sábado, 28 de junho de 2014

Sobre os ditos 800 anos da língua portuguesa

Anda por aí toda a gente muito eufórica porque ah e tal e viva a língua portuguesa porque faz 800 anos.

Não faz nada, desculpem lá rebentar-vos a bolha da chiclete.

O que faz 800 anos é um documento. Dizem que é o primeiro escrito em português, mas não só não é porque há outros mais antigos e muito provavelmente outros mais antigos ainda existiram mas se perderam entretanto, como aquilo não é português no sentido moderno do termo: é galaico-português. Podemos considerar que é a mesma coisa, mas para isso teremos de integrar o galego moderno na família da língua portuguesa. E eu até concordo com essa integração, mas a verdade é que isso é irrelevante.

É que as línguas não nascem quando são escritas. Nascem, ou melhor, "nascem" quando as pessoas começam a falá-las. E meti nascem em aspas porque mesmo isto é errado: à parte as línguas que são invenções motivadas por política, internacionalismo, nacionalismo ou linguística, e que são uma minoria muito reduzida, as línguas não nascem. Vão, isso sim, evoluindo devagar de outras línguas mais antigas, num processo que demora séculos. Foi o caso da nossa, que evoluiu devagarinho do velho latim, primeiro diferenciando-se em dialeto e mais tarde em língua propriamente dita, processo que demorou ao todo cerca de um milénio.

Falar-se do nascimento da língua portuguesa é, portanto, um absurdo. Querem comemorar o papel que faz agora 800 anos? Comemorem o papel. Mas deixem a língua em paz.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Lido: O Nome do Rei

O Nome do Rei (bibliografia) é um conto de história alternativa, de Bruno Martins Soares, sobre um regicídio. Não aquele que existiu na história real, entenda-se, visto que este, no universo alternativo que Soares nos apresenta, nunca chegou a existir, mas outro, quase um século mais tarde, num Portugal que entrou em monarquia pelo século XXI dentro. Narrado na primeira pessoa por um jornalista a quem foi atribuída a responsabilidade de cobrir a o assassínio do rei, e por extensão a sua vida, é um conto que começa lento e um pouco mole, com demasiado infodump e uma voz insuficientemente consistente, mas vai ganhando solidez ao longo das páginas até acabar bastante bom, numa reflexão muito interessante e bem conseguida sobre a morte, a história e a condição humana. Embora aquele início talvez merecesse uma revisão, e apesar do Bruno Martins Soares cair na armadilha lógica de manter as mesmas personalidades da nossa linha temporal num mundo profundamente alterado, em que é comum os escritores de história alternativa caírem, o final é suficientemente forte para elevar este conto acima da mediania. Claramente o melhor do livro até agora.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Os Operadores Humanos

Os Operadores Humanos (bibliografia) é um conto de ficção científica escrito a quatro mãos por A. E. Van Vogt e Harlan Ellison e é, de muito longe, o melhor conto do livro de que faz parte. Leva-nos ao espaço profundo, algures entre galáxias nunca identificadas, a bordo de uma nave que, com algumas outras, terá escapado do controlo humano e fugido após ganhar senciência. A bordo, além do leitor, encontra-se apenas um homem, o operador humano, necessário para desempenhar tarefas que a nave é incapaz de levar a cabo sozinha, mas mantido firmemente controlado e ignorante, não vá ter oportunidade de pôr em prática as tendências malignas inerentes à humanidade. Sim, que já se passou muito tempo desde a fuga e este operador humano que conhecemos está muito longe de ser o original, antes é resultado de um programa de reprodução levado a cabo pelas naves. Ora, para haver reprodução é necessário haver fêmeas, e é precisamente quando o protagonista é visitado por uma fêmea (sim, fêmea, não mulher), a primeira que vê na vida, que as coisas se desenlaçam.

Trata-se de um conto muito bom, tanto no que toca às ideias propriamente ditas como sobretudo na forma como elas são executadas. Ao contrário do que acontece em contos anteriores, e pese embora notar-se aqui e ali o efeito Saló, tudo está no sítio certo e há um equilíbrio praticamente perfeito entre a entrega da informação necessária ao leitor e o avançar da narrativa. A melhor forma possível para concluir este livro. Ou até para o salvar.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Lido: Peixe Para Eulália

Peixe Para Eulália é mais um belo continho fantástico de Mia Couto, daqueles que transbordam ternura e poesia. Tudo se passa algures, sob uma seca das tremendas, famintas e aparentemente insolúveis. O povo da aldeia, não por desespero de causa mas por causa do desespero procurar alívio no humor e na troça, decide um belo dia perguntar a um tal Sinhorito, com fama de tresloucado, como resolver a questão sequiosa. Sinhorito pensa e emite sentença. E todos se riem, menos a Eulália a que o título faz referência.

