E de novo, o infodump. Tal como no conto de Sacha Ramos, também este conto de Isabel Cristina Pires tem no despejo da informação necessária para se compreender o universo ficcional em que se desenvolve o seu principal calcanhar de Aquiles, ainda que aqui o problema seja menos sério por haver menos informação a despejar. Porque, embora O Príncipe Mais que Perfeito (bibliografia) seja um conto de história alternativa, também é um conto de ficção científica mais tradicional, e é esta a sua faceta predominante.
Assim, a alteridade da linha histórica é despachada em pinceladas rápidas e é também em pinceladas rápidas que ficamos a saber que o príncipe, protagonista da história e herdeiro do trono, é um indivíduo geneticamente manipulado a fim de realmente ter as qualidades "superiores" que a propaganda monárquica atribui aos membros das famílias reais. Surpreendentemente para os cientistas que lhe manipularam o ADN, e de forma preocupante para a casa real, que vê no facto um atavismo indesejável, o miúdo afeiçoa-se a um cão. O que fazer para anular tal anomalia? Argumente-se com ele, decide-se. E o resultado da argumentação constitui um final surpresa eficaz e vagamente arrepiante.
Este é um conto que é bom apesar do infodump. Ou bonzinho, vá. Realmente bom seria se o infodump não estivesse lá, mas em menos de quatro páginas não é possível fazer milagres e há que reconhecer que Isabel Cristina Pires reduz o infodump ao mínimo indispensável. E escreve bem. Consequentemente, apresenta o melhor conto de história alternativa que o livro inclui até ao momento.
Contos anteriores deste livro:
sábado, 31 de agosto de 2019
Ray Bradbury: O Anão
Um dos temas recorrentes de Ray Bradbury, especialmente nos seus contos mais afastados da ficção científica, é o dos parques de diversões. Por vezes, são os próprios parques a servir de tema, mas é mais frequente que o tema seja a população frequentemente bizarra que neles trabalha e, até certo ponto, que os frequenta. O Anão (bibliografia) é uma dessas histórias.
O protagonista é, naturalmente, um anão. Um anão que frequenta habitualmente uma daquelas casas de espelhos que havia em algumas feiras, onde a troco de umas quantas moedas as pessoas podiam ver-se grotescamente distorcidas pelos espelhos côncavos ou convexos ou com outras formas ainda mais estranhas que lá existiam. Não faço a mais pequena ideia se tal diversão ainda existe nesta era de filtros fotográficos de todos os tipos em qualquer telemóvel, mas houve tempo em que essa era a única forma que as pessoas tinham para se verem como pessoas diferentes.
Claro, a subtileza deste conto reside na inversão. O anão sente-se ele próprio grotesco e visita o parque de diversões não para sublinhar esse grotesco mas para se poder ver distorcido como um homem tão alto como os outros. E isso desperta a piedade da personagem feminina da história, a qual se enche de boas intenções. Mas de boas intenções...
... está o companheiro dela farto. E cético. E isso leva ao desfecho da história, no qual surge um toque de horror psicológico num texto que até aí é basicamente realista, por mais incomuns que sejam o ambiente e as personagens. Este é um bom conto, mas não está ao nível das melhores histórias de Bradbury.
O protagonista é, naturalmente, um anão. Um anão que frequenta habitualmente uma daquelas casas de espelhos que havia em algumas feiras, onde a troco de umas quantas moedas as pessoas podiam ver-se grotescamente distorcidas pelos espelhos côncavos ou convexos ou com outras formas ainda mais estranhas que lá existiam. Não faço a mais pequena ideia se tal diversão ainda existe nesta era de filtros fotográficos de todos os tipos em qualquer telemóvel, mas houve tempo em que essa era a única forma que as pessoas tinham para se verem como pessoas diferentes.
Claro, a subtileza deste conto reside na inversão. O anão sente-se ele próprio grotesco e visita o parque de diversões não para sublinhar esse grotesco mas para se poder ver distorcido como um homem tão alto como os outros. E isso desperta a piedade da personagem feminina da história, a qual se enche de boas intenções. Mas de boas intenções...
... está o companheiro dela farto. E cético. E isso leva ao desfecho da história, no qual surge um toque de horror psicológico num texto que até aí é basicamente realista, por mais incomuns que sejam o ambiente e as personagens. Este é um bom conto, mas não está ao nível das melhores histórias de Bradbury.
quinta-feira, 29 de agosto de 2019
Sacha Andrade Ramos: O Preço de uma Coroa
Tão militantemente monarquista como a história de João Afonso Machado, e apesar de um início que parece querer enveredar pelos mesmos desagradáveis caminhos, rapidamente se percebe que tais receios têm pouco fundamento. É que ao contrário de Machado, Sacha Andrade Ramos já leu história alternativa e sabe o que está a fazer.
A história praticamente abre com um longo infodump, e este é a pior parte do conto. Um infodump usado para despejar a informação necessária para o leitor compreender as premissas da linha temporal alternativa em que o conto se desenrola e que, numa história mais extensa, poderia e deveria ser mais bem distribuída ao longo do texto, intercalada com elementos mais interessantes, mas numa história deste tamanho se torna praticamente inevitável e por isso aceitável. O que não quer dizer que seja bom. O protagonista é o príncipe herdeiro da coroa portuguesa, e o ambiente é uma das praias da Linha, fechada ao público para que sua senhoria pudesse ter uma crise existencial em paz e sossego.
A crise existencial tem a ver com uma decisão fundamental: aceitar a coroa, ou não? Ou por outra, aceitar pagar O Preço de uma Coroa (bibliografia) ou não? A autora usa esse dilema para desenvolver a sua visão do que seria uma monarquia portuguesa moderna caso a república nunca tivesse sido implantada, mas fá-lo bastante bem, introduzindo na trama uma rapariga que atenta contra a vida do príncipe. Uma antagonista com razões de queixa e por isso não propriamente uma vilã, o que impede este conto de resvalar para caminhos mais simplórios. E o risco de isso acontecer era real, pois o príncipe é muito escarrapachadamente o herói; um autor mais ingénuo ou ignorante na arte de contar histórias facilmente se deixaria encurralar nessa armadilha, mas Sacha Andrade Santos não o faz.
E o resultado é um conto que só aquele longo infodump inicial estraga. Não o suficiente para o tornar mau, longe disso, mas o suficiente para não permitir que seja realmente bom. Está entre o bom e o razoável o que, neste livro, parece ser motivo para destaque.
Contos anteriores deste livro:
A história praticamente abre com um longo infodump, e este é a pior parte do conto. Um infodump usado para despejar a informação necessária para o leitor compreender as premissas da linha temporal alternativa em que o conto se desenrola e que, numa história mais extensa, poderia e deveria ser mais bem distribuída ao longo do texto, intercalada com elementos mais interessantes, mas numa história deste tamanho se torna praticamente inevitável e por isso aceitável. O que não quer dizer que seja bom. O protagonista é o príncipe herdeiro da coroa portuguesa, e o ambiente é uma das praias da Linha, fechada ao público para que sua senhoria pudesse ter uma crise existencial em paz e sossego.
A crise existencial tem a ver com uma decisão fundamental: aceitar a coroa, ou não? Ou por outra, aceitar pagar O Preço de uma Coroa (bibliografia) ou não? A autora usa esse dilema para desenvolver a sua visão do que seria uma monarquia portuguesa moderna caso a república nunca tivesse sido implantada, mas fá-lo bastante bem, introduzindo na trama uma rapariga que atenta contra a vida do príncipe. Uma antagonista com razões de queixa e por isso não propriamente uma vilã, o que impede este conto de resvalar para caminhos mais simplórios. E o risco de isso acontecer era real, pois o príncipe é muito escarrapachadamente o herói; um autor mais ingénuo ou ignorante na arte de contar histórias facilmente se deixaria encurralar nessa armadilha, mas Sacha Andrade Santos não o faz.
E o resultado é um conto que só aquele longo infodump inicial estraga. Não o suficiente para o tornar mau, longe disso, mas o suficiente para não permitir que seja realmente bom. Está entre o bom e o razoável o que, neste livro, parece ser motivo para destaque.
Contos anteriores deste livro:
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
E. M. Forster: O Obelisco
É sempre uma complicação escrever sobre contos que dependem de um final surpreendente que obriga a reavaliar o que ficou para trás, ao mesmo tempo que se tenta não dar demasiadas pistas a quem lê sobre qual a surpresa que existe nesse final para não lhes estragar a experiência de uma eventual leitura. Mas torna-se ainda mais complicado fazer isso quando a surpresa está tão entrelaçada com quem o autor é (ou era, vá) como acontece neste conto.
E até a frase anterior já deixa várias pistas a todos os que já conhecerem alguma coisa sobre E. M. Forster e a sua obra. Assim, valerá a pena tentar manter o jogo relativamente escondido? Ou mais vale abri-lo de uma vez?
Bem, vou entreabri-lo. Porque tem de ser. Todos os que conhecem Forster saberão não só que ele era homossexual, mas que escrevia com certa frequência sobre temas homossexuais. Ora, neste O Obelisco parece a princípio não o fazer. O conto é sobre um casal heterossexual invulgar, pois o homem do casal é anão. Em férias longe de casa, param numa terra onde um obelisco erguido nas falésias junto ao mar é uma das principais atrações turísticas da região. Aí, conhecem fortuitamente dois marinheiros de licença, um dos quais, obtuso, grande e musculoso, tem a irónica alcunha de "Tiny", "minúsculo".
No meio de uma névoa de recriminações e frustrações, pois nenhuma das personagens neste conto é realmente simpática e muito menos feliz, o casal sai da vila rumo ao tal obelisco, porque há que se ver as atrações turísticas quando se é turista. Depressa, no entanto, os marinheiros se lhes juntam, e após alguma conversa os quatro decidem seguir juntos até ao obelisco. Mas não demoram a formar-se dois grupos, um que a narrativa continua a seguir, pois apesar de contado na terceira pessoa o ponto de vista do conto é sempre o da mulher, e outro que perde de vista. No primeiro, está a mulher e o mais educado dos dois marinheiros; no segundo, o anão e "Tiny".
Isolada do marido, sexualmente frustrada e envaidecida pelas atenções que lhe são prestadas pelo marinheiro, a mulher deixa-se seduzir. E os dois afastam-se do caminho e entregam-se a uma cópula clandestina no meio do campo. E o conto prossegue com essa infidelidade a servir de mote às dúvidas, vergonhas, desafios, temores e inseguranças da mulher, enquanto o marinheiro tenta sossegá-la, que ele se encarregará de não deixar que ninguém suspeite de nada quando reencontrarem os companheiros. E é o que acontece até chegar o final surpresa sob a forma de um postal que representa o obelisco e das palavras que são trocadas a respeito do postal e do que ele representa.
Este é mais um dos tais contos em que eu acabo a leitura com um considerável respeito pelo autor e a sua habilidade narrativa, mas essencialmente aborrecido. O conto é bom, mas daí até eu ter gostado dele vai alguma distância. Em termos de gosto pessoal, esta leitura termina com um "meh".
Contos anteriores desta publicação:
E até a frase anterior já deixa várias pistas a todos os que já conhecerem alguma coisa sobre E. M. Forster e a sua obra. Assim, valerá a pena tentar manter o jogo relativamente escondido? Ou mais vale abri-lo de uma vez?
Bem, vou entreabri-lo. Porque tem de ser. Todos os que conhecem Forster saberão não só que ele era homossexual, mas que escrevia com certa frequência sobre temas homossexuais. Ora, neste O Obelisco parece a princípio não o fazer. O conto é sobre um casal heterossexual invulgar, pois o homem do casal é anão. Em férias longe de casa, param numa terra onde um obelisco erguido nas falésias junto ao mar é uma das principais atrações turísticas da região. Aí, conhecem fortuitamente dois marinheiros de licença, um dos quais, obtuso, grande e musculoso, tem a irónica alcunha de "Tiny", "minúsculo".
No meio de uma névoa de recriminações e frustrações, pois nenhuma das personagens neste conto é realmente simpática e muito menos feliz, o casal sai da vila rumo ao tal obelisco, porque há que se ver as atrações turísticas quando se é turista. Depressa, no entanto, os marinheiros se lhes juntam, e após alguma conversa os quatro decidem seguir juntos até ao obelisco. Mas não demoram a formar-se dois grupos, um que a narrativa continua a seguir, pois apesar de contado na terceira pessoa o ponto de vista do conto é sempre o da mulher, e outro que perde de vista. No primeiro, está a mulher e o mais educado dos dois marinheiros; no segundo, o anão e "Tiny".
Isolada do marido, sexualmente frustrada e envaidecida pelas atenções que lhe são prestadas pelo marinheiro, a mulher deixa-se seduzir. E os dois afastam-se do caminho e entregam-se a uma cópula clandestina no meio do campo. E o conto prossegue com essa infidelidade a servir de mote às dúvidas, vergonhas, desafios, temores e inseguranças da mulher, enquanto o marinheiro tenta sossegá-la, que ele se encarregará de não deixar que ninguém suspeite de nada quando reencontrarem os companheiros. E é o que acontece até chegar o final surpresa sob a forma de um postal que representa o obelisco e das palavras que são trocadas a respeito do postal e do que ele representa.
Este é mais um dos tais contos em que eu acabo a leitura com um considerável respeito pelo autor e a sua habilidade narrativa, mas essencialmente aborrecido. O conto é bom, mas daí até eu ter gostado dele vai alguma distância. Em termos de gosto pessoal, esta leitura termina com um "meh".
Contos anteriores desta publicação:
terça-feira, 27 de agosto de 2019
Jorge Ribeiro de Castro: Toca-me um Sumptuoso Frio
Toca-me um Sumptuoso Frio (bibliografia) é mais um daqueles poemas que se vistos sob um certo ponto de vista mais literalista são fantásticos, mas nos quais os elementos fantásticos podem com igual facilidade ser encarados como meras metáforas poéticas. Jorge Ribeiro de Castro, embora introduza no seu texto elementos sobrenaturais, não escreve realmente sobre fantasmas ou espíritos: escreve sobre a morte.
E escreve sobre a morte de uma forma algo mais sofisticada que a da maioria dos poemas que li até agora neste livro. Há rimas não muito básicas, há rimas internas aos versos, há um ritmo que não é inteiramente óbvio, por aí fora. É certo que não gostei, mas isso deve-se sobretudo ao facto de este tipo de poema ter o condão de me aborrecer. Abstraindo-me disso, reconheço alguma qualidade a este esforço.
Textos anteriores deste livro:
E escreve sobre a morte de uma forma algo mais sofisticada que a da maioria dos poemas que li até agora neste livro. Há rimas não muito básicas, há rimas internas aos versos, há um ritmo que não é inteiramente óbvio, por aí fora. É certo que não gostei, mas isso deve-se sobretudo ao facto de este tipo de poema ter o condão de me aborrecer. Abstraindo-me disso, reconheço alguma qualidade a este esforço.
Textos anteriores deste livro:
Ademir Pascale: Rose, a Estranha
Apesar do título de Rose, a Estranha, remeter qualquer leitor brasileiro para o título local do livro de Stephen King, Carrie, e isso poder levar à suposição de que Ademir Pascale se terá inspirado nesse romance para criar o seu conto, ao ler-se este último não se encontram muitas semelhanças com King. ou com o livro deste.
Mas esta história é muito melhor que a anterior, partilhando com ela a classificação como horror sobrenatural e pouco mais. É mais coerente (embora continuem a existir incoerências), mais enxuta, tem menos fragilidades a nível de escrita, é menos cliché e está de uma forma geral mais bem concebida e executada. O protagonista é um tal Marcos, que perde o emprego como webdesigner numa empresa do ramo só para descobrir que a mulher que secretaria o seu despedimento, nova na empresa, é sua vizinha. E resolve ir bater-lhe à porta.
Má ideia. Rose, assim se chama a mulher (mas não a mesma Rose do conto anterior, aparentemente), não é bem o que ele julga. E as consequências são desagradáveis.
Este conto está entre o razoável e o bonzinho e é, se bem me lembro, o mais bem sucedido texto do autor que eu li até hoje (não foram muitos; pode haver melhores).
Conto anterior deste livro:
Mas esta história é muito melhor que a anterior, partilhando com ela a classificação como horror sobrenatural e pouco mais. É mais coerente (embora continuem a existir incoerências), mais enxuta, tem menos fragilidades a nível de escrita, é menos cliché e está de uma forma geral mais bem concebida e executada. O protagonista é um tal Marcos, que perde o emprego como webdesigner numa empresa do ramo só para descobrir que a mulher que secretaria o seu despedimento, nova na empresa, é sua vizinha. E resolve ir bater-lhe à porta.
Má ideia. Rose, assim se chama a mulher (mas não a mesma Rose do conto anterior, aparentemente), não é bem o que ele julga. E as consequências são desagradáveis.
Este conto está entre o razoável e o bonzinho e é, se bem me lembro, o mais bem sucedido texto do autor que eu li até hoje (não foram muitos; pode haver melhores).
Conto anterior deste livro:
domingo, 25 de agosto de 2019
Leiturtugas da semana #31
Mais uma semana de pausa, e cá estão as Leiturtugas de volta. E desta vez também mudou a responsável pelas primeiras da semana. Sim, já não foi a Cristina; foi a Tita. Ela publicou duas brevíssimas opiniões sobre dois álbuns de banda desenhada de José Carlos Fernandes, mais desenvolvidas em vídeo, como é seu hábito: As Aventuras do Barão Wrangel, publicado pela Devir, e A Arte de José Carlos Fernandes, publicado pela Panini. A BD vai sempre para a coluna "sem FC", pelo que a Tita passa a 5c6s. E, a mais de quatro meses do fim do ano, falta-lhe apenas uma FC para cumprir os mínimos.
E por esta semana foi só isto. Para a semana haverá mais? Veremos. Até lá.
E por esta semana foi só isto. Para a semana haverá mais? Veremos. Até lá.
sábado, 24 de agosto de 2019
Possidónio Cachapa: O Homem que Existia Demais
Uma das coisas que mais me agrada na literatura é a subtileza despretensiosa, aquela forma delicada de introduzir nas ficções coisas meio ocultas mas ao mesmo tempo bem visíveis, sem que para isso seja preciso recorrer à meia bola e força, frequentemente muito tosca, dos hermetismos de linguagem.
E Possidónio Cachapa, pelos vistos, domina a arte. O Homem que Existia Demais é um sonho de liberdade, narrado sob a forma de uma analepse quase total, ensanduichada entre o momento em que o protagonista da história passa o volante do carro onde segue para as mãos de quem o acompanha (e narra a história), subindo para o tejadilho porque quer sentir o vento, e o momento em que, quilómetros à frente, o carro para e ele já não está lá, descobrindo-se o narrador sozinho. Nessa analepse é narrada a história de como e porquê o protagonista chega a um momento em que decide, do nada, passar o volante do carro em que segue para mãos alheias e desaparecer.
A sua história é a história de alguém que desde sempre procura a liberdade mais absoluta possível. Aqui, o conto tem um ponto fraco porque a ideia de que pessoas que procuram a liberdade se sentem inevitavelmente atraídas pelo circo é um cliché já demasiado gasto. Mas a história está bem contada, com uma prosa de boa qualidade, com bom ritmo e detalhes bastante bem apanhados, pelo que compensa.
E depois há a subtileza de que falo acima. Cachapa consegue só com uma palavra, ou até só com uma letra, dar ao seu conto toda uma camada adicional, porque é essa letra nessa palavra que faz com que o narrador seja um homem e não uma mulher. É que os dois, narrador e narrado, são amantes, logo homossexuais, embora fique a forte suspeita de que a liberdade que o outro procura não para na fronteira da sexualidade e ele dificilmente se deixaria restringir também a esse rótulo. Aparecer esta nova camada assim pode ter sido apenas casual, claro, mas duvido muito. Parece-me bastante mais provável que seja coisa propositada e, se o for, está mesmo muito bem feita.
Este é um bom conto. Não creio que seja muito bom e não é daqueles contos cujo tema ou abordagem me interessam o suficiente para me levar a gostar muito deles apesar das falhas que possam apresentar, mas é bom. Está claramente acima da média desta coleção.
E Possidónio Cachapa, pelos vistos, domina a arte. O Homem que Existia Demais é um sonho de liberdade, narrado sob a forma de uma analepse quase total, ensanduichada entre o momento em que o protagonista da história passa o volante do carro onde segue para as mãos de quem o acompanha (e narra a história), subindo para o tejadilho porque quer sentir o vento, e o momento em que, quilómetros à frente, o carro para e ele já não está lá, descobrindo-se o narrador sozinho. Nessa analepse é narrada a história de como e porquê o protagonista chega a um momento em que decide, do nada, passar o volante do carro em que segue para mãos alheias e desaparecer.
A sua história é a história de alguém que desde sempre procura a liberdade mais absoluta possível. Aqui, o conto tem um ponto fraco porque a ideia de que pessoas que procuram a liberdade se sentem inevitavelmente atraídas pelo circo é um cliché já demasiado gasto. Mas a história está bem contada, com uma prosa de boa qualidade, com bom ritmo e detalhes bastante bem apanhados, pelo que compensa.
E depois há a subtileza de que falo acima. Cachapa consegue só com uma palavra, ou até só com uma letra, dar ao seu conto toda uma camada adicional, porque é essa letra nessa palavra que faz com que o narrador seja um homem e não uma mulher. É que os dois, narrador e narrado, são amantes, logo homossexuais, embora fique a forte suspeita de que a liberdade que o outro procura não para na fronteira da sexualidade e ele dificilmente se deixaria restringir também a esse rótulo. Aparecer esta nova camada assim pode ter sido apenas casual, claro, mas duvido muito. Parece-me bastante mais provável que seja coisa propositada e, se o for, está mesmo muito bem feita.
Este é um bom conto. Não creio que seja muito bom e não é daqueles contos cujo tema ou abordagem me interessam o suficiente para me levar a gostar muito deles apesar das falhas que possam apresentar, mas é bom. Está claramente acima da média desta coleção.
sexta-feira, 23 de agosto de 2019
Ana Cristina Luz: Premonição
Não faço, obviamente, a mais pequena ideia do número de vezes que a Ana Cristina Luz reviu este conto mas, se fosse obrigado a adivinhar, dificilmente aventaria algum número que não fosse zero. E é pena, porque o conto tinha potencial para ser bom.
É que não encontro outra explicação para a quantidade de repetições e de trechos de ideias remastigadas que se encontram nesta Premonição (bibliografia). Em parte, compreendo que a ideia tenha sido encher o texto de foreshadowing, mas há um equilíbrio delicado, que a autora esteve muito longe de conseguir alcançar, entre deixar no texto indicações de acontecimentos futuros e enchê-lo de alusões tão óbvias e repetitivas que quando esses acontecimentos acontecem (sim, a repetição é propositada, já verão porquê) já não trazem consigo nenhuma surpresa.
A segunda página do conto é disso um bom exemplo. Às tantas aparece um "acontecimento do século" (o que ainda por cima é um daqueles clichés que conviria evitar o mais possível). Logo no parágrafo seguinte lá temos um "palco de todos os acontecimentos" e, no mesmo parágrafo, apenas quatro linhas mais à frente, aparece outro "palco de todos os acontecimentos". Mais um parágrafo e temos uma "concretização de acontecimentos" com que alguém sonha. E o conto é quase todo assim, pois quando não são as construções frásicas e as palavras a repetir-se são as ideias. E a leitura sofre, claro. Muito.
E é pena. Uma revisão bem dada a este conto podia resultar numa boa história, que a ideia-base tem o seu interesse: numa linha temporal alternativa em que a monarquia perdura até aos dias de hoje, uma mulher com poderes divinatórios, mas renitente em usá-los, ou pelo menos em acreditar neles, antevê uma desgraça quando se celebrar o tal casamento que o parágrafo anterior menciona: uma união entre as coroas espanhola (por via masculina) e portuguesa (por via feminina). O que, sim, explica o título. E há ainda questões geopolíticas à mistura, há questões relacionadas com as personalidades do noivo e da noiva, por aí fora. E há um final surpresa que com menos foreshadowing seria muito mais bem sucedido.
Ou seja, este é um daqueles contos cuja execução bastante fraca estraga uma ideia com potencial. Julgo que a autora tentou sair da sua zona de conforto, e não lhe correu bem. Se assim foi, a intenção até é boa, mas a verdade é que em literatura os resultados contam muito mais que as intenções, e ter ideias com potencial nunca será suficiente.
Contos anteriores deste livro:
É que não encontro outra explicação para a quantidade de repetições e de trechos de ideias remastigadas que se encontram nesta Premonição (bibliografia). Em parte, compreendo que a ideia tenha sido encher o texto de foreshadowing, mas há um equilíbrio delicado, que a autora esteve muito longe de conseguir alcançar, entre deixar no texto indicações de acontecimentos futuros e enchê-lo de alusões tão óbvias e repetitivas que quando esses acontecimentos acontecem (sim, a repetição é propositada, já verão porquê) já não trazem consigo nenhuma surpresa.
A segunda página do conto é disso um bom exemplo. Às tantas aparece um "acontecimento do século" (o que ainda por cima é um daqueles clichés que conviria evitar o mais possível). Logo no parágrafo seguinte lá temos um "palco de todos os acontecimentos" e, no mesmo parágrafo, apenas quatro linhas mais à frente, aparece outro "palco de todos os acontecimentos". Mais um parágrafo e temos uma "concretização de acontecimentos" com que alguém sonha. E o conto é quase todo assim, pois quando não são as construções frásicas e as palavras a repetir-se são as ideias. E a leitura sofre, claro. Muito.
E é pena. Uma revisão bem dada a este conto podia resultar numa boa história, que a ideia-base tem o seu interesse: numa linha temporal alternativa em que a monarquia perdura até aos dias de hoje, uma mulher com poderes divinatórios, mas renitente em usá-los, ou pelo menos em acreditar neles, antevê uma desgraça quando se celebrar o tal casamento que o parágrafo anterior menciona: uma união entre as coroas espanhola (por via masculina) e portuguesa (por via feminina). O que, sim, explica o título. E há ainda questões geopolíticas à mistura, há questões relacionadas com as personalidades do noivo e da noiva, por aí fora. E há um final surpresa que com menos foreshadowing seria muito mais bem sucedido.
Ou seja, este é um daqueles contos cuja execução bastante fraca estraga uma ideia com potencial. Julgo que a autora tentou sair da sua zona de conforto, e não lhe correu bem. Se assim foi, a intenção até é boa, mas a verdade é que em literatura os resultados contam muito mais que as intenções, e ter ideias com potencial nunca será suficiente.
Contos anteriores deste livro:
Ademir Pascale: O Lado Oculto de Rose
Há coisas que eu digo tantas vezes nos textos que vou deixando por aqui que imagino que já cansem quem ainda não se fartou de cá vir ler. Mas há outras que não tenho dito muitas vezes, apesar de serem tão verdadeiras como as primeiras. Uma destas coisas é que entre os vários géneros em que se subdividem as literaturas da imaginação aquele que menos costuma agradar-me é o horror. E este conto de Ademir Pascale exemplifica bem os principais motivos por que isso acontece.
Não é todo o horror, atenção. Mas se noutros modos daquilo a que se costuma chamar literatura fantástica já existe alguma tendência para repetir ideias e técnicas narrativas em voga há décadas (não deixa de ser natural; toda a gente começa por escrever o que gosta de ler, e o que se gosta de ler é sempre literatura que já foi feita, por definição), no horror essa tendência é muito maior. Parte desse conservadorismo tem a ver com a idade mais recuada dos tempos áureos do horror, ou pelo menos de vários dos seus subgéneros, muito enraizados na literatura gótica e no fantástico macabro do romantismo oitocentista. O que também é compreensível. Mas não é por ser compreensível que deixa de me cansar e aborrecer.
E isso leva a que seja bastante frequente que eu até consiga ver qualidades numa história de horror, na forma como está escrita, na forma como está concebida e executada, por aí fora, mas mesmo assim acabe por não gostar dela. Ora, quando a isso se somam fragilidades de vária ordem, pior um pouco.
É precisamente isso que acontece com O Lado Oculto de Rose. Trata-se de uma história de horror sobrenatural sobre uma família de imigrantes italianos no Brasil e sobre Rose, uma velha tia do narrador principal. A estrutura é absolutamente clássica. Se não fossem as datas, o conto pareceria vindo diretamente do século XIX, usando muitos dos tropos que estavam em voga nessa época, desde a carta do narrador principal, escrita em forma de depoimento e encontrada fortuitamente pelo narrador secundário, ao casarão arrepiante, passando por uma série de outros detalhes, muito comuns tanto na velha literatura macabra quanto no cinema de horror.
Mesmo assim, se o autor tivesse conseguido criar um ambiente com alguma força emocional a história até poderia ter resultado, apesar dos clichés. Mas fragilidades várias, inclusivamente no domínio do português (os clássicos erros de crase de tantos brasileiros, por exemplo, mas não só), e a escolha de um narrador distanciado, mesmo que a dado passo ele deixe de o ser, não permitem que essa força emocional se gere. Consequentemente, o conto é bastante fraco.
Não é todo o horror, atenção. Mas se noutros modos daquilo a que se costuma chamar literatura fantástica já existe alguma tendência para repetir ideias e técnicas narrativas em voga há décadas (não deixa de ser natural; toda a gente começa por escrever o que gosta de ler, e o que se gosta de ler é sempre literatura que já foi feita, por definição), no horror essa tendência é muito maior. Parte desse conservadorismo tem a ver com a idade mais recuada dos tempos áureos do horror, ou pelo menos de vários dos seus subgéneros, muito enraizados na literatura gótica e no fantástico macabro do romantismo oitocentista. O que também é compreensível. Mas não é por ser compreensível que deixa de me cansar e aborrecer.
E isso leva a que seja bastante frequente que eu até consiga ver qualidades numa história de horror, na forma como está escrita, na forma como está concebida e executada, por aí fora, mas mesmo assim acabe por não gostar dela. Ora, quando a isso se somam fragilidades de vária ordem, pior um pouco.
É precisamente isso que acontece com O Lado Oculto de Rose. Trata-se de uma história de horror sobrenatural sobre uma família de imigrantes italianos no Brasil e sobre Rose, uma velha tia do narrador principal. A estrutura é absolutamente clássica. Se não fossem as datas, o conto pareceria vindo diretamente do século XIX, usando muitos dos tropos que estavam em voga nessa época, desde a carta do narrador principal, escrita em forma de depoimento e encontrada fortuitamente pelo narrador secundário, ao casarão arrepiante, passando por uma série de outros detalhes, muito comuns tanto na velha literatura macabra quanto no cinema de horror.
Mesmo assim, se o autor tivesse conseguido criar um ambiente com alguma força emocional a história até poderia ter resultado, apesar dos clichés. Mas fragilidades várias, inclusivamente no domínio do português (os clássicos erros de crase de tantos brasileiros, por exemplo, mas não só), e a escolha de um narrador distanciado, mesmo que a dado passo ele deixe de o ser, não permitem que essa força emocional se gere. Consequentemente, o conto é bastante fraco.
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
Winifred Holtby: A Voz de Deus
Este livro está a surpreender-me. Pelo menos os dois primeiros contos são bastante diferentes do que eu estava à espera. Especialmente este, o segundo, pois se havia coisa que eu não esperava encontrar num livro intitulado Histórias de Fantasmas era ficção científica. E no entanto...
... e no entanto foi isso mesmo o que encontrei neste conto de Winifred Holtby, autora que, ainda por cima, desconhecia por completo. Não uma ficção científica moderna, naturalmente, pois afinal este A Voz de Deus (bibliografia) é conto de 1934, mas uma FC que me parece ter sido influenciada por H. G. Wells e pela sua A Máquina do Tempo.
Sim, o fulcro da trama é uma invenção, realizada pelo clássico génio solitário da FC vitoriana e pós-vitoriana. Não uma máquina do tempo propriamente dita, mas um aparelho que permite ouvir vozes vindas do passado. Holtby conta o que resulta dessa invenção com uma forte e muito corrosiva ironia, metendo ao barulho a imprensa em versão tabloide, pois quando a novidade se espalha há imediatamente um desses jornalecos que salta para agarrar a oportunidade de publicação exclusiva de conversas de velhos e muito mortos famosos.
E assim lá se põem as pessoas com acesso à máquina à escuta. Depois de se escutar este e aquele famoso, alguém tem a ideia derradeira: e se escutassem Jesus Cristo? Grande comoção, grande borburinho: quase todos querem ter acesso às palavras de Jesus, dos tabloides à igreja, e de novo Holtby descreve esta disputa com fortíssima ironia. Mas lá se chega a um acordo, sintoniza-se a engenhoca para Jesus, soa a "voz de deus" do título e...
... e ninguém percebe patavina.
E ninguém percebe porquê. Já falei da ironia? Pois. Ninguém percebe porquê, apesar da razão ser óbvia: Jesus não falava inglês, mas sim aramaico, uma língua semítica hoje reduzida a uma série descontínua de comunidades espalhadas pelo Médio Oriente. E claro que entre aquelas pessoas que ali estavam a ouvir ninguém falava a língua. E quando arranjaram um tradutor, ele não era o mais fiável dos tradutores, até porque o aramaico dos tempos de Jesus não é idêntico ao de hoje. O resultado de tudo isto é um conto bastante divertido, muito corrosivo mas cheio de tato, com o qual a autora consegue abordar de forma irónica alguns assuntos para muita gente intocáveis, sem ser minimamente ofensiva (pelo menos para mim; dados os temas, de certeza que haverá por aí alguém capaz de se ofender com este conto). Uma boa surpresa.
Conto anterior deste livro:
... e no entanto foi isso mesmo o que encontrei neste conto de Winifred Holtby, autora que, ainda por cima, desconhecia por completo. Não uma ficção científica moderna, naturalmente, pois afinal este A Voz de Deus (bibliografia) é conto de 1934, mas uma FC que me parece ter sido influenciada por H. G. Wells e pela sua A Máquina do Tempo.
Sim, o fulcro da trama é uma invenção, realizada pelo clássico génio solitário da FC vitoriana e pós-vitoriana. Não uma máquina do tempo propriamente dita, mas um aparelho que permite ouvir vozes vindas do passado. Holtby conta o que resulta dessa invenção com uma forte e muito corrosiva ironia, metendo ao barulho a imprensa em versão tabloide, pois quando a novidade se espalha há imediatamente um desses jornalecos que salta para agarrar a oportunidade de publicação exclusiva de conversas de velhos e muito mortos famosos.
E assim lá se põem as pessoas com acesso à máquina à escuta. Depois de se escutar este e aquele famoso, alguém tem a ideia derradeira: e se escutassem Jesus Cristo? Grande comoção, grande borburinho: quase todos querem ter acesso às palavras de Jesus, dos tabloides à igreja, e de novo Holtby descreve esta disputa com fortíssima ironia. Mas lá se chega a um acordo, sintoniza-se a engenhoca para Jesus, soa a "voz de deus" do título e...
... e ninguém percebe patavina.
E ninguém percebe porquê. Já falei da ironia? Pois. Ninguém percebe porquê, apesar da razão ser óbvia: Jesus não falava inglês, mas sim aramaico, uma língua semítica hoje reduzida a uma série descontínua de comunidades espalhadas pelo Médio Oriente. E claro que entre aquelas pessoas que ali estavam a ouvir ninguém falava a língua. E quando arranjaram um tradutor, ele não era o mais fiável dos tradutores, até porque o aramaico dos tempos de Jesus não é idêntico ao de hoje. O resultado de tudo isto é um conto bastante divertido, muito corrosivo mas cheio de tato, com o qual a autora consegue abordar de forma irónica alguns assuntos para muita gente intocáveis, sem ser minimamente ofensiva (pelo menos para mim; dados os temas, de certeza que haverá por aí alguém capaz de se ofender com este conto). Uma boa surpresa.
Conto anterior deste livro:
Francisco Maria Bordalo: O Galeão Enxobregas
Se bem se lembram, e se não se lembram não faz mal, quando aqui falei de outro destes livrinhos publicados aquando da Expo'98 tinha manifestado a minha estranheza por ser tão rara a obra portuguesa baseada em aventuras marítimas, visto termos à disposição vários séculos de material passível de ser usado como inspiração. Mais especificamente, foi quando falei sobre E Tais Pancadas tem a Costa da China, de Fernão Mendes Pinto. Francisco Maria Bordalo, escritor novecentista que era ele próprio marinheiro, parece ser a grande exceção.
Exemplo disso é este livro. O Galeão Enxobregas é uma história de aventuras e perigos, alegadamente verdadeiros, que relata uma viagem de ida e volta de um galeão ao Extremo Oriente. O Enxobregas, claro. Decorre a ação cerca de 1650, ou seja, já não na época áurea da expansão portuguesa mas logo após o fim do domínio filipino numa época em que as potências peninsulares já têm nos mares a competição frequentemente violenta de outras potências europeias, em especial os ingleses, os franceses e os holandeses.
E é da dinâmica entre a aventura intrínseca da viagem e aquela que decorre da inclemência das tempestades e dos encontros fortuitos (e batalhas) com inimigos das mais variadas espécies que se constrói a ação. E sim, o foco está na ação e no que vai acontecendo ao galeão propriamente dito; as personagens humanas, numerosas, vão surgindo, desaparecendo e por vezes ressurgindo ao sabor dos acontecimentos, sem grande elaboração psicológica nem muito que lhes explique as atitudes.
Naturalmente, tendo o autor sido um oficial da marinha portuguesa do século XIX, a visão da história é claramente colonialista, repleta de orgulho pátrio e alusões à valentia e superioridade portuguesas face aos outros povos, inclusivamente os inimigos europeus. E o racismo também espreita, apesar de se encontrarem aqui, num pé razoavelmente igualitário, personagens cujo sangue não é europeu, no todo ou em parte.
Outro problema é a forma distanciada como é feita a narração. Não poderia ser de outro modo, creio, uma vez que a história é apresentada como verídica, mas esse distanciamento impede o leitor de mergulhar realmente na história e no mundo que a contém. Apesar disso, este texto consegue manter o interesse e é claro que o autor sabe do que fala, pois os numerosos detalhes relacionados com a vida no mar, a manobra e a construção naval ressoam a verdade, a coisa vivida, o que também contribui para tornar o texto interessante. E é essa a palavra que eu usaria se me pedissem para descrever de forma resumida a experiência de leitura: foi interessante.
Este livro está disponível em PDF, para descarregar do site do Instituto Camões, aqui. Pena que a imagem da capa seja tão minúscula e o PDF não a inclua.
Exemplo disso é este livro. O Galeão Enxobregas é uma história de aventuras e perigos, alegadamente verdadeiros, que relata uma viagem de ida e volta de um galeão ao Extremo Oriente. O Enxobregas, claro. Decorre a ação cerca de 1650, ou seja, já não na época áurea da expansão portuguesa mas logo após o fim do domínio filipino numa época em que as potências peninsulares já têm nos mares a competição frequentemente violenta de outras potências europeias, em especial os ingleses, os franceses e os holandeses.
E é da dinâmica entre a aventura intrínseca da viagem e aquela que decorre da inclemência das tempestades e dos encontros fortuitos (e batalhas) com inimigos das mais variadas espécies que se constrói a ação. E sim, o foco está na ação e no que vai acontecendo ao galeão propriamente dito; as personagens humanas, numerosas, vão surgindo, desaparecendo e por vezes ressurgindo ao sabor dos acontecimentos, sem grande elaboração psicológica nem muito que lhes explique as atitudes.
Naturalmente, tendo o autor sido um oficial da marinha portuguesa do século XIX, a visão da história é claramente colonialista, repleta de orgulho pátrio e alusões à valentia e superioridade portuguesas face aos outros povos, inclusivamente os inimigos europeus. E o racismo também espreita, apesar de se encontrarem aqui, num pé razoavelmente igualitário, personagens cujo sangue não é europeu, no todo ou em parte.
Outro problema é a forma distanciada como é feita a narração. Não poderia ser de outro modo, creio, uma vez que a história é apresentada como verídica, mas esse distanciamento impede o leitor de mergulhar realmente na história e no mundo que a contém. Apesar disso, este texto consegue manter o interesse e é claro que o autor sabe do que fala, pois os numerosos detalhes relacionados com a vida no mar, a manobra e a construção naval ressoam a verdade, a coisa vivida, o que também contribui para tornar o texto interessante. E é essa a palavra que eu usaria se me pedissem para descrever de forma resumida a experiência de leitura: foi interessante.
Este livro está disponível em PDF, para descarregar do site do Instituto Camões, aqui. Pena que a imagem da capa seja tão minúscula e o PDF não a inclua.
domingo, 18 de agosto de 2019
Italo Calvino: O Castelo dos Destinos Cruzados
Quem foi acompanhando os vários posts que fui fazendo à medida que ia lendo os contos de que se compõe esta coleção de contos interligados já tem uma ideia bastante concreta do que isto é mas, para os outros, aqui vai: O Castelo dos Destinos Cruzados foi um livro que Italo Calvino construiu com base nas cartas de tarot que lhe iam saindo, usando essas cartas como espinha dorsal (ou mero pretexto, por vezes) das histórias que foi tecendo. Divide-se em duas partes bastante independentes entre si, intituladas O Castelo dos Destinos Cruzados e A Taberna dos Destinos Cruzados, que reúnem histórias subtilmente diferentes: as da primeira parte são mais "bem comportadas", as da segunda mais caóticas.
Em ambos os casos, porém, o mecanismo narrativo é o mesmo: o narrador, após atravessar uma floresta, depara com um castelo ou taberna, e aí chegado descobre que perdera o uso da palavra, tendo o mesmo acontecido a todas as pessoas que lá encontra. Então, algum dos convivas tem a ideia de contar a sua história através das cartas de tarot, e os restantes (ou alguns dos restantes, pelo menos) imitam-no. As histórias são regra geral reconstituídas pelo narrador, com muitas dúvidas e hesitações devidas ao caráter ambíguo das cartas.
E são histórias com grande referencialidade a várias obras e autores da história da literatura, tanto a italiana como a europeia em geral. Em várias, as referências são óbvias, do Orlando Furioso às obras de Shakespeare, ao passo que outras remetem mais subtil e genericamente para a literatura popular ou para textos literários medievais ou anteriores. Em alguns, algo surpreendentemente, apesar de isso estar longe de ser inédito em Calvino, surgem quase pastiches de ficções percursoras da ficção científica, e em todos o fantástico está bem presente, até porque a própria premissa geral é inerentemente fantástica. E tudo escrito com grande qualidade.
Por outro lado, as limitações na forma de construir as histórias tornam-nas por vezes repetitivas e algo cansativas, e por vezes levam Calvino a fazer um pouco de batota para tentar escapar-se da camisa de forças em que se encerrou. A referencialidade também pode causar problemas à leitura por parte de leitores pouco familiarizados com os textos que inspiram Calvino, o que bem vistas as coisas constitui mais problema dos leitores do que dos textos.
No geral, este livro é bastante bom, conseguindo ser mesmo por vezes espantoso.
Eis o que achei de cada uma das histórias:
Em ambos os casos, porém, o mecanismo narrativo é o mesmo: o narrador, após atravessar uma floresta, depara com um castelo ou taberna, e aí chegado descobre que perdera o uso da palavra, tendo o mesmo acontecido a todas as pessoas que lá encontra. Então, algum dos convivas tem a ideia de contar a sua história através das cartas de tarot, e os restantes (ou alguns dos restantes, pelo menos) imitam-no. As histórias são regra geral reconstituídas pelo narrador, com muitas dúvidas e hesitações devidas ao caráter ambíguo das cartas.
E são histórias com grande referencialidade a várias obras e autores da história da literatura, tanto a italiana como a europeia em geral. Em várias, as referências são óbvias, do Orlando Furioso às obras de Shakespeare, ao passo que outras remetem mais subtil e genericamente para a literatura popular ou para textos literários medievais ou anteriores. Em alguns, algo surpreendentemente, apesar de isso estar longe de ser inédito em Calvino, surgem quase pastiches de ficções percursoras da ficção científica, e em todos o fantástico está bem presente, até porque a própria premissa geral é inerentemente fantástica. E tudo escrito com grande qualidade.
Por outro lado, as limitações na forma de construir as histórias tornam-nas por vezes repetitivas e algo cansativas, e por vezes levam Calvino a fazer um pouco de batota para tentar escapar-se da camisa de forças em que se encerrou. A referencialidade também pode causar problemas à leitura por parte de leitores pouco familiarizados com os textos que inspiram Calvino, o que bem vistas as coisas constitui mais problema dos leitores do que dos textos.
No geral, este livro é bastante bom, conseguindo ser mesmo por vezes espantoso.
Eis o que achei de cada uma das histórias:
- O Castelo dos Destinos Cruzados
- O Castelo
- História do Ingrato Punido
- História do Alquimista que Vendeu a Alma
- História da Esposa Condenada
- História de um Ladrão de Sepulturas
- História de Orlando Louco por Amor
- História de Astolfo na Lua
- Todas as Outras Histórias
- A Taberna dos Destinos Cruzados
sexta-feira, 16 de agosto de 2019
Daniela Vieitas: Deriva Divina
O fantástico de inspiração católica tem uma certa tradição em Portugal, ao ponto de ter sido cultivado por alguns dos nossos melhores escritores. De resto, foi há muito pouco tempo que se falou aqui mesmo na Lâmpada de alguns contos de Eça de Queirós que se integram nesse ramo da literatura. Pois bem: Daniela Vieitas, com esta Deriva Divina, apresenta mais um.
A protagonista da história é uma adolescente de 15 anos que, segundo a tradição minhota (a autora é de Viana do Castelo) e devido à sua formosura, é escolhida para mordoma das festas religiosas de uma vila de pescadores destinadas a conquistar as boas graças do mar durante o ano seguinte. Enorme honra e orgulho para a família, embora a própria rapariga se submeta a todos os preparativos necessários com as suas reservas, que só se avolumam quando, no dia da festa, como que corporiza a Virgem Maria, percorre a vila em procissão durante a qual todos tentam tocá-la para serem abençoados, e acaba por sair para o mar num bote a remos.
Aí, em vez de abençoar o mar como estava nos planos, paralisa, não se percebe bem se por medo se por uma amplificação súbita do desconforto que sente desde o início com aquele papel. E essa paralisia vai levar ao desfecho do conto, que é aquilo que enquadra declaradamente esta história na literatura fantástica. Não contarei muito sobre ele, pois é esse o fulcro de toda a história, concebido para ser algo surpreendente. Digamos apenas que há acontecimentos milagrosos à mistura.
Este é um bom conto. Está bem escrito e bem concebido, usando com eficácia a reviravolta final e conseguindo até ser profundo de uma forma à partida insuspeita. O fundo religioso não me agrada por aí além, mas desconfio que sem ele o conto não seria tão verdadeiro como é, no sentido da realidade pessoal da autora, e também por isso, com ele ou sem ele, esta história está vários degraus acima de várias das outras histórias presentes até agora neste volume.
Contos anteriores deste livro:
A protagonista da história é uma adolescente de 15 anos que, segundo a tradição minhota (a autora é de Viana do Castelo) e devido à sua formosura, é escolhida para mordoma das festas religiosas de uma vila de pescadores destinadas a conquistar as boas graças do mar durante o ano seguinte. Enorme honra e orgulho para a família, embora a própria rapariga se submeta a todos os preparativos necessários com as suas reservas, que só se avolumam quando, no dia da festa, como que corporiza a Virgem Maria, percorre a vila em procissão durante a qual todos tentam tocá-la para serem abençoados, e acaba por sair para o mar num bote a remos.
Aí, em vez de abençoar o mar como estava nos planos, paralisa, não se percebe bem se por medo se por uma amplificação súbita do desconforto que sente desde o início com aquele papel. E essa paralisia vai levar ao desfecho do conto, que é aquilo que enquadra declaradamente esta história na literatura fantástica. Não contarei muito sobre ele, pois é esse o fulcro de toda a história, concebido para ser algo surpreendente. Digamos apenas que há acontecimentos milagrosos à mistura.
Este é um bom conto. Está bem escrito e bem concebido, usando com eficácia a reviravolta final e conseguindo até ser profundo de uma forma à partida insuspeita. O fundo religioso não me agrada por aí além, mas desconfio que sem ele o conto não seria tão verdadeiro como é, no sentido da realidade pessoal da autora, e também por isso, com ele ou sem ele, esta história está vários degraus acima de várias das outras histórias presentes até agora neste volume.
Contos anteriores deste livro:
João Afonso Machado: A Realidade, não Fora a Loucura
Há contos cuja principal qualidade é serem misericordiosamente curtos. E há contos que mesmo sendo curtos conseguem fartar o leitor muito antes de chegarem ao fim. É o caso desta história (palavra escolhida propositadamente, apesar da repetição que vem imediatamente a seguir, e já veremos porquê) de história (cá está ela) alternativa de João Afonso Machado.
Mais: há contos cuja principal qualidade é serem misericordiosamente curtos apesar de serem contos de história alternativa, género que exige espaço para se explanarem a contento as diferenças entre a linha histórica alternativa e a real e poder estabelecer-se a verosimilhança própria do ambiente ficcional que se pretende criar. Não é por acaso nem por capricho que, como Gerson Lodi-Ribeiro, provavelmente o maior especialista lusófono nas ucronias (outro termo para histórias alternativas, para quem não sabe) diz, a extensão ideal para histórias curtas de história alternativa é a noveleta. Em muitos casos nem o conto chega. E apesar disso, ainda bem que alguns são tão curtos. Mesmo que essa brevidade contribua para a sua falta de qualidade.
A Realidade, não Fora a Loucura (bibliografia) é uma história de alguém que nunca deve ter lido história alternativa na vida, ou pelo menos não sabe que, para que funcione, a ucronia tem de ser minimamente sustentada na sua recriação da realidade, ou então tratada como pano de fundo para acontecimentos mais mundanos, em histórias cujo foco já não são os elementos ucrónicos propriamente ditos mas outras coisas. E por isso, o que João Afonso Machado escreve é um sonho húmido de monarquista, que despreza por completo as realidades do Portugal de 1908 (um país atrasado, agrícola, rentista e quase desprovido de indústria), sonhando-o grande potência por obra e graça do espírito santo que fez o milagre de impedir o Regicídio. Haja fé.
Seria possível escrever uma boa história mesmo assim? Sim. Seria bastante difícil, mas possível. Mas João Afonso Machado não o faz. O que escreve é um texto chatíssimo com ar de manual de história misturado com texto evangélico, num português banal que pouco mais faz além de despejar informação inverosímil sem se preocupar minimamente com tentar levar o leitor a suspender a descrença o suficiente para chegar ao fim da história sem numerosos suspiros de exasperação enquanto agradece a misericórdia do texto ser tão breve.
Este é um mau conto enquanto tal e um péssimo conto enquanto história alternativa.
Contos anteriores deste livro:
Mais: há contos cuja principal qualidade é serem misericordiosamente curtos apesar de serem contos de história alternativa, género que exige espaço para se explanarem a contento as diferenças entre a linha histórica alternativa e a real e poder estabelecer-se a verosimilhança própria do ambiente ficcional que se pretende criar. Não é por acaso nem por capricho que, como Gerson Lodi-Ribeiro, provavelmente o maior especialista lusófono nas ucronias (outro termo para histórias alternativas, para quem não sabe) diz, a extensão ideal para histórias curtas de história alternativa é a noveleta. Em muitos casos nem o conto chega. E apesar disso, ainda bem que alguns são tão curtos. Mesmo que essa brevidade contribua para a sua falta de qualidade.
A Realidade, não Fora a Loucura (bibliografia) é uma história de alguém que nunca deve ter lido história alternativa na vida, ou pelo menos não sabe que, para que funcione, a ucronia tem de ser minimamente sustentada na sua recriação da realidade, ou então tratada como pano de fundo para acontecimentos mais mundanos, em histórias cujo foco já não são os elementos ucrónicos propriamente ditos mas outras coisas. E por isso, o que João Afonso Machado escreve é um sonho húmido de monarquista, que despreza por completo as realidades do Portugal de 1908 (um país atrasado, agrícola, rentista e quase desprovido de indústria), sonhando-o grande potência por obra e graça do espírito santo que fez o milagre de impedir o Regicídio. Haja fé.
Seria possível escrever uma boa história mesmo assim? Sim. Seria bastante difícil, mas possível. Mas João Afonso Machado não o faz. O que escreve é um texto chatíssimo com ar de manual de história misturado com texto evangélico, num português banal que pouco mais faz além de despejar informação inverosímil sem se preocupar minimamente com tentar levar o leitor a suspender a descrença o suficiente para chegar ao fim da história sem numerosos suspiros de exasperação enquanto agradece a misericórdia do texto ser tão breve.
Este é um mau conto enquanto tal e um péssimo conto enquanto história alternativa.
Contos anteriores deste livro:
Olha outro meu... de certa forma...
Já deve andar por aí mais um dos "meus"... de certa forma. Estas Histórias dos Sete Reinos do George R. R. Martin foram traduzidas por mim há já alguns anos e publicadas em português em 2014, antes mesmo de um volume equiparável sair em inglês. São três novelas, que deram um volume de cerca de 330 páginas. Agora foram reeditadas em formato de bolso, o que eleva as páginas a 400.
Para quem nada sabe sobre o livro, aqui ficam algumas informações: é ambientado no mesmo universo ficcional das Crónicas de Gelo e Fogo, provavelmente mais conhecido pelo título da série que as adaptou, e que também é título do primeiro volume das Crónicas: A Guerra dos Tronos. Se viveram debaixo de uma pedra nestes últimos anos, trata-se de uma série de fantasia ambientada num mundo secundário com características muito próprias, mas fortemente baseada no período medieval do norte da Europa (os Sete Reinos acima de Dorne, pelo menos; Dorne e outros locais baseiam-se noutras civilizações terrestres). Estas três histórias, no entanto, têm pouquíssima fantasia. São sobretudo histórias de cavalaria, protagonizadas por um cavaleiro andante e pelo seu fiel escudeiro, que por mero acaso pertence à família real.
E são também histórias que têm lugar cerca de um século antes dos acontecimentos das Crónicas de Gelo e Fogo, as quais arrancam com uma rebelião que derruba a dinastia Targaryen. Aqui, os Targaryen ainda estão plenamente no controlo da situação, apesar de já não disporem dos dragões que lhes proporcionaram a conquista do continente em que se situam os Sete Reinos. Ou seja: estas são também histórias que se desenrolam depois dos acontecimentos narrados noutro livro derivado das Crónicas e publicado este ano, em dois volumes: Sangue & Fogo. Volumes esses que, diga-se de passagem, são só metade do que está previsto, pelo que estas histórias hão certamente de fornecer material para o que falta.
Traduzir este livro foi diferente de traduzir um livro comum. Na verdade, não o traduzi como livro: já tinha traduzido uma das novelas alguns anos antes, para publicação na coletânea do Martin O Cavaleiro de Westeros e Outras Histórias, e tinha também a modos que traduzido a segunda, pois antes da novela traduzi a banda desenhada que a adapta. Portanto só a terceira destas histórias foi realmente nova, traduzida normalmente. Trabalhar na segunda foi um trabalho algo bizarro para o que estou acostumado: foi uma tradução condicionada ao trabalho já feito anteriormente, para evitar inconsistências. Mas tirando isso, traduzir Martin ou Robin Hobb é sempre uma espécie de regresso a casa para mim, e este livro não foi exceção. Consequências dos anos que passei a traduzir ou um ou outro, que já foram bastantes (cada livro são cerca de três meses de trabalho; podem fazer as contas), e que me levaram a conhecer-lhes bastante bem as técnicas e as abordagens. Mesmo que todos os livros sejam diferentes, e são, há sempre neles a familiaridade dos velhos-novos amigos.
Provavelmente a mesma familiaridade dos fãs das Crónicas que pegarem nestas Histórias dos Sete Reinos. É um livro diferente, mas também reconhecerão nele muitas coisas.
Para quem nada sabe sobre o livro, aqui ficam algumas informações: é ambientado no mesmo universo ficcional das Crónicas de Gelo e Fogo, provavelmente mais conhecido pelo título da série que as adaptou, e que também é título do primeiro volume das Crónicas: A Guerra dos Tronos. Se viveram debaixo de uma pedra nestes últimos anos, trata-se de uma série de fantasia ambientada num mundo secundário com características muito próprias, mas fortemente baseada no período medieval do norte da Europa (os Sete Reinos acima de Dorne, pelo menos; Dorne e outros locais baseiam-se noutras civilizações terrestres). Estas três histórias, no entanto, têm pouquíssima fantasia. São sobretudo histórias de cavalaria, protagonizadas por um cavaleiro andante e pelo seu fiel escudeiro, que por mero acaso pertence à família real.
E são também histórias que têm lugar cerca de um século antes dos acontecimentos das Crónicas de Gelo e Fogo, as quais arrancam com uma rebelião que derruba a dinastia Targaryen. Aqui, os Targaryen ainda estão plenamente no controlo da situação, apesar de já não disporem dos dragões que lhes proporcionaram a conquista do continente em que se situam os Sete Reinos. Ou seja: estas são também histórias que se desenrolam depois dos acontecimentos narrados noutro livro derivado das Crónicas e publicado este ano, em dois volumes: Sangue & Fogo. Volumes esses que, diga-se de passagem, são só metade do que está previsto, pelo que estas histórias hão certamente de fornecer material para o que falta.
Traduzir este livro foi diferente de traduzir um livro comum. Na verdade, não o traduzi como livro: já tinha traduzido uma das novelas alguns anos antes, para publicação na coletânea do Martin O Cavaleiro de Westeros e Outras Histórias, e tinha também a modos que traduzido a segunda, pois antes da novela traduzi a banda desenhada que a adapta. Portanto só a terceira destas histórias foi realmente nova, traduzida normalmente. Trabalhar na segunda foi um trabalho algo bizarro para o que estou acostumado: foi uma tradução condicionada ao trabalho já feito anteriormente, para evitar inconsistências. Mas tirando isso, traduzir Martin ou Robin Hobb é sempre uma espécie de regresso a casa para mim, e este livro não foi exceção. Consequências dos anos que passei a traduzir ou um ou outro, que já foram bastantes (cada livro são cerca de três meses de trabalho; podem fazer as contas), e que me levaram a conhecer-lhes bastante bem as técnicas e as abordagens. Mesmo que todos os livros sejam diferentes, e são, há sempre neles a familiaridade dos velhos-novos amigos.
Provavelmente a mesma familiaridade dos fãs das Crónicas que pegarem nestas Histórias dos Sete Reinos. É um livro diferente, mas também reconhecerão nele muitas coisas.
quinta-feira, 15 de agosto de 2019
Italo Calvino: Três Histórias de Loucura e Destruição
Dando continuidade à tendência para o caos que acompanha as histórias da segunda parte deste livro, Italo Calvino apresenta-nos agora três histórias, contadas por três protagonistas diferentes, os quais, para as contarem, competem pelas mesmas cartas de tarot. E são, naturalmente, Três Histórias de Loucura e Destruição.
Como em várias das histórias anteriores, também aqui Calvino vai buscar inspiração a literatura de tempos idos, e a capacidade de apreciar os detalhes desta história depende em parte do grau de familiaridade que o leitor tem com as obras que lhe serviram de inspiração. Confesso que por minha parte não tenho muita; é que embora conheça a maior parte das mais famosas obras de Shakespeare, nunca as li por inteiro, até porque nunca gostei de ler teatro, e tampouco as vi representadas na sua forma original, vindo-me o conhecimento pela leitura de alguns fragmentos e através de adaptações ao cinema e a óperas. Sim, aqui é Shakespeare quem inspira Calvino. Mais propriamente três das suas obras: Rei Lear, Macbeth e Hamlet.
O resultado é tão emaranhado como um novelo depois de ter passado pelas garras de um gato doméstico. A narrativa é hesitante, sinuosa, vagueando de um lado para o outro ao sabor da obra e respetivas personagens que ganham momentânea preponderância. É frequente voltar-se atrás com um "não, não é assim como foi dito agora mesmo, é assado". A principal mensagem que passa, pelo menos a quem não está muito familiarizado com Shakespeare (e desconfio que será a mesma para quem esteja), é comum a várias das outras histórias: os símbolos não são de fiar, estão demasiado sujeitos à subjetividade das interpretações para poderem ancorar-se firmemente seja ao que for.
Esta é das tais histórias cuja leitura não é particularmente agradável, apesar de ser bem visível e muito admirável a destreza com que o autor a tece, levando-a precisamente pelas veredas sinuosas por onde pretende levá-la. Por outras palavras: acho-a boa, mas não gostei muito de a ler.
Contos anteriores deste livro:
Como em várias das histórias anteriores, também aqui Calvino vai buscar inspiração a literatura de tempos idos, e a capacidade de apreciar os detalhes desta história depende em parte do grau de familiaridade que o leitor tem com as obras que lhe serviram de inspiração. Confesso que por minha parte não tenho muita; é que embora conheça a maior parte das mais famosas obras de Shakespeare, nunca as li por inteiro, até porque nunca gostei de ler teatro, e tampouco as vi representadas na sua forma original, vindo-me o conhecimento pela leitura de alguns fragmentos e através de adaptações ao cinema e a óperas. Sim, aqui é Shakespeare quem inspira Calvino. Mais propriamente três das suas obras: Rei Lear, Macbeth e Hamlet.
O resultado é tão emaranhado como um novelo depois de ter passado pelas garras de um gato doméstico. A narrativa é hesitante, sinuosa, vagueando de um lado para o outro ao sabor da obra e respetivas personagens que ganham momentânea preponderância. É frequente voltar-se atrás com um "não, não é assim como foi dito agora mesmo, é assado". A principal mensagem que passa, pelo menos a quem não está muito familiarizado com Shakespeare (e desconfio que será a mesma para quem esteja), é comum a várias das outras histórias: os símbolos não são de fiar, estão demasiado sujeitos à subjetividade das interpretações para poderem ancorar-se firmemente seja ao que for.
Esta é das tais histórias cuja leitura não é particularmente agradável, apesar de ser bem visível e muito admirável a destreza com que o autor a tece, levando-a precisamente pelas veredas sinuosas por onde pretende levá-la. Por outras palavras: acho-a boa, mas não gostei muito de a ler.
Contos anteriores deste livro:
quarta-feira, 14 de agosto de 2019
Nuno Costa Santos: O Fim da Dívida
Esta coleção de ebooks está repleta de humoristas, com maior ou menor sucesso e com um grau muito variado de experiência nisto de escrever ficção propriamente dita, que não é bem a mesma coisa de escrever textos para serem lidos na rádio ou servirem de guiões para programas de TV. E Nuno Costa Santos é mais um.
Sabendo-se que estes ebooks foram publicados em 2013, não é muito difícil de perceber qual é o assunto de um conto com um título como O Fim da Dívida. Trata-se, claro, de um texto satírico sobre a situação económica de Portugal nos anos da troica, retratada de forma alegórica pelos problemas de um tal João, que "tinha tudo a crédito". E tem mais piada que a maioria dos textos dos outros humoristas que aqui publicaram. Na verdade, parece ter sido mais concebido para ter piada que a maior parte dos outros. Essa é a parte boa no que toca à piada; a parte má é que mesmo assim não tem muita.
João até pode ter tudo a crédito mas é um tipo cumpridor e trabalhador, fazendo biscates para cumprir com as suas obrigações. Mais ou menos como Portugal. E obviamente que acaba endrominado pelo funcionário do banco que lhe trata das finanças, que é assim uma espécie de Alemanha. Tudo muito óbvio, o que é um problema, e também quase tudo demasiado amargo para realmente fazer sorrir. Mas o problema maior é que se há coisas que fazem sentido numa história em que as personagens são estados e o enredo é macroeconómico, na microeconomia das relações de pessoa com pessoas deixam de fazer, pelo que a alegoria sai inevitavelmente coxa. Um uso bom dos oralismos, uma prosa bem ritmada e a meia dúzia de piadas que realmente fazem sorrir compensam estes problemas até certo ponto, mas só até certo ponto.
E por isso, este conto de Nuno Costa Santos é razoável. Não é dos piores que se encontram nesta coleção, mas também está longe dos melhores.
Sabendo-se que estes ebooks foram publicados em 2013, não é muito difícil de perceber qual é o assunto de um conto com um título como O Fim da Dívida. Trata-se, claro, de um texto satírico sobre a situação económica de Portugal nos anos da troica, retratada de forma alegórica pelos problemas de um tal João, que "tinha tudo a crédito". E tem mais piada que a maioria dos textos dos outros humoristas que aqui publicaram. Na verdade, parece ter sido mais concebido para ter piada que a maior parte dos outros. Essa é a parte boa no que toca à piada; a parte má é que mesmo assim não tem muita.
João até pode ter tudo a crédito mas é um tipo cumpridor e trabalhador, fazendo biscates para cumprir com as suas obrigações. Mais ou menos como Portugal. E obviamente que acaba endrominado pelo funcionário do banco que lhe trata das finanças, que é assim uma espécie de Alemanha. Tudo muito óbvio, o que é um problema, e também quase tudo demasiado amargo para realmente fazer sorrir. Mas o problema maior é que se há coisas que fazem sentido numa história em que as personagens são estados e o enredo é macroeconómico, na microeconomia das relações de pessoa com pessoas deixam de fazer, pelo que a alegoria sai inevitavelmente coxa. Um uso bom dos oralismos, uma prosa bem ritmada e a meia dúzia de piadas que realmente fazem sorrir compensam estes problemas até certo ponto, mas só até certo ponto.
E por isso, este conto de Nuno Costa Santos é razoável. Não é dos piores que se encontram nesta coleção, mas também está longe dos melhores.
segunda-feira, 12 de agosto de 2019
Daniel Sousa: O Fantasma ou a Solidão
Daniel Sousa apresenta com O Fantasma ou a Solidão (bibliografia) um poema romântico, no sentido literário do termo, para o qual se serve alegoricamente de elementos sobrenaturais para descrever um estado de alma. Apesar de ser uma forma bastante datada de fazer literatura, ainda pode dar resultados interessantes desde que seja bem feito. Não é o caso. Tecnicamente, este poema é muito mau e tematicamente, apesar de talvez poder comover algumas pessoas mais sensibilizáveis por este tipo de texto, não traz rigorosamente nada de novo. Sendo justo, a novidade não está, claramente, nos objetivos do autor, que só parece pretender desabafar o que lhe pesa no peito. Terá tido pleno sucesso nisso, imagino. Mas do lado de cá, do lado de quem lê, geralmente espera-se mais e Daniel Sousa nada mais dá. Muito fraco.
Textos anteriores deste livro:
Textos anteriores deste livro:
Pedro Santo: O Filho do Pai Manel
Pedro Santo é humorista, apesar de praticamente ninguém o conhecer por este nome. Se falarmos de Bruno Aleixo, no entanto, a coisa muda de figura, e a maior parte dos portugueses irá lembrar-se dos bizarros programas, primeiro com um ewok, depois com uma espécie de cão vagamente chewbaccano, cujos argumentos envolviam invariavelmente histórias muito, muito parvas. O Bruno Aleixo, ou por outra, o Pedro Santo, conseguiu com esses programas arranjar um belo grupo de fãs, pelo menos durante algum tempo.
Nunca fui um deles.
Neste O Filho do Pai Manel tenta repetir a estratégia, ignoro se pela primeira vez, uma vez que nunca tinha lido nenhum dos seus contos (os quais parecem ter sido escassos, pelo menos até à publicação deste). E sai-se mal.
O protagonista da história é um idiota chapado, filho de um tipo chamado Manel. E a própria história é francamente idiota, seguindo a trajetória de vida do filho do pai Manel, que se convenceu que o seu futuro era ou ser doutor de Coimbra (sem ter concluído o secundário, evidentemente, muito menos a universidade) ou assassino a soldo, acabando a ganhar a vida como leitor de bulas de medicamentos a velhas e seguindo daí para farmacêutico e que se dane aquela chatice da verosimilhança. Tudo contado com uma prosa pouco segura, cheia de tentativas de burilamento não particularmente bem sucedidas, e com aquele jeito brunoaleixiano de fazer piadas secas com base na estupidez estratosférica de personagens e situações, que só muito raramente conseguiu levar-me a esboçar um sorriso.
O resultado é um conto bastante mau, dos piores desta coleção e dos piores contos que eu li este ano, material de fanzines incluído. Mas talvez agrade a alguns fãs do Bruno Aleixo, que é fruto que não caiu muito longe dessa árvore.
Nunca fui um deles.
Neste O Filho do Pai Manel tenta repetir a estratégia, ignoro se pela primeira vez, uma vez que nunca tinha lido nenhum dos seus contos (os quais parecem ter sido escassos, pelo menos até à publicação deste). E sai-se mal.
O protagonista da história é um idiota chapado, filho de um tipo chamado Manel. E a própria história é francamente idiota, seguindo a trajetória de vida do filho do pai Manel, que se convenceu que o seu futuro era ou ser doutor de Coimbra (sem ter concluído o secundário, evidentemente, muito menos a universidade) ou assassino a soldo, acabando a ganhar a vida como leitor de bulas de medicamentos a velhas e seguindo daí para farmacêutico e que se dane aquela chatice da verosimilhança. Tudo contado com uma prosa pouco segura, cheia de tentativas de burilamento não particularmente bem sucedidas, e com aquele jeito brunoaleixiano de fazer piadas secas com base na estupidez estratosférica de personagens e situações, que só muito raramente conseguiu levar-me a esboçar um sorriso.
O resultado é um conto bastante mau, dos piores desta coleção e dos piores contos que eu li este ano, material de fanzines incluído. Mas talvez agrade a alguns fãs do Bruno Aleixo, que é fruto que não caiu muito longe dessa árvore.
domingo, 11 de agosto de 2019
Francisco e Marcos Mariani Casadore (eds): Macondo, nº 6
A minha busca por material passível de ser encaixado no Bibliowiki leva-me muitas vezes a tomar contacto com publicações que de outra forma ignoraria por completo. Não necessariamente por não me interessarem, embora aconteça com certa frequência; Muitas vezes são publicações cika exostência desconhecia e só encontro porque me aparecem nas buscas que faço por outras coisas. No caso desta Macondo nº 6, revista (ou fanzine) literária eletrónica liderada por Francisco e Marcos Mariani Casadore (irmãos? Provavelmente), foi uma busca por João do Rio que ma pôs nas mãos virtuais.
E é uma publicação eminentemente literária, no que esse termo tem das assim chamadas "belas letras". Os textos selecionados pelos editores são quase invariavelmente (a maior exceção é precisamente o texto do João do Rio) daqueles que colocam o embelezamento da frase acima de qualquer outra consideração, mesmo quando esse "embelezamento" vai tão longe que se torna feitiço virado contra o feiticeiro. Há poesia, obviamente, há contos, sempre bastante curtos, mas também há opinião, um ensaio (bastante interessante, diga-se) sobre Molière, uma crónica e um punhado de críticas.
É uma abordagem à literatura que está bem distante da que mais me agrada, pelo que é natural que eu não saia desta leitura particularmente satisfeito. Mas há aqui alguns bons textos, mesmo quando não me agradam por aí além. E, claro, apesar de não ter encontrado nada no texto do João do Rio que possa qualificá-lo para inclusão no Bibliowiki, encontrei outro texto que lá cabe, pelo que não posso dar por mal empregado o tempo que gastei nesta leitura.
Eis o que achei sobre os contos e poemas desta publicação:
E é uma publicação eminentemente literária, no que esse termo tem das assim chamadas "belas letras". Os textos selecionados pelos editores são quase invariavelmente (a maior exceção é precisamente o texto do João do Rio) daqueles que colocam o embelezamento da frase acima de qualquer outra consideração, mesmo quando esse "embelezamento" vai tão longe que se torna feitiço virado contra o feiticeiro. Há poesia, obviamente, há contos, sempre bastante curtos, mas também há opinião, um ensaio (bastante interessante, diga-se) sobre Molière, uma crónica e um punhado de críticas.
É uma abordagem à literatura que está bem distante da que mais me agrada, pelo que é natural que eu não saia desta leitura particularmente satisfeito. Mas há aqui alguns bons textos, mesmo quando não me agradam por aí além. E, claro, apesar de não ter encontrado nada no texto do João do Rio que possa qualificá-lo para inclusão no Bibliowiki, encontrei outro texto que lá cabe, pelo que não posso dar por mal empregado o tempo que gastei nesta leitura.
Eis o que achei sobre os contos e poemas desta publicação:
- Alter et Idem / Liberdade de Expressão
- Ondula e Renasce / Impulso Im/pele / O Peso da Tua Letra
- Roma, 1978
- Cônjuges / Expect(a/o)re
- Orfandade / Moldura
- Garoa Sobre Mário
- (cinco haicais sem títulos)
- Suculência / Asas / Cortante
- O Personagem Heleno
- O Homem que Virou Relógio
- Espelho, Espelho Meu
- Os Livres Acampamentos da Miséria
Leiturtugas da semana #30
Cá temos mais uma semana com Leiturtugas e, mais uma vez, coube à Cristina Alves o primeiro post leiturtuguento da semana, graças à sua opinião sobre um texto de Álvaro Domigues publicado na Granta, Futuro, e intitulado Oh que Cousas Grandes e Raras Haverá. Com ela a Cristina confronta-me com um problema, pois este não é um texto ficcional mas sim um texto de opinião, um ensaio literário, aparentemente sobre visões do futuro, e quando concebi este projeto e as suas regras não me lembrei desta possibilidade. Que fazer? Bem, creio que vou fazer com este tipo de texto o mesmo que com a BD: aceita-se mas vai para a coluna "sem FC", mesmo que a tenha. Consequência: a Cristina passa a 5c5s.
Mas muito pouco tempo depois da Cristina ter feito o seu post surgiu mais um, meu, como de resto já tinha sido prometido na semana passada, com a minha opinião sobre o conto de David Soares intitulado No Muro e integrado na coleção de ebooks publicada pelo DN aqui há uns anos. Surpreendentemente, pois o David Soares sempre se dedicou mais ao horror, é um conto que roça de perto na ficção científica, e eu passo inesperadamente a 5c7s. E falta-me apenas uma leiturtuga com FC para cumprir os objetivos.
E por esta semana é só. Para a semana haverá mais? Não sei, não sei. Se aparecer outro post destes no próximo domingo é porque houve.
Mas muito pouco tempo depois da Cristina ter feito o seu post surgiu mais um, meu, como de resto já tinha sido prometido na semana passada, com a minha opinião sobre o conto de David Soares intitulado No Muro e integrado na coleção de ebooks publicada pelo DN aqui há uns anos. Surpreendentemente, pois o David Soares sempre se dedicou mais ao horror, é um conto que roça de perto na ficção científica, e eu passo inesperadamente a 5c7s. E falta-me apenas uma leiturtuga com FC para cumprir os objetivos.
E por esta semana é só. Para a semana haverá mais? Não sei, não sei. Se aparecer outro post destes no próximo domingo é porque houve.
Ozias Filho: A Maratonista
Brasileiro radicado em Lisboa, Ozias Filho é mais poeta que prosador, e isso fica muito claro da leitura deste conto curto de história alternativa. A Maratonista (bibliowiki) é um texto pejado de repetições, que a princípio lhe dão uma cadência interessante mas depressa se tornam cansativas, sobre uma florista que corre e corre e corre sem saber bem porquê e acaba por salvar do regicídio o rei D. Carlos, em 1908.
O enredo é esquemático em absoluto, chegando quase a parecer abstrato. Isso e uma enorme teatralidade, bastante ridícula, fazem com que rapidamente o leitor seja assaltado pela impressão de não estar a ler um conto mas a assistir a uma ópera com mais que um pouco de bufa. E se me parece que o caráter operático é voluntário e consciente, não creio que o ridículo o seja. Pelo contrário: a ideia que me dá é que Ozias Filho escreveu o seu continho muito a sério. Mas posso enganar-me, naturalmente.
A questão a que há que dar resposta, se Ozias Filho foi ou não bem sucedido naquilo que se propôs fazer, portanto, recebe-a ambígua: sim e não. E isso faz com que o conto não seja mau, mas também não seja bom.
Contos anteriores deste livro:
O enredo é esquemático em absoluto, chegando quase a parecer abstrato. Isso e uma enorme teatralidade, bastante ridícula, fazem com que rapidamente o leitor seja assaltado pela impressão de não estar a ler um conto mas a assistir a uma ópera com mais que um pouco de bufa. E se me parece que o caráter operático é voluntário e consciente, não creio que o ridículo o seja. Pelo contrário: a ideia que me dá é que Ozias Filho escreveu o seu continho muito a sério. Mas posso enganar-me, naturalmente.
A questão a que há que dar resposta, se Ozias Filho foi ou não bem sucedido naquilo que se propôs fazer, portanto, recebe-a ambígua: sim e não. E isso faz com que o conto não seja mau, mas também não seja bom.
Contos anteriores deste livro:
sábado, 10 de agosto de 2019
Sérgio Godinho: Notas Soltas da Corda e do Carrasco
Do Sérgio Godinho, escritor de canções, autor de algumas das mais intrincadas letras da música portuguesa, não podia esperar-se outra coisa que não fosse prosa poética. A dúvida estava, porque nunca lhe tinha lido nenhuma prosa, na qualidade. Seria prosa poética da boa? Ou seria mais uma vez daquelas que remetem à cor púrpura dos anglófonos?
É da boa. Não da perfeita, até porque isso de perfeição é coisa reservada para as fantasias dos teólogos, mas da boa. E como um título como Notas Soltas da Corda e do Carrasco já parece indicar, é também prosa poética sobre um tema que, à partida, não aconselharia prosas poéticas: a morte judicialmente ordenada e aqueles que a executam. Ou pelo menos um daqueles que a executam.
O protagonista de Sérgio Godinho é, está-se logo a ver, um carrasco. Um carrasco que se confessa e, entre divagações, vai contando a sua história. O que o levara a ser carrasco, o modo como encarara a profissão. O leitor depressa percebe que nem tudo está bem na vida dele, e o que faz mover a narrativa é em parte a curiosidade de saber se o que está errado é consequência ou está de alguma forma ligado à sua condição de carrasco. E no fim acaba por perceber que até está, sim, embora não exatamente da forma que está à espera.
Este é um bom conto. Não creio que seja um conto muito bom, pois há alguma incongruência entre a forma, razoavelmente leve, e o conteúdo, francamente sombrio, o próprio tema não é tão original como o autor talvez suponha (lembrei-me ao ler isto de alguns dos contos de Telmo Marçal, por exemplo, dos quais até gostei mais porque estão mais próximos da minha sensibilidade literária) e há também uns detalhes lógicos no enredo que não me pareceram particularmente bem pensados, mas é um bom conto. Bom o suficiente para despertar a curiosidade sobre outras prosas do autor... que segundo a bio que acompanha esta edição parecem não existir. Pena.
É da boa. Não da perfeita, até porque isso de perfeição é coisa reservada para as fantasias dos teólogos, mas da boa. E como um título como Notas Soltas da Corda e do Carrasco já parece indicar, é também prosa poética sobre um tema que, à partida, não aconselharia prosas poéticas: a morte judicialmente ordenada e aqueles que a executam. Ou pelo menos um daqueles que a executam.
O protagonista de Sérgio Godinho é, está-se logo a ver, um carrasco. Um carrasco que se confessa e, entre divagações, vai contando a sua história. O que o levara a ser carrasco, o modo como encarara a profissão. O leitor depressa percebe que nem tudo está bem na vida dele, e o que faz mover a narrativa é em parte a curiosidade de saber se o que está errado é consequência ou está de alguma forma ligado à sua condição de carrasco. E no fim acaba por perceber que até está, sim, embora não exatamente da forma que está à espera.
Este é um bom conto. Não creio que seja um conto muito bom, pois há alguma incongruência entre a forma, razoavelmente leve, e o conteúdo, francamente sombrio, o próprio tema não é tão original como o autor talvez suponha (lembrei-me ao ler isto de alguns dos contos de Telmo Marçal, por exemplo, dos quais até gostei mais porque estão mais próximos da minha sensibilidade literária) e há também uns detalhes lógicos no enredo que não me pareceram particularmente bem pensados, mas é um bom conto. Bom o suficiente para despertar a curiosidade sobre outras prosas do autor... que segundo a bio que acompanha esta edição parecem não existir. Pena.
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
David Soares: No Muro (#leiturtugas)
Já a caminho do atual estado de insuportável parnasianismo mas ainda algo longe de lá chegar, David Soares fez deste No Muro o conto em que talvez tenha roçado mais de perto pela ficção científica.
A princípio não parece. De facto, nem parece ter nada de fantástico; parece não passar de uma daquelas histórias mainstream, tão do agrado de certos escritores e leitores, mas sobretudo dos primeiros, em que alguém descobre os livros e, ao descobri-los, descobre neles uma "centelha do divino" que os separa, e por conseguinte a quem os faz e os aprecia, da ralé ignara. Um dia talvez escreva sobre esta ideologia de deificação da palavra escrita e do mal que ela faz à própria propagação da palavra escrita, mas não será hoje. Talvez no dia em que escrever a sério e detalhadamente sobre o pulp, que corresponde ao extremismo de sentido oposto. Embora talvez não baste um dia para dizer bem o que tenho a dizer; se calhar preciso de uma semana.
Mas adiante.
Neste conto, o protagonista herda do pai uma vasta biblioteca. E põe-se a descobri-la quase por acaso, acabando por perder-se de amores por ela "como as meninas se afeiçoavam aos prometidos maritágios". Sim, é citação direta. Para ficarem com uma ideia da letradice desta prosa. E tantos amores sente que panica com a possibilidade de lhe roubarem a biblioteca ou lhe acontecer algum outro desastre do mesmo calibre. Vai daí, tem uma ideia daquelas de lâmpada acesa por cima da moleirinha: vai fazer um muro na sua propriedade. E dentro de cada tijolo desse muro vai encafuar um livro.
E é aqui que o conto se vira para a ficção científica. Porque o muro fica quando o seu criador se vai e a História de H grande continua a desenrolar-se, inexorável, desembocando em distopia à moda de Fahrenheit 451, com fuzilamentos, queima de todas as bibliotecas, promoção violenta da ignorância mais atroz. Permanece o muro, com a sua biblioteca secreta dentro. Preciosa, chama-lhe David Soares. Inerentemente preciosa, sugere, atribuindo às palavras dos livros uma qualquer alma mística. Inútil, digo eu. Porque sem ter quem as leia, e nada existe na história a sugerir que alguma vez virá a existir alguém que as leia, as palavras são um nada que se desfaz com o tempo. Sem uma criatura humana para lhes dar sentido, não passam de rabiscos sem qualquer significado. Não há superstição literata que lhes valha. Alma... hah... deixem-me rir.
Na contabilidade dos detalhes de que é feita a literatura, este é um conto razoável. Está bastante bem estruturado e de uma forma geral bem escrito, apesar dos ataques de parnasianismo espalhados aqui e ali. Mas a história que nele se conta é derivativa de obras melhores, em parte porque concretizadas sem o recurso a delírios místico-poéticos sobre a natureza das palavras. Há aqueles, obviamente, para os quais são precisamente esses delírios que elevam este conto mais alto; para mim, contudo, e tenho absoluta certeza de não estar nisso sozinho, são aquilo que mais conta em seu detrimento. As palavras que uns e outros leem são as mesmas. Mas é a criatura humana que as lê que lhes confere significado e lhes dá ou retira importância.
E é por isso que a experiência de leitura é inerentemente subjetiva.
A princípio não parece. De facto, nem parece ter nada de fantástico; parece não passar de uma daquelas histórias mainstream, tão do agrado de certos escritores e leitores, mas sobretudo dos primeiros, em que alguém descobre os livros e, ao descobri-los, descobre neles uma "centelha do divino" que os separa, e por conseguinte a quem os faz e os aprecia, da ralé ignara. Um dia talvez escreva sobre esta ideologia de deificação da palavra escrita e do mal que ela faz à própria propagação da palavra escrita, mas não será hoje. Talvez no dia em que escrever a sério e detalhadamente sobre o pulp, que corresponde ao extremismo de sentido oposto. Embora talvez não baste um dia para dizer bem o que tenho a dizer; se calhar preciso de uma semana.
Mas adiante.
Neste conto, o protagonista herda do pai uma vasta biblioteca. E põe-se a descobri-la quase por acaso, acabando por perder-se de amores por ela "como as meninas se afeiçoavam aos prometidos maritágios". Sim, é citação direta. Para ficarem com uma ideia da letradice desta prosa. E tantos amores sente que panica com a possibilidade de lhe roubarem a biblioteca ou lhe acontecer algum outro desastre do mesmo calibre. Vai daí, tem uma ideia daquelas de lâmpada acesa por cima da moleirinha: vai fazer um muro na sua propriedade. E dentro de cada tijolo desse muro vai encafuar um livro.
E é aqui que o conto se vira para a ficção científica. Porque o muro fica quando o seu criador se vai e a História de H grande continua a desenrolar-se, inexorável, desembocando em distopia à moda de Fahrenheit 451, com fuzilamentos, queima de todas as bibliotecas, promoção violenta da ignorância mais atroz. Permanece o muro, com a sua biblioteca secreta dentro. Preciosa, chama-lhe David Soares. Inerentemente preciosa, sugere, atribuindo às palavras dos livros uma qualquer alma mística. Inútil, digo eu. Porque sem ter quem as leia, e nada existe na história a sugerir que alguma vez virá a existir alguém que as leia, as palavras são um nada que se desfaz com o tempo. Sem uma criatura humana para lhes dar sentido, não passam de rabiscos sem qualquer significado. Não há superstição literata que lhes valha. Alma... hah... deixem-me rir.
Na contabilidade dos detalhes de que é feita a literatura, este é um conto razoável. Está bastante bem estruturado e de uma forma geral bem escrito, apesar dos ataques de parnasianismo espalhados aqui e ali. Mas a história que nele se conta é derivativa de obras melhores, em parte porque concretizadas sem o recurso a delírios místico-poéticos sobre a natureza das palavras. Há aqueles, obviamente, para os quais são precisamente esses delírios que elevam este conto mais alto; para mim, contudo, e tenho absoluta certeza de não estar nisso sozinho, são aquilo que mais conta em seu detrimento. As palavras que uns e outros leem são as mesmas. Mas é a criatura humana que as lê que lhes confere significado e lhes dá ou retira importância.
E é por isso que a experiência de leitura é inerentemente subjetiva.
Italo Calvino: Eu Também Experimento Botar Palavra
À medida que nos aproximamos do fim deste livro de Italo Calvino, as histórias vão-se tornando cada vez mais bizarras. Eu Também Experimento Botar Palavra, a penúltima, até começa razoavelmente bem comportada, com o narrador a descrever de que forma tenta contar a sua história às restantes personagens presentes na taberna, mas depressa parte numa longa divagação sobre as representações possíveis do escritor não só em cartas de tarot mas nas artes plásticas em geral.
Entre as várias representações afloradas surge a figura do eremita, sozinho com os seus pensamentos e a sua pena, substituído por São Jerónimo quando as representações se transferem das cartas de tarot para os quadros, a do cavaleiro de espadas, cujo contraparte é São Jorge, o matador de dragões, e no meio de toda a especulação simbólica com base nas figuras pictóricas, Calvino, ou o seu protagonista por ele, vai inventando histórias, ou pelo menos farrapos de histórias.
Tão bem escrito como todos os outros, este conto tem um conteúdo simbólico mais denso que os demais, funcionando quase como texto filosófico sobre a natureza da atividade de escrita e as suas ramificações possíveis. Não é coisa que apele à minha personalidade de leitor, e fica ainda mais prejudicada por não conhecer particularmente bem as ramificações mitológicas das histórias que Calvino utiliza (coisas de ateu, desde sempre com pouco interesse pela religião e suas histórias), pelo que este não foi o texto que mais me agradou ler, longe disso. Mas julgo perceber o que Calvino aqui tentou fazer e até acho que o fez bem.
Contos anteriores deste livro:
Entre as várias representações afloradas surge a figura do eremita, sozinho com os seus pensamentos e a sua pena, substituído por São Jerónimo quando as representações se transferem das cartas de tarot para os quadros, a do cavaleiro de espadas, cujo contraparte é São Jorge, o matador de dragões, e no meio de toda a especulação simbólica com base nas figuras pictóricas, Calvino, ou o seu protagonista por ele, vai inventando histórias, ou pelo menos farrapos de histórias.
Tão bem escrito como todos os outros, este conto tem um conteúdo simbólico mais denso que os demais, funcionando quase como texto filosófico sobre a natureza da atividade de escrita e as suas ramificações possíveis. Não é coisa que apele à minha personalidade de leitor, e fica ainda mais prejudicada por não conhecer particularmente bem as ramificações mitológicas das histórias que Calvino utiliza (coisas de ateu, desde sempre com pouco interesse pela religião e suas histórias), pelo que este não foi o texto que mais me agradou ler, longe disso. Mas julgo perceber o que Calvino aqui tentou fazer e até acho que o fez bem.
Contos anteriores deste livro:
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
Em julho falou-se de...
Mais um mês que se passou, mais um post destes que vê a luz do dia. E voltou a ser um mês fraco, agora tanto para os comentários a material português quanto para os comentários a material brasileiro. Mas antes, temos de deixar aqui a conversa do costume sobre o que é isto, para o que remeto os dois ou três interessados para o primeiro post desta série, onde também encontrarão informação sobre as limitações que isto tem e o lugar de onde isto vem, e onde encontrar este post, os anteriores e, a seu tempo, os posteriores, para o que envio os três ou quatro interessados para a tag leituras fc. Ah, sim, e se o compincha que estiver neste momento a ler estas palavras ainda não souber que se seguem agora umas quantas listas e no fim das listas vamos conversar um bocadinho sobre elas, fica agora informado também desse facto. E vamos às listas.
Ficção portuguesa:
Também o Brasil anda fraco. Com apenas 10 comentários a material brasileiro, mesmo que se lhes acrescentem mais dois sobre publicações que incluem ficção brasileira e em tradução, este foi dos piores meses de sempre lá por aquelas bandas, fruto em parte do abrandamento na atividade de alguns blogues virados sobretudo para a leitura e comentário a material brasileiro, o que de resto também aconteceu por cá. A coisa foi tão fraca que desta vez nem há destaques a fazer, pois cada autor aparece na lista uma única vez.
Em contraste, os comentários a material não lusófono abundam. 92 não é o maior número de títulos de sempre, desce até 2 desde o mês anterior, mas é um dos números mais elevados que já apareceram e este mês a desproporção relativamente ao material lusófono, tanto brasileiro quanto português, é imensa. Julgo que nunca antes tinha sido tão grande. Basicamente, temos quase seis vezes mais comentários a material traduzido (ou na língua original) do que a material lusófono, o que é um bom reflexo da fragilidade das FCs lusófonas (e no caso português da quase total ausência de edições em 2019). Os destaques vão para Gwenda Bond, cuja novelização recebeu 5 comentários, Octavia Butler, com 4 comentários a dois títulos diferentes, Ursula Le Guin, com 5 comentários também a dois títulos, Stephen King, também com 5 comentários mas a quatro títulos diferentes, e Nora Roberts, com 4 comentários a um só título.
Por fim, este mês há também a referir a grande quantidade de comentários a obras de não-ficção, tanto brasileiras quanto não-lusófonas. Embora sejam fruto quase exclusivamente de um só site, é muito invulgar que este tipo de obra se aproxime dos comentários a ficções lusófonas, como foi o caso com os 5 comentários a não-ficção brasileira (um deles refere-se a uma publicação que inclui também ficção, mas não científica) e 6 a não-ficção internacional. Veremos se é caso único ou tendência que prossegue nos próximos meses, e também se a atual fase má das ficções lusófonas se prolonga ou não.
Até ao mês que vem.
Ficção portuguesa:
- O Invisível, a sua Sombra e o seu Reflexo, de António Bizarro
- Imprudentes, de Ana Cláudia Dâmaso
- Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago (2x)
- História do Cerco de Lisboa, de José Saramago
- In Falsetto, de Luís Filipe Silva (conto)
- A Batalha da Escuridão / The Dark Sea War Chronicles, de Bruno Martins Soares
- In Vino Veritas, de João Ventura (conto)
- Sobre a Imortalidade de Rui de Leão, de Machado de Assis
- Amaimon, de Lucas Barbosa
- Fome, de Márcio Benjamin
- Matando Gigantes, de Claudia Dugim
- Assim na Terra Como Embaixo da Terra, de Ana Paula Maia
- Fractais Tropicais, org. Nelson de Oliveira
- O Vale dos Mortos, de Rodrigo de Oliveira
- O Silêncio dos Livros, de Fausto Luciano Panicacci
- A Telepatia São os Outros, de Ana Rüsche
- Manjedoura, de Sandro J. A. Saint
- Diário Macabro, nº 1, ed. Nathalia Scotuzzi
- Diário Macabro, nº 2, ed. Nathalia Scotuzzi
- Frankenstein Desencadenado, de Brian W. Aldiss
- Opostos, de Jennifer L. Armentrout
- Eu, Robô, de Isaac Asimov
- O Dia dos Caçadores, de Isaac Asimov (conto)
- Pobres Imbecis, de Isaac Asimov (conto)
- O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood
- O Conto da Aia, de Margaret Atwood
- Toda a Cerveja de Marte, de Gregory Benford (conto)
- O Homem Demolido, de Alfred Bester
- Raízes do Mal / Mentes Inquietas, de Gwenda Bond (5x)
- Mentes Sombrias, de Alexandra Bracken
- Fúria Vermelha, de Pierce Brown
- Laranja Mecânica, de Anthony Burgess
- A Parábola do Semeador, de Octavia E. Butler (2x)
- A Parábola dos Talentos, de Octavia E. Butler (2x)
- História da Floresta que se Vinga, de Italo Calvino (conto)
- História do Guerreiro Sobrevivente, de Italo Calvino (conto)
- Antologia da Literatura Fantástica, org. Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges e Silvina Ocampo (2x)
- A Coroa, de Kiera Cass
- A Herdeira, de Kiera Cass
- O Mundo Resplandecente, de Margaret Cavendish
- Nova Iorque Sob Trevas, de Adam Christopher
- Um Dia Na Vida do Século XXI, org. Arthur C. Clarke
- A Biblioteca Invisível, de Genevieve Cogman
- O Lagarto de Woz, de Edmund Cooper (conto)
- Timewyrm: Revelation, de Paul Cornell
- Vox, de Christina Dalcher
- Blade Runner, de Pilip K. Dick
- The Bullet-Catcher's Daughter, de Rod Duncan
- The Custodian of Marvels, de Rod Duncan
- Unseemly Science, de Rod Duncan
- A Cruz de Fogo, de Diana Gabaldon
- O Jardim Diabólico, org. Vic Ghidalia
- Neuromancer, de William Gibson (2x)
- O Periférico, de William Gibson
- Vinte e Dois Passos Para o Apocalipse, de Terence M. Green e Andrew Weiner (conto)
- A Curva do Sonho, de Ursula K. Le Guin (4x)
- Os Despojados, de Ursula K. Le Guin
- A Máquina do Tempo Acidental, de Joe Haldeman
- Guerra sem Fim / The Forever War, de Joe Haldeman (2x)
- Heretics of Dune, de Frank Herbert
- Synthespians, de Craig Hinton
- A Loja do Desejo Agridoce, de Rhys Hughes (conto)
- Os Engonços da Quionga, de Rhys Hughes (conto)
- À Beira da Eternidade, de Melissa E. Hurst (3x)
- Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley
- Buick 8 - Um Carro Perverso, de Stephen King
- Cell - A Chamada da Morte / Celular, de Stephen King (2x)
- Novembro de 1963, de Stephen King
- Sob a Redoma, de Stephen King
- O Preço das Laranjas, de Nancy Kress (conto)
- A Balada do Black Tom, de Victor LaValle
- Os Dias Escuros, de Manel Loureiro
- Ladra de Almas, de Sarah J. Maas
- O Corpo Dela e Outras Farras, de Carmen Maria Machado
- Lovestar, de Andri Snær Magnason
- Alarma Galáctico, de Kurt Mahr
- Às Cegas, de Josh Malerman
- Amanhã: Quem Tem Medo da Noite, de John Marsden
- Nightflyers, de George R. R. Martin (3x)
- Máquinas como Eu, de Ian McEwan (2x)
- A Altura Deslumbrante, de Katharine McGee
- Revolta, de Kass Morgan
- Mundo em Caos, de Patrick Ness (2x)
- 1984, de George Orwell (2x)
- The Prestige, de Christopher Priest
- A Bússola de Ouro, de Philip Pullman
- The Deviant Strain, de Justin Richards
- Trail of Lightning, de Rebecca Roanhorse
- Ano Um, de Nora Roberts (4x)
- Red Mars, de Kim Stanley Robinson
- Crave a Marca, de Veronica Roth
- We Can Be Mended, de Veronica Roth (conto)
- Coração de Aço, de Brandon Sanderson
- Guerra do Velho, de John Scalzi
- A Última Colônia, de John Scalzi
- The Consuming Fire, de John Scalzi
- Frankenstein, de Mary Shelley (2x)
- Seca, de Neal Shusterman e Jarrod Shusterman (2x)
- Quando as Estrelas Caem, de Meagan Spooner e Amie Kaufman
- O Homem que Caiu na Terra, de Walter Tevis
- Minha Mulher, de Steven Utley (conto)
- The Big Book of Science Fiction, org. Jeff VanderMeer e Ann Vandermeer
- Dezasseis, de Rachel Vincent
- Matadouro-Cinco, de Kurt Vonnegut (2x)
- A Máquina do Tempo, de H. G. Wells
- Um Sonho do Armagedão, de H. G. Wells (conto)
- Artemis, de Andy Weir (2x)
- Impostores, de Scott Westerfeld (2x)
- Iridescência, de Dean Whitlock (conto)
- Interferências, de Connie Williams
- Marciana Idiota, de John Wyndham (conto)
- Megalon, nº 1, ed. Marcello Simão Branco e Renato Rosatti
- Traduzindo Ficção Científica: Samuel Delany, de Eduardo Andrade Barbosa de Castro
- Utopia, feminismo e resignação em The Left Hand of Darkness e The Handmaid’s Tale, de Ana Rüsche
- Ursula K. Le Guin: Otherworldly literature for nonhuman times, de Melina Pereira Savi
- Ursa menor: notas sobre ficção científica e fantasia, de Marco Antonio Valentim
- Wholeness and Balance in the Hainish Novels of Ursula K. Le Guin, de D. Barbour
- 21 Lições para o Século 21, de Yuval Noah Harari
- The Unity of “Childhood’s End”, de J. Huntington
- Imagining the Future: Zamyatin and Wells, de Patrick Parrinder
- Childhood’s End: A Median Stage of Adolescence?, de David N. Samuelson
- Utopia and Science Fiction, de Raymond Williams
Também o Brasil anda fraco. Com apenas 10 comentários a material brasileiro, mesmo que se lhes acrescentem mais dois sobre publicações que incluem ficção brasileira e em tradução, este foi dos piores meses de sempre lá por aquelas bandas, fruto em parte do abrandamento na atividade de alguns blogues virados sobretudo para a leitura e comentário a material brasileiro, o que de resto também aconteceu por cá. A coisa foi tão fraca que desta vez nem há destaques a fazer, pois cada autor aparece na lista uma única vez.
Em contraste, os comentários a material não lusófono abundam. 92 não é o maior número de títulos de sempre, desce até 2 desde o mês anterior, mas é um dos números mais elevados que já apareceram e este mês a desproporção relativamente ao material lusófono, tanto brasileiro quanto português, é imensa. Julgo que nunca antes tinha sido tão grande. Basicamente, temos quase seis vezes mais comentários a material traduzido (ou na língua original) do que a material lusófono, o que é um bom reflexo da fragilidade das FCs lusófonas (e no caso português da quase total ausência de edições em 2019). Os destaques vão para Gwenda Bond, cuja novelização recebeu 5 comentários, Octavia Butler, com 4 comentários a dois títulos diferentes, Ursula Le Guin, com 5 comentários também a dois títulos, Stephen King, também com 5 comentários mas a quatro títulos diferentes, e Nora Roberts, com 4 comentários a um só título.
Por fim, este mês há também a referir a grande quantidade de comentários a obras de não-ficção, tanto brasileiras quanto não-lusófonas. Embora sejam fruto quase exclusivamente de um só site, é muito invulgar que este tipo de obra se aproxime dos comentários a ficções lusófonas, como foi o caso com os 5 comentários a não-ficção brasileira (um deles refere-se a uma publicação que inclui também ficção, mas não científica) e 6 a não-ficção internacional. Veremos se é caso único ou tendência que prossegue nos próximos meses, e também se a atual fase má das ficções lusófonas se prolonga ou não.
Até ao mês que vem.
Jane Bowles: Aldeia das Cataratas
Confesso que me falta por completo a paciência para histórias sobre as neuroses de gente inútil, e por esta frase já poderão ficar com uma ideia bastante sólida tanto sobre o enredo desta longa história, quanto sobre a opinião com que eu dela fiquei.
Nunca tinha lido nada de Jane Bowles, e não me parece que volte alguma vez a ler, a menos que a apanhe por acaso noutra revista ou antologia qualquer. Porque este Aldeia das Cataratas não será propriamente caso para trauma, porque a novela (não contei as páginas mas o tamanho deve ser de novela) sempre está bem escrita e, à sua maneira, bem concebida, mas foi certamente das leituras mais aborrecidas que tive nos últimos anos.
Tudo gira em volta de duas irmãs, ambas completamente inúteis na vida. Solteironas e desocupadas, vivendo no ócio absoluto, têm fama de "neuróticas" e passam a vida a ruminar planos de fazer isto e aquilo, a resmonear desfeitas reais e imaginárias por parte dos outros membros da família e, na verdade, de qualquer outra pessoa que lhes cruze o caminho, em paroxismos de egoísmo e absoluta ausência de qualquer espécie de empatia pelo próximo, que se revela na incapacidade que ambas mostram em compreender qualquer coisa que lhes seja dita. Uma terceira irmã não é muito melhor, mas pelo menos tem o marido que a ocupe (o qual é moldado do mesmíssimo barro, apesar de não ser do mesmo sangue), pelo que não tem tanto tempo livre para neuras, embora talvez seja daí que lhe vem um caráter e língua mais viperinos. Gente desagradável e muito, muito estúpida, toda ela.
E o enredo pode resumir-se com a frase "irmã de férias num aldeamento chamado Aldeia das Cataratas concebe plano para se ir embora e desaparecer (que não põe em prática) e outra irmã resolve ir visitá-la, com consequências desagradáveis". O resto são ruminações, castelos no ar, conversas e atitudes imaginárias, tudo muito, muito, muito, mas muito chato. Mas mesmo muito chato. Absolutamente dispensável.
Contos anteriores desta publicação:
Nunca tinha lido nada de Jane Bowles, e não me parece que volte alguma vez a ler, a menos que a apanhe por acaso noutra revista ou antologia qualquer. Porque este Aldeia das Cataratas não será propriamente caso para trauma, porque a novela (não contei as páginas mas o tamanho deve ser de novela) sempre está bem escrita e, à sua maneira, bem concebida, mas foi certamente das leituras mais aborrecidas que tive nos últimos anos.
Tudo gira em volta de duas irmãs, ambas completamente inúteis na vida. Solteironas e desocupadas, vivendo no ócio absoluto, têm fama de "neuróticas" e passam a vida a ruminar planos de fazer isto e aquilo, a resmonear desfeitas reais e imaginárias por parte dos outros membros da família e, na verdade, de qualquer outra pessoa que lhes cruze o caminho, em paroxismos de egoísmo e absoluta ausência de qualquer espécie de empatia pelo próximo, que se revela na incapacidade que ambas mostram em compreender qualquer coisa que lhes seja dita. Uma terceira irmã não é muito melhor, mas pelo menos tem o marido que a ocupe (o qual é moldado do mesmíssimo barro, apesar de não ser do mesmo sangue), pelo que não tem tanto tempo livre para neuras, embora talvez seja daí que lhe vem um caráter e língua mais viperinos. Gente desagradável e muito, muito estúpida, toda ela.
E o enredo pode resumir-se com a frase "irmã de férias num aldeamento chamado Aldeia das Cataratas concebe plano para se ir embora e desaparecer (que não põe em prática) e outra irmã resolve ir visitá-la, com consequências desagradáveis". O resto são ruminações, castelos no ar, conversas e atitudes imaginárias, tudo muito, muito, muito, mas muito chato. Mas mesmo muito chato. Absolutamente dispensável.
Contos anteriores desta publicação:
João do Rio: Os Livres Acampamentos da Miséria
E a encerrar, aqui temos o motivo por que eu descarreguei este número da Macondo, revista virtual que até aí desconhecia por completo. João do Rio é um autor que marca presença nos anais do fantástico brasileiro, e quis saber se o texto dele aqui publicado cairia também no âmbito do fantástico ou não. Para o Bibliowiki, claro.
E não cai. Identificado como crónica, apesar de apresentar características de conto (como o facto de contar uma história, completa com as suas personagens, as falas em discurso direto dessas personagens, por aí fora), Os Livres Acampamentos da Miséria relata uma noite de aventura pela boémia dos bairros pobres do Rio de Janeiro do início do século XX, época em que a miséria começava a subir aos morros onde hoje em dia se espalham as favelas, aventura essa profusamente regada a cachaça e a samba.
E é um texto interessante. A espaços fez-me lembrar Jorge Amado, o que é bom sinal, ainda que com uma escrita menos límpida que a deste. Não há é muito a dizer além disso: esta história, seja ela verdadeira, romanceada ou inventada, é daquelas histórias que encontram a pureza de sentimentos e a alegria em lugares à partida tidos como sórdidos e deprimentes, o que provavelmente coloca João do Rio como percursor de correntes literárias que fazem isso mesmo de uma forma ideologicamente motivada, como o neorrealismo. Mas precisamente por fazer lembrar essas obras, basta apontar para elas para se ficar com uma ideia bastante concreta sobre esta. É interessante também por isso. Mas não é algo que me encha as medidas.
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E não cai. Identificado como crónica, apesar de apresentar características de conto (como o facto de contar uma história, completa com as suas personagens, as falas em discurso direto dessas personagens, por aí fora), Os Livres Acampamentos da Miséria relata uma noite de aventura pela boémia dos bairros pobres do Rio de Janeiro do início do século XX, época em que a miséria começava a subir aos morros onde hoje em dia se espalham as favelas, aventura essa profusamente regada a cachaça e a samba.
E é um texto interessante. A espaços fez-me lembrar Jorge Amado, o que é bom sinal, ainda que com uma escrita menos límpida que a deste. Não há é muito a dizer além disso: esta história, seja ela verdadeira, romanceada ou inventada, é daquelas histórias que encontram a pureza de sentimentos e a alegria em lugares à partida tidos como sórdidos e deprimentes, o que provavelmente coloca João do Rio como percursor de correntes literárias que fazem isso mesmo de uma forma ideologicamente motivada, como o neorrealismo. Mas precisamente por fazer lembrar essas obras, basta apontar para elas para se ficar com uma ideia bastante concreta sobre esta. É interessante também por isso. Mas não é algo que me encha as medidas.
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