segunda-feira, 30 de abril de 2018

Lido: Estratégias de Combate

A ficção científica é um género vasto, seja em abordagens, seja em temáticas, estilos, por aí fora. Tão vasto, na verdade, que justifica plenamente a ideia de que se alguém diz que não gosta de ficção científica isso significa apenas que nunca a leu em suficiente quantidade e/ou variedade, pois se o tivesse feito certamente encontraria algum cantinho na FC que lhe agradaria. E, inversamente, não deve haver nenhum fã do género que goste de todo e qualquer tipo de ficção científica que lhe apareça à frente.

No meu caso tendo a não gostar de space opera, embora já tenha encontrado algumas exceções, space operas que apesar de o serem me agradaram. Por vários motivos que não cabem aqui, pois dariam um texto de opinião bastante extenso e isto é uma opinião que se pretende curta sobre um conto também ele curto. Um conto de space opera.

O título, Estratégias de Combate (bibliografia), é autoexplicativo. Estamos no espaço, em guerra, numa reunião das chefias militares de uma das duas frotas em confronto, na qual se delineia a estratégia para a vitória. O fulcro da história é precisamente essa estratégia, e o conto divide-se basicamente entre uma primeira parte em que ela é concebida e uma segunda em que é executada. Carlos André Moraes (Moraes? Ou Mores?) utiliza para isso uma prosa direta e eficaz, de que não se pode dizer que é de grande qualidade mas a que também não é possível chamar má. O ritmo da prosa também não é mau. Mas...

... mas eu achei o conto absolutamente desinteressante. Não há nele uma personagem que seja mais que esboçada, usa, como só podia usar (inovação num conto tão curto com um cenário tão vasto não é propriamente fácil), clichés de space opera mais que batidos, as estratégias parecem-me inverosímeis, mas mesmo que não parecessem só me despertariam indiferença, enfim, não há nele nada que me interesse.

É para mim credível que apreciadores de space opera tenham uma opinião diferente mas eu, que não o sou, achei esta história bastante fraca.

Lido: Mea-Culpa

A esmagadora maioria dos textos deste livro de Luiz Bras vagueia por territórios fronteiriços entre a ficção científica e uma espécie de fantástico fortemente inspirado por Borges, ocasionalmente com pitadas de outras coisas. Mas Mea-Culpa não. Mea-Culpa é um conto/poema furioso que ataca com violência a classe política brasileira, reduzida a um monte de chupamerdas e comebostas. Só uma frase parece arrancar este texto a um ataque inteiramente opinativo e realista à classe política de Brasília, na qual o protagonista confessa ter aceitado subornos na "regulamentação do uso da brain-net". Uma frase? Uma palavra, isso sim: brain-net. E bastará um termo ciencioficcional para transformar este texto em FC? Não creio. Mas basta para o pôr na fronteira.

Se é bom? Não, não julgo que seja. Como desabafo está ótimo, mas como literatura Bras tem muito melhor.

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domingo, 29 de abril de 2018

Lido: O Hóspede

Um dos problemas nas antologias temáticas (ou de um determinado género; também acontece) é por vezes incluírem contos que são claramente histórias escritas sem o tema em mente, vagamente adaptadas para se encaixarem na proposta. Isso não é problema em si mesmo; a adaptação de histórias a temas é uma forma de criação literária tão válida como outra qualquer, desde que essa adaptação não subverta aquilo que serviu de impulso criador inicial. Mas acaba por se tornar problemático quando essas histórias acabam piores do que começaram ou quando funcionam mal em contexto. E é muito frequente que isso aconteça.

O Hóspede é um conto de horror bastante clássico e razoavelmente bem concebido. Inspira-se de forma muito evidente em filmes B norte-americanos, segue um inspetor da polícia que vai investigando uma série de crimes bizarros, sangrentos e muito incompreensíveis, e inclui até o tradicional maniqueísmo e menções ao diabo ou a demónios, tradicionais nas histórias de horror sobrenatural. Na verdade, se é certo que não fica firmemente estabelecido que os acontecimentos descritos na história são de cariz sobrenatural, o enredo e várias passagens do texto tornam esta explicação mais lógica do que a ideia de invasão alienígena implícita no tema da antologia. Se este conto não estivesse incluído nesta antolgia, de facto, o mais certo seria tal ideia nem passar pela cabeça do leitor. E isso dimini tanto a história, por não cumprir a contento a proposta, como a publicação, por incluir uma história como esta.

Flávia Muniz tem culpa? Afinal, ela escreveu a história que quis escrever, a história que a inspiração lhe sugeriu, mantendo-se na sua zona de conforto literário. Não é nada que se possa contestar, pois não?

Não, não é. Não há qualquer culpa a atribuir a Muniz por ter escrito a história que quis escrever; isso nem faria qualquer sentido. Mas ela tem outra culpa: a de ter proposto tal história para uma publicação que não se lhe adaptava, culpa essa partilhada com Ademir Pascale, que a aceitou.

A história em contexto é fraca, portanto. Mas e isoladamente? Ou incluída num contexto mais adequado?

Bem, está, como eu já disse, razoavelmente bem concebida. Também está razoavelmente bem escrita, num português que não ultrapassa o razoável mas contada com mão segura e de ritmo agradável. A mim não causa nenhuma daquelas emoções que o horror tenta causar, mas o certo é que são muitíssimo raras as histórias que o fazem; peculiaridades pessoais. Portanto é uma história razoável, parece-me. Uma daquelas histórias medianas inspiradas mais pelo cinema do que pela literatura, e sofrendo com isso mas não o suficiente para se tornar realmente má ou medíocre.

Pena é vir publicada na publicação errada.

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Lido: An Incident at the Luncheon of the Boating Party

Depois de uma fantasia urbana e de algo entre o weird fiction e a fantasia rural, Allen M. Steele é o responsável por trazer a ficção científica a este número da F&SF. Mais especificamente, uma história de viagem no tempo.

Por vezes acusa-se aqueles que se dedicam à ficção científica de produzirem mero escapismo autorreferencial, totalmente desenraizado do ambiente cultural que não se confine aos limites do género. Há que admitir que em certos casos essa acusação tem razão de ser; uma parte da FC é em grande medida isso mesmo, voltada para dentro, para os seus próprios tropos, tendências e clichés e indiferente ao que se passa à sua volta. Mas acusar todo o género disso é sinal de ignorância ou má-fé, porque muitas outras obras não podiam ser mais diferentes desse retrato.

Exemplos abundam, e este An Incident at the Luncheon of the Boating Party é um deles. Conta, na primeira pessoa, a história de uma investigadora de um tal Centro de Pesquisa do Cronoespaço que viaja pelo espaçotempo até perto da Paris de finais do século XIX numa missão de baixo risco para investigar as circunstâncias que rodearam a criação de um quadro famoso, conhecido em inglês como Luncheon of the Boating Party e em português como O Almoço dos Barqueiros. O artista? Pierre-Auguste Renoir. Imagens do quadro encontram-se facilmente em qualquer pesquisa pelo título no Google, mas os preguiçosos podem encontrar uma reprodução, por exemplo, no site do Smithsonian.

