segunda-feira, 31 de julho de 2017

Lido: E Atenção: Notícia Urgente!

Pelo menos desde o dr. Frankenstein e o seu monstro, a ficção científica está repleta de histórias cautelares sobre os avanços cientifico-tecnológicos quando não vêm acompanhados por uma ética rigorosa, ou quando, simplesmente, escapam ao controlo dos seus criadores. E não me refiro apenas às múltiplas histórias sobre cientistas loucos, embora estas também se insiram neste grupo. Falo dos milhares de histórias que mostram as coisas a correr mal por causa do impacto de alguma nova tecnologia ou de alguma experiência. É natural que sejam tantas, visto a FC lidar com a ciência e a tecnologia e, como qualquer escritor iniciante sabe, histórias em que as coisas correm mal tendem a ser bastante mais interessantes do que histórias em que tudo corre bem. Mas isso tem consequências, e algumas são sérias. Vou falar em breve aqui na Lâmpada de algumas dessas consequências, porque tenho andado a ler uns artigos científicos muito interessantes. Depois explico. Por agora fica este preâmbulo só para dizer que:

E Atenção: Notícia Urgente! (bibliografia) é mais uma dessas histórias. Uma história extremamente cínica, que abre numa reportagem de uma estação de rádio, acompanhada por uma entrevista com o cientista responsável, sobre um grupo de ativistas contra os organismos geneticamente modificados que se manifesta à porta de uma estufa onde se desenvolve pesquisa sobre esses organismos. Romeu Martins faz tudo degenerar num paroxismo de violência, que interrompe a emissão de rádio, passando depois a uma segunda parte composta por uma conversa entre o cientista entrevistado na primeira parte e um empresário, na qual ficamos a saber que tudo, violência incluída, foi uma experiência com vista ao desenvolvimento de uma arma. Nem cientista nem empresário mostram o mais leve sinal de escrúpulos. As centenas de mortes e a destruição de uma instalação de pesquisa? Danos colaterais, insignificantes perante os lucros potenciais.

Não foi conto que me tivesse agradado muito. Há no distanciamento primeiro do relato radiofónico e depois da conversa fria entre os dois responsáveis, algo que a meu ver enfraquece a história. Ela seria mais forte (mas também mais longa, o que me parece ter sido um fator tido em conta na decisão de escrever a história assim) se tivesse personagens diretamente envolvidas nos acontecimentos, que os sentissem na pele. Assim, ficamos com alguns infodumps, um relato em geral distanciado de toda a verdadeira ação que o conto contém e com uma conversa entre dois sociopatas, na qual recebemos mais infodumps. Não me agrada particularmente. Não é um mau conto, até é um conto interessante, mas não me parece que chegue a ser bom.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Nem Tudo é História

Depois de uma longa série de contos neorrealistas, ou pelo menos inspirados pelo neorrealismo, ao chegarmos à história de David Mourão-Ferreira encontramos algo de diferente. Nem Tudo é História é uma fantasia onírica, descrevendo uma rocambolesca série de peripécias que acontecem ao protagonista-narrador e a uma mulher que o acompanha "noites e noites a fio". Tudo muito carregado de imagens cinematográficas, repleto de metamorfoses e das mudanças surreais de cena em que os sonhos são pródigos. E tudo escrito e descrito de uma forma concreta e detalhada que lhe confere solidez, mesmo que o texto não desconheça a poesia, sendo a experiência de leitura temperada pelo elemento surpresa e pela interrogação sobre onde quererá o escritor chegar com tudo aquilo. Será apenas a descrição de um sonho, ou haverá por trás dessa superfície mais alguma coisa?

E então chega-se à penúltima página e descobre-se que sim, há mais alguma coisa. Há política, alguma, há um comentário sobre a forma como a História com maiúscula se interseta com as histórias pessoais de todos nós e há, no fundo, uma reflexão muito pertinente sobre a natureza da literatura, sobre os eternos ziguezagues que ela faz entre o inventado e o real. É um conto francamente interessante, este. E muito, muito bem escrito.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 30 de julho de 2017

Lido: E de Espaço

Ray Bradbury é geralmente visto como um escritor de ficção científica, mesmo quando o colocam num patamar algo especial entre os escritores de FC (há quem lhe chame, por exemplo, o poeta da FC). Essa designação tem o problema de poder levar o leitor pouco conhecedor a julgar que tudo na obra de Bradbury é ficção científica, o que está bastante longe de ser verdade. Bradbury escreveu FC, é certo, e as suas obras mais (re)conhecidas pertencem ao género (Fahrenheit 451, Crónicas Marcianas), mas escreveu também horror, tanto do verdadeiro como de uma espécie particular de horror doce, centrado na nostalgia da infância e nas brincadeiras de Halloween, que hoje provavelmente se incluiria na fantasia urbana, escreveu também fantasia, alguma da qual se fosse escrita mais tarde e por um escritor latino-americano receberia com toda a certeza o rótulo de realismo mágico, e escreveu também textos que pouca ou nenhuma relação têm com os vários géneros da ficção especulativa e geralmente se reúnem sob a designação de americana, muitas vezes juvenil. E escreveu muitas coisas que se situam algures entre estas várias vertentes da arte de criar histórias com palavras.

Pois este E de Espaço (bibliografia) é, apesar do título, um bom apanhado dessas várias vertentes da arte de contista de Bradbury. Não as mostra a todas, mas mostra a maior parte. Não procura reunir apenas os contos mais extraordinários do autor, mas inclui pelo menos um, talvez dois, a que soma um punhado de outros contos muito bons e muito poucos (talvez mesmo só um) contos abaixo do bom. Não será uma obra-prima mas é uma coletânea muito satisfatória, especialmente tendo-se em conta as datas de produção da maior parte destas histórias, o que permite captar os ecos que nelas existem da Segunda Guerra Mundial, a qual tinha decorrido poucos anos antes.

Sim, porque se é certo que a ficção científica e, em geral, todas as vertentes das literaturas do imaginário, são muitas vezes acusadas de serem escapistas, não é menos certo que essa é uma leitura extremamente superficial, pois o contexto em que são produzidas, seja histórico, seja político, seja mesmo literário ou editorial, marca-as com grande clareza para quem souber ler o que está abaixo da superfície. Mesmo quando as coisas pretendem de facto ser escapistas, contêm informação abundante sobre os contextos histórico e ideológico que são vistos pelos autores como tranquilizadores, o que, indiretamente, informa sobre o que encontram de perturbador nas circunstâncias de que pretendem ajudar a escapar.

E Bradbury não pretende ser escapista, bem pelo contrário.

Eis o que achei dos contos individualmente considerados:

Lido: Ode (Quase) Marítima

Aos moribundos, conta-nos o mito, passa-lhes a vida inteira perante os olhos nos momentos que antecedem a morte. É esse mito, parece, que inspirou Augusto Abelaira a escrever este solilóquio que intitulou de Ode (Quase) Marítima, no qual um homem, um velho, matuta sobre a vida que viveu enquanto o seu cérebro vai aparentemente sendo consumido por um derrame. Não foi texto que me tenha agradado por aí além. Em parte por isso mesmo, porque a ideia já está muito vista, porque solilóquios de moribundos existem aos pontapés na literatura. Em parte porque Abelaira usa aqui um estilo que com toda a franqueza me irrita, entrecortando o texto com uma quantidade apreciável de apartes entre parênteses cuja frequência, curiosamente, vai diminuindo para o fim da história, o que sugere que até ele se foi fartando. E em parte porque é história sem história, sem sombra de enredo, um longo fluxo de consciência, ou talvez de inconsciência, que poderia ser apelativo se ao menos me tivesse conseguido despertar alguma espécie de interesse pelo protagonista. Não conseguiu. Fica um bom tratamento da língua e pouco mais. Há leitores para quem isso basta. Há leitores, até, para quem isso é tudo. Não sou um desses leitores, nem dos primeiros nem muito menos dos segundos.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 29 de julho de 2017

Lido: Os Caminheiros

Os Caminheiros, de José Cardoso Pires, e apesar de nada ter de fantástico, é outro conto que me traz à memória as ficções científicas do Telmo Marçal. E não é difícil perceber porquê para quem leia estas e aquele: os caminheiros são gente mergulhada na mais profunda miséria, económica, sobretudo, mas também na miséria humana que a falta de recursos muitas vezes origina. O que aqui é descrito é a venda de um mendigo cego, que ganha a vida (as raspas dela que consegue ganhar, pelo menos) cantando modinhas acompanhadas à viola. Quem o vende é o companheiro de mendicidade, e vende-o com o mesmo tipo de atitude (e desespero) de quem vende uma peça de gado velha e doente. É um conto forte, este, muito baseado em diálogos que vão mostrando ao leitor, aos poucos, quem são e o que pensam as três personagens (o cego, o vendedor e mais tarde o comprador).

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Lido: A Meia Hora de Sol

Em Portugal, antes do 25 de Abril, houve uma significativa atividade literária de resistência. Uma multiplicidade de autores produziram obras em que refletiam umas vezes mais diretamente, outras menos, o dia-a-dia de quem se opunha ao regime. Nesta antologia há várias dessas histórias e este A Meia Hora de Sol, de Urbano Tavares Rodrigues, é mais uma.

Neste conto, muito curto, a história que se conta é uma história de amor interrompido pela prisão. Urbano não o diz claramente, mas não é difícil adivinhar que é uma prisão política que obriga o casal a passar a comunicar esporadicamente por carta, sempre sujeita aos olhos da censura, e nas raras visitas que a mulher faz à cadeia. E isso, essa falta de privacidade, tem consequências, exacerbadas pela tendência humana para imaginar o que não se sabe e extrapolar a partir de informação insuficiente. Este é outro conto bom, ainda que me pareça demasiado curto para realmente causar impacto. A história depende da psicologia das personagens e esta é-nos dada a pinceladas que talvez sejam demasiado rápidas.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Lido: Filosofia Verde

Será muito estranho ler um conto de Agustina Bessa Luís, autora das mais reconhecidas pelos bem-pensantes literários, e lembrar-me dos ambientes do Telmo Marçal, cultor de uma das mais menorizadas facetas da literatura, a ficção científica? Se é, foi o que aconteceu com esta Filosofia Verde. Trata-se de um conto macabro, mas não é bem esse o motivo por que me trouxe à memória as ficções do Marçal. Essa evocação foi questão de protagonistas e de ambiente. Nesta história, aqueles são dois homens (principalmente um) que assumiram como ofício recolher vítimas de morte súbita que caiam fulminadas na rua, numa cidade sem nome mas perigosamente fria, tratando a morte e a degradação da sua própria condição com o mesmo à-vontade fatalista que os protagonistas de Marçal apresentam. Este é uma cidade tão assolada pela morte que permite a existência de quem ganhe a vida simplesmente ficando de atalaia à espera que alguém caia de repente sem vida na rua, contando depois com as recompensas que familiares imagina-se que chocados mas certamente gratos lhes darão. Trata-se de uma ideia inerentemente fantástica, com tudo a ver com as distopias absolutas que encontramos nas histórias do Telmo Marçal, embora Agustina não torne o facto explícito. É aí que as histórias mais divergem, e também no substrato ideológico que lhes subjaz, pois ao passo que Marçal nunca dá às suas criaturas quaisquer elemento de esperança, não encontra nada que redima as suas personagens, Agustina escreve, no fundo, sobre o valor da amizade mesmo nas piores circunstâncias. E também na qualidade da prosa, pois Marçal, sendo bom no manejo da língua, não chega no entanto perto de Agustina.

Dito isto, vou ter aqui uma decisão a tomar quando chegar a altura de integrar no Bibliowiki as histórias desta antologia: serão os elementos fantásticos neste conto suficientes para merecer inclusão? Felizmente é decisão que pode ficar para mais tarde. Para já, leva a etiqueta, mas mais para não me passar ao lado por distração do que por outro motivo. Depois decidirei em definitivo.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Lido: Balada

De longe vem a tentação que assalta muitos escritores para escolherem falar de animais quando na realidade estão a falar de homens. É o que faz Mário Braga neste breve conto, apesar de não seguir pelo caminho mais comum da fábula mas pelo (neo?)realismo de um conto rural cujo protagonista é um pastor pobre. Ambientado na Serra de Queiró, agreste terra ficcional que lembra a terra fria trasmontana ou talvez as alturas da Estrela, Balada passa-se num inverno intenso, sem pasto, que faz as ovelhas do pastor definharem de fome. O contraste é feito com um rico local, cujo gado não passa necessidades independentemente das intempéries. Contraste de injustiça, naturalmente; que mal fizeram as ovelhas do protagonista para morrerem de fome quando as outras vivem sãs e anafadas? Não serão no fundo todas iguais? São estas as ideias que germinam na cabeça do pastor e o levam a tomar uma atitude. Da fome das ovelhas se fala falando da fome dos homens, e da forma como o que se faz para minorar essa fome corre sempre o risco de acabar traído, não pelos donos do poder, mas por outros homens igualmente miseráveis que, em vez de se unirem para acabar com as desigualdades, são lestos em apontar o dedo aos que violam as normas.

É um conto profundamente político, este, mesmo falando-se apenas de gado. Essa obliquidade era talvez uma necessidade no Portugal de 1948. Mas a verdade é que isso melhora a obra. O óbvio raramente é bom.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 25 de julho de 2017

Lido: Os Corvos

Se lida de uma certa forma, esta pequena história de Carlos de Oliveira (de que julgo nunca antes ter lido nada) é um conto de horror, e as múltiplas citações, referências e reverências a Edgar Allan Poe que a percorrem de princípio ao fim provavelmente indicam que essa é a leitura certa. Entre o lirismo e a fantasmagoria, Os Corvos descreve uma casa de penhores e Lucas, o seu dono, com uma escrita de grande qualidade. Escrito em primeira pessoa, o conto quase não tem enredo. É daqueles contos que se dedicam a cristalizar um momento especial, ou pelo menos os derradeiros minutos ou segundos que nesse momento acabarão por desembocar. Que momento? Digamos só, para não estragar a surpresa de quem não for demasiado bom entendedor, que o narrador talvez não seja propriamente humano e talvez queira do bom (ou nem por isso) do Lucas algo bem diferente de um penhor. Algo que talvez fosse a última coisa que o Lucas quereria dar.

É mais um bom conto, este. Com apenas duas páginas talvez se pudesse julgá-lo demasiado curto, mas tem a dimensão certa para o que pretende contar.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Lido: O Grande Segredo

É curiosa a arrumação dos contos nesta antologia. Já por mais de uma vez contos sucessivos parecem ter sido escolhidos, ou pelo menos encaixados no livro, por forma a realçar o contraste que fazem uns com os outros, mesmo quando, ou até sobretudo quando, os temas são no todo ou em parte comuns.

É o que acontece com este conto de Jorge de Sena e com o anterior, de Sophia de Mello Breyner Andresen. O fundo católico é comum a ambos, e no entanto dificilmente poderiam ser mais diferentes. Enquanto o conto de Sophia é basicamente realista (a menos que se ache que o homem ser fulminado sem motivo tem algo de miraculoso, o que não me parece), o de Sena é fantástico; ao passo que o de Sophia é no fundamental beato, Sena arma-se de iconoclastia e leva-a para dentro de um convento, mostrando-nos uma freira que é visitada por um ele que subtis pistas revelam ser o mesmíssimo Jesus Cristo que Sophia escreve a morrer, mas no conto de Sena não é homem, antes entidade luminosa, aparentemente feita de energia mais ou menos pura. Uma entidade sobrenatural que faz visitas regulares à freira. Uma entidade que, bem longe de estar morta, dificilmente se podia revelar mais viva. E esse é O Grande Segredo a que o título alude, pois só podia ficar em segredo que um Jesus Cristo insubstancial mas luminoso tivesse escolhido uma das suas "esposas" para com ela ter refulgentes encontros sexuais, para grande reverência e não menor inveja das demais freiras.

A iconoclastia, religiosa ou não, diverte-me. O fantástico agrada-me. Se a isso se soma um português de primeira água, como é o caso, só posso achar o conto ótimo.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 23 de julho de 2017

Lido: O Homem

Sophia de Mello Breyner Andresen ganhou renome nas letras portuguesas por via da sua criação poética, não da narrativa. E, se este O Homem é típico dessa vertente da sua obra, percebo bem porquê. A narradora em primeira pessoa é uma mulher que deambula pelas ruas da cidade e de repente depara com um homem, pobre mas belíssimo, que olha o céu, imóvel, como se fosse uma representação absolutamente óbvia (tanto que até tem citação bíblica a temperar o refogado) de Jesus Cristo. Sophia ainda remói um pouco, ainda põe a sua protagonista a andar para trás e para a frente, mas é desde logo evidente que acabaria por reencontrar o tal homem, ainda que não o fosse tanto o que aconteceria quando encontrasse. E o que acontece? Pois o homem cai ao chão num lago de sangue, fulminado sabe-se lá pelo quê, num tom de melodrama completo com orfãzinha e tudo (cuja única função na história parece ser amplificar a tragédia) e que a narradora procura alcançar mas sem nunca conseguir. Algo (no conto são os outros, mas serão mesmo os outros?) a impede de alcançar, de tocar Jesus, mesmo afirmando a rematar que ele anda por aí. Há de ser questão de fé.

E nem sequer se encontra neste conto aquele uso preciso da palavra em que os poetas costumam salientar-se, à parte algumas imagens de grande qualidade que sobressaem aqui e ali. No geral, o conto é quando muito mediano. Não fiquei nada impressionado.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 22 de julho de 2017

Lido: O Rapaz do Tambor

Tal como acontece em A Lata de Conserva, de Mário Dionísio, neste conto de Fernando Namora a escolha do ponto de vista faz toda a diferença. Como na história de Dionísio, também aqui as duras realidades do mundo são apresentadas ao leitor com a subtileza de serem vistas por olhos ingénuos, ainda que essa ingenuidade não nasça do privilégio socioeconómico mas da infância. O Rapaz do Tambor é isso mesmo, um rapaz, cuja infância é ilustrada por um quadro marcial que a família tem em casa e no qual figura em posição de destaque um tambor. Esse tambor fá-lo sonhar (ao ponto de surgir uma tenuíssima sugestão de fantástico perto do início do conto, demasiado ténue para ter alguma relevância) e é com autêntico júbilo que recebe um tambor de presente.

Entretanto, quem não for totalmente ignorante da realidade histórica dos anos 50 portugueses vai percebendo algumas coisas que o rapaz do tambor não percebe. Vai percebendo que o pai é oposicionista, por exemplo, e tem em casa reuniões clandestinas com outros antifascistas. Percebe — mais cedo que o rapaz, que também acaba por perceber — que uma viagem que o pai faz não é viagem nenhuma mas uma temporada passada nos calabouços da PIDE. Percebe que um súbito ambiente de esperança e agitação perto do fim do conto é motivado pela candidatura presidencial de Humberto Delgado. Percebe, enfim, o contexto. Muitíssimo bem entregue, esse contexto.

E depois chega o fim, um violento murro no estômago do leitor, tão congruente com tudo o resto mas ainda assim surpreendente. Um fim que, sozinho, consegue transformar um conto francamente bom num grande conto. Sim, este é um grande conto.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Lido: Mãe Genoveva

Mãe Genoveva é um conto com muito de neorrealista sobre uma mulher, a Mãe Genoveva do título, cuja vida se altera profundamente quando perde um filho, o seu Vicente, num acidente de trabalho numa fábrica. E é aqui que este conto de Vergílio Ferreira se afasta dos últimos, pois o fantástico assoma subtilmente quando aparece na narrativa outro filho, outro Vicente, cujo crescimento a mulher acompanha como se realmente seu filho fosse. Mas há aqui uns detalhes que sugerem que não senhor, esse fantástico é mais aparente que real, e de Vicente o novo Vicente só tem mesmo a vontade de lutar por um mundo melhor. Até que um dia desaparece e é substituído por outro, e por outro, e por muitos outros que Genoveva acolhe maternalmente, transformando-se numa base de apoio para a luta clandestina em tempos de fascismo. Tudo subtilíssimo, tudo, no fundo, todoroviano, pois a dúvida nunca anda muito longe da interpretação, o que as muitas imagens poéticas da prosa de Vergílio Ferreira só realçam. Que tenha de facto havido mulheres assim, algumas levadas ao combate por um sentido de justiça violentado, outras por tragédias pessoais ou familiares provocadas pela repressão e pela exploração, só solidifica melhor a personagem. Sim. Este conto é realmente bom.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Lido: A Lata de Conserva

