencial sobre Mario de Sá-Carneiro, de Clara Rocha
Periódicos

Edições portuguesas
  1. As Viagens do Feiticeiro, nº 2
Edições brasileiras
  1. Conexão Literatura, nº 57
  2. Universo GalAxis, anual 2019

domingo, 12 de abril de 2020

Leiturtugas #57

Escrevo isto "só" com 1800 posts à espera de serem vasculhados em busca de material relevante para o FCL, e por conseguinte também de leiturtugas. Mas também escrevo isto já com todo o material de março tratado, pelo que já se pode avançar com isto. Mas antes...

... mas antes fica a nota de que a Carla Ribeiro também iniciou o ano, publicando uma opinião sobre o 5º volume das Obras Completas de Maria Judite de Carvalho, um volume publicado pela Minotauro que, apesar de reunir quatro dos livros da autora, nem é tão grosso como isso. Lá dentro encontra-se um conto que pode ser integrado na literatura fantástica. Nenhum parece ter seja o que for a ver com ficção científica, pelo que a Carla arranca com 0c1s.

Ou seja, o sorteio do Sally vai encontrar a malta assim:

Publicação Já cumprido Falta cumprir Mês de início
Intergalactic Robot 1c4s 7 (5c) janeiro
Ideias de Leitora 0c0s 6 (3c) janeiro
A Lâmpada Mágica 1c1s 10 (5c) janeiro
O Prazer das Coisas 0c2s 10 (6c) janeiro
As Leituras do Corvo 0c1s 11 (6c) janeiro
O Blog do Jauch 0c0s 12 (6c) janeiro
O Senhor Luvas 0c0s 12 (6c) janeiro
Rascunhos 0c0s 12 (6c) janeiro
Portuguese Portal of Fantasy and Science Fiction 0c0s 12 (6c) janeiro
Words a la Carte 0c0s 12 (6c) janeiro

Como se vê, está quase toda a gente atrasada, muitos ainda nem começaram, e só o Artur vai de vento em popa, rumo a uma conclusão rápida da coisa. Por conseguinte, será ele o único a não ter meses de desconto no sorteio; eu e a Tita teremos um, a Carla terá dois e os restantes três.

Planeio fazer o sorteio (e o vídeo) algures durante a semana, mas não me citem: pode ser que haja algum atraso. Afinal, vídeos não são propriamente a minha especialidade. Talvez corra bem, mas talvez não corra e seja preciso aprender umas coisas à pressa. Veremos. Se tudo correr bem, daqui a uma semana cá terão mais um post destes, não só com Leiturtugas (e vai haver Leiturtugas, que eu já sei) mas também com um videozinho. Até lá, leiam coisas boas e protejam-se de bichos esquisitos.

A Gargalhada

Há dias interrompi a história que tenho vindo a escrever nos últimos tempos porque me ocorreu uma ideia para um continho muito curto de ficção científica. Muito curto e algo amargo, confesso. Quem o ler depressa compreenderá qual é o tema. E lê-se num instante: um minuto, minuto e meio e está despachado. É assim:

A Gargalhada


A gargalhada reverbera na pequena sala. Uma voz masculina, roufenha. Outra voz, feminina mas quase igualmente roufenha, soa na sala ao lado, trazendo consigo interrogação e censura em partes iguais.
— Já estás nessa fase, Zé? A rir sozinho?
— Estou aqui a ler uns textos velhos, do tempo da epidemia.
— Não tens nada de melhor para fazer?
— É divertido. Devias ler também. Este é dum gajo que dizia…
— Zé…
— Não, a sério, vais-te rir. Um gajo dizia aqui que a epidemia ia levar a humanidade a reaprender o sentido da comunidade e que o bem de cada um depende sempre do bem de todos. É só palavras caras. Diz ele que o indivíduo só faz sentido enquadrado no coletivo, e patati e patata. — Outro risinho. Uma pausa. — Não achas divertido?
— Não. Deprime-me. Olha, tenho aqui uma luzinha a piscar. O filtro precisa de ser substituído.
— Outra vez?!
— É o que diz aqui.
A voz que antes rira solta agora um suspiro. Exasperado? Resignado?
— Tá bem, tá bem…
O dono da voz levanta-se, dirige-se à zona de descontaminação do abrigo, enverga o fato hazmat, põe a máscara, verifica os indicadores de qualidade do ar, franze o sobrolho, ajusta a posição da máscara e dá três ou quatro pancadinhas na zona onde estão os sensores, encolhe os ombros, pega na arma e verifica as munições, põe a tiracolo a maleta com os filtros e as ferramentas, enfia no braço uma braçadeira lavada do partido, que apesar de estar lavada ainda exibe sinais das mais recentes manchas de sangue, espreita o exterior pela vigia em busca de sinais de perigo, não os vê, fecha a porta interior estanque, substitui a atmosfera limpa do interior pela contaminada do exterior e abre a porta exterior.
— Comunidade — resmunga enquanto sai para uma paisagem dominada pelas ruínas de arranha-céus semissubmersos sob o ataque incessante das ondas do mar, lá longe, atrás do fosso e da cerca eletrificada. — Coletivo. Aquela gente dos tempos da Queda tinha cada ideia…
E lá vai substituir o filtro, arrastando os pés na poeira, uma figura solitária num mundo vazio.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Lucas Ruelles e Rafael Marx (eds.): Pulp Feek, nº 3