Só que nos universos de Mia Couto as coisas nunca ficam assim. Em lugar de enfiar viola em saco, portanto, logo Sinhorito põe a sua ideia em prática. E quem tiver paciência, na aldeia e fora dela, atrás das páginas e da capa deste livro, mais tarde descobrirá se o Sinhorito conseguiu ou não ir buscar peixe e água para a sua amiga Eulália, a única que nele acreditou o suficiente para não rir.

Em resumo: mais um contossim.

Contos anteriores deste livro:

Lido: U Disscurssu de Karluss Karvalhass

U Disscurssu de Karluss Karvalhass é mais um texto de blogue, desta feita criado por Celso Martins, que tenta gozar simultaneamente com o cerrado sotaque beirão do antigo secretario-geral do PCP e com a tendência comunista de repetir sempre (roboticamente?) os mesmos clichés (se não formos simpáticos) ou ideias (se formos)... a célebre cassete. Não o achei lá muito eficaz. Em parte porque a toda esta distância já poucos se lembrarão de quem foi Carlos Carvalhas, provavelmente o mais apagado dirigente que o PCP já teve, e por outro porque o humor se perde um bocado num certo excesso de palhaçada.

Aliás, nunca é bom sinal quando o autor da piada se sente na obrigação de a explicar no fim, como acontece aqui. Um texto muito dispensável, este.

Textos anteriores deste livro:

Lido: ΘΑΛΑΣΣΑ ΤΟΥ ΠΡΩΙΟΥ

ΘΑΛΑΣΣΑ ΤΟΥ ΠΡΩΙΟΥ, assim mesmo, em grego e em maiúsculas (o itálico é meu... achei graça à ideia de usar grego itálico), é um texto de Daniel Oliveira que goza descarada e divertidamente com Pacheco Pereira e uma certa tendência que este tem para se encher de arrogâncias intelectualizantes, o que o torna não só muito ridículo como extremamente ridicularizável. No caso, Pereira terá transcrito para o seu blogue Abrupto um poema. Nada de mais, não fosse um detalhezinho sem importância... ou com toda: o autor é grego, o poema é grego, e Pacheco Pereira transcreveu-o... em grego. Acrescentando-lhe uma ridícula notinha a alfinetar as pessoas que "se vão irritar com o grego". E Daniel Oliveira responde-lhe com uma ironia demolidora, transcrevendo poema e notinha e acrescentando uma breve nota sua.

Gargalhei, sim.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Pedrito de Portugal

Pedrito de Portugal é um texto de Rui Tavares, típico texto de blogue político em que se faz uso do sarcasmo para contestar afirmações de um adversário. No caso, o adversário é Pedro Santana Lopes, que teria dito um monumental disparate sobre a Constituição da República Portuguesa o que, tendo em conta que esta refutação data de 2003, mostra bem desde que longínquas eras pretéritas a tendência para o asneiredo constitucional impera no PSD. Não tem muita graça, ou então sou eu que já deixei há algum tempo de conseguir achar graça a esta corja, mas a leitura deste texto tem a utilidade de mostrar que não, não é de agora. Não é coisa de Coelhos e seus acólitos. A parvoeira vem de longe. Pelo menos desde Santana Lopes, mas certamente desde ainda antes.

A extrema-direita atualmente no poder tem raízes fundas.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Lido: Desconversa da Treta

Desconversa da Treta é o argumento de um sketch que qualquer português que não tenha passado a última década e picos enfiado debaixo dum calhau conhece perfeitamente. É, como é evidente, uma conversa da treta, sobre coisa nenhuma, entre o Zézé e o Toni. Tem graça, não digo que não, mas o contraste entre o texto a seco e a imagem do José Pedro Gomes, com os seus fatinhos todos pipis, e o António Feio, com o sem eterno colete de pele de vaca, é demasiado forte para não deixar nesta leitura um valente sabor a pouco. Nestas coisas do humor há textos que resultam perfeitamente deixados a si próprios. Outros, no entanto, só fazem realmente sentido quando recebem a vida que lhes emprestam os atores. E a Conversa da Treta sempre viveu da forma como o Gomes e o Feio (e acima de tudo a interação entre o José Pedro e o Antómio) davam corpo aos textos absurdos e muitas vezes parvos que lhes serviam de base. Sem eles, pura e simplesmente não é a mesma coisa.

Textos anteriores deste livro:

domingo, 15 de junho de 2014

Lido: O Demiurgo

O Demiurgo é um divertido conto de José Eduardo Agualusa, de novo baseado em notícia que terá encontrado numa publicação oitocentista angolana, que nos leva até uma terra que, apesar de estar razoavelmente identificada na notícia (tanto quanto o pode estar uma terreola pequena para alguém que desconhece os detalhes da geografia de Angola), na verdade pouco importa qual é. Pois acontece que na igreja dessa terra começam mais ou menos de repente a surgir umas estranhas manchas na parede. A princípio tomadas por efeitos de humidade e bolores, depressa as formas debochadas que as manchas tomam levam o padre a mandar pintá-las, não fosse escandalizar a freguesia do templo. Só que as manchas teimam em reaparecer, cada vez mais pornográficas, cada dia mais detalhadas. Repetidamente.

Trata-se de um conto engraçado, com o seu quê de conto de fantasmas, embora muito pouco vitoriano, escrito em tom de realismo fantástico. E bem escrito. Não haverá nele propriamente grande surpresa, que não é a primeira vez que na literatura mundial surgem cenas estranhas nas paredes mais variadas, mas há muitos outros motivos de interesse. É um bom conto. Mais um.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 14 de junho de 2014

Lido: Mighty Fine Days

Mighty Fine Days, de autor anónimo (coff - é do Anthony Mann - coff), é um conto de horror sobre um homem que se vai perdendo de si mesmo e do mundo. Apesar de parecer à primeira vista ser surrealista, o impacto maior do conto acontece quando nos apercebemos de que até pode não o ser. De que esta história e esta situação são possíveis quando algo de grave acontece à memória. Quando objetos, pessoas e lugares familiares vão perdendo substância, se vão tornando irreconhecíveis, porque deixa de existir conexão entre a sua existência exterior e a representação que delas mantemos no cérebro. Neste conto, tudo começa (muito inglesmente, diga-se) com a transformação do jornal da manhã numa pilha de folhas em branco, mas não fica por aí, e o mundo, tal como é visto pelo protagonista, vai-se tornando cada vez mais estranho e incompreensível.

Digo que este conto é de terror porque é francamente incómodo. Mas igualmente lhe poderia chamar surrealista ou realista mágico. Weird fiction. Esta é daquelas histórias que transcendem os rótulos simples. Tem essa qualidade. E tem outras, também. É um bom conto.

Conto anterior deste livro:

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Lido: Missão 121908

Missão 121908 (bibliografia) é um conto de ficção científica de Luísa Marques da Silva sobre um duo de temponautas agentes secretos (e irmãos) que voltam a 1908 para tentar impedir o Regicídio. É que, na sua linha temporal, este nunca aconteceu e, na verdade, não deveria acontecer nunca. Mas houve uns terroristas, também temponautas, que resolveram fazer um atentado retroativo e assim criaram uma linha temporal divergente. Ou então não exatamente. Se calhar nem atentado nem missão aconteceram de facto. Se calhar tudo não passa de outra coisa.

É um conto com um certo interesse, prejudicado por duas coisas: um tom humorístico que me pareceu francamente mal conseguido (pelo menos um dos agentes é tão imbecil que se torna inverosímil) e, acima de tudo, a Intempol.

A quê?

A Intempol. Trata-se de um universo partilhado brasileiro baseado numa polícia temporal que tem como base precisamente este tipo de missão. E quem o conheça não consegue evitar fazer comparações. Ora, ao fazê-lo vai encontrar diferenças, particularmente na sofisticação conceptual e no grau de maturidade das histórias... em desfavor desta. Embora este conto tenha de facto um certo interesse, e apesar de estar razoavelmente bem escrito, fica aquém da maioria das histórias da Intempol. É uma leitura agradável, mas há nele uma certa fragilidade, uma certa insegurança, que sugere uma autora pouco à vontade com os conceitos e enredos inerentemente complexos a que decidiu deitar as mãos. Por isso, mais trabalhada, esta história poderia vir a ser boa, mas como está não me parece que o seja. O conto não é mau mas tampouco é bom.

Conto anterior deste livro: