domingo, 20 de fevereiro de 2022

Leiturtugas #141

As semanas sucedem-se, e as Leiturtugas também. O tempo é assim: nunca para. Exceto se conseguirmos viajar à velocidade da luz, mas isso só mesmo a luz.

Entre os participantes oficiais nisto, desta vez foi o Artur Coelho a começar a fazer as honras da casa. O Artur prossegue as suas andanças por territórios externos à FC&F, opinando desta vez sobre um clássico do neorrealismo português: Avieiros, de Alves Redol, romance de 1942 que ele leu na edição de 2011 da Caminho. O livro nada tem de FC, claro, portanto o Artur passa a 0c4s.

Mas não foi só ele a fazê-las. Também a Carla Ribeiro continua a somar e a seguir, escrevendo esta semana sobre O Segredo de Portograal, romance de Flávio Capuleto publicado em novembro do ano passado pela Cultura. Estando longe de ser de FC (é essencialmente uma história secreta), este livro parece ter um cheirinho de FC, pelo que a Carla soma 2c5s.

Entre os oficiosos, a Inês Pereira escreveu esta semana sobre O Jardim dos Animais com Alma, um romance de José Rodrigues dos Santos publicado no ano passado pela Gradiva. Tem FC? Parece que não.

Já a Liliana Raquel opinou sobre um livro que contém alguma FC, embora seja principalmente um livro de aventuras juvenis: A Ameaça, o segundo volume da série de Sara de Almeida Leite intitulada Os Mega B.A.Y.T.E.S. É uma edição da Porto Editora datada do ano passado.

E por esta semana estamos conversados. Para a semana, provavelmente, haverá mais.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Junior Cazeri (ed.): 1000 Universos, nº 1

O problema das publicações periódicas (e incluo aqui as eletrónicas, quer tenham o formato clássico quer funcionem mais como sites), para quem toma a iniciativa, é estarem sempre inteiramente dependentes do material que venham a receber. Mesmo quando funcionam por um sistema de convites, que em princípio propicia um pouco mais de controlo (um autor para ser convidado é um autor que já se conhece e de cuja produção, em princípio, se gosta), há sempre um elemento forte de incerteza quanto ao tipo de material com que se irá poder trabalhar.

Para os autores, por outro lado, apresentar histórias para publicações novas também pode ser problemático. Raramente sabem que outros autores elas irão também incluir, raramente têm uma ideia mínima sobre o tipo de publicação que será e se as suas histórias (e quais das suas histórias) melhor se poderiam enquadrar nela. Sim, que não basta dizer-se que é uma revista ou fanzine ou qualquer outra variante da coisa de ficção científica e fantástico. O âmbito de tal qualificativo é tão vasto e tão multifacetado que essa informação se torna escassa ao ponto de ficar quase irrelevante.

Daí que os números 1 (ou zero, quando é o caso) raramente podem servir para aferir as qualidades e defeitos de uma publicação, qualquer que ela seja. E este fanzine 1000 Universos, nº 1, naturalmente, não é exceção.

Junior Cazeri reúne aqui um conjunto de histórias bastante irregular. Ignoro se por limitações no material recebido, mas imagino que sim, pois o facto de ter guardado a melhor de todas para o fim, uma forma de deixar o leitor numa nota alta, predispondo-o o melhor possível para a próxima iteração, faz-me supor que estava bem consciente das qualidades e insuficiências do material que tinha em mãos. A juntar a essa, há mais duas ou três histórias mais interessantes e, do outro lado da fronteira da qualidade, duas histórias francamente más. Sendo estas últimas muito dispensáveis, o certo é que as histórias melhores fazem com que a leitura acabe por valer a pena. Afinal, como eu digo sempre, basta conter uma história muito boa para que um livro ou publicação periódica já tenha valido a pena, e, aqui, o conto de Ana Lúcia Merege é essa história.

Eis o que achei de cada um dos contos:

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Irmãos Grimm: A Mortalhinha

E eis um conto que tem todo o ar de ter sido incluído nesta compilação praticamente tal e qual foi contado, quer tenha sido contado diretamente aos Irmãos Grimm, quer o tenha sido por interposta pessoa. Muito curto, mal passando da meia página, A Mortalhinha é um conto de fantasmas envolto em roupagens cristãs sobre a morte de um filho e o sofrimento da mãe.

Na verdade, soa quase a sermão. Podia perfeitamente ser daquelas histórias que os padres contam nas cerimónias religiosas, destinadas a levar os fiéis a suportar o sofrimento sem entrarem em desespero. Ou pelo menos sem tornarem demasiado visível esse desespero.

O mais curioso para mim é que embora nesta história apareça um fantasma, não há nela nem sombra do horror que normalmente se associa a essas entidades sobrenaturais. Mas não é uma história memorável; longe disso. Nem a dimensão o permitiria. Ou por outra, a dimensão não impede que a história se torne memorável, mas certamente dificulta. E esta história, com as suas muito vincadas marcas de oralismo, tampouco tem qualidade literária que a torne mais forte. É uma historinha simpática, mas pouco mais.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Luiz Bras: Aço Contra Osso

Se me dissessem que esta história nasceu pelo título, eu não me surpreenderia. Aço Contra Osso é daquelas aliterações que ocorrem com uma certa frequência a quem tem cabeça para essas coisas, e basta ler algumas das histórias de Luiz Bras para se perceber que ele tem. Depois, teria sido caso de arranjar uma história que se adaptasse ao título para quem este não fosse desperdiçado. Mas claro que isto é pura especulação da minha parte. Não posso saber o que esteve na génese da história; só posso saber o que a história conta.

E o que a história conta é uma perseguição. Um caçador, uma espécie de polícia, persegue uma entidade por espaços virtuais. Um criminoso condenado em fuga, mais propriamente, o qual vai saltando de cenário em cenário sempre perseguido pelo polícia. Ambos se esforçam por encontrar antes do outro a saída do espaço em que se encontram, e pelo menos o polícia fá-lo analisando matematicamente o ambiente em busca de alguma pista que lhe permita resolver as equações que o governam. Porquê? Não é inteiramente claro, mas Bras sugere que quem encontrar a saída tem a possibilidade de determinar o espaço para onde os dois vão a seguir. Por isso o esforço. Mas o polícia perde sempre.

É ficção científica da boa, mais uma vez, mas este conto tem também um ambiente onírico com muito de pesadelo. E com o seu quê de Philip K. Dick; afinal, como em tantas ficções de Dick, também aqui a realidade em que se inserem as personagens é inerentemente plástica e muito pouco digna de confiança. E também esta história conta com o seu quinhão de reviravoltas surpreendentes de enredo, especialmente o muito eficaz final surpresa.

Sim. Este é mais um conto francamente bom.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Leiturtugas #140

E lá chegámos ao fim de mais uma semana, e cá está mais uma listinha de Leiturtugas a divulgar.

Entre os participantes oficiais no projeto, foi mais uma vez a Carla Ribeiro a fazer as honras à casa, opinando desta vez sobre mais uma BD. Publicado pel'A Seita em novembro do ano passado, O Homem de Lugar Nenhum, aqui em primeiro volume, tem autoria de Tiago Barros e Fábio Veras. BD conta como "sem", já se sabe, pelo que a Carla passa a 1c5s.

E quanto a oficiosos, tivemos um pouco mais de movimento.

Uma semana depois de ter aparecido uma opinião sobre Por Este Mundo Acima, o romance distópico que Patrícia Reis publicou em 2011 pela Dom Quixote, eis que surge agora outra. Ou melhor: ressurge a mesma, pois trata-se de um post de convidado (a Almerinda) no blogue da Cris.

E aparentemente estamos em maré de estreias, pois tivemos mais uma esta semana. Refiro-me a Ana C. Nunes, que opinou sobre um conto de Vítor Frazão publicado pelo Fantasy & Co. Datado de 2013, Aos Teus Olhos é um conto que... bem... a Ana não dá nenhuma pista sobre se contém ou não alguma FC (e é um dos contos que ainda não li), mas a partir do pouco que li do autor vou supor que se trata de uma fantasia sem FC. Se houver lá FC estamos sempre a tempo de corrigir.

Já a literatura infantil carregada de fantasia (ou maravilhoso, se assim preferirem chamar-lhe) não é estreia nenhuma, longe disso. Esta semana chegou às cavalitas de uma opinião do Pedro Miguel Silva sobre um livro de Patrícia Portela, ilustrado por Catarina Sobral, com o complicado título de Seis Histórias de Tamanhos Diferentes que me Aconteceram ao Mesmo Tempo. Publicado no ano passado pela Bruaá, não parece conter nenhum vestígio de FC.

Queriam mais? Pois, mas não há. Deverá haver daqui a uma semana, no entanto, portanto até lá.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Irmãos Grimm: João Ouriço

É curioso constatar quantos destes contos dos (ou recolhidos pelos) Irmãos Grimm partem de uma premissa comum: um filho (ou vários, normalmente três) que por um motivo ou por outro sai da casa dos pais e vai correr mundo onde o espera um sem-número de aventuras, frequentemente de caráter mais ou menos mágico. Aqui a magia surge desde o início, pois João Ouriço só existe porque o pai, farto de ser alvo de troça por não ter filhos, desabafa o seu desejo de ter um, "nem que seja um ouriço".

Não que João Ouriço o seja. É um híbrido quimérico, ouriço da cintura para cima, homem da cintura para baixo. E o pai, que se fartara da troça por não ter filhos, farta-se agora de ter um filho tão estranho como aquele e vê-se livre dele. Mas o jovem lá constrói o seu percurso pela vida, durante o qual acaba envolvido com a realeza, ou não estivéssemos no mundo dos contos de fadas. E, como estamos no mundo dos contos de fadas, no fim tudo termina em bem.

Este é um conto com o seu interesse, ainda que os muitos elementos que tem em comum com tantos outros o impeçam de ser memorável. Já se escreveram teses inteiras sobre os arquétipos na literatura popular, e esta história está cheia deles, mas a verdade é que, pela parte que me toca, o caráter repetitivo intrínseco aos elementos arquetípicos retira à leitura uma parte considerável do impacto e do prazer que poderia provocar.

É o caso aqui.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Luiz Bras: Memórias

O bonecreiro que está por trás do boneco Luiz Bras provavelmente saberá, mas vou dizê-lo mesmo assim: esta sua história é profundamente dickiana. De Philip K. Dick, evidentemente. E como não é possível falar dela sem a tal cena dos spoilers, quem for alérgico pode ficar por aqui e até à próxima. Os outros, venham daí.

Memórias começa em conflito. Parece ser apenas a história de uma mãe em fuga, metida em sarilhos, daqueles que metem polícia e armas de fogo, agravados pelo facto de parecer estar com Alzheimer. A primeira parte do conto é uma conversa entre mãe e filha, durante a qual esta tenta convencer aquela pousar a arma, a acalmar-se, a sentar-se e conversar, tentativa essa que não corre bem porque a "mulher mais velha" parece estar com falhas de memória.

Depois, o conto torna-se mais interessante.

Torna-se dickiano. Dickiano no sentido das personagens não poderem ter confiança na realidade que as rodeia (ou talvez nos seus próprios cérebros), porque há algo que não é o que parece. E dickiano no sentido de o enredo sofrer reviravoltas francamente inesperadas a um ritmo alucinante, forçando o leitor a reajustamentos contínuos na ideia que faz sobre a natureza do que está a ler.

O que é ótimo.

No fim, o conto revela-se ficção científica pura, baseado no hacking de cérebros, através do qual criminosos podem cometer crimes por interposta pessoa sem serem apanhados. Ou pelo menos reduzindo a possibilidade de serem apanhados, que a polícia não anda propriamente a ver passar navios. É uma ótima ideia, e muito bem executada. Mais uma história francamente boa do sr. Bras. Aplausos.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Ana Lúcia Merege: Ars Nova

Itália, mais ou menos no presente. Um jovem músico esfomeado, daqueles que ganham a vida principalmente a tocar na rua em troco das moedas que os transeuntes lhes queiram dar (e vendendo CDs), recebe a proposta de tocar para uma personagem importante. O detalhe relevante é o músico ser especialista (e grande fã) da música medieval. Ars Nova, de resto, não é apenas o título do conto mas a designação de um estilo musical da Idade Média tardia (século XIV), o qual é praticado pelo protagonista desta história e pelo seu grupo. E é esse facto que vai ser fulcral no desenrolar deste conto.

Ana Lúcia Merege conta-o bastante bem. Trata-se de um conto próximo do horror, construído a pouco e pouco e sem grandes despejos de informação, como é costume fazer-se na melhor ficção. Merege não perde tempo, por exemplo, a explicar o que raio é a ars nova. Dá as pistas necessárias para que o leitor compreenda que é um estilo de música antiga e fica-se por aí. O leitor que já sabe não tem de se aborrecer relendo detalhes inúteis sobre o que já sabe, e o leitor que não sabe e quer saber pode ir pesquisar depois de ler o conto (ou durante, se preferir). A autora fornece a informação necessária e apenas a informação necessária. O que é ótimo.

Até porque o que é mais importante é a história e a interrogação que lhe subjaz: o que estás disposto a sacrificar pela tua arte?

Alérgicos a spoilers, fiquem por aqui, sim? Os outros venham comigo.

O trabalho, que o jovem protagonista aceita, é tocar numa festa. Mas vamo-nos todos apercebendo aos poucos de que a festa não é bem o que se esperaria de algo existente no século XXI, ainda que a princípio possa parecer um simples baile de máscaras no qual os convivas fingem estar no período medieval. A realidade? São fantasmas de gente nobre morta há muito, que durante períodos breves podem regressar a uma espécie de vida e voltar a experimentar prazeres que lhes estão vedados pela sua condição. E o jovem, apesar dos avisos em contrário, apesar de várias pessoas o tentarem salvar, vai-se deixando enredar por aquele passado fantasmagórico até mergulhar nele em definitivo.

À primeira vista este conto pode parecer ser uma história de horror; tem fantasmas, tem morte, ou pelo menos uma espécie de vida em morte, tem vida em perigo. Mas não parece ter propriamente a vontade de causar medo que o terror supostamente mostra. O jovem mergulha naquela morte fantasmagórica por vontade própria. Porquê? Porque aí se sente apreciado e realizado na sua arte, ao passo que o presente o ignora. Podemos censurá-lo? A questão, subtilmente colocada, fica em aberto.

Este conto é francamente bom.

Contos anteriores desta publicação:

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A ficção científica explica

Especula-se muito sobre que espécie de país teríamos se os partidos recém-nascidos da extrema-direita social e/ou da económica chegassem por cá ao poder. Mas na verdade especular é inútil: como é comum acontecer, a ficção científica já tratou disso, e bem. E nem estou a falar da FC que a malta costuma achar erradamente que é a única: a americana. Falo da nossa, portuguesinha da Silva.

Quem quiser saber que espécie de país teríamos se o Chaga chegasse ao poder não tem mais que pegar nos contos da série Fortaleza Europa do João Barreiros. Seria mais ou menos aquilo. Com menos tecnologia e talvez um bocadinho menos de violência (mas não muito), e talvez sem grande respaldo numa Europa que talvez não estivesse toda mergulhada no mesmo pesadelo, uma vez que não costuma haver grande sincronia nos ciclos políticos dos vários países europeus (e daí... pelo que se vê por aí...), mas basicamente sim, seria aquilo.

E quem quiser saber que espécie de país teríamos se quem chegasse ao poder fosse a IL, basta pegar n'As Atribulações de Jacques Bonhomme, de Telmo Marçal. Aí se fala não dos amanhãs que cantam da utopia liberal para os que têm dinheiro (para isso terão de dar um saltinho à FC americana, onde os encontram até à náusea), mas das consequências desse admirável mundo velho para os que não têm. Talvez com um bocadinho, ou bastante, mais de revolta e de convulsão social, que as personagens do Telmo tendem a não vislumbrar qualquer saída para os seus pesadelos e por isso resignam-se, não se revoltam (mas nem sempre, nem sempre), o que no mundo real dificilmente aconteceria, mas basicamente sim, seria aquilo.

Como tantas vezes acontece, a ficção científica explica. Ou já explicou, há anos.

E quem vos disser que a FC não é política, não faz a mais pequena ideia do que está a falar.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Escrita de janeiro


Janeiro até começou bem em termos de escrita, e ia bem encaminhado para terminar com progressos razoáveis no romance que tenho andado a escrever nos últimos meses. Mas depois fiquei uma semana inteira de molho com um violento ataque de ciática, ou o que raio foi aquilo, e lá se foram as perspetivas de um mês bom, ou pelo menos bonzinho.

No fim de contas acabou por ser mais um mês basicamente igual aos últimos. Houve progressos, mas resumiram-se a menos de 4200 palavras, cerca de 12 páginas.

E não tenho mais nada a dizer, na verdade. Não escrevi nada além destas 12 páginas de romance que fizeram o manuscrito chegar quase às 140, e foi assim que janeiro correu. Daqui a um mês veremos que tal correu fevereiro. Até lá.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Leiturtugas #139

Bem, vamos lá então pôr em dia esta coisa das Leiturtugas. Mais vale aproveitar que nestas duas semanas o pessoal esteve pouco ativo, não é? Vamos lá.

Começando, como é hábito, pelos participantes oficiais na coisa, temos mais uma opinião da Carla Ribeiro a divulgar. Desta feita, a Carla esteve a ler uma coletânea intitulada Um Belo Dia Para Morrer e Outras Histórias. Edição do autor, Amílcar Monteiro, e datado de 2020, este livro tem até a qualidade acrescida de conter alguma FC num conjunto de contos que parecem mergulhados principalmente num fantástico mais mágico-realista. Seja como for, a Carla passa a 1c4s.

Por seu lado, o Artur Coelho continua a atirar para as margens da FC&F, opinando desta feita sobre um ensaio, que parece ser de natureza fundamentalmente antropológica, sobre as tradições transmontanas. De autoria de António Tiza e intitulado Inverno Mágico, trata-se de uma edição de 2015 da Âncora. Nada de FC, e o Artur passa a 0c3s.

A FC reaparece trazida pelas mãos dos oficiosos.

Nomeadamente pelas mãos do Nuno Coelho, que opinou sobre Ecologia, o romance distópico que Joana Bértholo publicou em 2018 pela Caminho.

E também nos chega pelas mãos da Almerinda, que se estreia nestas andanças opinando sobre outro romance distópico, Por Este Mundo Acima, de Patrícia Reis. Edição da Dom Quixote datada de 2011, é também a primeira vez que este livro e esta autora aparecem por aqui. Foi uma ótima estreia, Almerinda.

Mas nem só de FC se fez a atividade oficiosa nestas duas semanas, pois houve também outras coisas.

Coisas como o livro de Fernando Ribeiro publicado pela Suma, Bairro Sem Saída. Quem opinou agora sobre este romance datado do ano passado foi a Cris.

E coisas como As Intermitências da Morte, de José Saramago, lido e comentado pela "Charneca em Flor". O romance é de 2005, mas a Charneca parece tê-lo lido na edição em ebook da Porto Editora, que tem data de 2014.

E é tudo. Estamos em dia. Siga agora a programação normal. Veremos dentro de sete dias o que a semana que agora começa nos reserva.

Na internet publicam-se uns textozinhos de FC de vez em quando

Uma das consequências de ter aqui uma pilha de feeds RSS a entregar-me em permanência um fluxo contínuo de novidades, opiniões e o diabo a sete, usados para captar aquilo de que se alimentam as Leiturtugas, como provavelmente saberão, é de vez em quando deparar, precisamente, com o diabo a sete.

Neste caso, um diabo a sete bastante específico: ficção científica. Não opiniões sobre, que isso é relativamente comum (mas devia ser mais), mas textos de.

E nos últimos dois meses e picos houve vários. São sempre textos breves, normalmente mais próximos do exercício de estilo ou de escrita, ou então daquela espécie de FC que projeta para o futuro uma tendência do presente, para melhor criticar essa tendência, ou que pretende fazer uma antevisão mais ou menos utópica do que poderia acontecer, do que do conto devidamente pensado e elaborado que costumamos encontrar em revistas e compilações em livro.

(e agora pensei compilações e os meus dedos escreveram complicações... devem estar a tentar dizer-me qualquer coisa)


O delinear de utopia é o que acontece em Imaginar uma Serra da Estrela Selvagem, um texto de Pedro Prata, Daniel Veríssimo e Fernando Teixeira que finge ser um artigo escrito em 2033 sobre a serra tal como será no futuro imaginado pelos autores. Textos como este, mesmo quando se limitam a existir na cabeça do escritor, estão na base de praticamente toda a ficção científica ambientada no futuro. São o worldbuilding sobre o qual a história propriamente dita se desenvolve. E na verdade há entre nós uma certa tradição de textos como estes: o famoso Lisboa no Anno Dois Mil é basicamente isto.

Mais para o lado do exercício de escrita, parecendo mais o início de qualquer coisa do que um texto completo, Naquela Noite Ninguém se Deitou, da "Toupeira", é ficção propriamente dita e relata um acontecimento inexplicado e extraordinário ocorrido em 2112.

O continho de que mais gostei entre estes é Relatório Interestelar, do Artur. É precisamente o que o título indica, um relatório, é também um daqueles tão abundantes contos que olham para a espécie humana através de olhos alienígenas, e além disso tem duas qualidades principais: está bem escrito e é divertido.

Marte, da "Redonda" não se limita a parecer um exercício de escrita: é um exercício de escrita. Integrado num tal "CNEC", que suponho ser o Campeonato Nacional de Escrita Criativa (um conceito que me parece francamente bizarro, mas se serve para as pessoas escreverem, siga), é um conto sobre a eventual colonização de Marte para escapar a uma Terra em vias de destruição.

Quatro continhos de FC de produção recente e publicação online, em lugares inesperados. Não são obras-primas, mas nem é o que se espera deles nem é esse o objetivo. Produzir é o primeiro passo, e esse vai sendo dado. Venham os passos seguintes.

Já agora, a Toupeira também publicou neste período outro continho que, sem ser FC, se integra no mais vasto grupo da FC&F: Nada nas Mãos, Tudo na Mente.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Irmãos Grimm: Os Dois Viajantes

Com este Os Dois Viajantes regressamos às histórias que os Irmãos Grimm não sinalizam como provenientes do lugar Tal, mas sim que são construídas "a partir de um conto" (ou mais) do sítio Tal, querendo com isso dizer, deduzo eu, que este conto foi elaborado por eles e não simplesmente recolhido e apresentado no livro com poucas alterações.

Não por acaso, talvez, é um conto bastante mais extenso do que é habitual neste livro: dez páginas de texto apertado, as quais narram as aventuras de um alfaiate bonacheirão e de um sapateiro carrancudo que um dia se encontram em viagem e, por seguirem para os mesmos lados, decidem continuar juntos. As coisas correm mal, que o sapateiro é um bom bocado psicopata e vai fazer a vida negra ao pobre do alfaiate. Um poço de maldade. Um vilão.

Claro que, como estamos no domínio dos contos de fadas, no fim o vilão acaba punido com toda a severidade e o bom vence na vida. Ou seja, se é certo que há algumas surpresas nas peripécias que os dois protagonizam, já o desenlace é previsível desde o início, pois todo o esquema geral da história é coisa já vista em muitas outras. Há por aqui material rico para o estudo de arquétipos e de relações simbólicas nas histórias que sobrevivem à seleção popular, pressupondo que os Grimm respeitaram o resultado dessa seleção, pelo menos nas suas linhas gerais. Mas literariamente não é conto que me tenha convencido. Achei-o sobretudo bastante olvidável.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Marcelo Galvão: Sonho Ruim

Há muito de cliché nesta história de horror de Marcelo Galvão. A começar pelo protagonista, um médico que vai ver a sua racionalidade abalada pela irrupção súbita do sobrenatural na sua vida, e seguindo por aí fora, por uma série de pormenores e pormaiores que remetem diretamente para uma miríade de outras histórias de outros autores. Exemplo: o ambiente é o Haiti e, naturalmente, a história mete vudu.

Mas a verdade é que Sonho Ruim é uma história bem contada o suficiente para sustentar o interesse mesmo apesar de estar tão amarrada a outras histórias. Lê-se quase como um conto policial: há mortes misteriosas, e o médico é como que um detetive que vai tentar descobrir o assassino. Que este acabe por se revelar um monstro devorador de inocentes é detalhe. Um detalhe fundamental, claro.

Ou seja, o conto não é mau. É um conto razoável que se lê bem. Na verdade é perfeitamente possível que quem não esteja tão atento às referências como eu possa considerá-lo bom. Tem bom ritmo, o enredo funciona. Nada a apontar. Ou por outra, há mais uma coisa que eu queria mencionar.

Quando leio histórias destas vem-me sempre à cabeça uma interrogação para a qual não tenho resposta: estarão os autores conscientes do ataque ao racionalismo que lhes subjaz, ou quererão apenas contar uma boa história que obedeça a uma certa tradição que já vem pelo menos desde o século XIX? Acharão mesmo patética a descrença racionalista no sobrenatural, ou estarão simplesmente a usar um truque narrativo com provas dadas, que abre a possibilidade de criar sem grande esforço um impacto emocional mais intenso nas suas personagens (pois que coisa causará mais impacto do que um abalo em todo o nosso sistema filosófico), e por conseguinte, espera-se, nos seus leitores?

Ainda não consegui perceber, e talvez nuns casos seja uma coisa, noutros outra. Mas a interrogação surge-me sempre; esta vez não foi exceção.

Contos anteriores desta publicação:

Luiz Bras: Virtuais

Deste Virtuais gostei menos do que dos contos anteriores, não necessariamente porque seja um conto pior do que eles (ainda que me pareça que realmente é, o que não implica que não seja bom), mas sobretudo porque regressa a um tema que parece ser muito recorrente nas ficções de Luiz Bras, o que lhe retira parte da frescura — para quem conhece outros exemplos, pelo menos — e portanto do interesse.

É uma história que se passa num futuro bastante próximo, no qual as redes sociais constituem um quinhão ainda superior da vida de todos os dias do que aquele que ocupam hoje. E acompanha a relação entre um homem e uma desconhecida que encontra (ou que o encontra) numa espécie de facebook aditivado. Uma relação repleta de urgência. E sabem que vai haver spoilers, certo?

É que há um problema: a desconhecida diz que está sozinha no mundo. Que todos desapareceram. Que só o conseguira contactar a ele. E pede ajuda urgente porque tem medo de também ela (ou ele) desaparecer como todos os outros. Ele, claro, não acredita... até que acredita. Mas aí é capaz de já ser tarde demais.

Como eu já tinha lido um livro inteiro de Luiz Bras baseado nesta premissa de alguém ficar sozinha no mundo (ou quase), o romance Sozinho no Deserto Extremo, vi este conto mais como uma variação do mesmo tema, ainda que com um substrato algo diferente, do que como obra realmente autónoma. Aqui, no entanto, existe uma crítica e uma ironia que no romance são bastante menos claras. Bras está praticamente a dizer aos seus leitores que se mergulharem demasiado fundo nas redes sociais arriscam-se a desaparecer, a deixar a Terra entregue às baratas. Mas existe também no conto uma ironia secundária que não sei se terá sido inteiramente voluntária: é que a última forma de contacto humano possível no mundo que Bras aqui cria é... uma rede social.

Este é um bom conto, não há qualquer dúvida quanto a isso. Não gostei tanto dele como dos dois anteriores, mas é um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Livros de 2021

Sim, isto vem atrasadíssimo. Gosto de funcionar ao contrário dos outros gajos. Ou então, se calhar, é só o facto de tudo na minha vida estar atrasado, portanto por que raio haveria isto de ser diferente? Se calhar.

Mas mantendo o meu lema de "tarda mas não falha", aí vai.

Em 2021 li pouco. Não há volta a dar-lhe: foi um ano de escassa leitura, que o número de títulos listados abaixo não consegue disfarçar, uma vez que muitos desses títulos correspondem a contos (e a contos bastante breves, muitos deles). Os motivos foram vários, mas o mais importante foi claramente o lento processo de recuperação da perna partida da minha mãe, com tudo o que isso implica de apoio e tempo gasto a fazer outras coisas, seguido pelas minhas próprias chatices de saúde, que não impedem a leitura mas tendem a deixar-me num estado de espírito muito pouco "literário", digamos assim, a que acresce uma série de outros motivos menos importantes individualmente mas que, somados, roubam ainda mais tempo e disposição aos livros.

O objetivo era mais uma vez chegar aos 50 títulos, mas a verdade é que já sabia ao estabelecê-lo que iria ficar bastante longe de o alcançar, a menos que a parte final do ano desse para ler mais. Não deu. E como resultado acabei por ler apenas 27 títulos. 15 desses títulos são de autores lusófonos, todos portugueses à exceção de um brasileiro e um moçambicano, e há ainda dois outros títulos que têm participação lusófona. A maioria, portanto. Do material não lusófono que li, quatro títulos foram lidos nas línguas originais, os restantes em tradução.

A lista completa é a seguinte:

1. Azazel, de Isaac Asimov (contos de fantasia satírica, por vezes com alguns elementos de FC);
2. A Luz Miserável, de David Soares (contos de horror, por vezes com elementos de FC);
3. Buscando la Paz Interior, de José Manuel Martínez Sánchez (misticismo, filosofia, religião, autoajuda, etc.);
4. Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas, org. Jeff Vandermeer, Mark Roberts e João Seixas (contos pseudofactuais, sobretudo fantásticos, sobre doenças inexistentes);
5. Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (novela fantástica infantojuvenil);
6. Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos, de Mário-Henrique Leiria (livros de poesia e de contos de FC e surrealismo);
7. A Conspiração Contra a América, de Philip Roth (romance de história alternativa);
8. Filhos de Duna, de Frank Herbert (romance de FC);
9. Utopia 14, de Kurt Vonnegut, Jr. (romance de FC);
10. Cronicando, de Mia Couto (crónicas e contos, muitos deles fantásticos);
11. Zeimoto Dá Primeira Espingarda aos Japões, de Fernão Mendes Pinto (excerto de crónica);
12. What's Up 2006, de Tammy Plotner (livro de astronomia);
13. Icarus Blues, de Ricardo Dias (conto de FC);
14. O Acordo, de Pedro Pereira (conto fantástico);
15. O Artefacto, de Pedro Pereira (conto de FC);
16. O Caçador, de Pedro Pereira (conto fantástico);
17. O Industrioso SL4V3, de Ricardo Dias (conto de FC);
18. Os Historiadores, de Ricardo Dias (conto de FC);
19. A Faca, de André Alves (conto de FC e horror);
20. Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho (coletânea fantástica e humorística);
21. Contos Românticos, de vários (antologia mainstream e fantástica);
22. É Só uma Piada, de Carlos Silva (conto de super-heróis);
23. /foradosistema, de Rafael Alexandrino Malafaia (conto fantástico com elementos de FC);
24. Ivory Tower, de Bruce Sterling (conto de FC);
25. I, Robot, de Cory Doctorow (noveleta de FC);

Quanto a números de periódico, foram lidos os seguintes:

26. Magazine de Ficção Científica, nº 10 (contos de ficção científica e fantasia);
27. 1000 Universos, nº 1 (contos de ficção científica, horror e fantasia)

Contrariamente ao que tem sido norma dos últimos anos, em 2021 li bastante FC. Dos 27 títulos listados acima, 11 são de FC propriamente dita ou de FC e outra coisa mais ou menos em partes iguais, e outros 5 são predominantemente outras coisas mas contém elementos de FC. Ou seja, desta vez a maioria das minhas leituras incluiu ficção científica de alguma forma, mesmo que esta esteja bastante diluída em outras coisas. Mas como é hábito foram bastante diversificadas, com uma série de outros estilos e géneros, com predominândia do fantástico, a compor o ramalhete.

Em termos de qualidade também foi um ano diversificado. Não houve nenhum livro que me tenha deixado de queixo caído, mas houve um conjunto de nove títulos de que gostei bastante. E não é fácil escolher entre eles os três de que mais gostei: há uns cinco ou seis que podiam perfeitamente ficar no topo da lista. Meio ao calhas (e meio de propósito para falar aqui do máximo de títulos), vou pôr A Conspiração Contra a América de Philip Roth no topo, os Casos do Beco das Sardinheiras de Mário de Carvalho em segundo e I, Robot de Cory Doctorow em terceiro, destronando por pouco Ivory Tower de Sterling.

Só há aqui um livro lusófono, e foi de propósito. Além dos Casos do Beco das Sardinheiras a lista podia perfeitamente conter também os Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos de Mário-Henrique Leiria (muitos "casos" aqui nas melhores leituras do ano) e Cronicando de Mia Couto, e são estas três as melhores leituras lusófonas do ano que passou. Dois portugueses e um moçambicano; desta vez não houve brasileiros lá em cima.

Para fazer um top-3 de leituras com e sem FC só tenho de ir acrescentar mais um título aos já referidos. A Conspiração Contra a América é história alternativa, que pode ser vista como um subgénero da FC, I, Robot é FC pura e dura e os Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos, embora tenham outros textos esquecidos têm casos de direito galático, que não enganam ninguém quanto às suas características ciencioficcionais. Já no que toca às leituras sem FC, sendo obviemnte encimadas pelos Casos do Beco das Sardinheiras e por Cronicando, incluem também Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, rematando um conjunto de melhores leituras integralmente composto por obras pertencentes aos vários ramos das literaturas do imaginário (embora tanto o livro de Mário Henrique-Leiria como o de Mia Couto também incluam outras coisas).

Quanto às piores leituras, escolher as duas piores é fácil: Buscando la Paz Interior, de José Manuel Martínez Sánchez, e /foradosistema, de Rafael Alexandrino Malafaia. E sim, a ordem é esta. Já escolher a terceira pior é bastante complicado, que há uns quantos contos do Fantasy & Co. que estão uns furos acima destes dois títulos mas num patamar muito idêntico entre si. Noutro dia talvez escolhesse outro desses contos, mas hoje escolhi Icarus Blues, de Ricardo Pereira, derrotado ao photo-finish pel'O Acordo.

E assim se encerram as leituras de 2021. Ou não por inteiro, que ainda tenho por escrever umas quantas opiniões sobre material lido ainda no ano passado. Mas já sei o que penso sobre ele, pelo que isto é o resumo definitivo. Para o ano haverá outro resumo destes.

Provavelmente.