Este conto de Mário Dionísio é praticamente perfeito para ilustrar aquilo que pode servir para pegar num conto sobre a banalidade e fazer com que deixe de ser banal e por isso desinteressante, especialmente pelo contraste que faz com o conto anterior, Desportos de Inverno. De facto, também em A Lata de Conserva a situação é banal. Numa cidade, provavelmente Lisboa, uma jovem ociosa e aborrecida assiste da janela a uma comoção na rua: um lojista que larga a correr atrás de um miúdo, aos gritos, situação que se resolve quando um polícia apanha o perseguido. Percebe-se facilmente que o miúdo roubou uma lata de conserva, mas o que coloca esta história vários furos acima da de Luís Forjaz Trigueiros é principalmente uma coisa: a perspetiva escolhida por Dionísio, a da jovem privilegiada, para olhar uma cena em que a miséria e a fome se confrontam com os mecanismos mais ou menos bem oleados de uma certa sociedade, cria uma subtileza na denúncia das desigualdades sociais que eleva a banalidade da cena a um patamar diferente. Este é um caso de um conto muito bem construído, no qual o ponto de vista faz toda a diferença. Também está bastante bem escrito, mas isso acaba por ser algo secundário, mesmo ajudando. E assim uma história banal ganha real interesse. Não é esta a única maneira, mas é uma maneira.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Lido: Desportos de Inverno

Há um tipo de conto que faz as delícias dos apreciadores da literatura realista mas de que eu nunca consegui gostar, a menos que estejam mesmo extraordinariamente bem escritos e concebidos. São os contos mundanos, que descrevem pequenos sucessos e insucessos do quotidiano. Os apreciadores da coisa deliciam-se com o reconhecimento de paisagens e personagens, adoram aquela sensação de ah, eu conheço um tipo igualzino a este gajo, uma gaja que é escarrapachada esta tipa, especialmente quando os escritores as situam em paisagens que lhes são familiares. A mim, isso enche-me de tédio, com a ressalva expressa acima. De banalidade tenho eu a vida demasiado farta para ainda gostar de apanhar com ela na literatura.

Pois bem, este Desportos de Inverno, de um Luís Forjaz Trigueiros de quem julgo que nunca antes tinha lido nada, é conto recomendável apenas aos apreciadores da banalidade. Uma cena de engate frustrado num café qualquer de Lisboa, mediano na escrita e banal nas personagens, nada nele me despertou o interesse. Não é um mau conto, entenda-se; é só um conto que me deixou uma certa sensação de tempo perdido.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 16 de julho de 2017

Lido: Maria Altinha

Manuel da Fonseca, como Alves Redol, foi um dos escritores mais conotados com o neorrealismo e, não por acaso, o seu conto que é aqui incluído tem muitos pontos de contacto com o que o antecede. Muda o género, Maria Altinha é mulher e o rapaz de Redol é um homem mas, tal como este, também a personagem de Fonseca é pobre e trabalhadora agrícola, e por isso sujeita às violências quotidianas que acompanham essa condição no Portugal de meados do século XX. Mas o género tem importância, e a história que Manuel da Fonseca apresenta é a história de uma violação.

Sim, o conto é duro, é violento, está bem escrito e bem elaborado, mesmo não sendo daqueles contos que esmagam pela perfeição literária. Mas tenho sérias dúvidas de que consiga refletir fielmente toda a carga da situação. Manuel da Fonseca é um homem a escrever sobre uma violência sofrida sobretudo por mulheres. Percebe-se que se solidariza, mas não a sente. Pelo contrário, parece até mostrar alguma compreensão, mesmo que renitente, pelo violador e aquilo que o move. Parece querer dizer "os factos da violação são estes, tirem as vossas conclusões", mas ao mesmo tempo também parece remeter para a condição social a maior parte da responsabilidade pelo ato de violência sexual. E tudo isto me levanta reservas. Foi um conto que li com mais incómodo do que gosto, e não um incómodo bom.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Lido: Reflexões do Diabo

O que diria o Diabo, esse mesmo, o Mafarrico, o Coisa-Ruim, o isto e aquilo que o panteão cristão (e não só) desterrou para as fogosas profundezas do Inferno, se alguém lhe pedisse opinião sobre o que dele se vem dizendo por aí ao longo dos séculos? Coisa boa não seria de certeza, certo? Aliás, todos nós faremos uma ideia razoavelmente segura dos argumentos de tal criatura que, com grande probabilidade, não andarão longe dos que João Cerqueira aqui apresenta.

E talvez seja precisamente por aí que este livrinho (sim, "inho", que são meras 45 páginas num tipo que ainda por cima é razoavelmente corpulento) mais peca, com perdão da graçola (pecar, topam? Hi hi hi... Hi... OK, desculpem). É que o que o Diabo nos diz nestas Reflexões do Diabo (bibliografia), quase sempre, são coisas que criaturas bem menos diabólicas, bem humanas, feitas de carne, osso e algumas ideias, vêm dizendo há séculos. Elaboraram-se teologias inteiras com base nessas coisas e quando se saiu do âmbito teológico também serviram de base a muita filosofia. Pois o tema será superficialmente a defesa do Mafarrico, mas na verdade é da natureza humana e as suas falhas e insuficiências que se trata, as quais o diabólico narrador assaca, com total naturalidade, a outrem e que, no fundo, bem conhecem todos os que nutrem alguma curiosidade pelo mundo e as criaturas que nele habitam. Só chocará minimamente, julgo eu, quem pelos dogmas religiosos sinta verdadeiro fanatismo. Bem sei que existem, mas está muito longe de ser o meu caso.

Nada há aqui, portanto, de muito novo. Há uma forma humorística de apresentar as coisas, que por vezes tem real graça, há um texto com qualidade, há as ilustrações de Horácio Frutuoso, bastante interessantes mesmo que por vezes pareçam não ter muito a ver com o texto, três coisas a elevar este livro acima da mais completa banalidade. Mas não muito acima, infelizmente. Foi livro que soube a pouco, e não só pela extensão.

Este livro foi, se bem me lembro, oferta no âmbito da promoção "pague 2, leve 3" que a editora faz há largos anos. No fundo foi comprado, portanto.

domingo, 2 de julho de 2017

Lido: O Rapaz não Gostava das Mãos

Alves Redol foi uma das figuras de proa do neorrealismo português e este conto, O Rapaz não Gostava das Mãos, não deixa ficar esse crédito por texto alheio. Muito curto mas bastante forte, como é apanágio do movimento, conta um episódio passado em Bucelas, que hoje poderá ser um dormitório de Lisboa mas em tempos passados não há tanto tempo assim era região quase tão interior e pobre como os contrafortes da Serra da Estrela, quando um jovem, trabalhador à jorna, chega a uma taberna e, raivoso, pede uma garrafa de vinho. Segue-se um desabafo, durante o qual ficamos a saber por que motivo o rapaz não gostava das mãos.

Trata-se de uma história com inquietações sociais claras, a que aqueles que apreciam as suas ficções absolutamente ocas e alienantes poderiam mesmo chamar panfletária. Ignorem-nos, agora e sempre. É uma bela história, na qual Redol, com grande economia de meios, consegue pintar um retrato muito duro da vida dos assalariados agrícolas no Portugal de meados do século XX. Uma história capaz de incomodar consciências? Ainda bem. É precisamente para isso que serve a arte.

E sim, nada aqui existe de fantástico. Afinal, o movimento chamava-se neorrealismo.

Contos anteriores deste livro: