sábado, 31 de agosto de 2013

Lido: FMI em Apuros

FMI em Apuros é um continho de José Alberto Braga, levemente surreal (às tantas há um tipo que se vai embora por uma janela... não se sabe se montado numa vassoura, embora essa seja uma possibilidade não descartável), que é demasiado parvo para ter piada. Parvo no bom sentido, note-se: não há humor sem alguma dose de parvoíce. Mas quando essa dose é excessiva tem o efeito contrário. É o que me parece que acontece aqui.

A ideia básica é o FMI estar sem dinheiro, de tal forma que até os multimilionários salários dos seus diretores ficam em risco. E Braga inventa uma reunião para discutir o assunto, com um resultado inesperado. Mas, lá está, demasiado parvo.

É muito provável que o forte desajustamento entre o conto e as realidades presentes, dada a sua idade, também o prejudique bastante. Este livro foi publicado em 2000, o conto deverá ter sido escrito alguns anos antes, e de então para cá muita água correu debaixo das pontes. Mas seja como for, e por que motivo for, temo bem que o resultado não seja agradável.

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Lido: Requiem

Requiem (bibliografia) é (mais um) conto de Robert A. Heinlein, o segundo centrado no protagonista D. D. Harriman, o homem que quer por força ir à Lua. Aqui encontramo-lo já velho, ainda sem ter cumprido o seu sonho de sempre, mas tão obcecado como sempre. Harriman é uma personagem que não existe fora da sua obsessão, a qual lhe ocupa a vida inteira. Uma personagem que dificilmente poderia ser mais rasa, mais unidimensional, mais típica de uma certa forma, a meu ver muito má, de encarar a ficção científica. E é um dos motivos por que este conto está longe de ser tão bom como poderia ter sido.

Outro desses motivos é a enorme ingenuidade tecnológica de que dá mostras. OK, aí tem desconto: o conto data de 1940. Nessa época estava longe de haver uma noção minimamente sólida do gigantesco desafio tecnológico que ir ao espaço representa. Mas hoje que essa noção existe, ler sobre um mundo em que foguetões lunares se constroem e se lançam praticamente nas e das traseiras de uma casa, às escondidas de todos, chega a ser ridículo.

O outro lado desta medalha é o modo como o conto termina, francamente bom. Não que esse fim seja propriamente inesperado; na verdade cedo se percebe que só poderá terminar assim. Mas está muito bem conseguido. O suficiente para tornar o conto razoável.

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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Lido: To Ser or not to Estar

To Ser or not to Estar, de José Sesinando, é um hilariante texto, mui erudito, sobre a candente questão do ser e do estar, onde Sesinando faz uma magnífica trapalhada com as etimologias e ontologias dos verbos estar e ser e respetivos equivalentes estrangeiros. Tudo devidamente inventado, obviamente, mas com uma verve, uma capacidade de desarrincar correlações inesperadas, que se torna praticamente impossível não soltar umas valentes gargalhadas. Até vai buscar Estaline, vejam só (está-line, pois então). Muito bom. Mesmo.

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quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Lido: Memória Para um Império Futuro

Memória Para um Império Futuro (bibliografia) é um romance de Isaac Asimov, integrado na sua longa série da Fundação (e na dos robôs, também), que conta a forma como Hari Seldon desenvolve a psico-história, e os desafios que enfrenta não só no desenvolvimento da sua disciplina, mas também no estabelecimento das Fundações que tão fundamentais vão ser mais tarde. Tudo isto enquanto o Império Galáctico entra em decadência acelerada e, segundo as equações de Seldon, inevitável, separando-se nas suas partes constituintes e perdendo até a capacidade de manter o nível de organização, controlo e eficiência no próprio planeta capital, Trantor.

E é um romance que chega a ser comovente. Menos por si mesmo, talvez, do que pela sua circunstância, e pelo que de humano o rodeia. Porque este é um livro sobre a decadência escrito por um homem em plena decadência. Seldon é quase um alter-ego do próprio Asimov: um homem com uma carreira longa e nem sempre bem compreendida, determinado em concluir a sua obra antes de ser como que atropelado pelas circunstâncias e pela própria morte, enquanto à sua volta tudo se deteriora e todas as pessoas que ama, todos os amigos, vão morrendo ou desaparecendo um após outro, até lhe restar apenas uma neta. Uma neta muito especial, sim, mas apenas uma pessoa das muitas que a vida lhe dera. E depois, mesmo esta chega ao fim.

E o fim da vida de Seldon é o fim da vida de Asimov. O autor morre em 1992, deixando este romance por publicar (o que só aconteceria no ano seguinte) e, talvez, por ser trabalhado até ao fim. É sensível uma diferença bastante grande entre o ritmo narrativo e o controlo que o autor tem sobre a obra no início e no fim desta. No início, o romance é bastante interessante por si mesmo, mostrando um escritor que podia já ser de idade avançada mas ainda estava na plena posse das suas capacidades (por mais duvidosa que seja a ideia de fundir todas as suas séries principais num único universo ficcional, mas isso é outra conversa); no fim, no entanto, o autor rigoroso vai-se esbatendo e vai surgindo o homem, as suas dúvidas, os seus receios.

Como resultado, e talvez paradoxalmente, o romance vai piorando na exata medida em que se vai tornando mais pessoal. E também na exata medida em que vai sensibilizando o leitor consciente das circunstâncias de vida do seu autor. Quem não o esteja, muito provavelmente, irá juntar este livro aos piores de Asimov. Talvez muitos que o estiverem também o façam, porque o romance, objetivamente falando, não é bom. Sim, tem trechos com interesse, sim, relata uma fase muito importante no desenvolvimento da psico-história que está no fulcro de todo o universo da Fundação, mas é um romance desequilibrado, é um romance no qual o característico rigor asimoviano fraqueja, o que é especialmente problemático num escritor que nunca foi grande cultor da palavra e sempre teve no rigor lógico com que construía as suas histórias a sua principal força, e é um romance que deixa pontas soltas. É possível que Asimov tivesse planeado atar estas pontas em histórias que não teve tempo para escrever, mas a verdade objetiva é que nunca o fez.

Portanto compreendo plenamente quem não goste deste livro. Mas eu não consegui não gostar. Deixei-me sensibilizar pelo homem que escrevia a última história da sua vida, pondo naquela a decadência desta. Acompanhei a morte de Asimov na de Seldon. E isso, para mim, valeu o livro.

Este livro foi comprado.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Lido: Só os Mortos Conhecem Brooklyn

Só os Mortos Conhecem Brooklyn é um pequeno conto de Thomas Wolfe que relata um encontro e também um desencontro entre duas personagens nas ruas de Brooklyn, uma nativa do bairro, a outra uma espécie de turista que, provido de um mapa e de bastante curiosidade, se propunha conhecê-lo. Para grande ceticismo e, sim, desagrado do outro, que achava impossível fosse a quem fosse conhecer por completo tal intrincado território urbano. O conto é divertido, mas fiquei com a sensação de que se trata mais de uma exploração da oralidade característica de Brooklyn (o conto é narrado na primeira pessoa pelo protagonista de Brooklyn, o qual não parece ser propriamente letrado), que parece quase um dialeto, do que propriamente de um conto humorístico, e com uma rápida pesquisa na web descobri o original e reforcei essa impressão. Há aqui muito de intraduzível. A tradutora, coitada, faz o que pode, mas o resultado dos seus esforços não poderia deixar de ficar muito longe do ideal. Ela conserva bem as profusas marcas de oralidade que o texto contém, mas a ligação a Brooklyn perde-se por completo (como só poderia perder-se) e o resultado soa a um sotaque genérico do sul de Portugal, não particularmente urbano. Talvez fosse melhor se ela tivesse centrado mais o texto em algum tipo de falar castiçamente lisboeta, cheio de arrebiques marialvas, porque parece ser mais ou menos esse o ambiente que Wolfe procura retratar. Não seria ideal — não há num texto como este nenhuma solução ideal — mas talvez fosse o que eu tenteria fazer. Não sei bem. Teria de pensar. Uma coisa é certa: partidas destas não se fazem aos tradutores. Simplesmente não se fazem!

O conto? Sim, é razoavelmente divertido e razoavelmente interessante. Mais que razoavelmente se lido no original, no entanto, o que também constitui um desafio muito próprio para quem não tem no inglês a língua materna.

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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Lido: A Noite de Walpurgis

A Noite de Walpurgis (bibliografia) é... mas esperem lá: eu já li isto. E não há muito tempo. E falei deste conto, aqui. Coisas que acontecem a quem muitos contos lê e usa as antologias para desperar curiosidades sobre autores até aí desconhecidos, que vêm a ser satisfeitas mais tarde. Quando a satisfação da curiosidade acontece muito depois do surgimento desta com a leitura do primeiro conto, é frequente haver alguma diferença na apreciação porque quanto mais tempo passa mais o leitor presente difere do leitor passado. Tal também acontece quando se trata de contos traduzidos, pois as diferenças nas traduções podem ocasionar divergências, por vezes consideráveis, na apreciação que deles se faz. Mas este é conto português, e entre a primeira leitura e a segunda decorreu menos de ano e meio. O leitor que o releu é muito semelhante ao que o leu, e ao ler agora a apreciação que dele fez então, descobre que poderia tê-la escrito hoje.

Faz sentido? Perceberam? Ainda bem.

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domingo, 25 de agosto de 2013

Lido: Archivo da Revolução

Archivo da Revolução, assim mesmo, em velhíssima orthographia, é uma lista de José Alberto Braga, mais uma (muito gosta este homem de listas, caramba!), que enumera uma série de objetos, anteriormente perdidos, que ele terá entregue à Associação 25 de Abril a fim de melhor se poder elaborar a memória dessa época. Objetos como um documento assinado pelo único PIDE confesso e comprovado, duas G-3 definitivamente encravadas, coisas assim. De toda a relevância, portanto. E sim, desta vez o Braga tem piada. Bastante, mesmo.

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Lido: Acerca de Música

Acerca de Música é uma muito erudita crónica de José Sesinando, na qual ele discorre sobre música clássica, socorrendo-se de uma estranha e por vezes hilariante mistura de trocadilho básico com nonsense do mais sublime. Tudo profusamente temperado de notas de rodapé, como convém às coisas eruditas. Sabiam, por exemplo, que Sibelius, tendo nascido na Finlândia, logo revelou grande predisposição para ser finlandês? Ou que o bombo não se toca com arco? Ah pois! É de pérolas de sabedoria como estas que o texto está cheio a deitar por fora (daí as notas de rodapé, suponho) e, sim, é muito divertido. Mais nuns sítios do que outros, e mais para quem perceba de música clássica do que para quem não perceba, mas até eu, que não percebo muito, me ri em vários trechos. E isso é tanto mais relevante por não ser a primeira vez que li este texto: ele foi retirado do livro Obra Ântuma, que existe algures cá por casa e já foi lido há um ror de anos. De certeza, desta vez.

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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Lido: O Santo

O Santo, conto de V. S. Pritchett, é uma história de perda de fé. O protagonista é um jovem, cuja família, e ele próprio, se junta a uma bizarra seita que prega que basta ignorar o mal (ou "o Erro", no jargão da seita) para que ele não exista. Doenças? Não existem, e basta acreditar que não existem para que a cura se faça, numa espécie de efeito placebo levado às últimas consequências. Incómodos, desconfortos, carências? Nada disso. O mundo é belo.

Uma seita de avestruzes? Não das reais, com penas, que na verdade não têm o comportamento que a lenda lhes atribui, mas as da lenda que enterram a cabeça na areia quando lhes aparece na frente uma contrariedade com garras, colmilhos ou caçadeira? Sim. Mas esta seita de avestruzes não se afasta muito de tantas outras que por aí abundam e é por isso que o conto é tão eficaz. Ele pode exagerar, mas não deturpa, e por isso resulta.

Porque chega um ponto em que o protagonista perde a fé, quando é visitado pelo chefe da seita, o santo a que o título se refere, o qual insiste em ir passear de barco com ele. Segue-se uma sequência de acontecimentos de tal forma caricata que o nosso jovem vê o outro como é. O resultado é um conto que até tem alguma graça, mas que me pareceu fundamentalmente melancólico. Ou melancómico, talvez. Mas interessante.

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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Lido: O Retrato do «Quimbanda»

O Retrato do «Quimbanda» (bibliografia) é mais um conto fantasmagórico de Hugo Rocha que recupera mais um tema antigo neste tipo de história, trazendo-o para a realidade portuguesa e, neste caso, africana: o do retrato encantado. A história é sobre um explorador português que terá percorrido toda a região do "mapa cor-de-rosa". Em tempos, algures no sul de Angola, ter-se-á alojado na cubata de um «quimbanda», chefe de uma tribo que pouco tempo antes teria estado no centro de uma rebelião contra o colonialismo português, severamente reprimida pela tropa colonial. Como é óbvio, o quimbanda não terá achado grande graça a ser praticamente forçado a alojar o branco e terá conspirado para o matar e a quem o acompanhava, mas sem sucesso. E aqui entra o retrato. Este seria um retrato do quimbanda, executado alguns anos antes por um pintor inglês de viagem por aquelas terras. Mas, por algum motivo, o retrato atraía o protagonista de tal forma que ele teve de o levar consigo para Portugal. E assim selou o seu destino.

Talvez haja revelações em demasia no que eu acabei de escrever, mas só para quem nunca leu nenhuma história destas. É que, pormenores à parte, não existe em Rocha grande originalidade. O conto torna-se, assim, previsível desde o início, o que só é realçado por uma espécie de prólogo em que o autor discorre sobre a forma como os retratos que nos olham de frente parecem seguir-nos com os olhos. Mas a verdade é que os pormenores têm algum interesse, especialmente tendo em conta que aflorar a questão colonial em 1969, época de ditadura e de guerra em África, era um ato de coragem. Rocha põe-se, obviamente, do lado do colonizador — de contrário teria certamente tido problemas com a censura — mas não o faz com grande entusiasmo. Há, no seu quimbanda, uma dignidade na procura da liberdade que o legitima. E é isto mesmo o que este conto tem de mais interessante.

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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Lido: Nebula Awards Showcase 2009

Nebula Awards Showcase 2009, como o título indica, é a edição de 2009 do mostruário anual dos Prémios Nébula, uma série de antologias que se vem publicando, com vários títulos e com vários editores, desde 1966. A edição de 2009 (que não se refere aos prémios de 2009, mas aos de 2008) foi editada por Ellen Datlow e contém um extrato da obra vencedora na categoria romance, a novela vencedora e outra novela finalista, a noveleta vencedora e mais duas das finalistas, o conto vencedor e mais três finalistas, três poemas vencedores do Prémio Rhysling, um conto de Michael Moorcock, vencedor do Damon Knight Grand Master Award e ainda uma série de artigos de um caráter que vai do depoimento pessoal à análise crítica sobre uma variedade de temas ligados, na sua maioria, a outras premiações do ano, passando por listas de premiados e nomeados ao Nébula e a prémios conexos.

Trata-se, como se vê, de uma compilação de textos que extravasa o âmbito restrito do Prémio Nébula. Mas mesmo que não extravasasse, a qualidade seria sempre alta.

Os prémios literários são sempre questão delicada. E polémica. Há sempre acusações de não se estar a premiar realmente a melhor ficção do ano, por um motivo ou por outro, dos mais inócuos (o desconhecimento de um mundo mais vasto; o encerramento de quem escolhe na sua bolha pessoal de interesses e leituras) aos mais sombrios (amiguismos, sindicatos de votos, até, por vezes, corrupção). Mas a verdade é que, não escapando embora às polémicas nem aos altos e baixos, os Nébula têm sido, entre os prémios principais da FC&F anglófona, aqueles que têm mantido uma qualidade geral mais elevada.

E a edição que esta antologia compila é disso bom exemplo. Não há aqui maus textos. Nem sequer há textos medíocres. Há apenas textos que me pareceram bons mas não correspondem tão bem como outros ao meu gosto pessoal, e há vários absolutamente brilhantes. Há uma variedade de estilos, géneros e abordagens, que no entanto têm como linha comum uma preocupação literária não despicienda. Diz-se por vezes que o Nébula é o mais literário dos prémios ligados à ficção científica, e este conjunto de contos e novelas parece querer confirmar essa ideia. Há aqui prosa muitíssimo bem escrita, literatura de grande qualidade. E o que tudo isto quer dizer é que esta antologia é muito boa, realmente muito boa, das melhores que já li.

Eis o que achei de cada um dos contos, novelas e poemas:
Este livro foi comprado.

Lido: Política: Manual do Manuel

Política: Manual do Manuel é mais um texto humorístico de José Alberto Braga a que eu achei muito pouca piada. Trata-se de uma espécie de glossário onde se explica, duma forma que se pretende iconoclasta, o significado de uma série de termos ligados, mais de perto ou mais de longe, à política. Mas as definições estão quase ao nível do populismo de taxista do "os políticos" do "são todos iguais" do "só querem é tacho". Há duas ou três exceções a revelar um raciocínio um pouco mais sofisticado do que isto, mas são só mesmo duas ou três.

E depois há frases como "seja benvindo (sic) ao clube dos terroristas".

Eh, pá, não.

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Lido: Noites Brancas

Noites Brancas (bibliografia), de uma tal Ana Sofia Casaca, é uma razoável noveleta de horror que alia uma estrutura básica de enredo em geral bem concebida, tanto nas ideias como na forma como estas são postas em prática, a algumas carências no que toca ao ritmo narrativo e até no português. A história é narrada na primeira pessoa pelo protagonista, um homem que faz uma viagem de negócios aos Cárpatos romenos (algo bizarro, diga-se, em época de Cortina de Ferro e de Guerra Fria, o que não será afirmado mas é sugerido por vários pormenores espalhados pela história). Ao alojar-se numa estranha casa numa não menos estranha aldeia, o homem vai chamar a atenção de uma espécie de diabretes que depois disso nunca mais o largam e lhe vão fazer a vida negra.

E a história é basicamente isto. O modo como o protagonista tenta escapar aos seus perseguidores, o que faz para isso, a vida e a sanidade que vai perdendo na tentativa, e o que os diabretes lhe fazem a ele sempre que o encontram. No fim, o leitor fica a conhecer o motivo de tudo aquilo e a verdadeira natureza dos diabretes. É uma história de destruição pessoal movida a sobrenatural. Nisso, é semelhante a muitas outras histórias de horror. Há aqui algo de King, por exemplo, e talvez também algo de Matheson, e as criaturinhas fazem lembrar os diabretes, duendes ou trasgos das lendas europeias, embora não sejam exatamente iguais a eles. Não sendo propriamente original no que lhe subjaz, parece-me que esta história até tem alguma originalidade na forma como combina os vários elementos de que faz uso, o que é um ponto a seu favor.

Não gostei muito? Não, de facto não gostei muito. Mas também não desgostei.

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terça-feira, 20 de agosto de 2013

Lido: Poeira Lunar, Aroma de Feno e Materialismo Dialéctico

Poeira Lunar, Aroma de Feno e Materialismo Dialéctico (bibliografia), conto curto de ficção científica de Thomas Disch sobre um astronauta que, na superfície da Lua, aguarda a morte é... bem, é tudo o que Passeio Lunar não é. Na verdade, o contraste entre estas duas histórias de temática semelhante é tão gigantesco que a demonstração que Disch faz de como um escritor decente pode tratar uma história destas, e por conseguinte da completa mediocridade de Fyfe, chega a transformar em crueldade que a organização da antologia tenha feito suceder uma história à outra.

Mas a premissa não é inteiramente igual. Sim, ambas as histórias partem de uma avaria durante a exploração da superfície da Lua, mas enquanto numa delas existe uma hipótese — remota — de sobrevivência, na outra a morte é certa. Que numa o protagonista seja americano e na outra russo, no fundo, pouco importa. O que realmente importa é que com uma história de (tentativa de) sobreviência bem feita pode-se levantar muitas das mesmas perdizes que com uma história sem sobrevivência possível. A morte, o seu significado, a sua razão, e por extensão o significado e a razão da vida. Disch fá-lo, e fá-lo de forma brilhante. O seu protagonista é um homem, com reações humanas, um homem em que o desespero se mistura com a resignação e com aquelas perguntas inescapáveis: porquê eu? Porquê a mim? Porquê agora? E o texto é bem escrito, cheio de ritmo, chegando até a mostrar-se poético, com diálogos bons e muito verosímeis. Um grande conto, embora breve.

Esqueçam Fyfe. Esqueçam todos os fyfes, com maior ou menor renome, os medíocres cheios de "ideias" mas incapazes de dar alguma densidade humana às histórias que escrevem. Ficção científica a sério, ficção científica decente é isto.

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Lido: Extrato de Coca-Cola Killer

Este extrato de pouco mais de sete páginas do romance Coca-Cola Killer, de António Victorino de Almeida, deixou-me a coçar a cabeça. É que estava convencido de que já tinha lido este livro, mas o extrato não fez acender-se a mais pequena luz de reconhecimento. Nada. Portanto das duas uma: ou afinal não o li e o convencimento era falso, ou li mesmo e esqueci-o por completo.

Parece-me mais provável a primeira do que a segunda hipótese. É que o extrato não é coisa que se leia todos os dias. Relata um acontecimento insólito e até algo rocambolesco, passado logo após o 25 de Abril, envolvendo uma série de peripécias embaraçantes a que o protagonista se terá sujeitado ao entrar por engano numa sala de cinema onde se projeta um filme pornográfico, e nas interações que se seguem com os outros membros da assistência. Incluindo gente a analisar o filme em voz alta, um ataque de nervos que desagua em vomitado, um provável cadáver, acusações de mariquice e por aí fora. Se tivesse de facto lido o livro, devia lembrar-me disto, se não de tudo pelo menos de parte. Mas não.

Lá terei de lê-lo, pois então. Mais um a acrescentar à lista da cobiça. Porque este extrato está bem escrito e é divertido. Se o resto do livro corresponder, deverá ser leitura bastante agradável.

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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Lido: O Verão do Lindo Cavalo Branco

O Verão do Lindo Cavalo Branco, de William Saroyan, é um pequeno conto ingénuo sobre gente ingénua, ambientado numa comunidade de emigrantes arménios nos Estados Unidos. Tudo gira, como o título indica, em volta de um cavalo branco. Lindo. O protagonista, que garante que a sua é uma família de boa e honesta gente, embora por vezes alguns dos seus membros tendam para uma certa loucura, tem enquanto criança o sonho de aprender a andar a cavalo. E um dos primos, mais velho, um dos tais membros meio tresloucados da família, vem um belo dia acordá-lo para lhe mostrar uma coisa. Um cavalo que tinha arranjado, claro. E ainda por cima branco e lindo. Mas com que dinheiro?

Segue-se uma série de peripécias em volta do cavalo, que era roubado. Mas tudo muito levezinho, muito bondoso, muito desprovido de malícia. Sim, há roubo, mas a intenção é a procura do divertimento, da emoção, e depois a instrução, não a obtenção de vantagens de qualquer tipo. E nem era um roubo propriamente dito; era uma espécie de aluguer involuntário, um empréstimo em que uma das partes não é consultada. E sim, há gente prejudicada, mas nem por isso esta se zanga ou procura as autoridades; fica apenas triste com o sucedido. Inverosímil? Parece-me que sim, mas só em parte. O camponês ingénuo que desconhece os seus direitos e aceita o roubo de um animal com o mesmo fatalismo com que aceita uma granizada que lhe destrói as colheitas não é figura desconhecida da realidade do mundo, bem pelo contrário. O que não me parece muito é que este conto seja humorístico. A mim parece bastante mais um conto melancólico, até um pouco deprimente.

Seja como for, leu-se bem. Não é nenhuma obra prima, mas também não é mau.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Lido: A Casa à Beira da Estrada

A Casa à Beira da Estrada (bibliografia) é mais um conto fantasmagórico de Hugo Rocha, com a peculiaridade de ser mesmo fantasmagórico. Trata-se de uma história de fantasmas bastante clássica, e portanto com muito pouca novidade, sobre um casarão assombrado e por isso abandonado nos arredores de uma aldeia algures no Minho. Além do já habitual estilo enovelado acompanhado por um uso excessivo de vírgulas, esta história é também prejudicada por uma fragilidade de monta no enredo. A páginas tantas, um médico conta que teria sido chamado à aldeia por um dos aldeões ter sido acometido por doença súbita. Algo de urgente, portanto. E mais urgente se torna por o médico se ver obrigado a deslocar-se de bicicleta por ter o carro na oficina. E no entanto, a meio da viagem, apesar de toda a urgência, o homem para durante uma porção de tempo a olhar para uma casa da qual saem luzes e ruídos de festa?! Que raio de médico é este?!

É um médico que só existe para servir o enredo, obviamente. Rocha precisava de alguém que contasse a história da assombração, e não arranjou melhor que um médico numa viagem urgente. Precisava da urgência para o levar a viajar à noite por sítios ermos. Mas ao fazê-lo ignorar essa urgência por um motivo tão fútil como luzes e ruídos de festa foi francamente desastrado.

Não fosse isso, esta história seria razoável. Está escrita com o estranho misto de competência rica em vocabulário e novelo repleto de vírgulas que parece ser característico de Hugo Rocha, e a história está tão bem estruturada como seria de esperar de um conto que, descontadas as variações, foi contado já tantas vezes por tantos autores diferentes. Mas com aquela falha de enredo, não me parece que chegue ao razoável. Achei o conto fraco.

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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Lido: Isto & Aquilo

Isto & Aquilo é mais um dos textozinhos de José Alberto Braga que pouco me aquecem ou arrefecem. Trata-se de uma lista de 12 parágrafos, com uma a quatro linhas cada, quase todos com pretensões a aforismo irónico. Só que só um deles me causou um sorriso, rapidamente contrabalançado por uma boca machista que me fez torcer fortemente o nariz. Não que eu seja inimigo figadal da boca machista, que não sou, mas exijo delas um mínimo de piada. O resto varia entre o vagamente interessante (o melhor exemplo talvez seja "o absurdo é o racional elevado ao cubo") e o bocejativo. E sim, eu sei que a palavra não existe, deixem-me.

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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Lido: Fragmentos de As Bodas de Deus

Julgo que seria inevitável aparecer numa antologia do humor português qualquer coisa do João César Monteiro. Há muita gente que acha o homem genial, nunca cheguei a perceber bem se por sempre ter sido completamente desbocado, e o pessoal se pelar por gente desbocada, se por genuinamente acharem o que ele dizia relevante. Confesso que nunca entendi o fascínio, e muito menos o partilhei. Nunca consegui achar a menor graça a César Monteiro, coisa para a qual ele se estaria obviamente cagando, assim mesmo, com toda a escatologia do mundo e arredores. E não foi agora ao ler estes fragmentos do argumento de As Bodas de Deus que aqui se encontram, bem representativos de quem César Monteiro era e do que fazia, que passei a achar. Isto, na verdade, parece-me basicamente... bem, básico. Uma salada de frases feitas e lugares comuns, lançados mais ou menos a despropósito, com umas tiradas eruditas e igualmente despropositadas a servir de maionese. Mas tudo com uma grande falta de sal.

Ptuá!

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Lido: Férias com um Casal Amigo

Férias com um Casal Amigo é um conto de Ricardo Adolfo, não sei bem se angolano, se português, se as duas coisas (a biografia diz que nasceu em Luanda mas cresceu nos arredores de Lisboa), autor do qual ainda não tinha lido nada.

E de quem, ajuizando pela amostra, não espero voltar a ler seja o que for.

É um conto que pretende usar para fazer humor a apetência pelas aparências aliada à tesura, mas que tem tão pouca piada que assim que a ideia é descodificada logo se instala o bocejo. Duas famílias de pai, mãe e um filho, falidas devido à crise, acham que não podem deixar de dar a aparência de prosperidade associada a umas férias invernais no Brasil. Como? Fechando-se durante uma semana no apartamento de uma delas, pois então. E caprioskando como se estivessem mesmo em Porto Galinhas.

É essa semana que Adolfo tenta contar, mas fá-lo de uma maneira tão desinspirada, tão mal trabalhada, que torna penosa a leitura. A prosa é fraca, a violação das convenções de delimitação dos diálogos parece gratuita e certamente ineficaz (Os grandes autores, os Saramagos e os Lobo-Antunes, sabem fazê-lo. Ricardo Adolfo não sabe. Os grandes autores fazem-no por algum motivo. Em Ricardo Adolfo não parece haver motivo algum além de dar a aparência de ser um escritor pós-moderno), as grafias arrevezadas que usa no discurso direto, se podem surtir efeito em mensagens interpessoais na internet, neste conto só parecem parvas, e por aí fora.

Foi uma péssima estreia nos ebooks do DN. Adiante se verá se podia ter escolhido ainda pior. Melhor deverá não ser difícil.

Ebook obtido gratuitamente no site do DN. A Biblioteca Digital ainda está disponível, aqui.

Lido: O Lobisomem

O Lobisomem (bibliografia) é mais um conto de horror sobrenatural de Hugo Rocha, desta feita ambientado não em Portugal, como tem sido habitual neste livro, mas em terras galegas. E pareceu-me um bom conto, descontando-se a virgulite de que o autor padece e que já se vai tornando habitual. Há nele uma ironia perante as superstições, as motivações e os medos das pessoas que, não sendo tão forte como em A Aposta, torna mesmo assim a leitura deste conto divertida, bem como um uso bastante bom do discurso direto, não só sem nenhum daquele tom declamatório tão frequente em autores medíocres, como também registando modos de falar rurais de uma forma que me parece genuína.

A história em si, por outro lado, nada tem de novo. Um grupo de homens, numa taberna de aldeia, discute um outro homem, que tem fama de lobisomem (e a mulher de bruxa), e conversa regada a vinho puxa conversa regada a vinho e decidem ir averiguar sobre a real natureza do homem, ou do monstro, ou do que seja. E dar cabo dele caso se venha a confirmar a monstruosidade. E se assim o planearam, assim o fizeram: lá foram campo fora até casa do homem averiguar ao certo o que se passava.

Nada de novo, nada de invulgar, nada de nunca visto. Mas executado com competência. Não é um grande conto, mas pareceu-me bom.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Fountain of Age

Fountain of Age, de Nancy Kress, é daquelas histórias que deitam por terra todos os estereótipos machistas sobre as mulheres não serem capazes de escrever ótima ficção científica. Isto, partindo do princípio de que Le Guin não chega para acabar com eles.

Trata-se de uma novela soberba, contada na primeira pessoa por um velho criminoso com uma voz absolutamente impecável, e que tem uma fraqueza: um velho amor impossível, ou talvez uma velha paixão igualmente impossível, que nunca o abandonou apesar de todas as reviravoltas da vida. Mas esse amor, ou essa paixão, não é uma mulher qualquer: é aquela mulher a quem aconteceu uma mutação especialíssima que lhe conferiu a imortalidade por via cancerígena. Ou mais que a imortalidade: a juventude eterna.

Não só a si, aliás. Porque naquele mundo ficcional o capitalismo depressa viu nos tumores da mulher uma oportunidade de lucro e desenvolveu um método para fornecer aos pornograficamente ricos tratamentos de paragem do envelhecimento. Com efeitos secundários pouco agradáveis, é certo, mas para muita gente valem a pena.

