No último par de semanas vi-me por várias vezes forçado a explicar umas coisas que julgava básicas sobre as relações que pode haver entre as palavras, sua pronúncia e suas grafias. A pessoas diferentes, bem entendido; acho que todas aquelas a quem expliquei ficaram esclarecidas. A última sessão foi hoje. Mas chateia estar a repetir as mesmas coisas uma e outra vez, além de haver sempre alguma dificuldade com os exemplos, que nem sempre estão tão na ponta da língua como seria desejável. De modo que decidi fazer um post. Para a próxima, a resposta será: "olha, fiz um post sobre isso na Lâmpada", seguida de um link se a conversa for eletrónica, seguida de um "vai lá ver" (e provavelmente dum resumo) se for presencial.
Então vamos lá.
A esmagadora maioria das palavras, como todos sabemos, são diferentes umas das outras, tanto na grafia como na pronúncia. Mas há grupos de palavras, comparativamente pequenos, que têm relações especiais com outras palavras. Essas relações podem ser de homografia, homofonia ou homonomia. Sim, engraçadinhos, é tudo muito homo. Mas as que não são homógrafas são heterógrafas, as que não são homófonas são heterófonas, e as que não são homónimas são heterónimas. De modo que também é tudo muito hetero. Embrulhem. Termos apresentados, passemos a explicá-los e a exemplificá-los.
As homónimas são as mais simples de explicar: são aquelas palavras que são ao mesmo tempo homógrafas e homófonas. Sempre que abrirem um dicionário e encontrarem duas entradas seguidas e idênticas, estão a olhar para duas palavras homónimas. A frase "fui dar uma fatia de manga ao Luís, e enfiei a manga na sopa" contém duas palavras homónimas: manga (parte duma peça de roupa) e manga (fruta). A frase "Penso que tenho de pôr um penso no calo, mas depois enfio-me num canto, rebento em canto e nunca mais me calo" tem o belo número de três: penso (verbo pensar e coisa que se põe nas feridas), calo (verbo calar e o mesmo que calosidade) e canto (verbo cantar e ponto de junção de duas paredes).
Palavras homógrafas são palavras cuja ortografia é idêntica. Muitas são aparentadas (isto é: possuem a mesma raiz; descendem do mesmo ancestral lexical), mas nem sempre assim é. Na frase "eu jogo um jogo" encontramos duas palavras homógrafas: uma forma do verbo jogar e o substantivo jogo. A frase "primeiro rego ao longo de todo o rego, ensopando aquilo tudo, depois obrigo o gajo a ir colher as ervilhas com uma colher; vai ser lindo!", além de ser francamente sádica, contém dois pares de palavras homógrafas: uma forma do verbo regar e o substantivo rego, e o infinitivo do verbo colher e o substantivo colher.
Como já devem ter deduzido, as palavras homófonas são palavras cuja pronúncia é idêntica. A frase "ele foi à sede do concelho dar um conselho ao presidente da câmara" tem um desses casalinhos. "Vós, cada um dos cem, se fizerdes isso ficareis sem voz" tem dois. Uma frase que pus ontem no twitter para tentar levar o pessoal a não acentuar aquilo que nunca levou acento, "não se põe o acento no "cú", mas sim o cu no assento", tem mais um. E "Não sejas uma seca e ouve: houve uma denúncia de que a pia está seca, de modo que trata de enchê-la e não pia!" é, além de autoritária, uma tripla: tem um par de homógrafas (seca e seca), um par de homófonas (houve e ouve) e um par de homónimas (pia e pia)!
O que é que acontece a tudo isto com o acordo ortográfico? Pouca coisa. As categorias, obviamente, mantêm-se idênticas, mas há um conjunto de palavras que se transferem dumas para as outras. O imperativo do verbo "parar", por exemplo, perde o acento e torna-se homógrafo da preposição "para". O sinónimo de ação, "ato", perde a consoante muda e, como já era homófono da forma do verbo "atar", torna-se homónimo da mesma forma. O (muito incomum) sinónimo de assumido, "assumpto", perde o p mudo e torna-se homónimo de assunto. E mais alguns casos, que duma maneira geral transformam palavras heterógrafas em homógrafas e palavras homófonas em homónimas. Mas poucas. Nenhuma destas listas de exemplos é exaustiva, mas esta é provavelmente a que mais se aproxima de o ser.