Nos fanzines há um fenómeno que acontece com alguma frequência: a uma modéstia extrema nos primeiros números, seja em termos de qualidade dos textos propriamente ditos, seja em termos daqueles pormenores técnicos de que também é feita uma publicação periódica, sucede-se um período em que as coisas melhoram, e por vezes melhoram bastante. Nem sempre é assim; há fanzines que arrancam logo bastante bem e outros nunca chegam a sair do mau, além de que tenho encontrado este fenómeno muito mais vezes em publicações brasileiras do que nas portuguesas (nestas, a relutância em participar numa publicação que arranca mal parece superar quase sempre a vontade de contribuir para que ela melhore). Mas acontece com frequência.

E aparentemente aconteceu com o Pulp Feek, pois o nível geral deste número 3 é significativamente superior ao dos dois primeiros (e o do segundo já tinha sido mais elevado que o do primeiro).

Ou talvez não. Como estes números são concebidos por forma a incluírem material pertencente a um conjunto restrito de géneros ou subgéneros, também é possível que a explicação seja outra: é possível que os autores que se dedicam a certos géneros e estão dispostos a participar no fanzine sejam melhores autores que os que se dedicam a outros géneros. E também é possível que a verdade esteja numa combinação dos dois fatores.

Seja como for, a verdade é que os textos deste número são em geral melhores que os dos números anteriores... com uma só exceção: o único conto completo que aqui se inclui. Este é um conto fraco e de longe o pior texto do fanzine, ainda que os dois inícios de histórias mais longas que aqui também se incluem mostrem por enquanto, e inevitavelmente, mais potencial que concretização.

E isto sublinha mais uma vez o grande ponto fraco de toda esta ideia: as serializações. Nos velhos tempos das revistas pulp, as serializações faziam sentido porque eram muitas vezes a única forma de publicar histórias longas no contexto limitado de uma revista na época (durante pelo menos parte dos tempos áureos dessas publicações o próprio papel era muitíssimo escasso). Mas numa publicação eletrónica em tempos de internet rápida e de grande volume não faz o mais pequeno sentido, nem mesmo para fidelizar públicos, e menos ainda quando a parte seguinte da história não vem no número seguinte porque este está reservado para textos de outro género, mas sim uma quantidade qualquer de números depois. É, numa palavra, absurdo.

Não vou continuar a ler estes fanzines desta forma. Vou ignorar a sequência, pegar num género e ler o que houver para ler no contexto desse género. Não sei qual será o próximo, mas uma coisa é certa: não será o nº 4.

Eis o que achei do único conto completo desta edição:

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Escrita de março


Há um mês, escrevia eu que a ficção que tenho em mãos ia ser acabada "em março, salvo alguma hecatombe". E não é que veio mesmo uma hecatombe?

Covid-19, assim se chama a coisa. Uma epidemia global daquelas que a ficção científica se dedicou várias vezes a analisar, nas fontes, no desenvolvimento e nas consequências, para irrisão de todos os bem-pensantes que agora se descobrem, com espanto e pânico, mergulhados "num filme de ficção científica" (para estes bem-pensantes são sempre filmes; a literatura não existe). E eu, que felizmente não sou bem-pensante, sou um desses tipos escapistas que leem coisas impossíveis de acontecer porque querem fugir ao mundo real, coitadinhos deles, não fiquei nem espantado nem em pânico. Fiquei ávido por informação, toda a informação. E mergulhei nela com sofreguidão, esquecendo leituras, esquecendo vários projetos em curso ou em planeamento, esquecendo quase tudo o que não tivesse a ver diretamente com o trabalho que me põe o pão na mesa e com a vida quotidiana, aquelas tarefas de todos os dias que são condição de estar vivo. E sim, esquecendo também em grande medida a escrita.

Isso, juntamente com o facto da história que tenho vindo a escrever ter chegado a um ponto que exigia parar e trabalhar um pouco em conceptualização — a ficção científica precisa dessas coisas às vezes —, reduziu a menos de metade a quantidade de texto escrito no mês: se o pequeno fevereiro tinha acabado com mais de 8200 palavras de ficção nova, este longo março terminou com meras 4000. Poderiam ter sido as suficientes se a história não tivesse decidido que ia mesmo ser novela; curta, talvez, mas novela. Terminou o mês à volta das 20 mil palavras; quando ficar completo deverá  rondar as 25 mil.

O que isto quer dizer é que deverá terminar agora em abril, apesar da primeira semana do mês ter sido tão improdutiva como foi o mês de março. Ou se calhar ainda mais. Mas acho que vou conseguir acelerar isto; nos últimos tempos tenho conseguido abstrair-me melhor (ou pelo menos durante mais tempo de cada vez) do que se está a passar no mundo e os ajustamentos que foi preciso fazer na vida do dia-a-dia já estão razoavelmente internalizados, transformados em rotinas, pelo que já gastam menos tempo.

Se sim ou se sopas só saberemos em maio. E em maio cá voltarei para vo-lo dizer. Até lá.

Théophile Gautier: A Cafeteira

Ao ler os velhos contos do romantismo é com bastante frequência que saio da leitura com um conjunto bastante contraditório de impressões. Se por um lado sou perfeitamente capaz de apreciar o domínio narrativo e linguístico desses escritores, por outro algumas características do estilo, do movimento ou do que lhe queiram chamar mexem-me violentamente com o sentido do ridículo e até, por vezes, com os nervos. É boa literatura? Será. Mas às vezes é para mim praticamente ilegível.

Ora, o francês Théophile Gautier foi um dos expoentes desse mesmo romantismo, e muito em especial da sua vertente mais fantástica. Saíram-lhe da pena algumas das obras mais conhecidas do movimento (de uma delas falarei aqui em breve, vou já avisando) e ele não se limitava a produzir textos enquadrados ou pelo menos influenciados por ele; defendia-o com unhas e dentes.

Entra em cena A Cafeteira (bibliografia), um conto curto de 1831 que se insere na subcategoria dos casarões assombrados e onde vários dos irritantes do romantismo marcam presença. Mas o conto não chegou a aborrecer-me; em parte por ser bastante curto, o que o torna razoavelmente leve, sem grandes exageros sentimentais, e justifica até certo ponto a instantaneidade de certos acontecimentos.

Sim, porque aquele velho chavão do romantismo lá está, como talvez fosse inevitável estar: o amor instantâneo e irresistível. O protagonista, ao alojar-se num quarto assombrado de um velho casarão, tem a noite perturbada por assombrações mas estas, longe de serem coisas grotescas e terríveis, são — ou parecem ao protagonista ser, depois de passado o susto inicial — benfazejas, até um pouco divertidas, uma procissão de fantasmas dos velhos antepassados do proprietário da casa, que querem apenas passar uma noite divertida, com chá, danças e risos. Pelo menos até que os olhos do protagonista caem numa donzela, linda, claro, pois não existe outra qualidade nas mulheres, sejam elas de carne e osso ou de ectoplasma, e claro que ele fica num êxtase instantâneo de paixão. No fim, tudo acaba em tragédia de faca e alguidar. Mas há neste conto mais humor do que propriamente drama. Não sei se assim é, não tenho certezas, mas pareceu-me que Gautier reconhece o ridículo da sua trama e brinca propositadamente com ele. Pelo menos nesta história.

E, claro, o conto está muito bem escrito. Por aí não há nada a dizer. É boa literatura e não, não é da que referi no início deste texto, aquela que para mim se torna praticamente ilegível. Não terei adorado a experiência de leitura, que não adorei, mas este conto leu-se razoavelmente bem.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 5 de abril de 2020

E mais "meus" em edição especial

Pois no mês de março lá saíram mais duas edições especiais destes "meus" livrinhos (que de inhos não têm nada; são uns belos calhamaços, mesmo tendo dividido os originais em dois) e, como sempre, as capas são um espetáculo à parte.

Há dias estive pela primeira vez com livros destes nas mãos. São de capa dura, como saberá quem vier acompanhando estas edições especiais, mas há dois tipos de livros de capa dura. Alguns, como os livros que o Círculo de Leitores costuma (costumava? já não compro nada ao Círculo há muitos anos) publicar, têm a própria capa ilustrada; outros, como os livros publicados pelo Público na sua coleção Mil Folhas, têm uma sobrecapa ilustrada a cobrir a capa dura propriamente dita.

Estas edições das Crónicas também são como estes últimos: capa dura (que não vi; não quis estar a remexer demasiado no livro sem o comprar a seguir, coisa que ainda não me convenci a fazer) e uma sobrecapa por cima.

E estas continuam a fazer referências mais ou menos subtis a acontecimentos que ocorrem algures nas várias centenas de páginas que encerram. Para alguém que nunca tenha lido as Crónicas, ou visto a série, suponho que sejam bastante misteriosas; para alguém que já conheça a história olhar para estas capas é quase como revisitar essa história.

E é por isso que eu babo.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Kevin J. Anderson: Hopscotch

Muitos histórias de ficção científica, provavelmente a maioria, começam a sua existência com uma pergunta de aparência muito simples: "E se?" Não é só na FC que esta pergunta se encontra, atenção: ela aparece com regularidade em qualquer faceta das artes narrativas, sempre que haja alguma forma de ficcionalização. Mas na FC e em géneros próximos ela é absolutamente fulcral. E se a pergunta for "E se num futuro indeterminado, mas talvez relativamente próximo, fosse possível trocar de corpo quase tão facilmente como se troca de camisa?" é bem possível que o resultado seja este Hopscotch, de Kevin J. Anderson.

Mas ser possível e ser inevitável são coisas bem diferentes. Uma ideia destas pode ser desenvolvida de formas muito distintas e resultar até em histórias quase diametralmente opostas. E é por isso mesmo que dar toda a primazia à IDEIA, mesmo assim em maiúsculas, que é tendência de algumas pessoas ligadas à FC, é uma perspetiva francamente redutora do que pode ser e muitas vezes é uma obra criativa em geral e literária em particular. Sim, a ideia é importante, mas o seu desenvolvimento é tão ou mais importante do que ela.

Neste romance, o tom é algo juvenil. Trata-se no essencial de um romance de formação, não centrado numa personagem como é mais vulgar, mas em quatro, um grupo de amigos, todos órfãos. O romance começa quando eles se preparam para sair do orfanato e enfrentar o mundo lá fora, cada um à sua maneira.

Um tem uma deficiência que é ao mesmo tempo uma qualidade: é incapaz de trocar de corpo, mas consegue identificar sem erro qual é a identidade que se encontra no interior de cada corpo específico. É que as regras mandam que sempre que se dê uma troca esta fique registada nuns chips que toda a gente é obrigada a ter, para que não haja dessincronias entre quem habita um corpo e quem o mundo exterior julga habitá-lo, mas nem todos cumprem as regras. Há quem não sincronize a identificação, o que constitui crime. E há quem procure apanhar criminosos, naturalmente, para o que a habilidade deste coprotagonista é extremamente útil.

Outra é alguém que procura um sentido para a vida, alguém que tem necessidade de se integrar, de pertencer a qualquer coisa maior que ela. Uma ingénua influenciável, incapaz de ver a maldade humana ou de compreender todas as consequências de estilos de vida, e com uma certa queda para o transcendente.

Outro é um artista, sempre em busca de alguma forma de revelar as verdades que sente necessidade de colocar no mundo sobre a natureza humana, a natureza da vida no seu tempo, a natureza de ele próprio. Um espírito inquieto, numa procura incessante por qualquer coisa, quer enquanto a sua arte não lhe deu o suficiente para viver, quer depois de começar a dar. E para isso troca sucessivamente de corpo, tentando perceber como é viver como outras pessoas, todos os tipos possíveis de outras pessoas.

E o quarto é um despreocupado que faz o que precisa de fazer para sobreviver, e se o que precisa de fazer é alugar o corpo a quem queira pagar-lhe por isso, pois que seja. Há formas piores de ganhar a vida do que aguentar durante algumas horas ou dias as dores de corpos velhos ou doentes ou a dor de parto de mulheres que preferem não passar pela experiência.

Todos são bastante ingénuos, todos vão tropeçando vida fora sem uma rede de apoio que vá além da velha amizade que os une, ou talvez a palavra mais adequada seja irmandade apesar de eles não serem realmente irmãos. E é isso, a amizade, o tema principal do romance. A amizade e o que se está disposto a fazer por ela, as coisas que a desenvolvem ou corroem.

Uma das maiores frustrações deste livro vem um pouco daí. A ideia de base da troca de corpos dá tanto pano para mangas que Anderson podia tê-la explorado de forma bastante mais profunda, mas preferiu ficar-se pelo tom juvenil e algo superficial. Ou talvez o problema seja outro, talvez seja ter-se perdido nas várias ramificações da ideia sem realmente explorar nenhuma delas por completo. Ou talvez seja a desconexão dos protagonistas com o leitor (ou com este leitor, pelo menos), que nunca chega realmente a formar uma ligação com eles, nem que seja de compreensão ou empatia.

Por outro lado, não se pode dizer que não seja livro que até se lê bem. É uma aventura de ficção científica juvenil sem nada de transcendente, com uma boa ideia que não é lá muito bem aproveitada, mas deixa-se ler bem. Literatura de entretenimento, basicamente, que passa longe da melhor FC que por aí anda mas serve para passar algumas horas razoavelmente entretidas. Razoável, ora cá está a palavra certa; é isso o que este livro é.


Este livro foi um presente de uma amiga.