Este é o pano de fundo. A história, em si, é sinuosa, sempre a recuar no tempo para ir contando os principais acontecimentos da história de vida do protagonista, enquanto no presente ficcional este decide procurar a sua velha paixão, por motivos que a todos parecem incompreensíveis mas para ele fazem todo o sentido. E é o que faz, com o auxílio de um clã cigano, seu velho associado em empreendimentos de legalidade duvidosa, enquanto as agências policiais americanas, que nunca deixaram de o manter debaixo de olho, ganham todo um novo interesse por ele com este recrudescimento de atividade. A história é ao mesmo tempo a história da busca e de tudo o que levou à busca, e Kress vai dando ao leitor toda a informação relevante ao longo do texto com uma suavidade e uma eficácia de todo em todo invulgares.

E tudo tão bem feito, tão bem interligado, tão bem escrito, que é uma delícia. Esta novela não é perfeita, porque a perfeição não existe, mas anda bem perto dessa inexistência. Magnífico.

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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Organizando a prosa

Por estranho que pareça, nunca tinha feito isto que fiz hoje: ir vasculhar nos baús e nas gavetas da criação literária e ver quantas coisas tenho completas, quantas estão por completar, quantas publicadas, quantas inéditas, quantas publicáveis e assim por diante.

É coisa útil para se fazer. Para quê, por exemplo, manter-se histórias incompletas a ocupar espaço nas gavetas e na imaginação? Pois descobri que tenho 29. Não vos parecem demasiadas? A mim parecem, mesmo que muitas sejam daquelas histórias com ideias mal definidas, começadas para participar em concursos ou antologias temáticas, e que nunca chegaram verdadeiramente a ganhar corpo. Pouco mais que ideias vagas anotadas no bloco das ideias vagas. Mas digamos que o sejam metade. Ainda ficam umas 15 histórias com pernas para andar. Porque não andam?

Bem, algumas vão andando.

Devagarinho.

Em todo o caso, 29 histórias pouco são quando comparadas com as que tenho completas. Estas são 165. Sim, 165. Eu também me admirei. Mesmo havendo aí, como há, grande número de historietas com menos de mil palavras, dariam para uns 5 ou 6 livros com mais de 200 páginas cada, se bem que nem todas me pareçam publicáveis. Pelo menos sem umas revisões suficientemente grandes para as transformar em coisa decente. E algumas nem assim.

Em todo o caso, mais de 70 dessas histórias foram sendo publicadas de uma forma ou de outra, por aqui e por ali. Literalmente: parte delas só foi publicada aqui mesmo na Lâmpada. Mas 70 histórias publicadas em 165 querem dizer mais de 90 inéditas. Porque é que continuam inéditas? Porque publicar, para mim, nunca foi o objetivo principal; basta considerar que as minhas primeiras histórias razoáveis datam dos anos 80 e, tirando uns velhíssimos jogos florais escolares em que participei (e ganhei, com perdão da imodéstia) e que resultaram numa edição manhosíssima em fotocópias, foi só em 1998 que publiquei o primeiro conto. O objetivo principal, como aliás já disse por aqui, sempre foi libertar-me das histórias que imagino.

E eis outra utilidade disto que fiz hoje: já tenho perdido oportunidades de participar em antologias temáticas por julgar que não tenho nada já escrito que se ajuste ao tema, e nem tempo nem ideias para escrever de novo. Em certos casos é verdade. Mas noutros só julgo que assim é porque me esqueço do que está aqui a ganhar pó na gaveta.

Vale a pena?

Não, não vale. Porque mesmo que publicar não seja o mais importante, não deixa de ser agradável. Até porque há por aí quem goste do que eu escrevo. Não muito, talvez, nem muitas pessoas, mas há. Por que não dar-lhes a oportunidade de lerem mais algum continho? Para quê mantê-los engavetados e, pior, esquecidos?

Outra coisa que obtive disto não poderei dizer que me tenha surpreendido: sou um escritor de coisas curtas, embora cada vez o seja menos. Das tais 165 histórias completas, quase 100 têm menos de mil palavras. Houve uma fase em que produzia historietas assim curtinhas em catadupa, mas, ainda que continuem a surgir-me ideias para pequenuras destas, nos últimos tempos tenho-me cansado da brevidade extrema (até porque raramente me sai bem), tem-me apetecido explanar e expandir mais os meus textos, até interligá-los, juntá-los em séries. Inclusive alguns destes pequenos. Algumas destas historietas acabaram por servir de base para coisas bem maiores, e na verdade há nesta centena e meia de histórias alguns casos de pais e filhos, ou até de pais, filhos e netos. Histórias desenvolvidas a partir de outras histórias invariavelmente mais curtas. Conto-as como histórias diferentes porque o são, mesmo que a ideia base seja a mesma. Não é possível escrever a mesma história numa noveleta e num miniconto.

Esse é, aliás, um motivo comum para a não publicação de algumas destas ficções. Não é tão raro como talvez devesse ser que acabe uma história e me ponha a pensar se não seria melhor expandi-la, juntar-lhe outras coisas, transformá-la de conto curto em noveleta ou de noveleta em romance. Por vezes reescrevê-la de cima a baixo, sob outro ponto de vista, experimentando outra técnica, talvez até mudando-lhe o género.

Sim, nem sempre me consigo libertar delas mesmo quando as escrevo.

Mas é pior quando não as escrevo. De modo que escrevo.

Mas enfim, a moral da história é que já devia ter feito um apanhado como este há bastante tempo. Ah, mas isto tudo é só a prosa. Depois há os versos. Pois. Os versos. Só na spamesia são 366 textos, e há muitos, muitos mais guardados por aqui.

Quer isso dizer que vou fazer algo de semelhante com os versos?

Ná! Nem pensar em tal coisa.

Lido: Contos de N'Nori

Contos de N'Nori, de Carlos-Edmilson M. Vieira, é um pequeno livro que contém oito contos bastante diferentes uns dos outros. E é, também, um livrinho paradoxal.

Mas comecemos pelo início: Carlos-Edmilson é guineense, cidadão de um país onde ser-se escritor e escrever-se em português é, em si mesmo, uma improbabilidade. Não há país africano lusófono onde a língua portuguesa tenha uma presença mais frágil do que na Guiné-Bissau, fruto da história problemática e das dificuldades económicas do país, bem como da decisão política de promover mais o crioulo guineense do que o português como língua de comunicação entre as várias etnias que compõem aquele povo.

E o próprio Carlos-Edmilson, à semelhança da generalidade dos seus compatriotas, não tem no português a (ou uma das) língua materna. E é daí que vem o primeiro paradoxo, porque o uso que ele faz da língua oscila entre momentos de inegável qualidade e outros em que quase se sente a hesitação, a busca das palavras e o falhanço dessa busca.

Outro paradoxo prende-se com a própria edição. É de autor, e isso está bem patente no amadorismo da paginação e na ausência de uma revisão que lhe teria sido bastante útil. Mas, ao que parece, foi apoiada pelo Instituto Camões e pela Petromar, uma empresa que desconheço mas que uma pesquisa rápida no Google me sugere ser angolana e ligada aos petróleos, o que faz com que não se trate de uma edição de autor vulgar.

E outro paradoxo está em este não ser um bom livro, longe disso, e no entanto ser um livro bom.

Que quadratura de círculo é essa?

Rodeando para mais depressa chegar ao destino, direi que há livros muito redondinhos, muito bem escritos, muito bem editados, muito profissionais, muito cheios daquelas coisas de que, diz-se, se faz a literatura... e também muito vazios, muito alhos-chochos, muito sem nada dentro.

Detesto esses livros, confesso.

Contos de N'Nori é o oposto. É um livro cheio de falhas, pejado de defeitos, amador do princípio ao fim... e cheio de conteúdo. Carlos-Edmilson Vieira não escreve porque quer ser escritor ou porque gosta de brincar com as palavras; escreve porque tem coisas a dizer. Sobre si próprio, sobre os lugares físicos e humanos de onde vem, sobre, sobretudo, o seu povo e a sua conturbada terra. E isso, para mim, vale o livro.

Outrs coisa que vale o livro é, parece-me, a grande variedade de registos, que ajuda a sustentar o interesse. Sem essa variedade, com um tom mais uniforme, as falhas tornar-se-iam mais aparentes. A variedade, que existe até na qualidade do português, o que me leva a supor que estes textos foram sendo escritos ao longo de vários anos, ajuda a disfarçá-las. Há aqui crónicas, há histórias de amor, há uma deliciosa história fantástica que parece saída de uma lenda (e provavelmente é mesmo), há contos-denúncia, enfim, há muita coisa. Em menos de 100 páginas.

Por isso, não tendo gostado deste livrinho, até gostei dele.

Paradoxos, lá está.

Li este livro em versão eletrónica, um PDF que pode ser obtido no site do Instituto Camões. Teoricamente, este link deveria servir para obtê-lo, mas acabei de segui-lo e ir parar a outro sítio. No entanto, o problema não é grande: basta procurar pelo título para facilmente se dar com ele.

Lido: Kultura Passada a Limpo

Kultura Passada a Limpo é uma crónica humorística e muito irónica de José Alberto Braga sobre a problemática da cultura porque se há clichés é para serem usados. E escusam de tentar decidir se com esta frase estou a chamar cliché a escrever-se uma crónica sobre a problemática da cultura ou à expressão "problemática da cultura" propriamente dita, porque eu também não sei. Adiante, que isso não interessa ao tema em pauta (olha, outro). Pois temos aqui uma crónica sobre cultura e o que a rodeia, pejada de trocadilhos, ironias e opiniões de José Alberto Braga que não são de certeza para levar a sério. O que é para levar a sério é o kapa. Isso sim. Há que levar a sério koisa tão kultural komo um kapa!

Opinião? Está bem: sorri. Várias vezes. E gostei de várias frases. É uma boa crónica.

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Lido: O Amaldiçoado de Ish-tar

O Amaldiçoado de Ish-tar (bibliografia), de um tal Artur de Carvalho (provável pseudónimo), é uma noveleta com inspiração clara: Robert E. Howard, em especial a sua série do Conan. Mais pulp não pode haver, mas a verdade é que este conto é invulgarmente bom, mesmo na qualidade do português, ainda que esta fraqueje para o fim, quiçá produto de pressa ou de falta de tempo para revisões mais cuidades e maiores burilamentos. E também no enredo, algo mais sofisticado do que seria de esperar encontrar-se numa revista pulp de meados do século XX, o que até pode ser visto como uma falha.

Numa cidade livre que podia perfeitamente ter sido arrancada à Era Hiborniana (até há shemitas e tudo), a rainha não tem marido e não parece nada inclinada a vir a tê-lo, o que causa preocupações naturais a súbditos e conselheiros: um reino, mesmo citadino, precisa de herdeiros. O que a rainha tem, segundo se insinua à boca pequena, é uma amante, bárbara e guerreira. Lesbianismo no pulp? Ah pois.

E é aqui que entra o herói, também bárbaro, também guerreiro, encarregado a contragosto de viajar até uma ilha distante para matar um terrível minotauro e com os seus cornos fazer uma poção capaz de levar a rainha a perder o desinteresse que sente pelos homens. Ah, mas a putativa amante sabe do plano e junta-se à expedição. E está a confusão armada.

O resultado, apesar de tão formulaico como seria de esperar numa história da velha espada e feitiçaria, acaba por ser interessante, em boa parte devido a algumas reviravoltas que vão ter lugar lá mais para diante e das quais não vale a pena falar. Basta dizer que pondo tudo nos pratos da balança, quer a qualidade do conto em si como a sua adequação àquilo que com ele se pretende, o pastiche do velho pulp, esta deverá ser, até agora, a melhor de todas as histórias do livro. E só faltam duas para acabar.

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sábado, 10 de agosto de 2013

Desafio Improvável à Urbe e à Orbe

Atenção, atenção, cidadãos e cidadãs, oriundos de Seca e Meca, do gigantone ao meia-leca! Tenho um desafio a propor-vos. Um desafio, notem bem, com prémio junto.

Então, como costuma dizer-se, é assim:

Desafio-vos a inspirar-se em qualquer dos contos que publiquei no Infinitamente Improvável e, com base nele, escreverem outro conto infinitamente improvável. Depois, cliquem no que lá irão encontrar e enviem-no, de preferência indicando que conto vos inspirou (embora suponha que isso deva ser quase sempre bastante óbvio). O(s) vosso(s) conto(s) estará(ão) sujeito(s) às regras gerais da publicação no ezine, motivo pelo qual se aconselha vivamente a consulta deste último link, e todos os que me parecerem publicáveis sê-lo-ão. O número de contos por autor depende apenas da criatividade de cada um. No fim do prazo, de entre os publicados ou ainda não publicados mas já selecionados para publicação será escolhido um, e apenas um, para receber o prémio. O critério de seleção será o mais simples possível: aquele de que eu gostar mais.

O prémio é segredo. Não vos direi qual é. Digo-vos apenas que é um objeto físico com valor monetário.

Os contos que vos podem servir de inspiração são os seguintes:
A estes contos, poderão, eventualmente, acrescentar-se outros, se publicar no II mais algum conto meu até ao fim do prazo. E por falar nisso, o fim do prazo é 30 de novembro próximo. Dá tempo mais que suficiente para fazer coisa enxuta.

Interessados? Então toca a escrever.

Lido: Passeio Lunar

Passeio Lunar (bibliografia), longa noveleta de ficção científica de H. B. Fyfe, é um caso quase paradigmático de como uma boa ideia pode ser destruída por um mau escritor. Trata-se de uma história de sobrevivência, ou pelo menos de luta pela sobrevivência. Um astronauta, membro da equipagem de uma base lunar, vê-se de súbito sozinho na superfície do nosso satélite, a centenas de quilómetros da base, dotado apenas de do seu fato espacial e de um grande tanque extra de oxigénio. Isto porque ao aproximar-se da borda de uma cratera o veículo estanque em que seguia se vê apanhado num deslizamento que ele próprio provoca e vai parar ao fundo da cratera, levando consigo todos os companheiros do astronauta, que só se salva por estar no exterior em busca de caminho para o veículo no momento do deslizamento.

Até aqui tudo bem, em especial tendo em conta que a história data de 1952, cerca de década e meia antes do envio das primeiras fotografias da superfície lunar por sondas automáticas soviéticas. Fyfe mostra um entendimento bastante correto da realidade do ambiente lunar, pesem embora algumas ingenuidades naturais para a época, e portanto não é por aí que a história falha. A história falha porque Fyfe é completamente incapaz de transmitir a densidade emocional que uma história de naufrágio exige. Um bom escritor teria feito com esta matéria-prima uma história soberba, carregada de tensão, levando o leitor à cabeça do náufrago. Fyfe, porém, que está quase tão longe de ser um bom escritor como a Terra está do buraco negro no centro da galáxia, consegue a proeza de escrever uma história chata, por vezes até ridícula quando põe o protagonista a falar sistematicamente sozinho, e acha que precisa de uma mulher à espera na base — a única mulher em toda a história, o que torna cristalina a sua função — para conferir à noveleta algum peso emocional.

O resultado é um desastre. É de tal maneira que o título escolhido para a tradução portuguesa, ironicamente, até acaba por se adequar melhor à realidade da história do que o Moonwalk original. Com boa ideia ou sem ela, com um entendimento correto das realidades ambientais da Lua ou sem ele, esta história é péssima.