De modo que aí têm. Já podem dizer aos amigos que estas coisas não têm segredos para vocês.
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
Lido: Nascido de Homem e Mulher
Nascido de Homem e Mulher (bib.) é um pequeno conto de horror de Richard Matheson, narrado por uma criatura monstruosa, de raciocínio muito simples, acorretada na cave da casa dos pais e contactando apenas com quem lhe traz comida. Vê o mundo lá fora e ele atrai-a, o que contribui para que o facto de estar presa lhe alimente o ressentimento. O conto é estruturalmente bastante simples, mas o seu ponto forte, e muitíssimo bem conseguido, é a voz própria do monstro, o modo como ela se torna horripilante bem depressa. Muito bom. E muito boa também é a tradução de David Soares.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
Lido: O Candidato
O Candidato é um conto de Arsénio Mota sobre um candidato a jornalista que recebe uma tarefa do chefe de redação do jornal a que se candidata. Uma tarefa que o candidato acha absurda e com a qual se vai debatendo ao longo de todo o conto, até que, quando ele acaba, descobre que com a tarefa recebeu também uma lição. É um bom conto mainstream, que além de estar bem escrito está também bem concebido e reflete, desta vez com subtileza, sobre a natureza da atividade jornalística. Bem melhor do que vários dos contos anteriores.
Lido: O Pior Herói: Dick Turpin
O Pior Herói: Dick Turpin é mais um dos contos de Rhys Hughes sobre infames mais ou menos famosos da história da humanidade. Desta feita, Hughes debruça-se sobre um salteador de estrada inglês do início do século XVIII, executado em 1739 pelo roubo de dois cavalos e mais tarde erigido ao estatuto de herói romântico na imaginação popular, uma espécie de Robin Hood de tempos menos antigos. Baseando-se nesta mistura de realidade aventurosa e lenda, a história de Hughes vai busar os seus aspetos mais mirabolantes, junta-lhe idênticos condimentos provenientes de alguns dos "colegas" de Turpin, em especial outro salteador de estrada de nome Tom King, e torna-os ainda mais mirabolantes. O resultado é aquele que é, de longe, o mais surreal e divertido destes relatos ficcionalizados que li até agora.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
Lido: Como Alguém Chegou, tal Como Havia Sido Profetizado, à Cidade do Nunca
Sim, claro: Como Alguém Chegou, tal Como Havia Sido Profetizado, à Cidade do Nunca é, só pode ser, mais um pequeno conto do Lorde Dunsany. Desta feita, o título explica bem o conteúdo. É um conto de fantasia que descreve, de facto, o modo como alguém chegou pela primeira vez à Cidade do Nunca, cidade fantástica que muitos terão visto mas onde antes do protegonista desta história — nunca nomeado — ninguém alguma vez conseguira chegar. Mas ao chegar lá depara com uma surpresa, que no entanto é inteiramente coerente com a história e a lenda. É outro conto que achei muito curioso por me ter feito lembrar outras obras de outros escritores. Neste caso, As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
Lido: La Biblioteca
La Biblioteca, do espanhol José María Tamparillas, é um pequeno conto fantástico sobre um par de ladrões que penetram numa monumental biblioteca com o fito de roubar algumas das obras valiosas que ela contém. Mas as coisas não se passam exatamente como eles esperavam... ou pelo menos como um deles esperava. Pareceu-me um bom conto, bem concebido e bem executado, uma revisitação talentosa do velho tema dos livros de vida — e se calhar já estou a dizer mais do que devia. Se calhar o melhor é mandar-vos à mesma página que tem sido repetidamente visitada nos últimos tempos e apontar para o quarto conto.
Lido: A Ilha Deserta
A Ilha Deserta é um continho fantástico de José Saramago, no qual ele se afirma abandonado numa ilha deserta com a única companhia de um livro e de um disco; o Dom Quixote e o Orfeu, respetivamente. Em duas penadas nos é contada a sua vida na ilha deserta, acompanhado apenas de três personagens que terão ganho consistência humana (o Quixote, o Sancho Pança e o Orfeu) e, a partir dum certo momento, de um computador que organiza a vida na ilha e serve a Saramago para dar mostras, já no dealbar dos anos 70, do ludismo mitigado que o acompanha até hoje, apesar da ironia. E eu não gostei muito deste continho precisamente por isso.
Lido: Alice e as Maravilhas
Na historinha intitulada Alice e as Maravilhas, José Saramago faz uma espécie de versão da história de Lewis Carroll, transformando-a num encontro (amoroso? certamente) entre uma rapariga e um rapaz. Mas não a banaliza de todo, não lhe retira por completo a magia, embora me pareça que o que o autor achou mais importante quando escreveu este pequeno conto foi a poesia da prosa. Quem gosta de prosa poética salpicada de magia certamente gostará de ler estas escassas duas páginas.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Lido: A Menina e o Baloiço
A Menina e o Baloiço é um continho de José Saramago que conta a história duma menina que baloiçava num baloiço de ouro, com duas cordas muito, muito grandes que se perdiam nas nuvens e às quais se enrolavam trepadeiras floridas. É um conto de maravilhoso muito típico, um conto quase infantil, que não destoaria num daqueles livros de capa dura a envolver um punhado de páginas mais ilustradas do que escritas, e com umas letras muito grandes para que a criança melhor as leia. Não sendo eu propriamente público-alvo dum conto deste género (já foi tempo), sei ainda assim reconhecer-lhe a qualidade.
Lido: A Época Baixa
A Época Baixa (bib.) é um conto melancólico de Ray Bradbury que recupera uma personagem de um dos contos anteriores do mesmo livro (o que é raro acontecer), um tal Sam Parkhill, e o mostra três anos mais tarde, entusiasmadíssimo com a abertura próxima de uma barraca de cachorros quentes num sítio que acha genialmente bem situado, já a sentir o sabor dos dólares que lhe vão fazer inchar, acha ele, a conta bancária. Mas as coisas começam a correr mal quando um dos poucos marcianos que restam no planeta lhe aparece no estabelecimento e ele o mata, duma forma parcialmente acidental.
É um conto sublimemente bem escrito e quase insuportavelmente americano. Parkhill é a encarnação do espírito de fronteira, o cowboy que acha que tem o direito de fazer o que muito bem entende, onde muito bem entende, destruindo no processo o que lhe apetecer destruir, e os outros que se lixem. Os marcianos funcionam como índios, montados não em mustangs, mas em "barcos de areia". A mulher é assim como que uma espécie de consciência, mas uma consciência passiva, que se deixa ir, soprada pelo pé de vento que o marido gera e se resume a uma crítica, as mais das vezes muda, sem nada realmente fazer. Ela sabe que no pano de fundo duma guerra terrestre que Parkhill desconhece, toda a sua atividade é inútil, todos os seus sonhos são descabidos. Mas deixa-se estar de braços cruzados, a observar, desfazendo-se no fim em sarcasmo.
Não é um dos grandes clássicos que o livro contém, mas é o verdadeiro início do murro no estômago que ele dá aos leitores no fim. E esse murro é aquilo que leva o livro a ser o que é.
É um conto sublimemente bem escrito e quase insuportavelmente americano. Parkhill é a encarnação do espírito de fronteira, o cowboy que acha que tem o direito de fazer o que muito bem entende, onde muito bem entende, destruindo no processo o que lhe apetecer destruir, e os outros que se lixem. Os marcianos funcionam como índios, montados não em mustangs, mas em "barcos de areia". A mulher é assim como que uma espécie de consciência, mas uma consciência passiva, que se deixa ir, soprada pelo pé de vento que o marido gera e se resume a uma crítica, as mais das vezes muda, sem nada realmente fazer. Ela sabe que no pano de fundo duma guerra terrestre que Parkhill desconhece, toda a sua atividade é inútil, todos os seus sonhos são descabidos. Mas deixa-se estar de braços cruzados, a observar, desfazendo-se no fim em sarcasmo.
Não é um dos grandes clássicos que o livro contém, mas é o verdadeiro início do murro no estômago que ele dá aos leitores no fim. E esse murro é aquilo que leva o livro a ser o que é.
sábado, 13 de fevereiro de 2010
Lido: Charneira
Charneira é um texto bizarro de António Eça de Queiroz que só lendo os outros textos de que se compõe o livro que inaugura saberei se se trata de uma mescla entre prefácio e conto, ou seja, o que parece à primeira vista, se se tratará de outra coisa qualquer. Se é o que parece, trata-se de um texto com forte cunho fantástico ou até de ficção científica — cita mesmo Stanislaw Lem —, se bem que divague demasiado para o meu gosto. Este pobre leitor, apanhado de surpresa, perdeu-se. Mais uma vez, só lendo o que se segue saberei se isso acontece por acidente ou se é deliberado. De modo que reservo uma opinião definitiva para mais tarde.
Lido: Eu Sou a Lenda
Eu Sou a Lenda (bib.) é um pequeno romance de Richard Matheson que conta a história do último sobrevivente humano num mundo assolado por vampiros. Mas não são os vampiros cheios de angst juvenil (embora as suas peles perfeitas não mostrem sinais de acne), os vampiros mais do que meio emos, que estão agora tão na moda entre as adolescentes e as leitoras e espetadoras em geral (sim, eu sei que há umas ramificações para o lado masculino do espetro, mas não é segredo para ninguém que o público da corrente moda vampírica é esmagadoramente feminino. E teen). Também não são os vampiros clássicos, os que vão beber diretamente ao Drácula e às lendas europeias que a ele levaram. São outra coisa.
É que Eu Sou a Lenda tanto pode ser visto como uma história de horror como pode ser encarado como uma história de ficção científica. O vampirismo é, aqui, fruto duma epidemia — uma epidemia devastadora, que submerge o planeta, levando ao fim da civilização tal como a conhecemos — e boa parte das características e reações dos vampiros clássicos são explicadas, melhor ou pior, de forma científica. Com este pano de fundo, o enredo do romance é até bastante simples: seguimos o último sobrevivente, por algum truque do destino imune à doença, que procura continuar a sobreviver o melhor que sabe e pode, enquanto vai tentando estudar os vampiros que o atacam ao mesmo tempo que reduz o nível de ameaça, matando todos os que consegue apanhar a jeito. Mas eis que, anos depois do início da praga, surge uma mulher na sua vida, aparentemente outra sobrevivente. E a história toma um rumo inesperado.
Várias vezes adaptado a outros media, este romance teve uma influência bastante grande num certo tipo de horror (histórias de vampiros, sim, mas principalmente de zombies) e FC (a FC apocalíptica, basicamente) da segunda metade do século XX. Basta isso para lhe emprestar relevância e o tornar interessante. Mesmo tendo-se várias das ideias que contém tornado clichés batidos desde a sua publicação. Mesmo que as personagens, incluindo a do protagonista, estejam menos conseguidas do que poderiam estar. Para mim, é exatamente essa a maior falha do romance: a falta de profundidade psicológica do protagonista; pelo menos ele talvez devesse ter algo mais a oferecer-nos, e não se apresentar tanto como concha quase vazia. Por paradoxal que possa parecer, há mais profundidade na mulher que lhe aparece na vida quase no fim do romance, apesar de só aparecer nas últimas quarenta e tal páginas. Mas, apesar disso, a história é suficientemente interessante para sobreviver a uma tradução que comete quase todos os erros de principiante que é possível cometer. Fernando Ribeiro é muito melhor rocker do que tradutor, pelo menos por enquanto, e isso nota-se demasiado. O romance, contudo, sobrevive, e isso é meritório.
De modo que não gostei muito, é verdade. Não foi obra que me deixasse de queixo caído, longe disso. Até porque, com a notável exceção dos filmes da série Alien e de alguns contos do João Barreiros, as misturas de horror com FC (ou vice-versa) tendem a deixar-me indiferente ou a não me agradar de todo. Mas também não dei por mal empregue o tempo que lhe dediquei. Acho que é romance que vale certamente a pena ler.
É que Eu Sou a Lenda tanto pode ser visto como uma história de horror como pode ser encarado como uma história de ficção científica. O vampirismo é, aqui, fruto duma epidemia — uma epidemia devastadora, que submerge o planeta, levando ao fim da civilização tal como a conhecemos — e boa parte das características e reações dos vampiros clássicos são explicadas, melhor ou pior, de forma científica. Com este pano de fundo, o enredo do romance é até bastante simples: seguimos o último sobrevivente, por algum truque do destino imune à doença, que procura continuar a sobreviver o melhor que sabe e pode, enquanto vai tentando estudar os vampiros que o atacam ao mesmo tempo que reduz o nível de ameaça, matando todos os que consegue apanhar a jeito. Mas eis que, anos depois do início da praga, surge uma mulher na sua vida, aparentemente outra sobrevivente. E a história toma um rumo inesperado.
Várias vezes adaptado a outros media, este romance teve uma influência bastante grande num certo tipo de horror (histórias de vampiros, sim, mas principalmente de zombies) e FC (a FC apocalíptica, basicamente) da segunda metade do século XX. Basta isso para lhe emprestar relevância e o tornar interessante. Mesmo tendo-se várias das ideias que contém tornado clichés batidos desde a sua publicação. Mesmo que as personagens, incluindo a do protagonista, estejam menos conseguidas do que poderiam estar. Para mim, é exatamente essa a maior falha do romance: a falta de profundidade psicológica do protagonista; pelo menos ele talvez devesse ter algo mais a oferecer-nos, e não se apresentar tanto como concha quase vazia. Por paradoxal que possa parecer, há mais profundidade na mulher que lhe aparece na vida quase no fim do romance, apesar de só aparecer nas últimas quarenta e tal páginas. Mas, apesar disso, a história é suficientemente interessante para sobreviver a uma tradução que comete quase todos os erros de principiante que é possível cometer. Fernando Ribeiro é muito melhor rocker do que tradutor, pelo menos por enquanto, e isso nota-se demasiado. O romance, contudo, sobrevive, e isso é meritório.
De modo que não gostei muito, é verdade. Não foi obra que me deixasse de queixo caído, longe disso. Até porque, com a notável exceção dos filmes da série Alien e de alguns contos do João Barreiros, as misturas de horror com FC (ou vice-versa) tendem a deixar-me indiferente ou a não me agradar de todo. Mas também não dei por mal empregue o tempo que lhe dediquei. Acho que é romance que vale certamente a pena ler.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010
Lido: A Fórmula
A Fórmula é um conto de Arsénio Mota que namorisca com aquelas antigas histórias de ficção científica centradas na figura do inventor/cientista louco. E fá-lo tão seriamente que até inclui alguns dos defeitos comuns nesse tipo de contos, como o uso do "como-sabes-Bob", isto é, de um recurso estilístico (a que os apreciadores modernos do género torcem o nariz) no qual uma das personagens explica a outra algo que ambas sabem, para benefício do leitor, que não possui essa informação. A história centra-se à volta de um amigo do protagonista, teórico da conspiração inveterado e inventor excêntrico, que terá descoberto uma forma radical para poupar vastas quantidades de gasolina e se sente perseguido por aqueles que têm interesse em manter o status quo. Mota, contudo, não nos revela se assim é ou não, ou sequer se a invenção extraordinária é real ou imaginada; limita-se a sugerir. Prefere deixar-nos na dúvida, numa abordagem muito todoroviana aos temas fantásticos. Em parte por isso, e apesar do "como-sabes-Bob" e de mais alguns diálogos inverosímeis por pouco naturais, é um conto com algum interesse.
Lido: O Verme Supremo: Francisco Solano López
O Verme Supremo: Francisco Solano López é mais um dos contos de Rhys Hughes sobre grandes crápulas da história. Aqui, conta a história de Francisco Solano López, admirador de Napoleão e ditador do Paraguai (país singularmente rico em ditadores e pobre em quase tudo o resto) em meados do século XIX, e responsável por levar o país a travar — e a perder — a guerra da Tripla Aliança, contra a Argentina, o Brasil e o Uruguai, que foi desencadeada pela invasão do Uruguai pelo Brasil. López acabou a vida louco, tendo-se proclamado santo, tentando levar o clero paraguaio a canonizá-lo. Os bispos que recusaram foram mandados executar. Claro. Isto na vida real; no conto de Hughes, tudo isto é exagerado — embora a parte sobre a canonização não conste — e revestido de ironia, de muita ironia, de copiosas quantidades de ironia. E é toda essa ironia que o transforma no mais divertido dos contos do livro, até agora.
PS&P (i.e., post scriptum et publicatum): A guerra da Tripla Aliança tem relevância para a FC&F lusófona por ser o ambiente de uma das séries de história alternativa de Gerson Lodi-Ribeiro.
PS&P (i.e., post scriptum et publicatum): A guerra da Tripla Aliança tem relevância para a FC&F lusófona por ser o ambiente de uma das séries de história alternativa de Gerson Lodi-Ribeiro.
Lido: O Mercador de Ruína: Basil Zaharoff
O Mercador de Ruína: Basil Zaharoff é, claro, mais uma das histórias de Rhys Hughes sobre canalhas históricos. Aqui, o canalha é Basil Zaharoff, ou Basil Zacharias, comerciante de armas de origem grega e humilde que construiu uma imensa fortuna e alcançou um poder não menos vasto vendendo armas a todos os lados em diversos conflitos e, em geral, a agir dum modo bastante crapuloso. O relato "alternativo" de Hughes é bastante fiel ao tema geral da vida de Zaharoff, embora não se possa confiar nele para os pormenores e haja detalhes puramente fantásticos, como o do lago artificial que Zaharoff teria mandado construir por baixo dos Alpes franceses, e onde teria morrido. Foram estes detalhes fantásticos que me levaram a gostar do conto; sem eles, e uma vez mais, teria achado o texto bastante despido de vida.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
Lido: Como Nuth Teria Roubado os Gnoles
Por esta altura, a mão-cheia de três ou quatro de vocês que acompanha regularmente aqui a Lâmpada já será capaz de identificar à primeira vista o título de Como Nuth Teria Roubado os Gnoles como pertencente a um conto do Lorde Dunsany. E não se enganaria. Trata-se de mais um conto de fantasia, com fortes semelhanças com o anterior, e que, tal como vários dos outros contos deste livro, parece um esboço, um delinear dum território a ser seguido mais tarde por outros autores de fantasia. Neste caso, por Fritz Leiber, visto que toda a ambiência (e até o facto do conto ser protagonizado por um par de ladrões que vão tentar roubar um tesouro a uns seres com poderes sobrenaturais chamados gnoles) faz lembrar fortemente as aventuras de Fafhrd e do Rateiro Cinzento. Muito interessante.
Lido: Mañana
Mañana é um conto curto sobre viagens no tempo, do argentino Daniel Argañaraz. Estava a entender (e sem desgostar, em geral) até chegar ao diálogo final. Esse final, confesso, deixou-me perplexo e sem entender, e creio que mais por uma questão linguística do que por qualquer outra razão. A história tem como protagonista um professor com o mui escocês nome de Angus McDonald, que leciona mecânica quântica aplicada na universidade da Carolina do Norte. É rodeado pelos assistentes e por um par de alunos mais promissores que o velho Angus está prestes a fazer a primeira apresentação de um aparelho de sua invenção: a máquina do tempo. Mas quando vai ao futuro e regressa, o resultado não é bem o que estava à espera. Até aí tudo bem. O que me deixou confuso é o fim-mesmo-fim, as duas últimas frases, principalmente por não saber se elas conterão algum regionalismo que permita identificar a origem das pessoas que as trocam. Se assim for, entendo-as; se não, fico sem compreender por que motivo o autor resolveu terminar o conto assim.
Não sabem de que estou a falar? Têm bom remédio. É o terceiro conto.
Não sabem de que estou a falar? Têm bom remédio. É o terceiro conto.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Lido: Discurso Contra o Lirismo
Discurso Contra o Lirismo é uma crónica de José Saramago em que ele debita um discurso (não é força de expressão, debita mesmo; a coisa começa com "meus senhores" e termina com "tenho dito") no qual faz um ataque cerrado, e muito, muito, muito irónico, aos poetas, essa raça subversiva e lamentável que corrói os fundamentos da sociedade com palavras líricas, que deviam ser riscadas dos dicionários. Contrariamente à maioria das outras crónicas-mesmo-crónicas presentes neste livro, esta mantém-se interessante porque praticamente poderia ter sido escrita hoje, quase tal e qual, sem tirar nem pôr.
Há coisas que em 40 anos mudam. Que quase se viram do avesso. Mas outras parece que nunca mudam.
Há coisas que em 40 anos mudam. Que quase se viram do avesso. Mas outras parece que nunca mudam.
Lido: O Depósito de Bagagem
O Depósito de Bagagem (bib.) é outro dos contos muito curtos de Ray Bradbury que, no livro de que faz parte, funciona melhor como ligação entre os contos principais do que como conto independente. Mas, ao contrário da maioria dos outros, este também funciona como conto independente. E como um bom conto independente.
Conta como, num local específico de Marte — um depósito de bagagem que também funciona como uma espécie de loja de malas — se sabe que na Terra vai haver uma guerra, há muito prevista mas até aí nunca concretizada. E pinta o retrato da reação previsível dos colonos de Marte a essa guerra, sendo que a maioria desses colonos acabou de chegar ao planeta e mantém fortes laços com o planeta de origem. Ah, e o fim é soberbo.
Conta como, num local específico de Marte — um depósito de bagagem que também funciona como uma espécie de loja de malas — se sabe que na Terra vai haver uma guerra, há muito prevista mas até aí nunca concretizada. E pinta o retrato da reação previsível dos colonos de Marte a essa guerra, sendo que a maioria desses colonos acabou de chegar ao planeta e mantém fortes laços com o planeta de origem. Ah, e o fim é soberbo.
domingo, 7 de fevereiro de 2010
Lido: O Incêndio
O Incêndio é um conto de Arsénio Mota que acompanha o trajeto dum jornalista estagiário que é destacado para fazer uma reportagem de três páginas sobre um incêncio doméstico ocorrido no dia anterior, que o seu jornal foi o único a não cobrir, e no qual morreram duas crianças. A princípio relutante, achando que o incêndio é uma notícia requentada e nunca terá tema suficiente para encher três páginas de jornal, o jornalista acaba por descobrir que não é bem assim. É de longe o melhor conto que li do autor até agora. Bem construído, bem escrito, emocionalmente forte e sem ceder à tentação de explicar aquilo que é melhor deixar por explicar, é um bom conto mainsteam. E faz suspeitar que algo do género poderá ter um dia acontecido ao autor.