A história é divertida, cheia de ritmo, não muito complexa no que à ficção científica diz respeito (e menos ainda no que toca a histórias de viagem no tempo, que às vezes conseguem ser autênticos novelos) e portanto absolutamente compreensível por qualquer leitor minimamente competente, apesar de explorar um dos paradoxos possíveis nos ciclos temporais. Mas é acima de tudo uma claríssima homenagem a Renoir e à sua arte.

Na verdade, das três primeiras histórias deste número da revista, esta é de longe a mais consciente e aberta ao exterior, culturalmente falando. A isso soma-se um enredo bem construído e bastante bem escrito, com tudo no sítio certo, além de uma dose razoável de bom humor, e o resultado é um conto francamente bom.

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sexta-feira, 27 de abril de 2018

Lido: Infiltrado

Escrever ficção na segunda pessoa é um exercício delicado. Ao contrário da primeira pessoa, que transmite a ideia de que o acontecido é experimentado em primeira mão pelo narrador (ou pelo menos ele pretende que assim se pense), e abre possibilidades narrativas interessantes, ou da terceira, mais comum, em que a ideia é algo como "terá acontecido a alguém, mas entre mim, narrador, e esse alguém há alguma distância", a escrita na segunda pessoa implica que aquele a quem acontecem os casos descritos é o leitor. E isso, se por vezes faz pleno sentido como por exemplo na história de Geoffrey Landis de que falei aqui, de outras mais parece puro artifício sem grande razão de ser.

Neste Infiltrado, de Roberto de Sousa Causo, estamos em grande medida, parece-me, perante a segunda situação. E aviso desde já que para explicar porquê vou ter de dar SPOILERS. Começa agora.

A história contada é a de um agente alienígena infiltrado na sociedade terrestre, em missão de recolha de informações preliminar a uma invasão. Está sob plena perseguição, muito próximo da morte, e procura não só fugir aos perseguidores mas chegar a tempo a um aparelho revitalizador que o possa salvar. Infelizmente para ele, alguém se antecipou e o aparelho está vazio. Resta uma segunda opção: um portal de teletransporte oculto noutra divisão, capaz de o fazer sair rapidamente da Terra, mas o problema é que o seu corpo está em plena falência. Conseguirá?

É um conto tenso, cheio de ação do princípio ao fim, com bom ritmo e um bom equilíbrio entre essa ação e a necessidade de transmitir ao leitor a informação necessária para o compreender. Por outras palavras, sem infodumps. A opção pela segunda pessoa, parece-me, é uma tentativa de fazer o leitor sentir mais intensamente o perigo em que o ET se encontra... só que isso é um contrassenso no contexto de um conto sem espaço para se compreender as motivações do protagonista (tem página e meia), no qual a generalidade dos leitores torce naturalmente pela "equipa" adversária.

Ou seja, não creio que essa opção faça grande sentido neste conto. É uma experiência interessante, sim, mas o resultado da experiência não é muito bom: o conto ficaria melhor quer na primeira pessoa, quer na terceira. Mas mesmo assim, está longe de ser um mau conto. Nem é apenas razoável: é razoavelmente bom, dos pontos altos (mas não o mais alto) desta antologia.

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quarta-feira, 25 de abril de 2018

Lido: Performance

Publicação portuguesa temática em que o tema seja a guerra e não tenha nenhuma história sobre a guerra colonial seria coisa francamente bizarra. No caso deste número da Ficções, cabe a José Martins Garcia representar esse tema. É autor de que eu nunca tinha lido nada, de quem nem sequer tinha ouvido falar, o que de resto está explicado no texto de contracapa do volume quando se afirma que ele é "hoje muito injustamente desleixado". Desleixado parece realmente ser, agora se o é injustamente ou não, não sei. Só sei que por este Performance me parece que a injustiça não é lá muito grande, mas há que reconhecer que um conto é largamente insuficiente para formar uma opinião sobre um autor.

O conto foi publicado logo em 1974, assim que se abriram as portas da liberdade, a qual incluiu poder-se finalmente falar e escrever sobre a guerra colonial coisas que fossem além da propaganda patrioteira do velho regime. Isto é relevante, não só pela frescura do tema no momento de criação da obra, mas também porque esta me fez lembrar bastante, se não no enredo certamente no ambiente, o filme do Coppola Apocalypse Now. Ora acontece que este filme data de cinco anos mais tarde, portanto não existem aqui inspirações cruzadas; terão sido paralelas.

Sim, o tema é o mesmo: a guerra e a loucura a ela inerente, a sua ausência de sentido. No conto de Garcia segue-se um alferes miliciano que é destacado para um posto militar no meio do mato, provavelmente em Angola. Já não vai lá muito bom da cabeça e ao chegar depara com um sítio de doidos, onde ninguém diz coisa com coisa, e destrambelha de vez, se calhar demonstrando a sensatez das chefias em terem-no destacado para o sítio certo. Além do mais, não há equipamento e o que há não funciona: o contingente está reduzido a uma pressão de ar. E às tantas é atacado à metralhadora.

A ideia podia ter dado uma história ótima. O problema é que Garcia a arrasta ao longo de demasiadas páginas (quase 30), diluindo em palavreado desnecessário, sobretudo diálogos absurdos, o impacto que o conto podia ter tido e tornando-o cada vez mais aborrecido à medida que o leitor se vai apercebendo de que nada mais obterá desta história assim que entenda a ideia de base, o que acontece muito antes das 30 páginas. Logo a história não é ótima. Nem sei mesmo se poderei considerá-la boa. Acho que está ali entre um razoável mais e um bom menos, mesmo apesar de a ter comparado ao Apocalypse Now, que é um filme do caraças.

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terça-feira, 24 de abril de 2018

Lido: Perdidão

Não se fala o suficiente da eficácia na literatura; devia falar-se mais. Quando os textos literários fazem precisamente aquilo que pretendem fazer são eficazes e pelo menos essa qualidade têm, mesmo quando não têm mais nenhuma. Há outros textos que, pelo contrário, até podem ter todas as qualidades do mundo mas não conseguem cumprir aquilo que se propõem alcançar.

Esta questão da eficácia é particularmente importante em textos ultracurtos, onde não há espaço para grandes elaborações de enredo, caracterização e etc. E é precisamente um texto desses que Claudio Parreira apresenta aqui.

Perdidão é uma historinha de pouco mais de meia página que pretende usar uma invasão alienígena para divertir e para fazer crítica social. Os ETs de Parreira aterram no Brasil e o seu protagonista e narrador é um videirinho, sempre atento às oportunidades que se lhe apresentam. No caso, uma nave espacial novinha em folha, ali mesmo à sua frente, à mão de semear. Nem é preciso pensar duas vezes, não é?

Este é um continho muitíssimo eficaz. É francamente divertido e surra com um certo carinho a espécie de burro que retrata. Sim, que só um idiota acharia boa ideia gamar uma nave espacial alienígena, cujo funcionamento se desconhece por completo. As coisas correm mal, evidentemente. E também isso é divertido.

Só o discurso direto da narração não é muito credível: é português demasiado correto. Mas aceita-se: neste tipo de coisa há que arranjar um equilíbrio qualquer entre a fidelidade à personagem e a inteligibilidade. Parreira preferiu esta última; eu, enquanto português, até agradeço.

Em suma: um bom conto.

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Lido: Sol no Coração

Meus caros, devo dizer-lhes com toda a exasperação: os infodumps são uma praga.

A sério: cada vez tenho menos paciência para eles. Sim, é verdade, há exemplos desta forma de despejar informação sobre o leitor que são pequenas obras de arte. Só que para o serem precisam de estar mesmo muito, muito bem escritos, e, regra geral, escritor que é capaz de escrever assim tão bem prefere transmitir a informação necessária de outras formas. A consequência é que a generalidade dos infodumps que aparecem na ficção vêm imbuídos de graus variáveis de tosquice, raramente transmitem apenas a informação rigorosamente necessária, nem mais, nem menos (o que também seria desejável), cortam quase sempre o ritmo às narrativas e em geral diminuem, por vezes significativamente, a qualidade global das histórias em que são enfiados.

Sim, Sol no Coração (bibliografia) da Roberta Spindler também sofre com essa praga. Muito.

A ideia está cheia de potencial. Num futuro não identificado, a tecnologia das nanomáquinas está plenamente desenvolvida, e as pessoas têm vidas mais longas e mais saudáveis graças a milhões de minúsculos robôs que lhes correm pela corrente sanguínea e corrigem o que há para corrigir, alimentados por microplacas solares que lhes são implantadas como se fossem tatuagens. Não imediatamente, assim que nascem, pois é necessário que o organismo atinja um certo grau de desenvolvimento. Mas durante a infância. E claro que há pessoas renitentes ao procedimento.

Nesse futuro, um casal discute a operação do filho, entre a renitência de um e o entusiasmo da outra. Há uma carga dramática razoável, pois o miúdo é sobrevivente de uma leucemia e condicionado por esse facto (uma forma talvez demasiado óbvia de puxar ao sentimento), e também há traumas pessoais metidos ao barulho. E há infodumps.

Pois.

Os infodumps são suficientes para este conto não ser lá muito bom. E teria sido tão fácil integrá-los de forma mais interessante na narrativa! Bastaria contar esta história sob o ponto de vista da criança e deixá-la ainda ingénua, ainda desconhecedora dos detalhes da tecnologia e desejosa de aprender, até para saber melhor o que a aguardava. Mas não: Spindler escolheu os pais como protagonistas e reduziu o conto a uma discussão entre os dois, quase sem qualquer ação exterior a essa discussão. É pena. E quando a isso se soma um português correto mas pouco mais do que isso, mais simples que inspirador, o resultado é um dos piores contos desta antologia.

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segunda-feira, 23 de abril de 2018

Lido: O Dia em que Eles Cansaram de Esperar

Há duas ideias particularmente comuns quando se trata de invasões alienígenas. Uma é a do alienígena mau, predatório, que chega à Terra por motivos egoístas, para dar resposta às suas próprias necessidades e não quer saber para nada da população autóctone. Este espelho do ímpeto colonialista europeu é a ideia mais comum, e temos exemplos dela com fartura também na ficção científica lusófona. Vejam-se, por exemplo, tantos dos contos do Barreiros.

A outra, menos frequente que a primeira mas nem por isso rara, é a dos ETs bonzinhos, que nos invadem porque nós somos incapazes de nos governarmos a nós próprios, assim uma espécie de troika interplanetária. É possível argumentar que também esta é espelho do ímpeto colonialista europeu, mas usando desta vez o ponto de vista dos colonialistas — essa ideia de "civilizar os selvagens" era um dos argumentos mais comuns quando se tratava de justificar a opressão colonial. E continua a ser.

É nesta última ideia que O Dia em que Eles Cansaram de Esperar explora.

Embora eu prefira outras abordagens, que também existem, tanto uma como a outra destas duas abordagens mais comuns pode resultar em coisas interessantes, boas ou até muito boas, dependendo de como os autores as exploram. Como sempre, aliás. No abstrato, tudo tem potencial. No concreto é que se vê se esse potencial se cumpre ou não.

Regra geral, há coisas que é bom evitar. Os infodumps são uma dessas coisas. Os longos despejos de informação não em infodump puro mas em diálogo (conhecidos pela expressão inglesa de as-you-know-Bob), são outra. Sermões são outra — há sermões célebres na literatura de língua portuguesa, mas não em obras de ficção (e convém que sejam muitíssimo bem escritos, o que não está ao alcance de qualquer um).

E Renato A. Azevedo não evita nenhuma delas.

O conto, que além do mais não está particularmente bem escrito, inclui um longo sermão sobre a nossa incapacidade para gerirmos a civilização, o as-you-know-Bob é tão evidente que o próprio autor tem necessidade de introduzir no texto uma fala a dar conta dele ("Qual é, Zanin, já sabemos de tudo isso!") e há infodumps em barda com informação sobre os vários tipos de ETs, que não têm surpresa nenhuma para quem já tenha ouvido falar nas teorias da conspiração ufológicas sobre Roswell, abduções e etc. No meio de tudo isto, o enredo principal, uma história de e sobre a resistência aos invasores, quase se perde. Esta história, para ser bem contada, precisaria de ritmo, de ambiência, de personagens sólidas. E este conto não tem nada disso.

É um conto bastante fraco.

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domingo, 22 de abril de 2018

Lido: A Menina sem Mãos

Em A Menina sem Mãos, os Grimm voltam a pegar em mais do que uma história, neste caso duas, e a fundi-las para com elas criarem um conto mais complexo. Ao contrário do que acontece com muitas das outras, que parecem ter sido pouco adulteradas pelo cristianismo e estar mais próximas das suas raízes ancestrais, esta é muito cristã, tendo como protagonista uma rapariga, filha de um moleiro, que é vendida inadvertidamente pelo pai ao diabo, ato que vai ser a origem de uma catadupa de consequências. A rapariga resiste ao mafarrico, acaba por isso por perder as mãos, mas há rezas e anjos e um rei que com ela casa não porque lhe tenha grande amizade mas porque "é bonita e devota" e está sozinha no mundo, e mais peripécias quando o diabo não se fica e tudo parece correr sempre mal, mas depois, no fim, tudo acaba no inevitável felizes para sempre.

É uma daquelas histórias maniqueístas, muito baseadas na ideia cristã da virtude e na ainda mais cristã noção de superação das dificuldades não porque se faça alguma coisa mas através de rezas e da intervenção angélica. Um conto moral conservador, portanto, o que é coisa que tende a desagradar-me por vários motivos. Mas não há dúvida de que os manos Grimm fizeram bem o que se propuseram a fazer: o conto está bem amarrado e é eficaz.

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sábado, 21 de abril de 2018

Lido: O Grande Besouro

Com uns cheirinhos a várias séries e filmes de invasão alienígena que foram aparecendo nas últimas décadas, do V ao Independence Day, e a outras tantas (ou mais) obras em prosa, este conto de Gian Danton não foge muito ao já visto mas tem sobre a maioria das ficções escritas sobre o tema uma grande vantagem: está bastante bem escrito.

Na verdade, pode mesmo considerar-se que o facto de lidar com ideias e tópicos já batidos (uma invasão discreta, uma quinta coluna de ETs que se misturam com a população geral sem ninguém, ou quase, dar conta, seguindo-se a invasão mais declarada com naves gigantescas a surgir nos céus da Terra) é uma vantagem para este O Grande Besouro: ajuda a evitar que o conto se prolongue mais do que a página e muito pouco que ocupa, evita o excesso de infodumps por já conhecermos a maior parte da situação e do enredo, e deixa o autor livre para se concentrar em como vai contar a história. E Danton conta-a realmente bem, com uma prosa agradável salpicada de boas imagens, bom ritmo e escolhas inteligentes do protagonista/narrador e da forma como a informação necessária (pois há sempre alguma) chega ao leitor.

Não será nada de superlativo, que não é, mas este é um bom conto.

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sexta-feira, 20 de abril de 2018

Lido: O Piolho e a Pulga

E cá está. Andava eu admirado por nestas histórias tradicionais alemãs recolhidas (ou melhor: recriadas) pelos Irmãos Grimm não se encontrar nenhuma verdadeira lengalenga, uma vez que as contaminações cruzadas que foram criando ao longo dos séculos um fundo comum nas histórias europeias (e não só) certamente impossibilitariam que tal forma de as contar fosse especificamente nossa, mas este O Piolho e a Pulga é lengalenga das mais puras que se possa imaginar, partindo de um piolho e de uma pulga que viviam juntos e "estavam a fazer cerveja numa casca de ovo" e abalando daí numa sucessão de consequências cada vez mais amplas até ao desfecho desastroso que remata a história. Sendo tão típica, seguindo tão rigorosamente o esquema de qualquer lengalenga, esta historinha tem muito pouco interesse próprio. É uma historieta infantil destinada a divertir a criançada e disso não passa.

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quinta-feira, 19 de abril de 2018

Lido: Todo o Silício do Mundo...

A obsessão dos leitores e da máquina editorial com os romances é daninha por mais do que uma razão, mas sobretudo porque tende a desprezar um conjunto de obras, muitas delas magníficas, pelo único motivo de serem curtas. A coisa atingiu um ponto de absurdo tal que há quem ache "pequeníssimo" um romance com 300 páginas, e o olhe de soslaio, desconfiada, apenas por esse motivo. Pior: embora alguns autores desenvolvam realmente o seu melhor trabalho em trabalhos dinossáuricos de 500 páginas para cima, muitos outros atingem o auge em extensões mais curtas, e por vezes muito mais curtas. Para cada romancista há alguém que é sobretudo (ou exclusivamente) contista, e é francamente estúpido pôr-se de lado a arte destes últimos apenas por ser mais curta. É como só se achar realmente pintor quem só pinte murais.

Mesmo dentro dos contistas (e uso aqui o termo em sentido lato) existem diferenças apreciáveis. Se alguns exploram melhor os seus estilos e ideias em contos curtos e vinhetas, ou mesmo em extensões ultracurtas, outros precisam de mais espaço para respirar e sentem-se particularmente à vontade na novela, na noveleta ou no conto longo. E Gerson Lodi-Ribeiro pertence claramente a este último grupo, motivo (ou pretexto) pelo qual eu falei disto aqui.

É que li Todo o Silício do Mundo... (bibliografia), um conto curto seu sobre a consequência longínqua de uma invasão alienígena. Ou melhor, reli; o conto está publicado em Portugal numa das suas coletâneas da Caminho e eu já tinha falado sobre ele, brevemente, aqui. E a opinião que me deixou a releitura é idêntica à da leitura: este é dos piores contos dele que li, apesar de a ideia base ser ótima, e embora não seja mau. Mas o Gerson tem muito melhor.

O problema é precisamente, parece-me, o conto ter a dimensão errada para a história que quer contar. Devia ser mais extenso, para pelo menos diluir o infodump, a longa rememoração do que teria acontecido após a invasão dos ETs, em um pouco mais de enredo. Ribeiro tem aqui uma ideia das suas, uma ideia complexa, daquelas que deram origem a tantas boas histórias mais longas, mas tenta contá-la em tão poucas palavras que o resultado sai coxo. Mesmo com a sofisticação do narrador pouco confiável a ajudar e mesmo tendo um final que é a melhor parte do conto.

Mas repito: não é um mau conto. É mediano.

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quarta-feira, 18 de abril de 2018

Lido: A Pele do Piolho

A Pele do Piolho é mais uma das historinhas populares recolhidas por Adolfo Coelho que giram em volta de uma princesa casadoira e dos testes que os pretendentes têm de passar para conquistarem a mão da dita. Esta, no entanto, é muito curta, pouco mais de uma página (incluindo uma ameaça em verso), parecendo versão abreviada de história mais desenvolvida, aqui reduzida praticamente ao osso. O título já sugere a história, pois tudo está relacionado com um piolho que se alimentou durante anos da cabeça do rei, com autorização e por vontade deste, sendo morto quando acaba por ficar gigantesco, a fim de se fazer com a sua pele um tambor. Sim, que nestas histórias mágicas os piolhos não têm exosqueletos como quaisquer outros insetos, mas pele como a gente. Ora, é este tambor que vai ser objeto de uma adivinha, e quem conseguir adivinhá-la conquista a mão da princesa. Há uns sussurros clandestinos ao preferido, mas este não ouve bem e o plano corre mal, até porque aparece outro com melhor ouvido a dar a resposta certa, para grande contrariedade da donzela. Mas nada que uma ameaça não resolva, mesmo se em verso, e no fim tudo fica nos conformes, com cada qual no seu lugar.

Não é grande exemplo de história popular e muito menos de ficção, este. À parte a sugestão de girl power que a ameaça incorpora, o único elemento que achei interessante foi a imagem do rei a andar por aí durante meses ou anos com um piolho gigantesco na cabeça. Mais um exemplo da iconoclastia de várias destas histórias portuguesas, ainda que neste caso o enredo a torne ambígua. E por estranho que possa parecer, essa imagem fez-me lembrar A Longa Tarde da Terra, um belo romance de ficção científica do Brian Aldiss. Quem leu esse livro compreenderá porquê.

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Lido: Invasão Retomada

Histórias de invasões alienígenas por intermédio do controlo de corpos estão muito longe de ser algo de novo (Invasion of the Body Snatchers anyone?). Muito longe. Mas a verdade é que quaisquer clichés até podem resultar em histórias interessantes se forem bem explorados. Infelizmente, o que Marcelo Bighetti faz em Invasão Retomada é precisamente o contrário de explorar bem o cliché.

Diga-se em seu abono que ele reconhece que a ideia nada tem de original numa nota em que dá por ela crédito a um conto de autora brasileira, do qual se lembra do título mas não da autora, tendo sobre esta apenas a ideia de que se trata de uma mulher. Mas isso só torna o autor honesto, não torna o conto bom. Coisa que está muito, muito longe de ser.

Não por estarmos perante o batidíssimo enredo de invasão por controlo da mente e/ou do corpo, que até podia aqui ter uma variante interessante com a bastante menos batida (mas nem por isso muito original) ideia de que esse controlo é problemático por causar quase sempre doenças aos hospedeiros, mas porque o conto gasta quase toda a sua página e picos a descrever os sintomas das doenças que os ETs vão provocar aos pobres coitados que apanham com eles em cima. Sim, é isso o conto. Isso e um infodump a descrever o cenário de base. Mais nada.

Mas que interesse poderá ter, seja quem for que pretenda ler literatura e não um manual médico, numa relação de sintomas de doenças reais?! Julgará Bighetti que é assim que se escreve FC hard? Se julga, tenho uma notícia para lhe dar: não é. A FC hard parte do que se conhece e desenvolve um enredo exterior ao jargão científico, servindo-se deste apenas para lhe conferir sustentabilidade e verosimilhança e com conta, peso e medida. Não se limita a transcrever parágrafos de um manual. E quando ainda por cima a qualidade do português não é propriamente elevada...

... o resultado é um péssimo conto. Nas calmas o pior que li este ano até ao momento.

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terça-feira, 17 de abril de 2018

Lido: As Três Lebres

Como já temos visto várias vezes por aqui, no mundo dos contos tradicionais existem famílias inteiras deles, provavelmente geradas por derivação ou influências mútuas, em que se repetem temas, enredos e até personagens. Uma dessas famílias mete homens espertos, bons ou corajosos e as princesas que eles poderão desposar caso ultrapassem uma espécie qualquer de teste. Adolfo Coelho inclui no seu livro de contos populares mais do que uma história dessas. E este continho de duas páginas intitulado As Três Lebres é uma delas.

Curiosamente, tem a particularidade de ser um conto realista. O aldeão que procura a mão da princesa por meio de uma adivinha não se serve de magia ou encantamentos, mas apenas da esperteza e de uma dose muito razoável de marotice e desonestidade, só lhe correndo bem as coisas porque a princesa mostra para com ele o mesmíssimo grau de marotice e desonestidade. É que ela lhe manda ao quarto onde está alojado três aias em três noites consecutivas, a fim de descobrir as respostas da adivinha. E descobre. Mas ele não oferece as respostas de forma gratuita, antes as troca pelas saias das aias, o que lhe vai fornece material de chantagem que usa com grande proveito pessoal: entre o escândalo e o casamento com o espertalhão do aldeão, a princesa escolhe o casamento.

Historinha instrutiva, sem dúvida.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Nas Catacumbas

Depois de um conto algo clandestino do organizador, quem nesta antologia apresenta o primeiro conto totalmente assumido como tal é Luiz Bras. Fá-lo com uma vinheta de uma página intitulada Nas Catacumbas, uma peculiar história de invasão alienígena que tem na forma como está escrita o seu ponto forte. E atenção que a fruição plena desta história depende do progressivo desvendar do que se passa e é impossível falar dela sem revelar o que se passa, portanto aconselho vivamente que todos os que não queiram ficar a saber detalhes sobre o enredo saiam daqui e vão ler outra coisa qualquer. Ou seja:

SPOILERS

Estão avisados, portanto siga.

A ideia de uma espécie alienígena devoradora de memórias não é propriamente original, nem mesmo na FC lusófona (o João Barreiros usa-a também muito bem no Disney no Céu Entre os Dumbos), mas aqui está aplicada muitíssimo bem, numa prosa de grande qualidade, que usa a capacidade evocativa da poesia para amplificar o efeito. É um caso de forma literária certa aplicada da melhor maneira ao enredo. Este é um relato de progressiva desmemoriação, através do qual se contam meio expressamente, meio nas entrelinhas, os principais acontecimentos da invasão dos extraterrestres e as consequências que ela teve. No meio de tudo isto, ainda há tempo para a evocação da memória da figura paterna, para uma cambalhota conceptual que deixa na dúvida (ou não) quem são realmente os alienígenas nesta história e para uma reflexão sobre a vida e a morte. Tudo numa só página.

Um conto excelente.

Conto anterior deste livro:

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Lido: A Máquina de Joseph Walser

Uma vida não é uma máquina. Prova disso é a minha, que a meio da leitura deste livro (e não só deste; não era o único que eu estava a ler nessa altura) resolveu encher-se de cambalhotas que levaram a que passasse a ler pouco ou nada e a ter passado longos meses sem lhe pegar. De todo. Isso teve um efeito curioso: quando voltei à leitura não me lembrava de quase nada do que tinha ficado para trás e tive de ir folhear umas quantas páginas para tentar perceber outra vez quem raio era aquele chato do Walser e o que andava a fazer ali. Não é vulgar: costumo ter uma memória bastante vívida daquilo que leio, pelo menos a médio prazo (a longo prazo a história é outra), bastando-me pegar num livro e recomeçar a lê-lo, mesmo depois de um mês de pausa, para me lembrar do que aconteceu até aí. Mas este foi uma exceção.

Isto, ao mesmo tempo que é sintoma de um certo desinteresse por esta história e por estas personagens, que senti do princípio ao fim, também é causa, pelo menos parcial, de alguma dificuldade para chegar ao substrato do romance. Talvez assim não fosse se já antes tivesse tido contacto com a escrita, os temas e a filosofia a eles subjacente de Gonçalo M. Tavares. Mas esta foi, ainda por cima, a primeira vez que li algo dele, portanto era tudo novo para mim. Mas vamos por partes.

A Máquina de Joseph Walser passa-se num país não identificado da Europa Central, por alturas de uma guerra também não identificada mas com todo o ar de ser a primeira ou a segunda das mundiais. O protagonista, Joseph Walser, é um chato. Um indivíduo miudinho, repleto de rotinas e banalidades mesmo naquilo em que é excêntrico. Trabalha numa fábrica, a controlar uma máquina, também ela misteriosa porque nunca se chega a saber para que serve e o que faz. Além disso tem uma coleção de pequenas peças mecânicas, que analisa, mede e classifica com meticulosidade mecânica. E tem um jogo semanal de cartas com os amigos (amigos?). E tem uma mulher, que obviamente não ama porque é pessoa alheia a essa coisa estranha chamada sentimento. Tudo muito organizadinho. Teutonicamente organizadinho. Ja.

O orabolas da coisa é que às tantas rebenta uma guerra e a cidade do bom do Walser é ocupada, o que lhe vai perturbar as rotinas. Chatice com consequências, até para a sua integridade física, até para a integridade do seu casamento.

Tudo isto (que na verdade não é muito) escrito com uma prosa enxuta e de qualidade, capítulos curtos divididos em subcapítulos que por vezes nem uma página ocupam. Não fiz as contas, mas não me surpreenderia se esta obra nem chegasse às 40 mil palavras que nas convenções dos prémios de FC separam as novelas dos romances. E esta teia de brevidades é boa, pelo menos para mim: é o que faz com que, apesar do desinteresse no chato do Walser e na história dele, da sua máquina e das suas manias, o livro acabe por se deixar ler bem. Apesar do desinteresse e do desagrado que me causa um certo ludismo que me pareceu encontrar em Tavares, uma ideia de que é na máquina que reside a raiz de todas as desumanizações, da guerra às traições domésticas, passando pelas políticas, uma ideia de que a tecnologia é, no fundo, coisa daninha, coisa que subverte a condição humana.

Esses desinteresse e desagrado são os principais motivos para esta não ter sido leitura que me tenha agradado por aí além. Tavares é um bom narrador mas isso não me chega, e este livro deixou-me basicamente indiferente. Mas não posso deixar de reconhecer que é inteiramente possível que as vicissitudes pessoais que acompanharam esta leitura sejam um fator relevante para esta opinião menos favorável. Posso simplesmente ter lido este livro em má altura. Acontece.

Lido: Carta do Futuro

Não sei o que terá levado Ademir Pascale a chamar "introdução" a um texto que é claramente um conto. Não é interrogação que me assalte sempre que tal acontece, pois há casos de introduções ficcionais que fazem absoluto sentido (Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa fornecem ótimos exemplos). Compreenderia perfeitamente a opção, portanto, se a publicação em que esta "introdução" se insere englobasse histórias ambientadas no mesmo universo ficcional, caso em que ela funcionaria como introdução para o universo. Mas já li também o primeiro conto (ou segundo, na verdade) e não é o que aqui temos.

Essa é a primeira perplexidade que me causa esta Carta do Futuro, mas não é a única, porque o conto em si mesmo mais parece um esboço para uma ficção mais extensa, delineando uma invasão alienígena sob a forma de uma carta enviada do futuro para alguém do passado (porquê? para quê? não se percebe). Mas só na segunda metade do texto, pois a primeira é um melancólico rememorar de experiências passadas, entre São Paulo e uma cidadezinha de Minas Gerais. Esta, talvez paradoxalmente, é a parte mais bem sucedida do texto, e serviria perfeitamente como arranque de uma novela ou romance que narrasse de facto a tal invasão alienígena. Mas incluída numa vinheta que acaba por ser apenas um longo (bem, nem por isso) e algo desconexo infodump sobre uma invasão de ETs simplesmente não funciona.

sábado, 14 de abril de 2018

Lido: Fumaça e Fagulhas

Fumaça e Fagulhas é um enigmático continho de Luiz Bras sobre deus. Parece que existe mesmo, diz-nos Bras, mas não tem nada do velho bonacheirão de barbas brancas que a cultura patriarcal dos povos que seguem (pelo menos em parte) as religiões abraâmicas costuma apresentar. Não, não falo desse velho bonacheirão de barbas brancas, esse que veste de vermelho. Refiro-me ao outro.

É enigmático, pelo menos para mim, porque tenho de confessar derrota. Não consegui perceber onde quer Bras chegar com ele, além da mera subversão da figura divina. Sim, esta é interessante, especialmente para um empedernido herege como me assumo — assim me chamava uma namorada beata que tive em anos há muito idos, e certamente teria razão. Até posso dizer que a achei divertida. Mas isso chega para um conto? Não me parece que chegue... mas também pode dar-se o caso de eu não ter pura e simplesmente percebido. Acontece.

Ah, sim, o género deste conto? Bem, também isso é enigmático. Um cristão chamar-lhe-ia terror, suponho. Para mim é como a Bíblia: fantasia.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Lido: Olho por Olho, Dente por Dente

Uma das coisas que os escritores de FC fizeram desde sempre com os contos é testar ideias e técnicas que depois, se bem sucedidas (ou às vezes nem tanto), desenvolvem em obras mais extensas. Às vezes os resultados desses testes são ótimos, outras vezes ficam bastante aquém, o que de resto se pode dizer também das obras que desenvolvem a partir deles.

E esta vinheta de Luis Bras é exatamente isso: um teste. Olho por Olho, Dente por Dente é uma história de ficção científica política, contada de forma fragmentária e não sequencial, sobre o que acontece depois de os políticos lá do Brasil (presume-se; é o que indica o nome da personagem principal, pelo menos) terem feito aprovar uma lei que paga na mesma moeda a qualquer condenado por assassínio... e um senador matar uma rapariga. Detalhe: existe também um programa experimental de reanimação pós-morte, que procura recuperar a vida, ou pelo menos a consciência, depois da vida chegar ao fim. The plot thickens.

Esta é uma história que exige grande atenção às datas, para se perceber o que vem antes e o que vem depois, e que a meu ver só peca por excesso de otimismo. Por aquilo a que se tem assistido nos últimos tempos, um senador ser condenado no Brasil é pura fantasia. Esperem... a menos que... bem, sim, se o senador for da oposição, se não pertencer ao bando que detém os cordelinhos do poder, tudo bem, tudo certo, faz sentido.

Seja como for, esta é uma boa história, sim senhor. Mais uma. E em breve (bem, "em breve" é relativo) saberão aqui na Lâmpada que resultado teve o teste. Não percam as cenas dos próximos capítulos!

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Em março falou-se de...

Eu sei, isto vem com uns dias de atraso. Não tem havido tempo, fazer o quê? Mas antes tarde que nunca é um bom lema de vida para combater stresses desnecessários, e cá está a relaçãozinha daquilo que, durante o mês de março e segundo o FCL, foi merecendo opinião no campo da FC. Mais informações encontram-se aqui e se clicarem lá em baixo na tag "leituras FC" encontrarão as listas correspondentes dos meses anteriores. E dos próximos, quando houver.

E sem mais prolegómenos, que no fim há comentários, cá vão as listas:

Ficção portuguesa:
  1. Crazy Equóides, de João Barreiros
  2. Orlando e o Rinoceronte, de Alexandra Lucas Coelho
  3. Antologia Fénix I, org. Álvaro de Sousa Holstein e Marcelina Gama Leandro
  4. Lisboa no Ano 2000, de Melo de Matos (conto)
  5. Os Números que Venceram os Nomes, de Samuel Pimenta
Ficção brasileira:
  1. Narrativas do Medo, org. Vítor Abdala
  2. A Província dos Ursos de Vento, de José Beffa
  3. Eros Ex Machina, org. Luiz Bras
  4. Meu Nome é Lobo, de Luiz Bras (conto)
  5. Sozinho no Deserto Extremo, de Luiz Bras (conto)
  6. Selva Brasil, de Roberto de Sousa Causo
  7. Petrus Logus: O Guardião do Tempo, de Augusto Cury
  8. Gary Johnson, de Daniel I. Dutra (conto)
  9. Hope, as Cores da Verdade, de M. V. Nery
  10. A Era dos Mortos, vol. I, de Rodrigo de Oliveira
  11. A Ilha dos Mortos, de Rodrigo de Oliveira
  12. Zitz e a Rede Etérea, de Giovanna Picillo
Ficção internacional:
  1. Guerra Americana, de Omar El Akkad
  2. The Art of Space Travel, de Nina Allan (conto)
  3. O Conto da Aia, de Margaret Atwood
  4. The Windup Girl, de Paolo Bacigalupi
  5. O Homem Demolido, de Alfred Bester
  6. A Expansão, de Ezekiel Boone
  7. Os Viajantes, de Alexandra Bracken
  8. Origem, de Dan Brown
  9. The Destroyer, de Tara Isabella Burton (conto)
  10. Kindred - Laços de Sangue, de Octavia E. Butler
  11. Traumphysik, de Monica Byrne (conto)
  12. Alvo em Movimento, de Cecil Castelluci e Jason Fry
  13. Jogador nº 1 / Ready Player One - Jogador 1, de Ernest Cline
  14. A Volta ao Dia em 80 Mundos, de Julio Cortázar
  15. Uncanny Valley, de Greg Egan (conto)
  16. Uma Dobra no Tempo, de Madeleine l'Engle
  17. Plague, de Michael Grant
  18. Os Despojados, de Ursula K. Le Guin
  19. The Girl From Everywhere - O Mapa do Tempo, de Heidi Heilig
  20. Um Estranho Numa Terra Estranha, vol I, de Robert A. Heinlein
  21. The Siege of Sirius, de Eddie R. Hicks
  22. Mestre das Chamas, de Joe Hill
  23. Acadie, de Dave Hutchinson
  24. A Ilha, de Aldous Huxley
  25. A Quinta Estação, de N. K. Jemisin
  26. A Torre Negra, de Stephen King
  27. Belas Adormecidas, de Stephen King e Owen King
  28. Ricochet Joe, de Dean Koontz (conto)
  29. Solaris, de Stanislaw Lem
  30. Isso não Pode Acontecer Aqui, de Sinclair Lewis
  31. The Weight of Memories, de Cixin Liu (conto)
  32. Criaturas da Noite, de Marie Liu
  33. Os Melhores Contos de Howard Philips Lovrcraft, vol. 6, de H. P. Lovecraft
  34. Taking Wing, de Ando Mangels e Michael A. Martin
  35. Jogo Sujo, org. George R. R. Martin
  36. The Martian War, de Gabriel Mesta
  37. Carbono Alterado, de Richard Morgan
  38. Felicidade Para Humanos, de P. Z. Reizin
  39. Naquele Tempo, de J. D. Robb
  40. Dark Space Universe, de Jasper T. Scott
  41. Frankenstein, de Mary Shelley
  42. Last and First Men, de Olaf Stapledon
  43. As Brigadas Fantasma, de John Scalzi
  44. Os Últimos Jedi, de Elizabeth Schaefer
  45. The Invention of Hugo Cabret, de Brian Selznick
  46. Piquenique na Estrada, de Arcádi e Boris Strugátski
  47. Aceitação, de Jeff VanderMeer
  48. Aniquilação, de Jeff VanderMeer
  49. The Strange Bird, de Jeff VanderMeer (conto)
  50. The World is Full of Monsters, de Jeff VanderMeer (conto)
  51. Cama de Gato, de Kurt Vonnegut
  52. A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells
  53. O Fio da Navalha, de Martha Wells
  54. Pivot Point, de Kasie West
  55. Split Second, de Kasie West
  56. Robopocalipse, de Daniel W. Wilson
Não-ficção internacional:
  1. A Riqueza dos Humanos, de Ryan Avent
  2. Generation Robot, de Terri Favro
Este mês foi bastante melhor que o anterior no que toca a opiniões sobre a FC lusófona, tanto portuguesa como brasileira. Eu tive um dedinho nisso, claro, com duas opiniões sobre coisas portuguesas e três sobre coisas brasileiras, mas mesmo assim ainda sobram mais três portuguesas e nove brasileiras opinadas por outrem. É um progresso? Não sei, e não só porque mesmo assim ficou abaixo de janeiro: pode ser simplesmente resultado da variabilidade natural neste tipo de coisas. Às vezes calha haver mais ou menos de uns meses para outros sem que haja realmente uma tendência; estas só se veem a prazos mais longos.

