quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Como vai aquilo no Ficção científica literária?

Por nenhum motivo em particular, além da simples curiosidade, resolvi dar uma vista de olhos aos autores mais referenciados no Ficção Científica Literária, coisa que já tinha feito por duas vezes (aqui e aqui). Reparo agora que está quase a fazer um ano desde que o fiz pela última vez, o que não deixa de ser giro.

Até este momento, o agregador reuniu 4325 artigos e vai-se aproximando das 30 mil visitas ao ritmo de várias dezenas por dia. Para um tema pouco popular como a ficção científica, especialmente se literária, são números razoáveis, mostrando que existe uma comunidade estabelecida a produzir e consumir conteúdos de opinião, ficção e informação na internet, em especial tendo em conta que o FC Literária não "apanha" nada que seja divulgado apenas através de redes sociais fechadas (como o Facebook, o Goodreads e o Skoob), onde também vai acontecendo bastante movimentação.

Mas o que me interessa mesmo aqui são os autores. E, para comparar com os dois posts anteriores, as regras são as mesmas: autores referenciados 10 vezes ou mais, ordenados do referenciado mais vezes até ao referenciado menos vezes. Entre parêntesis estão as posições anteriores; a primeira é a da primeira lista, a segunda da segunda.
  1. Suzanne Collins tem 87 referências (2|3).
  2. Ray Bradbury tem 85 referências (1|1).
  3. Veronica Roth tem 73 referências (13|8).
  4. Philip K. Dick tem 71 referências (5|2).
  5. George R. R. Martin tem 56 referências (4|4).
  6. Isaac Asimov tem 52 referências (3|7).
  7. Scott Westerfeld tem 48 referências (12|6).
  8. Tahereh Mafi tem 45 referências (-|12).
  9. Orson Scott Card tem 43 referências (-|23).
  10. João Barreiros tem 42 referências (7|5).
  11. Douglas Adams tem 40 referências (6|9).
  12. Arthur C. Clarke tem 37 referências (-|16).
  13. Frank Herbert tem 37 referências (11|10).
  14. Stephen King tem 35 referências (-|25).
  15. Júlio Verne tem 34 referências (9|11).
  16. Roberto Causo tem 33 referências (-|-).
  17. James Dashner tem 32 referências (10|18).
  18. Marissa Meyer tem 32 referências (-|-).
  19. Lissa Price tem 29 referências (-|-).
  20. Richard Matheson tem 27 referências (-|-).
  21. David Mitchell tem 25 referências (-|21).
  22. Justin Cronin tem 25 referências (-|-).
  23. Carlos Orsi tem 24 referências (-|-).
  24. Robert Silverberg tem 24 referências (-|15).
  25. Ursula K. LeGuin tem 24 referências (-|20).
  26. William Gibson tem 24 referências (7|13).
  27. Braulio Tavares tem 20 referências (-|-).
  28. George Orwell tem 20 referências (-|27).
  29. Harry Harrison tem 20 referências (-|14).
  30. Stephenie Meyer tem 20 referências (-|-).
  31. Bruno Martins Soares tem 19 referências (-|-).
  32. Gerson Lodi-Ribeiro tem 19 referências (-|17).
  33. Miguel Carqueija tem 19 referências (-|-).
  34. Octavio Aragão tem 19 referências (-|22).
  35. H. G. Wells tem 18 referências (-|19).
  36. Ian McDonald tem 18 referências (-|-).
  37. Robert A. Heinlein tem 18 referências (-|24).
  38. Ally Condie tem 17 referências (-|-).
  39. Frederik Pohl tem 17 referências (-|-).
  40. H. P. Lovecraft tem 16 referências (-|-).
  41. Teri Terry tem 16 referências (-|-).
  42. Veronica Rossi tem 16 referências (-|-).
  43. Luís Filipe Silva tem 15 referências (-|-).
  44. Bruce Sterling tem 14 referências (-|-).
  45. Cassandra Clare tem 14 referências (-|-).
  46. Catherine Fisher tem 14 referências (-|-).
  47. Kurt Vonnegut tem 14 referências (-|-).
  48. Luiz Bras tem 14 referências (-|-).
  49. Margaret Atwood tem 14 referências (-|-).
  50. Michael Grant tem 14 referências (-|-).
  51. Moira Young tem 14 referências (-|-).
  52. Rick Yancey tem 14 referências (-|-).
  53. Cirilo S. Lemos tem 13 referências (-|-).
  54. Aldous Huxley tem 12 referências (-|-).
  55. Peter David tem 12 referências (-|-).
  56. Beth Revis tem 11 referências (-|-).
  57. Edgar Rice Burroughs tem 11 referências (-|26).
  58. Lauren DeStefano tem 11 referências (-|-).
  59. Lisa Tuttle tem 11 referências (-|-).
  60. Carlos Silva tem 10 referências (-|-).
  61. Hugh Howey tem 10 referências (-|-).
  62. Joe Haldeman tem 10 referências (-|-).
  63. Pedro Cipriano tem 10 referências (-|-).
  64. Robinson Wells tem 10 referências (-|-). 
Salta à vista, desde logo, que a quantidade de autores referenciados é muito maior. Isso deve-se em parte a autores que têm vindo a acumular lentamente referências desde o arranque do site, chegando agora ao limiar das 10, e em parte a fenómenos de moda e/ou a lançamentos muito celebrados pela comunidade.

Também salta à vista a preponderância que as distopias juvenis continuam a ter. Não só Suzanne Collins conseguiu a proeza de arrebatar a Bradbury o primeiro lugar, fruto em grande medida da adaptação da sua trilogia para o cinema, como vários são os outros autores do subgénero (Roth, Westerfeld, Mafi, Dashner) que já acumularam um conjunto de referências assinalável. A ajuda das adaptações também se faz sentir nas grandes subidas de King e, sobretudo, Card.

Entre os lusófonos, descem todos os que já se encontravam na lista, embora haja também algumas chegadas novas com valores interessantes, em especial entre os brasileiros. Em parte é natural: autores lusófonos não têm as ajudas do cinema e da TV para lhes insuflar a popularidade. Em parte, contudo, não é — além da falta de sustentação da publicação da maioria, que ou não publica nada durante longos períodos ou se limita a diluir-se em publicações coletivas que raramente geram referências individualizadas, parece também existir uma falta de sustentação no interesse que despertam, pelo menos entre a pequena parcela dos leitores que emite opinião ou noticia lançamentos. Eis algo, decididamente, a mudar.

Ah, e finalmente aparece gente da FC madura contemporânea na lista. Não era sem tempo (bem, para ser justo, Gibson e Card já se encontravam na lista anterior, embora ambos devido a livros editados há já bastante tempo).

Em geral, estas olhadelas periódicas ao que é agregado no FC Literária, que talvez devessem mesmo ser mais frequentes, parecem-me muito interessantes. Não que o que revelam seja muito surpreendente — basta estar atento aos blogues para se ter uma noção razoavelmente correta das oscilações de popularidade do autor A ou B — e é bom ter em mente que isto não é uma amostragem aleatória e está sujeito a diversos condicionalismos que não permitem que estes apanhados tenham grande relevância estatística. Mas apesar de tudo isso julgo que olhar para estes números pode ajudar a compreender muita coisa.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Será recomendável, mandar assim embaixadores às pessoas?

O Goodreads tem um serviço interessante para quem quer promover um livro: pode-se recomendá-lo a amigos ou contactos, e essas recomendações permitem que os que se deixarem interessar adicionem o livro a listas ao estilo de "quero ler" ou "vou comprar" ou até mesmo "coisinha apetitosa do papá."

Quando publiquei Por Vós lhe Mandarei Embaixadores depressa adicionei o livro ao Goodreads e foi com igual velocidade que senti vontade de fazer uso desse serviço de recomendações. No entanto não o fiz, pelo menos por enquanto.

Porquê?

Porque tenho estado a tentar decidir a que tipo de leitor recomendaria este livro.

Provavelmente, não serão poucos os marqueteiros que chegados aqui pensariam: Mas que está este parvalhão a dizer? Como quer vender livros assim? É claro que tem de o recomendar, caraças! No entanto, eu não consigo deixar de duvidar. De que me serve recomendar o livro a alguém que sei à partida que não vai gostar dele? Que utilidade teria fazê-lo? Vender mais livros? Mas para que quero eu vender livros com recomendações inadequadas, correndo assim o risco de alienar prováveis futuros leitores de outros livros meus, dos quais poderiam gostar bastante mais do que deste?

Sim, que eu não escrevo só maluquices...

E assim pensando, cheguei à sequência lógica desta cadeia de dúvidas: ao certo quem teria mais hipóteses de dar por bem empregues as horas gastas a ler este romance?

E cheguei a uma espécie de resposta.

Este romance foi escrito para mim, para me divertir a escrevê-lo. E divertiu. Mais: continua a divertir-me, anos mais tarde, apesar de já o ter relido tantas vezes, à conta das múltiplas revisões que lhe fiz, que quase seria capaz de recitá-lo (bem, há aqui um ligeiríssimo exagero... coisa pouca). Portanto, julgo que há uma elevada probabilidade de que quem se divirta com aquilo que me diverte leia isto com um sorriso nos lábios e talvez até vá soltando de vez em quando umas gargalhaditas. Especialmente se for como eu e, ao olhar para o cerimonial mais ou menos pomposo que está inerente a boa parte da política, o ache fundamentalmente ridículo. Especialmente se acha que boa parte das declarações solenes que por aí se fazem não passam de chachadas sem pés nem cabeça. Especialmente se consegue ver os interessezinhos escondidos por trás dos "valores" de que tanto hipócrita se faz paladino. Especialmente se tiver em si um núcleo de irreverência e subversão. Especialmente se algures no corpo tiver uma costelinha anarca. E muito em particular se costuma achar piada às maluquices que vou debitando ou partilhando nas redes sociais (aqui no blogue nem tanto).

O meu problema quando toca a fazer recomendações é não saber, na maioria dos casos, se a pessoa a quem eventualmente o recomendaria partilha deste tipo de atitude. Desta forma de encarar a parte mais solene e sisuda do mundo como uma grande e mascarada farsa. Daí a hesitação.

Se soubesse que sim, pois recomendaria sem reservas. O livro não será nenhuma obra prima literária, que não é (eu próprio já escrevi coisas literária e conceptualmente mais fortes do que esta) e de resto nunca pretendeu ser, mas é um livro escrito com correção no uso do português — a que, diga-se de passagem, a versão que se mantém online não faz inteira justiça; a do livro físico é francamente melhor — e está carregadinho de referências, piscadelas de olho, subcaricaturas da grande caricatura que nele fiz. Tantas que duvido mesmo muito que alguém as apanhe todas à primeira.

Se não, se não têm sentido de humor ou o têm mas muito diferente do meu, se até gostam de pompa e circunstância, se acham os políticos gente cheia de qualidades, se acham demasiado parva a ideia de terem um ET a ventosar por aí sem que ninguém lhe ligue peva, se consideram um crime de lesa-cultura-pátria que se brinque com Os Lusíadas, se, enfim, acham o respeitinho muito bonito, então aconselho-vos a passarem ao largo. De certeza quase absoluta não irão gostar do meu livrinho. Não percam tempo nem dinheiro com ele. Esperem pelo próximo, que talvez seja mais a vosso gosto.

E isto, reparo agora, deixa-me precisamente na mesma quanto a recomendar, ou não, o livro à maioria do pessoal a que estou ligado lá pelo Goodreads.

Ora bolas.

Já sei! Vou recomendá-lo ao Artur Coelho. Boa! Vamos lá então a ver onde é q... olha, ele já o leu e tudo?! Humpf! Assim não vale.

Adendinha melhor informada - Pois calha que sim, o Goodreads tem um sistema para recomendar livros às pessoas, mas não, os autores não podem usá-lo para recomendar os próprios livros. Desconhecia este piqueno detalhe. O que vale é que a ideia de usar o Goodreads para recomendar o meu livrinho à malta não está no centro deste post. Imaginem se estivesse. Imaginem só.

Lido: Contos Fantásticos

Contos Fantásticos (bibliografia) é uma pequena antologia que esconde por trás desta designação razoavelmente genérica (embora adequada) uma antologia de contos clássicos de horror. Uma boa antologia de contos clássicos de horror, diga-se, pois não só é sólida no que toca à qualidade das obras que a compõem, em geral elevada, como também o é em termos temáticos.

Paradoxalmente, foi aí mesmo que ela falhou comigo. O problema não será tanto desta antologia em concreto, há que dizê-lo. O problema é o cânone.

Há quem adore o cânone, enchendo a boca com obras incontornáveis, leituras obrigatórias, o diabo a quatro. Mas eu, confesso, não pertenço a esse grupo, e quanto mais leio mais me afasto dele. Por vários motivos, alguns dos quais esta antologia serve lindamente para ilustrar.

O principal problema de que o cânone enferma é tornar-se limitativo. Limitativo na edição, por exemplo, fazendo com que se reeditem sucessivamente as mesmas obras uma e outra vez e outra ainda. Para quem lê pouco, isso é ótimo: permite-lhe tomar facilmente contacto com o que de melhor, segundo gerações sucessivas de leitores e literatos, se foi produzindo num determinado campo. Para quem lê um pouco mais, no entanto, já não é, porque vai chegar inevitavelmente a um ponto em que encontra as mesmas obras em edições diferentes. Como aqui.

Onde esta antologia falhou comigo foi na completa ausência de novidade. Nem uma única, para amostra. Já tinha lido todos estes contos em outras edições. É certo que eles não são muitos, mas a verdade é que se a seleção não se tivesse restringido ao cânone o resultado provavelmente teria sido bem mais interessante, não me limitando a releituras ao mesmo tempo que mantinha a qualidade razoavelmente inalterada.

Pois esse é o segundo aspeto em que o cânone é limitativo. É que não há, geralmente, diferença de monta em termos de qualidade entre as obras que pertencem ao cânone e as melhores obras que não pertencem. Poder-se-ia construir com estas um cânone alternativo tão abundante e praticamente tão bom como o verdadeiro. E no entanto, a ideia de que o cânone é o ápice da produção cultural, é o necessário e (pior) o suficiente para arrancar uma pessoa às trevas da bronquice e transformá-la num intelectual, está de tal modo disseminada que provoca um forte esquecimento relativo de muitos trabalhos, e até alguns autores, cheios de qualidades.

O cânone é, pois, e de uma forma muito concreta, um cliché. E todos sabem como é vantajoso tentar escapar aos clichés, não é verdade? Ou pelo menos disfarçá-los, usá-los de forma criativa.

Voltando a esta antologia, não foi isso que aqui aconteceu. Com outras obras de outros autores, ou até dos mesmos, estes Contos Fantásticos teriam provavelmente recebido da minha parte uma opinião mais favorável. Mas quem os selecionou ficou-se pelo cânone, pelo cliché, e o resultado sofreu com isso.

Eis o que achei de cada uma das três histórias, ou pelo menos eis links para o que já antes tinha achado delas:
Este livro foi comprado.

Lido: O Fio e as Missangas

O Fio e as Missangas é mais uma das poéticas historinhas de Mia Couto. Esta, contrariamente a muitas das anteriores, não é uma história de mulheres, embora continue a ter nas mulheres boa parte do que a faz mover. Aqui, o protagonista é um homem, casado mas mulherengo em extremo. Segundo ele próprio diz, ele é o fio, as mulheres são as missangas. Mas a coisa é mais complexa do que isso, porque há também uma relação complexa entre o homem e sua mãe. Tudo em menos de três páginas.

Além da poesia do texto, é nesta capacidade que Mia Couto tem de fazer retratos matizados e contar histórias complexas em meia dúzia de linhas que reside muito do interesse destas histórias. Há nelas brilho. Mesmo nas que não são tão boas como outras.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Lido: Histórias Fantasmagóricas

Histórias Fantasmagóricas (bibliografia) é uma coletânea de horror de Hugo Rocha assumidamente derivativa. Ou seja, é o próprio Hugo Rocha que afirma que um dos seus principais objetivos ao escrever estas histórias, tanto por moto próprio como por pedido editorial, foi como que importar para a literatura portuguesa o conto de fantasmas gótico que tanto sucesso fez décadas mais cedo — e, na verdade, continua ainda hoje a fazer em certos círculos — em outras latitudes, e muito em particular em países anglófonos.

E, de facto, essa qualidade derivativa, de emulação de exemplos alheios, é muito evidente na maioria das quinze histórias que compõem o livro, pese embora a tentativa, também ela deliberada (e afirmada) de como que aclimatar a planta transplantada, enraizando-a no novo clima. Quase todas as histórias se passam em Portugal, e as exceções ou se ambientam em geografias próximas, geográfica ou culturalmente, ou têm personagens portuguesas.

Não me parece que se trate de um livro realmente bom. Em parte por causa dessa natureza derivativa, mas também porque Hugo Rocha recorre a um estilo algo estranho. A sua prosa é labiríntica, enovelada, repleta de vírgulas, com frases tão retorcidas que por vezes mal se percebe onde começam e onde acabam. Para que uma prosa assim resulte em algo agradável de ler é necessário que seja produzida por um grande escritor, coisa que Hugo Rocha não é. É um escritor com um vocabulário rico. É um escritor que sabe desenvolver e estruturar histórias, mesmo que nesse desenvolvimento e estruturação emule exemplos estrangeiros. Mas está longe de ser um grande escritor.

Por outro lado tampouco me parece que este livro seja mau. Sim, é derivativo, mas a derivação é em geral bem feita. As histórias fantasmagóricas são credíveis enquanto histórias ambientadas nas nossas geografia e cultura, e por vezes são até mais do que isso. Por vezes Rocha mergulha mais fundo, aborda temas polémicos ou sensíveis, revelando, não sei bem se deliberadamente se por acidente, as preocupações que tem quanto à sociedade repressiva que o rodeia (o livro é de 1969, em plena ditadura e com guerras coloniais em curso, por mais que se falasse na época de primavera), e as contradições de si mesmo enquanto homem do seu tempo. E foi precisamente isso que mais me interessou durante a leitura deste livro, e foi em boa medida por isso que acabei por gostar dele. Por isso e porque entre as histórias que são na sua maioria medianas também se encontram algumas realmente boas.

Eis o que achei delas:
Este livro foi comprado.

Lido: Ponte Frágil Sobre o Nada

Ponte Frágil Sobre o Nada (bibliografia) é uma noveleta de ficção científica de Maria Helena Bandeira, cujo grande ponto forte é a forma como lida com realidades divergentes. O ambiente é fortemente distópico, embora a princípio não pareça. A princípio, aliás, tudo parece muito estranho. A protagonista inicia o conto como uma mulher preocupada com o filho, deficiente, porque, ao contrário do que é norma na sua sociedade, só consegue comunicar falando. A ideia de que algo tão humanamente fundamental como a linguagem pode ser encarado como uma deficiência parece perfeitamente absurda. Mas aos poucos vamos percebendo, tanto nós como a própria protagonista, presa de uma luta entre uma seita religiosa que a aprisiona numa realidade aparentemente utópica, e um grupo de amigos, rebeldes, que tenta resgatá-la, procurando substituir essa realidade por outra, mais sólida, mais palpável, mais real. Na verdade, a mulher é mais que presa da batalha: é campo dessa batalha.

São claras as influências de Matrix, e do ciberpunk em geral, mas a noveleta segue um caminho diferente e é em boa parte nisso que reside o seu interesse. Nisso e na eterna luta das mães para proteger os filhos, provavelmente o mais arreigado de todos os instintos da espécie humana, aqui numa versão algo diferente. Pena algumas gralhas que chegaram à edição final, e pena também alguma hesitação de ritmo e estilo que não deixam que este conto atinja todo o seu potencial, deixando-o algures entre o razoável e o bom.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Lido: O Centésimo em Roma

O Centésimo em Roma é um romance histórico de Max Mallmann passado, como é fácil perceber, na antiga Roma. Mas a antiga Roma foi um sítio vasto, tanto territorial como temporalmente, portanto é necessário dizer mais alguma coisa para situar o romance. O tempo é o século I depois de Cristo, embora na época ainda não se contasse o tempo assim. Nero incendiara a cidade não muito tempo antes, e as ondas de choque da sua liderança ainda se sentem, altaneiras e espumejantes. O lugar, esse, é Roma, a própria Cidade Eterna, onde o cristianismo vai alastrando clandestinamente, ao mesmo tempo que se sucedem imperadores cada um mais enlouquecido que o outro e tropas romanas, apoiantes de imperadores alternativos, ameaçam marchar contra a capital do império.

No meio de toda esta conturbação surge-nos Desiderius Dolens, o principal protagonista. Um cínico contraditório, que ora se mostra um brutamontes sanguinário, ora um amigo verdadeiro. Um plebeu, nado e criado num dos bairros pobres de Roma, movido por uma ambição de toda a vida: a de sair de lá. Um soldado das legiões com fama de ter massacrado uma aldeia inteira de germanos (o que lhe deu um cognome que tolera a contragosto, por motivos que aos poucos se vão compreendendo) e que volta para Roma casado com uma germana. Que ama, embora continue a fazer visitas a prostitutas. Um homem que tenta a todo o custo manter-se são no meio da loucura dos tempos, em boa medida porque é filho de pai louco. Um homem que é centurião de uma espécie de corpo policial romano, mas que verdadeiramente desejava ser cavaleiro.

É como se os tempos conturbados tivessem o seu reflexo na vida conturbada do protagonista e das vidas com que se cruza. A família, os camaradas de armas, os nobres e os senadores a cujo grupo sonha vir um dia a pertencer. Uma galeria de personagens com mais cómico que trágico, embora várias sejam as que se mostram bastante palpáveis, com bastante mais que a mera superfície típica das personagens secundárias e/ou humorísticas.

O livro é francamente bom. Divertido, quase sempre, por vezes algo comovente, está estruturado como um relato duplo dos tempos e dos acontecimentos. Mallmann afirma basear a história de Dolens num relato contemporâneo dos factos, que teria chegado até hoje, chamado Vita Dolentis (A Vida de Dolens, na última flor do Lácio), e escrito por um tal Quintus Trebellius Nepos. Obviamente, nem este nem aquele são verdadeiros, o que não impede o autor de intercalar fragmentos do texto de Nepos na sua interpretação ficcional dos acontecimentos neles descritos. Nepos, ao mesmo tempo cronista e personagem, é um filho de família nobre de Roma, letrado e coxo e por esses motivos relegado a subalterno de Dolens, com quem tem uma relação algo atribulada, especialmente a partir do momento em que alguém lhe mata o pai e ele fica obcecado com a descoberta do ou dos assassinos, o que tem consequências nefastas não só para si próprio (provavelmente terá acabado por gostar do serviço de limpeza às latrinas, tantas foram as vezes que lá foi parar) como para Desiderius Dolens, que por causa disso acaba por ter a surpresa da sua vida. Francamente desagradável.

O livro, já disse?, é francamente bom. Carregado de ironia, cheio de paralelismos não muito bem camuflados entre as realidades políticas romanas e as contemporâneas e até com uma hilariante partidinha de (uma espécie de) futebol à mistura, ou não fosse o autor brasileiro, bem pesquisado e por isso credível enquanto recriação histórica (pese embora alguns anacronismos), bem escrito, com um sem-fim de capítulos muito curtos que, não raro, nem a uma página chegam, o que contribui para uma leitura quase saltitona de tão ágil, este foi dos melhores livros que li no ano passado... depois de ficar quase três anos à espera de vez aqui nas minhas pilhas centenárias. Depois de o ler, tive pena de o ter feito esperar tanto.

Este livro foi-me oferecido pelo autor.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Lido: Léxico às Fatias - Parte III

Léxico às Fatias - Parte III é, claro, a sequela da sequela de Léxico às Fatias - Parte I, o que significa que, juntando as três, se fica com uma trilogia de Léxicos às Fatias. Ou pelo menos com três fatias de léxico. E sim, o que disse sobre as outras duas posso também dizer sobre esta terceira (e última), mais 20 frases de uma ou duas linhas cada que, com frequência, podem ser vistas como microcontos de direito próprio, alguns bastante interessantes, mas muito poucos com alguma espécie de piada. Se a ideia era terem graça, o falhanço é bastante grande; se era serem minúsculos exemplos de narrativa, em grande medida subentendida, sim, isto é bom.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Lido: O Sangue de Âmbar

O Sangue de Âmbar (bibliografia) é um romance de fantasia de Roger Zelazny, parte da sua série de Âmbar, que...

Esperem. Vou começar de outra forma.

Por vezes acontecem destas, suponho, a todos os leitores. Alguém, animado das melhores intenções, sabendo que gostamos de ler, e tendo uma ideia mais ou menos vaga sobre o tipo de livro que gostamos de ler, decide comprar um que, acha, será ao nosso gosto e fazer dele oferta. Por vezes acerta. De outras, mete os pés pelas mãos.

Pois comigo aconteceu com este livro. Alguém, sabendo que eu gosto de ficção científica, e sabendo que a Argonauta é uma coleção de ficção científica, achou que este livro seria mesmo a coisa ideal, e pimba, toma lá! Pois calhou que o livro é de fantasia, não de ficção científica. E, pior, calhou que é, conforme a forma de os contar, ou o sétimo da série de Âmbar, ou o segundo da segunda subsérie em que esta se divide. E não, ao contrário dos romances de Bas-Lag de China Miéville, os de Zelazny não podem ser lidos em qualquer ordem.

Eu podia, é certo, ter arranjado o primeiro e começado por aí. Mas, como tinha nas mãos este livro, achei que, já agora, podia perfeitamente lê-lo primeiro para ver se valeria a pena comprar o resto da série.

Foi má ideia.

O universo criado por Zelazny parece ser de uma fantasia algo mestiça, que brinca com os conceitos dos mundos paralelos entre os quais se encontra o nosso, muito caro da FC, mas alguns dos quais — os principais nesta história — são movidos a magia. Parece também ser veículo para Zelazny fazer uma série de homenagens a outras obras da literatura fantástica, integrando os mundos ficcionais destas no seu multiverso, e/ou deixando referências a elas espalhadas por aqui e por ali. Parece.

E parece porque este livro é uma salganhada tal que não se percebe realmente o que se está a passar. O protagonista é perseguido não se sabe bem por quem e não se sabe bem porquê, escapa-se de sucessivas tentativas de assassínio nem ele sabe bem como (mas com muito deus ex machina à mistura, aparentemente), e depois a coisa acaba não se percebe bem porquê, tudo isto com menos profundidade do que em muitas histórias de banda desenhada. Falta, obviamente, informação indispensável que deverá constar de volumes anteriores da série, mas temo que seja mais do que isso. Afinal, quem pegar em algum livro intermédio de séries boas de fantasia pode não perceber uma série de pormenores de enredo e motivações de personagens, mas ao menos encontra nestas alguma solidez e naquele arcos de história com a sua lógica própria e que servem para dar forma a cada parte da série, mesmo na falta de informação importante. Nota-se que há neles profundidade, mesmo que não consigamos abarcá-la por completo.

Aqui, longe disso. Ler este livro isoladamente é quase como tentar entender um texto escrito por algum dos proverbiais macacos sentados à frente de uma máquina de escrever.

É então um mau livro? Devido à falta de informação sobre o resto da série, reluto em dizê-lo assim taxativamente. Mas acho que posso afirmar com segurança que não se trata de um bom livro. E parece-me que a própria série pouco interesse terá. Eu, com toda a certeza, não fiquei com grande curiosidade pelos restantes, embora provavelmente acabe mais cedo ou mais tarde por comprar o primeiro para ver se a impressão que este me deixou se confirma ou não.

Este livro foi oferecido por gente amiga e bem intencionada. É pena não ter gostado da oferta, mas agradeço-a na mesma.

Lido: O Padre

O Padre, de Luísa Costa Gomes, é um monólogo teatral que põe um padre muito betinho de Cascais, muito amaricado, a falar com deus-nosso-senhor, tentando negociar com o divino uns determinados pormenores sobre prazeres carnais, pecados, piedosas mentiras homilianas, confissões e casamentos. E eu, finalmente, ao fim já não sei de quantas tentativas, lá consegui gostar de um texto de Luísa Costa Gomes. Não muito, mas sim, gostei. Este texto divertiu-me, em boa medida por imaginar, ao lê-lo, um padreco muito, muito maricas, cheio de ademanes, boquinhas e arrebiques. Não está no texto, propriamente, mas ele propicia-se. Não chegou ao riso, mas chegou ao sorriso aberto. Já é qualquer coisa.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Lido: The Scar

The Scar é um romance de China Miéville, o segundo da sua série passada no mundo fictício de Bas-Lag, onde uma quantidade apreciável de espécies inteligentes convivem, nem sempre pacificamente, e a vida é vivida em contacto direto com uma espécie de magia mais ou menos científica, conhecida como taumaturgia (thaumaturgy) e uma tecnologia meânica baseada na maquinaria novecentista, e por isso com grandes pontos de contacto com o steampunk.

Com tal ponto de partida pode-se escrever histórias de diversos géneros, consoante o tipo de abordagem que é feita. As histórias de Bas-Lag poderiam ser uma espécie de fantasia steampunk à semelhança de diversos livros e contos recentes, que colam a histórias tipicamente de fantasia, urbana ou não, uma camada steampunk que raramente ultrapassa a superfície da simples estética. Julgo que, mesmo sem ter (ainda) lido os outros romances (eles são independentes, portanto podem ler-se em qualquer ordem), posso afirmar que Miéville não é isso que faz. Pelo contrário: não só a maquinaria pseudovitoriana, mas sobretudo a sociologia que lhe está associada, o capitalismo desenfreado e exploratório, a forma complexa, intrincada e muitas vezes como que suja de óleo ou ferrugem como tudo é retratado enraizam-se profundamente nas mais puras nascentes do steampunk. A parte fantasiosa, sendo embora igualmente central, é tratada quase cientificamente; afinal, não é por acaso que não existe propriamente magia, mas sim taumaturgia, e que esta é retratada como uma disciplina técnica com os seus códigos próprios. E que criaturas que Miéville vai muitas vezes buscar ao horror possuem também nestes seus livros uma solidez muito pouco sobrenatural. Pelo menos neste livro, mas tudo isso constitui uma parte tão fulcral da estruturação do seu mundo que muito me surpreenderia que nos restantes fosse diferente.

E ainda bem que assim é.

A história de The Scar passa-se inteiramente no mar. Bellis, a protagonista, é uma neocrobuzonita (trocando por miúdos: uma cidadã de New Crobuzon, cidade-estado que é uma das principais potências de Bas-Lag e o local onde se desenrolam os outros dois romances da série) que foge da cidade rumo a uma colónia noutro continente porque pensa estar a ser perseguida pelas autoridades. Mas essa viagem é interrompida quando o navio em que segue é atacado por piratas, que o levam, e a toda a tripulação, passageiros e prisioneiros até aí a caminho do desterro, para um lugar extraordinário: a cidade flutuante de Armada, livre e pirata, composta por gerações e gerações de navios capturados e alterados para se fundirem com a cidade. Aí, Bellis, naturalmente revoltada com a sua condição de cidadã à força (e, pelo menos a princípio, de segunda) de Armada, com a lealdade ainda presa à sua pátria, vai ser ao mesmo tempo espetadora e catalizadora de uma série de acontecimentos que vão levar toda a cidade aos mais estranhos confins dos mares de Bas-Lag: a scar a que o título se refere, precisamente.

O livro é brilhante. Escrito com uma prosa de grande qualidade, em que tudo é descrito com uma tal profusão de pormenores, com uma tal texturização, que confere solidez e realidade mesmo às coisas mais extrordinárias, com um grupo razoavelmente numeroso de personagens, as mais importantes, também elas de grande solidez, é daqueles romances que como que abrem portais e sugam o leitor para as suas próprias realidades. Tudo é credível, por incrível que seja. Tudo é verosímil, por mais inverosímil que possa ser. E a história, sempre movida a mistérios por mais que ziguezagueie pelos vastos oceanos de Bas-Lag, em que o esclarecimento de um só serve para criar novas perguntas, nunca perde o interesse. Pelo contrário. As quase oitocentas páginas passam quase sem se dar por isso.

E além disso é um livro com conteúdo. É um livro sobre a identidade, sobre o patriotismo, sobre a lealdade. É um livro sobre a manipulação e as obsessões. É um livro sobre o amor, os sentimentos que não são propriamente amor mas andam por perto dele, e as coisas que por esses sentimentos somos levados a fazer. É também um livro sobre perda (e são múltiplas as perdas que nele têm lugar) e superação da perda. E é, ainda, um livro sobre informação, sobre o seu valor, sobre o perigo que pode advir quer da sua falta, quer da sua posse.

Este é dos tais livros que o Jorge tradutor adoraria traduzir. Seria um desafio: não se trata de um romance fácil. Mas também seria um prazer. Editoras portuguesas, editem este livro, façam esse favor aos vossos leitores. E passem-mo para as mãos.

Prometo aqui solenemente tratá-lo bem.

Este livro foi comprado.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Lido: A Vinha

A Vinha é um conto de horror de Kit Reed que faz lembrar as histórias da velha série Twilight Zone, em especial no tipo de ambiente que é criado. Tudo gira, como seria de esperar, em volta de uma vinha. Mas não uma das vinhas que estamos habituados a ver espalhadas pelos campos deste nosso país vinícola. Esta é uma árvore gigantesca, que ocupa por completo o espaço disponível no interior de uma estufa e cujas raízes de estendem para fora desta, pelos terrenos em redor, impedindo que neles cresça seja o que for. Uma família, os Baskin, tem como missão de vida tratar da vinha, e não é em vão que falo aqui em "missão de vida". Na verdade, o principal motor do conto é a progressiva descoberta de até que ponto esta missão é realmente uma missão, de até que ponto as vidas deles estão, mais que entrelaçadas à da vinha, sujeitas a ela. O conto está bastante bem construído e é francamente inquietante, ainda que o seu desenrolar e desfecho não seja propriamente imprevisível. Mas sim, é um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Lido: O Nome Gordo de Isidorangela

O Nome Gordo de Isidorangela, outro pequeno conto de Mia Couto, regressa uma vez mais ao tema da mulher, mas aqui de uma forma diferente. Ambientado nos tempos do Moçambique colonial, o protagonista e narrador é um rapaz burguês, filho de um mulato, que narra a descoberta de um segredo. Este tem forma, corpo e nome. Uma forma redonda, um corpo obesíssimo e o nome de Isidorangela. Mais: também tem parentescos. Filha do presidente da câmara, por quem o pai do narrador nutre uma admiração ostensiva, a rapariga é no entando posta de lado por todos devido à gordura. Até que acontece um convite e uma visita.

É mais um bom conto, e desta vez mais a meu gosto por não "abusar" da poesia, mantendo-a no entanto presente, numa história que não parece até à reviravolta final mas está carregadinha de ironia e que trata com uma subtileza de passos de pena a questão racial em tempos de colonialismo. Gostei bastante.

Contos anteriores deste livro:

Lido: O Nevoeiro que Desvendou Realidades

O Nevoeiro que Desvendou Realidades (bibliografia), de Sofia Vilarigues, é um conto de realismo mágico bastante interessante e bastante bem escrito, com um ponto fraco: os apartes entre parêntesis. Estes foram muito criticados, e houve até quem os achasse suficientemente irritantes para estragar o conto. Pessoalmente, não sou dessa opinião, embora concorde que quebram o ritmo narrativo, porque acho que pelo menos alguns são úteis para melhor estabelecer o ambiente e mesmo, até certo ponto, fazer avançar o enredo. Serão demasiados? Provavelmente sim. E sim, é provável que o conto ficasse melhor se fossem menos ou a informação que contêm fosse dissolvida no texto propriamente dito, mas este continua a parecer-me suficientemente forte para resistir bem.

A história desenrola-se numa ilha, onde vivem as duas últimas falantes de uma língua antiga, que aparentemente se liga, e as liga, a uma magia insular muito própria. É quando o neto de uma destas velhotas chega à ilha que um estranho nevoeiro sobre ela cai e desencadeia uma série de acontecimentos que o vão levar a tomar contacto com as características próprias daquele lugar. A história é interessante, com longínquas ressonâncias de Garcia Márquez ou de certas obras de Ursula K LeGuin (uma, em particular, veio-me à mente: Tembreabrezi), um fundo ecológico muito forte, e uma exploração interessante da velha ideia da ilha enquanto pequeno mundo isolado do mundo maior que fora dela se estende. E é dos contos mais bem escritos de todo o livro, embora talvez não dos melhores por causa do excesso de apartes.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 5 de janeiro de 2014

Lido: O Homem do Talho

O Homem do Talho é mais um pequeno texto de José Alberto Braga, e aqui a palavra "texto" aplica-se com mais propriedade do que em muitos dos outros. Nele, Braga discorre sobre o tema que o título indica, com a habitual profusão de trocadilhos e ironias mais ou menos nonsensuais, aproximando-se aqui e ali de um humor negro a que há quem chame horror (ou horrir), o que se compreende dado o talhante lidar com carnes e objetos cortantes. Tem o seu interesse, sim; quando mais não seja por ser um texto mais elaborado do que as listas de frases de que Braga tanto parece gostar. Não me parece que seja bom, note-se (é um pouco óbvio em demasia), mas pelo menos dá para ir lendo de sorrisinho razoavelmente aberto.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 4 de janeiro de 2014

Lido: Porque é que:

Porque é que: (sim, com dois pontos e tudo) é mais um texto de José Alberto Braga composto de pequenas frases independentes, como tem sido frequente encontrar ao longo deste livro. Aqui, mais que frases, são perguntas. Perguntas mais que vagamente caliméricas, de alguém que sente que o universo conspira contra si e se interroga por que motivo "quando chega o elevador está sempre a subir", e coisas semelhantes. Com a qualidade de refletir algo que terá já cruzado por vezes a mente de quase toda a gente, mas também com muito pouca graça. E nem se pode avalar a coisa do ponto de vista literário, porque literatura é coisa que aqui simplesmente não existe.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Cinema & Crítica

Cinema & Crítica é mais um dos textos satíricos de José Alberto Braga, este com alvo bem definido: a crítica de cinema. Nele, Braga descreve sucintamente quatro filmes que ele próprio inventa (um dos quais de ficção científica, não que isso tenha grande importância) e depois arvora-se em crítico-tal-qual-os-críticos-escrevem-nos-jornais, e disserta, também sucintamente. O absurdo é grande, o nonsense é muito, mas também é tudo bastante óbvio, especialmente porque Braga faz anteceder a sua lista de filmes de uma introdução em que, basicamente, explica ao que vai. E boa parte da piada que o resto poderia ter perde-se logo aí.

Textos anteriores deste livro:

Lido: (sem título)

Falar de textos sem título tem sempre aquela dificuldade típica de chamar gente sem nome. Ou mais. Afinal, as velhas fórmulas do "ó coisinho" ou "ó pá", que acabam por desenrascar quando o "coisinho" não tem nome, aqui não resultam. O coiso não é gente, logo não atende.

Enfim, este texto sem título é uma espécie de artigo enciclopédico sobre Portugal, seguido de anedota, também sobre Portugal, que Luísa Costa Gomes escreveu e fez publicar há uns anos que já vão para o largo na revista Ler. Artigo piadético, está bem de ver, pois de humor trata o livro em que se inclui. Mas, francamente? Estes exercícios de cascar no ceguinho Portugal são, desde Eça, dos clichés mais surrados da intelligentzia portuguesa (e não só - qualquer zé de qualquer tasca desanca no país com gosto, verve e bafo avinhado) e, como todos os clichés, ou são muito bem utilizados ou desembocam em bocejo. Aqui, o cliché não está suficientemente mau para dar em bocejo, mas não chega ao sorriso bocejante. Na verdade, pouco passa do bocejo ocasionalmente sorridente. A anedota ainda é capaz de ser a melhor parte por ser aquela que melhor consegue escapar à banalidade.

Não é mau, entenda-se — afinal, ainda consegue fazer esboçar uns sorrisinhos, por via de alguns pormenores bem conseguidos, além de vir escrito com competência. Mas está longe de ser bom, parece-me. E ainda não foi desta que gostei de um texto da Luísa Costa Gomes.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Lido: Reserva de Sementes

Reserva de Sementes é um conto de ficção científica de Frank Herbert, passado num planeta distante, onde uma colónia humana luta desesperadamente pela sobrevivência mais ou menos contra um mundo que parece determinado a fazê-la desaparecer e do qual não tem possibilidade de fugir. O protagonista é, numa expedição cheia de cientistas e técnicos, um mecânico tornado pescador, uma das pessoas menos preparadas academicamente de toda a colónia, se não mesmo a pessoa menos preparada academicamente de toda a colónia. No entanto, ele possui algo que falta aos outros: uma noção empírica, dir-se-ia até quase instintiva, do comportamento dos seres vivos da zona em que a colónia se instalara e até das relações ecológicas estabelecidas no planeta e entre este e o corpo estranho nele enxertado que a colónia constitui.

Não é um conto particularmente bem escrito (ou então sou eu que continuo a não gostar do estilo do homem) e nem sequer me pareceu um conto lá muito bem feito no que toca ao enredo e à construção da história. Mas é um conto muito característico de Herbert na consciência ecológica, invulgar para a ficção científica da época em que foi escrito, e isso faz dele um conto muito mais contemporâneo do que muitas coisas escritas mais tarde. A sobrevivência humana num planeta pouco preparado para lidar com os humanos está muito na ordem do dia... mesmo no planeta em que os humanos nasceram. Tudo somado, este é um conto razoável em termos literários e muito interessante naquilo que trancende a literatura.

Contos anteriores deste livro:

Confissão ortográfica

O mais engraçado nas 150 mil palavras (e umas 350 mil de tradução; soma-se e dá meio milhão) que escrevi no ano passado foi terem sido todas, sem exceção, escritas segundo a nova ortografia, a tal que, de acordo com uns Emilianos que por aí andam, ninguém é capaz de usar.

Estas coisas divertem-me, confesso. Estou aqui feito bolinha amarela com olhinhos e traço curvo.

Leituras de 2013

Em 2013, curiosamente, o número total de livros lidos foi exatamente igual ao do de 2012. Continua bastante abaixo das minhas médias de outros tempos, e se calhar é bom que me comece a mentalizar de que estes 30-40 volumes por ano já não são resultado de um ano excecionalmente mau, mas passaram a constituir um padrão para as minhas leituras. A relutância, no entanto, é muita. Admiti-lo seria mais que um pouco deprimente.

Mas adiante.

O ano foi um pouco menos variado do que anos recentes. Li menos mainstream e mais ficção científica, quer da razoavelmente pura, quer (ou talvez especialmente) da que vem contaminada com ou contamina outras coisas. Li bastante mais horror do que é hábito em mim, e não posso dizer que tenha ficado particularmente satisfeito com o resultado, e li uma quantidade invulgarmente baixa de produção local, entendendo como "local" a língua portuguesa. Foram apenas dez os livros lusófonos que li, e um deles foi um continho bastante curto. Contos, aliás, foi o que dominou por completo as leituras lusófonas: além desse conto, li mais três antologias e quatro coletâneas. Restam um ensaio e um romance. Mesmo muito pouco para o que é hábito em mim. É outra coisa a alterar em 2014.

Contos, diga-se de passagem, foi o que dominou as minhas leituras, e aí não houve grandes alterações relativamente ao que é hábito desde que lancei mãos à obra do Bibliowiki. Sim, é verdade que gosto de contos e que acho importante contribuir para que continuem a publicar-se, o que me leva a preferir comprar coletâneas e antologias a investir em romances. Mas parte relevante das minhas leituras deve-se à minha eterna (e eternamente insatisfeita, porque há sempre mais) curiosidade sobre que contos constam da publicação x, ou quais, entre os contos que dela constam, são relevantes para acrescentar ao wiki. E isso leva-me a ler todos os anos coisas invulgares, fronteiriças e obscuras. E às vezes mazinhas.

Mas basta de conversa fiada e vamos à lista.

Os livros propriamente ditos, lidos por lazer mas todos comentados na Lâmpada ao longo do ano (embora os últimos ainda estejam ali numa pilhazinha, à espera de haver tempo para escrever uma opinião), voltaram a ser mais do que no ano anterior, tendo somado 32. A lista completa é a seguinte:

1- Brasil, de Ian McDonald (romance de ficção científica);
2- O Castelo de Lorde Valentine, de Robert Silverberg (romance de fantasia científica);
3- Dieselpunk, org. por Gerson Lodi-Ribeiro (antologia de ficção científica retrofuturista);
4- O Ano do Apocalipse, de Brian Aldiss (romance de ficção científica pós-apocalíptica);
5- Pequenos Mistérios, de Bruce Holland Rogers (coletânea de fantasia, surrealismo e mainstream);
6- Se Acordar Antes de Morrer, de João Barreiros (coletânea de ficção científica);
7- O Centauro, de John Updike (romance de forte cariz fantástico);
8- Contos Assombrosos, de Steven Bauer e outros (contos de horror e afins);
9- Contos Policiais, de vários (contos policiais);
10- A Boneca do Destino, de Clifford D. Simak (romance de ficção científica);
11- Contos Natal, de vários (contos primordialmente mainstream, com algum fantástico);
12- Neuromancer, de William Gibson (romance de ficção científica);
13- O Prometeu Agrilhoado Hoje, de António Cabral (coletânea mainstream e fantástica);
14- Contos Ficção Científica, de vários (o título diz tudo);
15- Accelerando, de Charles Stross (romance em mosaicos de ficção científica);
16- Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2005, de César Silva e Marcello Simão Branco (ensaio);
17- Amigo Secreto Literário de Natal, org. por Joshua Falken (antologia de ficção científica e fantástico);
18- A Tentação do Milagre, de Michael Cordy (romance tecnothriller, com abundantes doses de ficção científica);
19- Histórias de Vampiros, de vários autores (contos principalmente de horror);
20- Contos de N'Nori, de Carlos-Edmilson M. Vieira (contos mainstream com toques fantásticos);
21- Férias com um Casal Amigo, de Ricardo Adolfo (conto mainstream);
22- Nebula Awards Showcase 2009, org. por Ellen Datlow (contos e novelas de ficção científica e fantástico);
23- Memória Para um Império Futuro, de Isaac Asimov (romance de ficção científica);
24- Com a Cabeça na Lua, org. por João Seixas (antologia de ficção científica e fantástico);
25- Contos Humorísticos, de vários (contos mainstream);
26- Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa, org. por Luís Filipe Silva e Luís Corte Real (contos pulp de vários géneros, com predomínio do horror);
27- The Scar, de China Miéville (romance de um misto de fantasia e ficção científica steampunk);
28- O Sangue de Âmbar, de Roger Zelazny (romance de fantasia);
29- O Centésimo em Roma, de Max Mallmann (romance histórico);
30- Histórias Fantasmagóricas, de Hugo Rocha (contos de horror);
31- Contos Fantásticos, de vários autores (contos principalmente de horror);
32- A Origem das Espécies, de Charles Darwin (ensaio científico)

A acrescentar aos livros li também uma revista, e como revistas funcionam praticamente como se fossem antologias periódicas também contam para o total. E já tinha dito isto no ano passado. Também tal como no ano passado, isto é metade das que tinha lido no ano anterior. Ler assim cada vez menos revistas talvez não seja muito bom; vou ter de fazer alguma coisa a respeito agora em 2014. Mas o que interessa para agora é que a que li este ano foi:

33- Ficções, nº 15 (contos mainstream, surrealistas e de ficção científica);

Por fim, e de novo tal como no ano passado, li alguns livros por obrigação laboral. Este ano foram apenas três. Ei-los:

34- Dragons of Spring Dawning, de Margaret Weis e Tracy Hickman (romance de fantasia épica);
35- Tigana, de Guy Gavriel Kay (romance de fantasia);
36- Mistborn, de Brandon Sanderson (romance de fantasia)

Ah, sim, e tinha ficado de mencionar os livros que li por obrigação laboral no fim de 2012. Faltavam dois para perfazer os 36, não era? Pois foram os seguintes:

35- Dragões de um Crepúsculo de Outono, de Margaret Weis e Tracy Hickman (romance de fantasia épica);
36- Dragons of Winter Night, de Margaret Weis e Tracy Hickman (romance de fantasia épica)

O ano foi bastante bom em termos de qualidade. Eu, que sou bastante parco a dar cinco estrelas (segundo a classificação do Goodreads, na qual 5 estrelas equivale a "amazing" — não acho assim tantas coisas espantosas), dei-as a três livros, o número mais elevado dos últimos anos. Entre estes, o melhor terá provavelmente sido The Scar, de China Miéville, seguido por Pequenos Mistérios, de Bruce Holland Rogers e por A Origem das Espécies, de Charles Darwin. E além disso, houve alguns outros livros que num ano não tão bom teriam com grande probabilidade integrado este grupo, em particular a antologia Nebula Awards Showcase 2009 e os romances Accelerando e O Centésimo em Roma.

Quanto aos maus, que também os houve, também me é fácil escolhê-los. O pior foi, destacado, Contos Assombrosos, de Seteven Bauer, já mau de origem e ainda por cima desfeito por uma tradução catastrófica. Juntam-se-lhe A Tentação do Milagre, de Michael Cordy e o muito pateta Férias com um Casal Amigo, de Ricardo Adolfo. Aqui não vou dar "menções desonrosas", que acho que nenhum dos outros livros que li merece o opróbrio.

E pronto. De 2013 ainda publicarei umas opiniões atrasadas e estaremos conversados. Siga para 2014.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

2013. O meu.

O meu 2013 foi um ano de muita fúria, de muito asco pelas figurinhas repugnates que parasitam os mais altos lugares do Estado, insultando com a sua mera existência a própria essência desses lugares, desses cargos, e do próprio Estado.

O meu 2013 foi o ano de uma esperança ténue, entrevista em dias como o de 2 de março, mas depressa remetida à campa rasa das coisas que assim que nascem logo morrem, assassinada por um povo de fogachos, incapaz de compreender que só com persistência e determinação se consegue alguma coisa, ou demasiado medroso para se mostrar persistente e determinado seja no que for.

O meu 2013 foi o ano em que desfiz a golpes de rigor e de um tudo-nada de estatística as invencionices caturras de quem, perante a absoluta falência intelectual daquilo que defende, decidiu que só levaria a sua avante através da vigarice. Saiu-se mal. Mas há um bando de criacionistas da língua que volta sucessivamente à carga com as mesmas asneiras, com as mesmas aldrabices, com as mesmas mentiras, completamente impenetráveis à verdade, aos factos, à lógica e à razão. A língua inglesa tem um nome excelente para quem assim se comporta, e que a portuguesa ainda não conseguiu expressar com igual contundência: crackpot. Há-os de todos os matizes, os criacionistas são apenas um deles. Há quem negue a gravidade, há quem sustente que a Terra é oca, há ainda quem jure (juro!) que não, que é plana, há malucos de todos os géneros e feitios. E nós, além dos outros, temos agora os que garantem a pés juntos que a nova ortografia obriga a escrever "fato" e "cagado". Gente doida.

O meu 2013 foi o ano em que me aconteceu o bizarríssimo caso de ter o meu nome citado nos salões da Assembleia da República, coisa que nunca em dias da minha vida esperava ver acontecer-me.

O meu 2013 foi o ano em que pela primeira vez na vida fui candidato a algum cargo político. Fui-o para fazer número e dar apoio, sem qualquer perspetiva ou vontade de ser eleito. Não fui eleito. Felizmente.

O meu 2013 foi o ano em que trabalhei bastante menos do que em anos anteriores, e em coisas, em geral, bem menos agradáveis. É a tal crise, que andam aí uns malucos a dizer que não existe. Mas acabou da melhor forma possível.

O meu 2013 foi o ano em que publiquei em papel o meu primeiro (e por ora único) romance.

O meu 2013 foi o ano em que escrevi umas 150 mil palavras de texto original. 400 e tal páginas de livro, se tivessem sido publicadas em livro, ainda que dessas só uma pequena parte tenha sido de ficção. Foi o ano em que concluí um conto já velho e muito bizarro, que até hoje estou sem saber se presta ou não presta, e que é capaz de ser a coisa mais esquisita que já me saiu das mãos. Está inédito e inédito ficará por algum tempo. Foi também o ano em que tentei fazer resultar uma ideia que não resultou, pese embora a boa vontade de um punhado de colaboradores, e aquele em que provavelmente dela desisti.

O meu 2013 foi o ano em que fiz crescer em quase quatro mil páginas o Bibliowiki.

O meu 2013 foi o ano em que fiquei um ano mais velho, coisa que me acontece todos os anos, sem exceção. Foi o ano em que ganhei mais alguns cabelos brancos e umas quantas rugas, mas também o ano em que alguém, decerto com uma grande falta de vista, me deu 27 anos de idade. Agora em 2014, suponho, farei 28. Não está mal.

O meu 2013 foi um ano em que li. Há coisas que não mudam, felizmente.

O meu 2013 foi um ano estranho. Mais estranho do que o normal, com uns altos e baixos invulgares, mesmo para um ano como este.

A ver vamos o que 2014 me trará.