Lido: O Mascador de Corações: François l'Olonnais
O Mascador de Corações: François l'Olonnais é mais um dos falsos relatos históricos de Rhys Hugues sobre personagens históricas particularmente pérfidas. No mundo real, e de acordo com o único relato existente sobre as suas façanhas, François l'Olonnais terá sido um pirata francês do século XVII que assolou duma forma particularmente violenta e cruel as colónias espanholas das Caraíbas, acabando morto e desmembrado pelos nativos na região de Darién, atual Panamá. A mesma fonte relata um ato de canibalismo, no qual l'Olonnais terá arrancado o coração a um espanhol que acabara de matar, pondo-se a roê-lo. E é a partir daqui que Hughes desenvolve a sua enfabulação, que fora isso até parece seguir razoavelmente de perto o relato histórico, retratando-o como um homem atormentado e movido por uma compulsão canibal, insatisfeito a menos que tivesse corações de vítimas para devorar. O texto ressoa como uma espécie de mistura entre um falso relato histórico e uma história propriamente dita. Ou seja, está algures entre os dois contos anteriores. E em consequência, o meu agrado por ele também se situa algures entre os que senti por eles.
Lido: O Tesouro dos Gibbelins
O Tesouro dos Gibbelins é mais um conto curto do Lorde Dunsany que, de novo em toada de conto popular e/ou de conto de fadas, revela a história de um tal Alderic, famoso cavaleiro, que um belo dia decide seguir tantos outros na tentativa de roubar o tesouro dos gibbelins. Estes são uma espécie de monstros da floresta que vivem numa torre e só se alimentam da carne dos cobiçosos homens que partem em busca do seu tesouro. Cauteloso e astucioso, Alderic segue uma abordagem original. E depois acontece o fim da história, de que não falarei. É um conto com moral bastante óbvia (algo típico do conto popular), o que não me agrada por aí além. Mas está bem escrito, bem concebido e muito bem rematado, o que já me agrada mais. Um conto interessante, portanto.
Lido: Futuro Imperfecto
Futuro Imperfecto é um conto muito curto de Iván Olmedo, espanhol, que faz uma coisa que é comum fazer-se na FC: inverte um determinado pormenor da realidade para melhor a mostrar aos seus leitores. Neste caso leva-nos a um futuro ainda algo distante para trocar a literatura cor de rosa, esse mundo de revistas ilustradíssimas que sobrecarrega os escaparates no mundo real, pelo universo underground e muito invisível das publicações de género. No futuro de Olmedo, são as revistas pulp, de ficção científica e de fantasia, que dominam os escaparates, e são as Holas que se vendem às escondidas, clandestinas.
Este tipo de exercício tem quase sempre algum interesse, ainda que a verosimilhança costume sofrer e, em parte por isso, os contos que seguem esse caminho raramente ultrapassem o nível "algum interesse". Parece-me ser o caso deste: tem o seu interesse, limitado, mas não passa daí. Interessados? Então leiam-no (segundo conto).
Este tipo de exercício tem quase sempre algum interesse, ainda que a verosimilhança costume sofrer e, em parte por isso, os contos que seguem esse caminho raramente ultrapassem o nível "algum interesse". Parece-me ser o caso deste: tem o seu interesse, limitado, mas não passa daí. Interessados? Então leiam-no (segundo conto).
sábado, 6 de fevereiro de 2010
Lido: «C'est la Rose»
«C'est la Rose» é outra crónica-mesmo-crónica de José Saramago, na qual ele, a pretexto da canção francesa a que o título faz referência e que a dado passo afirma que l'important c'est la rose, volta ao tema dos hippies e do flower power, refletindo sobre aquilo que realmente será importante naqueles tempos muito ricos em guerras tanto frias como quentes. Mais uma vez, com a perda de atualidade do tema vem a perda de boa parte do interesse. Mas fica a qualidade do português, que já então era elevada.
Lido: O Marciano
O Marciano (bib.) é um magnífico conto de Ray Bradbury que conta o que acontece a um marciano, metamorfo e telepático, que é forçado pelo poder dos desejos humanos a tomar a forma daqueles que as pessoas que encontra mais desejam ver. As coisas não são muito más quando só tem por perto uma família, roída pela saudade de um filho desaparecido, mas quando essa família o leva à cidade cai num terrível pesadelo. É um dos grandes contos do livro de que faz parte, um misto muito bem executado de ficção científica, fantasia e horror, e que funciona lindamente quando é lido como conto isolado em vez de como parte de um todo maior.
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