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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Lido: O Peido e a Matemática Elementar

O Peido e a Matemática Elementar é uma espécie de crónica de Álvaro Lapa sobre um momento, em plena explicação de matemática, em que o explicando solta um pum. E à volta deste comezinho acontecimento Lapa constrói duas páginas de texto, ou até três, talvez, em livro menos amplo, repletas de literatura, desde que o termo se entenda naquilo que tem de mais artificial. Lapa escreve bem, o seu texto é bonito e poético, e até entendo a vontade de procurar elevar algo tão banal a literatura, assim mesmo, toda itálica. Mas, francamente, a literatura itálica de Lapa não me chega. Que me interessa o peido do outro? Ou o outro? Ou a relação entre explicador, explicando, peido e matemática? E porque terão achado que este texto tem piada? Pelo peido? Pela proeminente presença nele da palavra? Não, lamento. Para mim não chega.

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terça-feira, 6 de agosto de 2013

Lido: A Aposta

A Aposta (bibliografia) é, como já terão percebido pelo boneco aqui ao lado, mais um conto fantasmagórico de Hugo Rocha. Este, no entanto, é diferente dos outros. Aqui não se encontra sobrenatural algum, exceto nas cabeças supersticiosas e assustadiças das personagens, e o terror mais ou menos macabro que é de regra encontrar nas fantasmagorias é substituído pelo humor. Passada algures numa aldeia minhota, a história relata as consequências que teve uma aposta com uns copinhos de taberna a mais. Um homem, armado em valente, aposta com dois amigos que é capaz de passar uma hora inteirinha no cemitério naquela mesma noite, sozinho entre campas e as almas penadas, e os amigos, claro, não se fazem rogados. Todos depressa se arrependem, mas nenhum quer dar parte de fraco perante os outros e lá vão, esquecendo-se de que nessa mesma tarde tinha havido o enterro de um dos homens da aldeia e desconhecendo que a viúva, meio doida de dor, tinha decidido ir passar a noite ao relento no cemitério para fazer companhia ao marido. Tudo gente do campo, tudo gente com medo de assombrações, tudo gente que está à espera de tudo menos de encontrar outra gente no cemitério. Não se segue propriamente gargalhada, mas sorriso sim. Este é um conto divertido, que mostra outra faceta na ficção de Hugo Rocha, embora mantendo as suas características estilísticas intactas, tanto as agradáveis (um vocabulário rico e um uso bastante bom do registo oral nos diálogos) como as desagradáveis (uma prosa enovelada e superabundante em vírgulas). Não gostei muito, mas gostei.

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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Lido: Certezas da Dúvida

Certezas da Dúvida é mais um dos textozinhos inclassificáveis de José Alberto Braga, composto por oito perguntas duvidosas com trocadilho incorporado. Coisas ao estilo de "a cigana só sabe ler a sorte, ou também lê o azar?" Não fiquei impressionado, e é só isso o que me ocorre dizer em jeito de opinião.

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Lido: À Procura do Ponto G

À Procura do Ponto G é mais um texto de José Alberto Braga com o objetivo confesso de divertir. Desta feita trata-se de uma crónica, cujo tema está bem expresso no título: o fugidio ponto G que, segundo alguns especialistas na coisa sexual, é um local milagroso intravaginal onde se produzirá um prazer tal que deixa as felizes donas desse local prontas para amarinhar pelas paredes e coiso e tal. E não sendo dos seus textos mais divertidos, não está mal. Diverte. Não muito, mas diverte. E além disso informa. Mal, de forma pouco credível, mas informa. Se é isto o que pretende fazer e é isto o que faz, está tudo certo no reino do ponto G do José Alberto Braga. Salvo seja.

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Lido: A Rassa Humana

A Rassa Humana (cujo título, na verdade, não é assim e só assim fica por não ser possível reproduzi-lo fielmente aqui no blogue; no livro os "ss" de "rassa" estão rasurados e um "ç" está suspenso por cima deles) é mais uma crónica humorística de José Alberto Braga. Aqui, Braga faz-se passar por um tal João Félix, de onze anos, que escreve a duras penas uma redação sobre a raça humana que uma tal Sotôra Mafalda se apresta a corrigir. E fá-lo com piada. Mas devo dizer que é bastante mais eficaz a ter piada do que a fazer-se passar por um puto de onze anos. Nenhum puto de onze anos escreve frases como "antropólogos e sociólogos, depois de tomarem algumas garrafas de whisky, concluíram que o primeiro homem nasceu algures entre a Ilha de Páscoa e o Intendente, mas a sotôra Mafalda garante-me que a teoria tem menos de fundamento e muito mais de teor etílico." Com correções mafaldinas ou sem elas. Simplesmente não acontece, não em putos de onze anos. Seja como for, o texto é divertido, e é isso que se pretende.

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Lido: Léxico às Fatias - Parte I

Léxico às Fatias - Parte I, de José Alberto Braga, é mais um texto dificilmente classificável. Aqui, se Braga pretendeu ter piada falhou redondamente. Mas o mais engraçado é que gostei bastante desde conjunto de frases soltas, insólitas, frequentemente poéticas nas associações inesperadas que despertam. Coisas como "a pedra arremessada voltou envelhecida" ou "a miséria enriquecia a olhos cegos". São praticamente 34 microcontos compostos por um ou dois punhados de palavras cada, e muitos resultam bastante bem. Surpreendentemente bem, diria até. Muito interessante.

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Lido: Epílogo

Epílogo, de Mário de Carvalho, é também uma espécie de conto, apesar do título. Trata-se do texto que encerra o seu livro Casos do Beco das Sardinheiras, o qual acabou de entrar para a minha lista de "livros a ver com urgência se não existirão perdidos na biblioteca dos velhotes e, em caso negativo, a comprar com igual urgência." E é uma história metaliterária, na qual as personagens vêm falar com o autor porque ouviram dizer que este vai deixar de contar as histórias do beco e querem convencê-lo a não se ir embora, que ainda há muita história por contar. Mas o autor está irredutível. Que quer tornar-se um autor sério, e para isso tem de se deixar destes fantásticos humorísticos. Que tem de ser.

Uma história que não só é muito divertida como também é uma forma magnífica de desmascarar a parvoíce de boa parte do establishment literário (embora o de hoje seja menos mau que o de há 30 anos, época em que este livro foi publicado), avesso à ironia e à imaginação, provavelmente por não ser capaz de entender nem uma coisa nem a outra, nutrindo um profundo ódio a tudo o que cheire ainda que vagamente a povo, escondendo a sua inadequação para viver no mundo moderno atrás da arrogância e da presunção de se achar melhor que todos os demais porque lê (ou escreve) os livros "certos". Magnífico.

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domingo, 4 de agosto de 2013

Lido: Histórias de Vampiros

Histórias de Vampiros (bibliografia) é uma antologia, organizada não se sabe por quem, que reúne num único volume uma série bastante diversa de histórias de vampiros. A ideia parece ter sido mostrar a abrangência do termo, talvez como reação a uma certa cristalização de características e maneirismos que as histórias de vampiros vieram sofrendo ao longo dos séculos XIX e, principalmente, XX. Se assim foi, o objetivo foi plenamente alcançado, pois estas histórias mostram, de facto, uma variabilidade bem maior do que a das histórias que se baseiam, de perto ou mais de longe, nos vampiros de Bram Stoker. Umas mais próximas das histórias populares que originaram a literatura, outras mais afastadas, umas claramente de horror, mais ou menos gótico, mais ou menos romântico, outras onde o vampirismo surge apenas como parte imaginária de acontecimentos reais ou realistas, estas dez histórias combinam-se para gerar uma antologia com frequência surpreendente, em especial para quem não está a par dos primórdios do género e das suas ramificações.

Juntando a isso um conjunto de traduções que me pareceram boas, embora as várias versões livres que nela se podem encontrar não raro me tivessem levado a interrogar-me sobre qual a percentagem que o autor original teria em fim de contas no resultado, temos uma antologia não só bastante boa mas também bastante relevante. Querem um apanhado abrangente sobre o que se incluía no tema vampírico antes da recente moda de histórias mais ou menos concebidas para meninas adolescentes ter alterado parte significativa das regras do jogo? Leiam este livro.

Só achei falta de alguma história que combinasse vampiros com ficção científica, porque sei que há várias e boas. Até na língua portuguesa, com as histórias de Gerson Lodi-Ribeiro do universo dos Três Brasis, protagonizadas pelo Filho-da-Noite. Mas nunca se pode ter tudo.

Eis o que achei das dez histórias:
Este livro foi comprado.

Lido: A Maldição do Almocreve

A Maldição do Almocreve (bibliografia) é mais um conto de fantasmas de Hugo Rocha. E é o pior conto do livro até agora. Não por se passar no campo, nos caminhos recônditos que outrora ligavam as aldeias da Beira Alta. Nem sequer devido ao já característico estilo enredado e submerso em vírgulas que o autor utiliza. Mas porque é uma história mal pensada e executada apressadamente.

O protagonista, de novo também narrador, é um homem que tem por hábito viajar a pé pelo pinhal entre a sua aldeia e uma vila próxima, tanto de dia como de noite. Uma bela noite, encontra a meio do caminho uma mulher caída. E benze-se, assustado, enquanto se vai aproximando a medo. Mas é só uma mulher, acha ele, e tudo fica bem. Ela pede-lhe para a acompanhar até casa que é já ali, no meio do pinhal, e ele que sim senhora, que com certeza. Depois... depois repara nas sombras que o luar gera. A sua está lá como deve ser; mas da da rapariga, que segue a seu lado nem sinal. E? E nada. O homem nem os ombros encolhe. O facto não aquece nem arrefece a mesma pessoa que pouco antes se tinha assustado e benzido ao ver um vulto no caminho.

Hã?!

Alguém se devia ter virado para o autor e dito "ó Hugo, pá, vê lá se dás um jeto aqui a isto, que não faz sentido nenhum." E a mais duas ou três coisinhas que foram aparecendo ao longo do conto. Porque este até tinha potencial para ser bom; uma boa história de maldição e vingança vagamente vampiresca, beneficiando de um ambiente rural português que até está bem conseguido. Mas com tão gritantes falhas de enredo, não. É pena.

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Lido: Tira a Mãe da Boca

Tira a Mãe da Boca é mais uma incursão de José Alberto Braga pelos caminhos do fantástico, desta feita por via mitológica. Aqui estamos perante um teatrinho, ou talvez um sketch, no qual é rapidamente recontada a lenda de Édipo. A muito problemática lenda de Édipo, com todas as confusões geradas pelo facto do velho jovem rei ter tomado por esposa a própria mãe. Bom material para tratamento humorístico? Sem dúvida. E Braga consegue ter piada, socorrendo-se para isso não só do humor situacional inerente à história, mas também de coisas como anacronismos: logo no início, por exemplo, Édipo recebe nada menos que um email. Nada de antologia, mas divertido.

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Lido: Valente

Valente (bibliografia), de um tal Fausto Boamorte que provavelmente será pseudónimo de Guilherme Trindade, é outro conto que nada tem de fantástico, se ignorarmos a bizarria que é termos um morto a narrar esta história na primeira pessoa. E acalmem-se os spoilerófobos mais estridentes porque isto não desvenda nada que não seja logo desvendado na introdução do próprio conto.

Trata-se de uma aventura policial, um pouco em clima de policial negro, com o seu característico detetive duro e amargurado pela vida a servir de herói no seio de uma sociedade corrupta da base ao topo e com a não menos característica mulher fatal a levar à sua perdição. Donzelas em apuros que procuram os improváveis cavaleiros em armadura reluzente que são os detetives privados mortos de fome são o pão nosso de cada dia no policial negro, e esta história faz bastante bem o respetivo pastiche, mantendo o clima sombrio até ao fim. Há até um português surpreendentemente bom, a espaços, cheio de achados de linguagem bem engendrados e com um ritmo muito bem conseguido, embora entrecortado por outros trechos em que as coisas não correm tão bem. Se não fosse conto a imitar ficção barata, dir-se-ia que só lhe faltaria uma revisão atenta a polir algumas arestas para estarmos perante uma história realmente boa (desde que continuássemos a ignorar a tal conversa de ser narrado por um morto, sublinhe-se). Sendo-o, aceita-se plenamente assim mesmo, com falhas e tudo.

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sábado, 3 de agosto de 2013

Lido: Confissão do Vampiro de Londres

Confissão do Vampiro de Londres (bibliografia), de John Haigh, é uma estranha peça literária. Estranha e perturbadora. John George Haigh foi um assassino em série inglês, condenado e executado em 1949 pelo assassínio de seis pessoas, cujos cadáveres dissolvia num banho de ácido, o que deu origem à sua alcunha mais conhecida: Assassino do Banho de Ácido. Ele, no entanto, afirmava ter matado nove pessoas. E este texto é a sua confissão, alegadamente escrita na véspera da execução, mas ao lê-lo não pude deixar de o achar demasiado polido e até literário para acreditar plenamente que se trate da confissão pura e não retocada de um louco.

Sim, que o homem que Haigh descreve ao descrever-se a si próprio é um louco, e não me refiro apenas à psicopatia característica dos assassinos em série. Atormentado por sonhos de cariz religioso que atribui (provavelmente com razão) à educação que recebeu de uma família fanática, e por um desassossego, uma espécie de inquietação, que só se acalma quando, depois de matar as suas vítimas, lhes bebe o sangue ainda quente, a insanidade do narrador desta história de crime e horror é bem patente. Mais: não há, em toda a confissão, o mais pequeno sinal de experiências literárias anteriores, salvo menções a trocas de correspondência com várias pessoas. E no entanto o texto está estruturado como um conto, incluindo até diálogos, com um bom ritmo e um bom uso da linguagem, e mostrando em geral um domínio das técnicas narrativas que não seria de esperar de um homem inexperiente, muito menos de um louco.

É possível que este texto tenha sido escrito por Haigh, assim mesmo. Também é possível que reflita a verdade dos factos. Mas é igualmente possível que a história tenha sido romanceada, talvez pelo próprio Haigh, num exercício de narcisismo que é muito típico dos psicopatas, talvez por outra pessoa. Especulando bastante, parece-me ser esta última alternativa a mais provável; é que, de acordo com uma nota incluída no livro, este texto foi publicado dias depois da execução por três prestigiadas revistas de outros tantos países, e não me custa nada imaginar um jornalista qualquer a reescrever um texto tosco, servindo-se para isso de técnicas literárias que bem sabe serem capazes de despertar e conservar até ao fim a atenção do público.

Seja como e o que for, ficção ou não, é um texto fascinante.

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Lido: A Luz

A Luz (bibliografia) é um estranho conto de ficção científica de Poul Anderson, de novo sobre a primeira viagem à Lua. Só que desta feita a história não versa tanto sobre a viagem propriamente dita, como sobre aquilo que os astronautas encontram ao chegar lá.

Escrito em jeito de depoimento, na primeira pessoa, por um narrador que teria sido um dos membros da primeira expedição, o conto passa em revista a viagem, alunagem e primeira exploração das cercanias, bem como as tensões e receios que teriam vindo ao de cima durante a viagem, tanto os internos, relativos a choques de personalidades entre os tripulantes, como os que têm mais a ver com a geopolítica de um planeta Terra profundamente mergulhado na Guerra Fria (e cheio do maniqueísmo infantil do "nós - bonzinhos; eles - malvados"). Mas o que realmente importa é o desfecho. O segredo que a teimosia do tripulante que narra a história levou a descobrir. Nada direi sobre o que é, porque é desse mistério que o conto depende. Direi apenas que a plena revelação do conto tem mais impacto junto de quem conheça razoavelmente bem a pintura ocidental, podendo acontecer que muitos leitores fiquem a coçar as cabeças, confusos.

Embora resulte razoavelmente bem como conto de ficção científica, julgo que esta história de Anderson é mais homenagem do que outra coisa. Homenagem a um herói pessoal, provavelmente. Vendo-a por esse prisma, é uma história melhor do que se vista à lupa da FC pura e dura. Por mim, é uma boa história. Não a melhor do livro, mas boa.

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