Em todo o caso, este mês queria reconhecer algumas coisas que vão inevitavelmente reduzir o número de opiniões sobre material lusófono relativamente às de material não lusófono. É que a desproporção não se deve só à tradicional desatenção que as pessoas que falam português revelam por aquilo que se produz na sua língua. Isso é um fator, sim, mas há outros, e convém também reconhecer que assim é.

Um desses fatores prende-se com o efeito que as adaptações para cinema e televisão têm na leitura e por conseguinte na produção de opiniões. Esse efeito vê-se este mês nas opiniões sobre VanderMeer ou sobre Cline (mas não sobre Dick, que está totalmente ausente... curioso). Ora, como praticamente não existem adaptações de obras lusófonas, só por aí já estamos em desvantagem.

Outro tem a ver com marketing. É que parte das opiniões não são opiniões espontâneas, mas resultado de parcerias. Ora, os autores lusófonos publicam regra geral em editoras com menos margem de manobra para investir nesse tipo de marketing, o que faz com que sejam menos falados por essa via.

Portanto sim, há razões objetivas e compreensíveis para a desproporção entre as opiniões a material lusófono e não lusófono. Mas isso não quer dizer que eu ache que 5 opiniões a coisas portuguesas (ou mesmo 12 a brasileiras) durante um mês esteja sequer perto de ser suficiente. Não é. Longe disso.

Lido: Além do Tempo e do Espaço

Há quem pense que as antologias de ficção científica são moda recente e as olhe de soslaio, entre a desconfiança e a rejeição devidas às manobras editoriais pouco claras. Mas quem assim pensa engana-se redondamente, pois a verdade é que as antologias de FC são desde há muito tempo uma das formas mais utilizadas para dar a conhecer novos autores ao público apreciador do género e/ou para apresentar apanhados da produção no género durante um determinado período. E este Além do Tempo e do Espaço faz disso boa prova.

Publicada no Brasil há mais de meio século, no já algo longínquo ano de 1965, e sem apresentar informação sobre quem terá sido responsável pela edição e seleção de contos e autores, esta é uma antologia de FC bastante típica da realidade lusófona, agregando histórias muito díspares em termos de temática e qualidade. A par de alguns contos excelentes (na verdade, alguns são tão bons que me surpreenderam bastante, ultrapassando de longe qualquer coisa que eu conheça e tenha sido produzida em Portugal até essa época), inclui não só outros que não passam do fraco ou do razoável como até dois ou três realmente maus.

Não sendo uma antologia temática, não havendo portanto nenhuma unidade temática ou estilística entre os contos que a constituem, não é nem melhor nem pior do que a soma destes. E eles, variando como variam entre o ótimo e o péssimo, transformam-na numa antologia mediana, ainda que situada na parte mais elevada desse intervalo. Mas é, julgo eu, um bom retrato da FC que se produziu no Brasil até aos anos 60 do século passado (estão aqui incluídos contos criados desde os anos 40, pelo menos, portanto não reúne apenas a produção contemporânea), e esse tipo de apanhado é sempre útil e interessante em si mesmo. O que é pena, na verdade, é ser tão raro entre nós. Uma publicação regular, editada de x em x anos, das melhores histórias de FC produzidas nos países de língua portuguesa, seja isolados, seja em conjunto, seria de toda a utilidade. Mas ninguém parece muito interessado nisso, infelizmente.

Seja como for, e como eu digo sempre, basta que uma publicação (antologia, revista, etc.) inclua pelo menos um conto muito bom ou dois ou três bons para que a sua publicação valha plenamente a pena. E é o caso desta, sem qualquer dúvida. Histórias como Água de Nagasáqui, Da Mayor Speriencia ou O Elo Perdido são histórias que mereceriam maior divulgação e ser conhecidas por mais gente. Mereciam ser republicadas com alguma regularidade para chegarem a novas gerações de leitores. São boas o suficiente para isso. E mais que bastam para justificar este livro.

Eis o que achei dos contos individualmente considerados

domingo, 8 de abril de 2018

Lido: Xochiquetzal e a Esquadra da Vingança

Lido, que é como quem diz: relido.

Em tempos, Gerson Lodi-Ribeiro decidiu pregar uma partida aos leitores de ficção especulativa lusófonos. Não sei ao certo como se processou a coisa, mas suspeito de que terá sido convidado a fornecer uma história para uma antologia portuguesa, a Pecar a Sete, e "transferiu" esse pedido para uma "amiga", chamada Carla Cristina Pereira (surgida pela primeira vez numa outra antologia publicada um ano antes no Brasil), a qual teria pronto um conto de história alternativa muito bom, ambientado num mundo alternativo em que Colombo teria navegado em busca da Índia sob as cores portuguesas, anos antes da sua viagem real, e descoberto as Américas (ou Cabrálias) e as respetivas civilizações, ao mesmo tempo que as tentativas de dobrar o Cabo das Tormentas falhavam. Nesse mundo alternativo, os portugueses, pragmaticamente, teriam preferido celebrar uma aliança com a civilização asteca em vez de a exterminarem como fizeram os espanhóis, ainda que não em pé de igualdade, servindo-se antes de relações de suserania e vassalagem, segundo as quais a nobreza local permanecia localmente no poder, mas submetida ao rei de Portugal, que se teria transformado em rei dos reis. Essa aliança incluía o transporte para Lisboa de praticamente toda a juventude asteca de nascimento elevado, com o fim declarado de serem educados e instruídos, mas na realidade como reféns.

Essa história intitulava-se Xochiquetzal e a Esquadra da Vingança (bibliografia).

E a Carla Cristina Pereira não era senão o próprio Gerson.

A história passa-se anos depois dos factos descritos acima. Xochiquetzal é uma princesa asteca, educada nos usos e costumes portugueses e tomada como esposa por Vasco da Gama, o próprio. Este, apesar de nesta alternativa não ter a distinção de haver descoberto o caminho marítimo para a Índia (a qual cabe a Fernão de Magalhães... pela rota do Pacífico), é na mesma um destacado navegador, já idoso mas ainda rijo. Pois acontece que o Samorim de Calicute tem a má ideia de matar portugueses, incluindo o próprio Magalhães, que com ele negociavam o futuro das relações entre as duas entidades políticas, e como consequência Vasco da Gama recebe a incumbência de fazer cair sobre ele a vingança do rei portugês ao comando de uma esquadra tripulada por portugueses e cheia de guerreiros mexicanos. A bordo viaja também a sua mulher, Xochiquetzal.

O que faz com que esta história realmente funcione bem é este último facto. Libertada da necessidade de participar na ação, Xochiquetzal está livre para a narrar de uma forma razoavelmente distanciada. É ela o ponto de vista; é ela a cronista. O conto é escrito na primeira pessoa, ao jeito eminentemente descritivo das crónicas de viagem comuns na época, e tem o acrescido motivo de interesse de esse ponto de vista não ser português de nascimento, antes ser o de alguém que está entre duas culturas e portanto vê os acontecimentos com olhos culturalmente mestiços. A verosimilhança agradece.

E o leitor também: o conto é muito bom.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Lido: Poppies By Moonlight

Há histórias que assim que as acabamos de ler sabemos com precisão que reação nos causam. Às vezes até o sabemos antes mesmo de as acabarmos de ler; às vezes bastam algumas páginas. Mas existem outras que nos deixam na dúvida: eu gostei disto? Muitas vezes são histórias que ressoam com os nossos gostos em parte mas colidem com eles noutra parte. Histórias muito bem escritas sobre algo sem interesse algum, por exemplo. Ou vice-versa. Mas também acontece que essa pergunta seja motivada por causas mais difíceis de definir, e são esses os casos mais intrigantes.

Foi isto mesmo o que aconteceu entre mim e este Poppies By Moonlight, conto de uma autora que desconhecia por completo: Sydney J. Van Scyoc. É no essencial uma fantasia rural com toques de weird fiction sobre uma mulher que viaja ao longo da costa do Pacífico dos EUA, de Seattle, Washington, até à Califórnia, a fim de fazer a visita anual ao irmão adotivo e à quinta que fora dos pais, uma visita que é mais tradição do que férias, mais obrigação do que prazer. Porque o irmão é o oposto dela e o conflito entre os dois é sempre inevitável: um preguiçoso, imaturo, sem dinheiro nem perspetivas de vida. Só que ao chegar o vai encontrar mudado, e o que serve de motor à história é a sua surpresa com essa mudança e as várias hipóteses que vai arranjando para a explicar.

Nada, porém, a prepararia para a verdadeira razão: o irmão alugara não só a quinta mas o próprio corpo a um grupo de entidades cuja natureza Van Scyoc não explica mas têm todas as características de coisas sobrenaturais. Mas umas coisas sobrenaturais muito delicadas e bem educadas. Uns hóspedes quase ideais.

E eu gostei?

O conto está bem escrito, literariamente falando, e é cheio de pormenorezinhos subtis que vão deixando pistas de uma forma não inteiramente óbvia. São boas características. Mas o principal tema da história não são os seus elementos fantásticos e sim a dinâmica familiar desestruturada, de que ambas as principais personagens acabam por ser vítimas, cada uma à sua maneira. Os elementos fantásticos surgem quase como estratégia para resolver o enredo e os próprios traumas das personagens, uma espécie de deus ex machina para a vida, que sem ele teria inevitavelmente um fim desagradável. Suponho que seja por isso que eu tive tanta dificuldade em perceber se tinha gostado desta história ou não. Há nela uma desistência, um apelo a intervenção externa, a uma espécie de divindade mais ou menos new age, que choca de frente com a minha forma de ver o mundo, ao mesmo tempo que, sob um ponto de vista estritamente literário, só posso elogiá-la.

Portanto gostei?

Sim, um pouco. Suponho. Mas não muito, com toda a certeza.

Conto anterior desta publicação:

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Lido: Os Destruidores

Há histórias que falam de uma forma bastante direta dos temas de que pretendem falar. Outras há, no entanto, que preferem abordá-los da maneira mais oblíqua possível. Muitos pensam que estas últimas são preferíveis, argumentando com a necessidade, ou pelo menos a desejabilidade, de deixar a inteligência do leitor preencher os espaços em branco. Já eu, não discordando da ideia de que é de bom tom não tomar os leitores por idiotas, penso que não existe realmente uma abordagem melhor e outra pior, pois tanto uma como a outra podem propiciar tanto obras excelentes como obras péssimas.

Graham Greene, celebrado escritor inglês, opta claramente pela segunda abordagem neste Os Destruidores. Fala-nos o conto de um bando de delinquentes, numa Inglaterra semidestruída pela II Guerra Mundial, pouco tempo depois do fim do conflito. Mas não nos fala do bando em geral, não nos conta o seu dia-a-dia, não nos revela muito da sua dinâmica interna. Opta, antes, por descrever uma operação de destruição sistemática que o bando leva a cabo contra a casa de um pobre desgraçado que teve a sorte de escapar aos bombardeamentos com o lar basicamente intacto. Um pobre desgraçado contra o qual nem parece existir qualquer espécie de animosidade por parte do bando, que no entanto lhe demole a casa no decurso de um fim-se-semana. Literalmente.

Mas Greene está aqui a falar é na falta de sentido da guerra. O trabalho duro do bando, a sua estratégia meticulosa, a forma como lida com os problemas inesperados que surgem, tudo emula de forma bastante clara as operações de um exército. O facto de atacarem a casa de um pobre diabo afirma que quem sofre realmente com a guerra é quem nada tem a ver com ela, quem não a declarou nem a trava. Quem é "dano colateral", esse maravilhoso eufemismo militarista, tão em voga nos últimos tempos. O ataque é profundamente absurdo e destituído de sentido mas, uma vez iniciado, não há como travá-lo o que, mais uma vez, se refere diretamente à própria guerra.

Greene podia ter-nos dito tudo isto de uma forma direta e parece-me que o faria tão bem como o fez desta maneira oblíqua. Foi escritor para isso. Pois o que aqui fez, de facto, foi muito bem feito. O conto é ótimo.

Contos anteriores desta publicação: