Nada tinha lido do autor monchiqueiro António da Silva Carriço até pegar neste livrinho de apenas 25 páginas mas fechei-o razoavelmente bem impressionado. Às primeiras, Entre o Corpo e a Rosa parece um conto banal, uma daquelas historinhas campestres tão de agrado da vasta corrente ruralista que dominou durante muito tempo a literatura portuguesa. Mas depressa as coisas mudam um pouco de figura. Não que o conto deixe de ser campestre; simplesmente perde um pouco a banalidade, pois um fantástico que vai claramente beber mais ao realismo mágico do que propriamente ao fantástico das bruxas e maus olhados mais comum nessas obras, insinua-se nele como que pé ante pé, cheio de subtilezas.
A história centra-se numa mulher chamada Virgolina, uma mulher misteriosa, com fama de milagreira e curandeira e um apetite sexual mais que saudável. Os homens da zona, a que Carriço chama Barranco do Demo mas talvez não seja exatamente o Barranco do Demo que existe de facto perto de Alferce, na serra de Monchique, dificilmente lhe resistem em vida, mas é depois dela morta que o fantástico se instala a sério, pois os homens parecem perder o tino, enlouquecidos de desejo, enquanto consta na zona a ocorrência de prodígios vários e há mortes misteriosas.
O conto está bem escrito e não é um conto fácil, pois a narrativa não é linear e ziguezagueia para trás e para a frente no tempo, o que acrescenta ao mistério dos ocorridos uma camada adicional de sombras. Por outro lado há alguns pormenores estilísticos (parêntesis que em nada contribuem para a narrativa, só servindo para lhe cortar o fluxo, por exemplo... mas não só) de que não gostei e falta-lhe qualquer coisa para me agradar mesmo a sério, e reconheço que esta parte da avaliação é sobretudo subjetiva. Nem sei bem o que falta. O ruralismo não é muito do meu agrado, é certo, mas creio que não se trata disso. Talvez mais solidez na exploração das relações humanas, que aqui aparecem com uma certa bidimensionalidade. Talvez.
Seja como for, o conto é melhor do que eu esperava antes da leitura. Gostei. Não posso dizer que tenha gostado muito, mas sim, gostei.
Este livro veio da biblioteca dos meus pais.
sábado, 29 de abril de 2017
Lido: Transcendence Express
O que pode uma cientista talentosa e europeia fazer quando se apaixona por um ativista prestes a partir para África a fim de trabalhar como voluntário dos Médicos Sem Fronteiras? Uma cientista de futuro próximo, que trabalha no desenvolvimento de computadores quânticos e tem ideias peculiares e iconoclastas sobre como construir as suas máquinas?
Em Transcendence Express, Jetse de Vries dá-nos uma resposta possível: larga tudo e vai com ele. Mas larga tudo e vai com ele não como as donas de casa das velhas histórias, que acompanham os seus homens para todo o lado, centrando neles as suas vidas, vivendo para os servir, mas como uma cientista altamente qualificada que transporta consigo toda a competência técnica adquirida e vê a mudança de ambiente e circunstâncias como uma oportunidade para pôr em prática algumas das suas ideias.
Através dos olhos cada vez mais incrédulos do parceiro, de Vries leva-nos a ver Leona, assim se chama a cientista, ter um sucesso estrondoso na sua tentativa de cultivar computadores quânticos biológicos a partir de matéria-prima livremente disponível nas terras altas da Tanzânia, onde trabalha como professora voluntária dos miúdos da zona. E acaba por ser ela, não ele, a realmente mudar o mundo, subvertendo desta forma o paradigma do desenvolvimento que exige avultadíssimos investimentos para qualquer verdadeiro avanço tecnológico, o que tem como efeito secundário só poderem ser os países ricos a estar na vanguarda do progresso.
É um conto de ficção científica muito interessante, este. Um conto otimista e cheio de promessa, que nos mostra um futuro que está bem longe dos pesadelos distópicos que tão omnipresentes têm sido nos últimos tempos. Bastante bom.
Conto anterior deste livro:
Em Transcendence Express, Jetse de Vries dá-nos uma resposta possível: larga tudo e vai com ele. Mas larga tudo e vai com ele não como as donas de casa das velhas histórias, que acompanham os seus homens para todo o lado, centrando neles as suas vidas, vivendo para os servir, mas como uma cientista altamente qualificada que transporta consigo toda a competência técnica adquirida e vê a mudança de ambiente e circunstâncias como uma oportunidade para pôr em prática algumas das suas ideias.
Através dos olhos cada vez mais incrédulos do parceiro, de Vries leva-nos a ver Leona, assim se chama a cientista, ter um sucesso estrondoso na sua tentativa de cultivar computadores quânticos biológicos a partir de matéria-prima livremente disponível nas terras altas da Tanzânia, onde trabalha como professora voluntária dos miúdos da zona. E acaba por ser ela, não ele, a realmente mudar o mundo, subvertendo desta forma o paradigma do desenvolvimento que exige avultadíssimos investimentos para qualquer verdadeiro avanço tecnológico, o que tem como efeito secundário só poderem ser os países ricos a estar na vanguarda do progresso.
É um conto de ficção científica muito interessante, este. Um conto otimista e cheio de promessa, que nos mostra um futuro que está bem longe dos pesadelos distópicos que tão omnipresentes têm sido nos últimos tempos. Bastante bom.
Conto anterior deste livro:
sexta-feira, 28 de abril de 2017
Lido: A Balada da Vala dos Velhos
Embora seja conhecido principalmente pela música, J. P. Simões não é um desconhecido destas andanças da literatura, pois publicou em 2004 a peça Ópera do Falhado e, em 2007, uma coletânea de contos intitulada O Vírus da Vida. Não me devia, portanto, ter surpreendido pela qualidade literária deste conto, A Balada da Vala dos Velhos, uma história contada em jeito de depoimento por um velhote bon vivant mas bem consciente de que já tem pouco tempo para viver. Mas a verdade é que surpreendi.
(Em minha defesa, diga-se que é frequente as pessoas terem as portas da edição escancaradas assim que ultrapassam um certo limiar de notoriedade noutras áreas, sem que para isso precisem de saber pôr uma frase a seguir a outra.)
Pois a verdade verdadinha é que A Balada da Vala dos Velhos é uma história francamente boa. Uma história bem contada, num ritmo impecável e num português de bom nível, que sabe sustentar o interesse do leitor até ao fim, mantendo em suspenso a revelação do que raio se passa ali, sem que para isso precise de esquecer a criação de personagens (pelo menos o protagonista-narrador e o amigo que acaba por ser uma espécie de subprotagonista estão bastante bem construídos) e uma muito sumarenta série de ideias sobre a sociedade e a vida.
A vida, no fundo, é o tema desta história. J. P. Simões fala-nos da vida, de como pensa que se deve vivê-la, falando-nos da morte, daquele momento em que a maior parte do nosso tempo já ficou para trás e uma doença ou outra torna o desfecho inevitável a um prazo mais ou menos curto. E fala da morte, e portanto da vida, de uma forma desassombrada, um bom bocado rockeira apesar de as músicas que aqui soam serem outras. Alegre. A vida, parece dizer-nos, é para ser vivida até ao fim, e o resto que se lixe.
Em suma: gostei. Bastante.
Este livro (como todos os desta coleção) foi obtido gratuitamente na internet.
(Em minha defesa, diga-se que é frequente as pessoas terem as portas da edição escancaradas assim que ultrapassam um certo limiar de notoriedade noutras áreas, sem que para isso precisem de saber pôr uma frase a seguir a outra.)
Pois a verdade verdadinha é que A Balada da Vala dos Velhos é uma história francamente boa. Uma história bem contada, num ritmo impecável e num português de bom nível, que sabe sustentar o interesse do leitor até ao fim, mantendo em suspenso a revelação do que raio se passa ali, sem que para isso precise de esquecer a criação de personagens (pelo menos o protagonista-narrador e o amigo que acaba por ser uma espécie de subprotagonista estão bastante bem construídos) e uma muito sumarenta série de ideias sobre a sociedade e a vida.
A vida, no fundo, é o tema desta história. J. P. Simões fala-nos da vida, de como pensa que se deve vivê-la, falando-nos da morte, daquele momento em que a maior parte do nosso tempo já ficou para trás e uma doença ou outra torna o desfecho inevitável a um prazo mais ou menos curto. E fala da morte, e portanto da vida, de uma forma desassombrada, um bom bocado rockeira apesar de as músicas que aqui soam serem outras. Alegre. A vida, parece dizer-nos, é para ser vivida até ao fim, e o resto que se lixe.
Em suma: gostei. Bastante.
Este livro (como todos os desta coleção) foi obtido gratuitamente na internet.
Lido: The Dead Orchards
Se esta história serve como bom indicador da qualidade da prosa de Ian R. MacLeod, ela aproxima-se do sublime. The Dead Orchards é um conto de horror, protagonizado e narrado por um monstro, daqueles velhos monstros ricos que tão frequentemente se encontram na ficção britânica, velhos monstros que habitam em vastos casarões solitários, umas vezes no campo, outras nas cidades, acompanhados apenas por criados fidelíssimos que satisfazem todos os caprichos dos seus amos, mesmo que estejamos a falar de homicídio.
O monstro desta história é um assassino sobrenatural, um predador de mulheres belas e jovens, cujas armas de eleição são uma poção paralisante e as peculiares árvores do pomar da sua propriedade. E preda-as impunemente, anos a fio, numa rotina que acaba por aborrecê-lo. Até um dia...
Até ao dia que serve de fulcro a esta história, o dia em que a mulher que vem ter com ele é diferente das outras, o dia em que experimenta na pele os efeitos da sua própria magia. O dia em que o casarão muda de dono.
A história é boa. Além da maravilhosa prosa, está bem construída. No entanto, há algo que falha, há qualquer coisa que faz com que não se torne memorável; pelo contrário, foi-me fácil esquecê-la. Demasiado. E não sei bem o que é. Talvez o facto de se tratar de uma variação de velhos temas, sem nada realmente único que individualize esta história? É possível. Certo é que a história é boa, sim, mas não creio que a sua qualidade global chegue sequer perto da da prosa.
O monstro desta história é um assassino sobrenatural, um predador de mulheres belas e jovens, cujas armas de eleição são uma poção paralisante e as peculiares árvores do pomar da sua propriedade. E preda-as impunemente, anos a fio, numa rotina que acaba por aborrecê-lo. Até um dia...
Até ao dia que serve de fulcro a esta história, o dia em que a mulher que vem ter com ele é diferente das outras, o dia em que experimenta na pele os efeitos da sua própria magia. O dia em que o casarão muda de dono.
A história é boa. Além da maravilhosa prosa, está bem construída. No entanto, há algo que falha, há qualquer coisa que faz com que não se torne memorável; pelo contrário, foi-me fácil esquecê-la. Demasiado. E não sei bem o que é. Talvez o facto de se tratar de uma variação de velhos temas, sem nada realmente único que individualize esta história? É possível. Certo é que a história é boa, sim, mas não creio que a sua qualidade global chegue sequer perto da da prosa.
quinta-feira, 27 de abril de 2017
Lido: Abismos do Tempo
Aqui na Lâmpada já por várias vezes se falou do projeto Intempol, criado por Octávio Aragão, um universo partilhado centrado numa patrulha temporal brasileira que tenta, sem grande sucesso, manter as linhas temporais mais ou menos intactas, em eterno confronto com um grupo vilanesco chamado Meggido e com outros malfeitores temporais. Muito ativo durante vários anos, com dezenas de autores (quase todos brasileiros) a escrever para ele, o projeto deu origem a uma série de publicações, ora profissionais, ora amadoras, ora em papel, ora digitais, incluindo quatro romances.
Abismos do Tempo (bibliografia), de Lúcio Manfredi, é um desses romances.
Os brasileiros têm uma expressão que, por vários motivos, serve a este romance como uma luva. Desconheço a origem, desconheço até se carrega em si alguma pitada de racismo ou não, mas o facto é que esta rocambolesca história de perseguição merece em pleno a etiqueta de "samba do crioulo doido".
Uma das coisas que mais divertia os autores da Intempol, de resto desde que a série viu pela primeira vez publicação no conto Eu Matei Paolo Rossi, de Aragão, era brincar com personagens reais. Uns transformavam-nos em agentes da Intempol (muito à semelhança do que estão agora a fazer os argumentistas da série televisiva Ministério do Tempo, que tem vários pontos de contacto com a Intempol), outros vestiam-lhes as roupas de antagonistas, outros faziam as duas coisas. Manfredi é adepto desta última seita; Yeats, o poeta, é agente, e Lucy, a australopiteca cujo fóssil foi o primeiro esqueleto completo da sua espécie a ser descoberto, também o é. Do outro lado encontramos nomes como o de Adolf Hitler (que até tem honras de capa; aquela ilustração é dele) ou do ocultista Aleister Crawley.
E é precisamente uma longa e movimentada perseguição a Aleister Crawley, aqui retratado como um psicopata perigoso que arranjou forma de viajar pelo tempo, que este romance relata, protagonizada por agentes da Intempol que não são propriamente exemplos de virtude e competência, numa prosa ritmada e ágil, com claras referências pulp, mas com um enredo tão complexo e tão repleto de referências culturais e históricas que se afasta muito do simplismo típico dos velhos pulps. Manfredi leva o leitor numa louca correria por tempos e lugares, do passado longínquo ao não menos longínquo futuro, misturando alegremente tecnologias e jargão característicos da ficção científica com o ocultismo e a magia (de resto, um dos departamentos da Intempol, o Departamento M., dedica-se precisamente às artes mágicas).
O que é realmente estranho é que toda esta salganhada resulta. Lê-se este romance de um fôlego só, sempre à espera da maluquice seguinte, de surpresa em surpresa até à surpresa final, num romance que no fim de contas é tão bom que se torna bizarro nunca ter tido edição mais convencional do que o ficheiro PDF original e bastante amador que ainda se consegue encontrar algures na internet (não deixo link porque não faço ideia se a sua disponibilidade é ou não de vontade do autor).
Não sei é se resultará tão bem para quem nunca tenha tido contacto com a Intempol como comigo, que já acompanho o projeto praticamente desde o início. Suspeito que haverá várias referências que passarão ao lado do leitor neófito, ainda que este deva mesmo assim ser capaz de acompanhar a vasta maioria do enredo. A Intempol talvez lhe pareça uma coisa misteriosa e nebulosa, mas não há nisso nenhum mal, pois julgo que ela é assim até para o próprio Octávio Aragão, que a congeminou.
Seja como for, comigo resultou. Achei este livro francamente bom. Surpreendentemente bom, até.
Este livro foi descarregado legalmente da internet.
Abismos do Tempo (bibliografia), de Lúcio Manfredi, é um desses romances.
Os brasileiros têm uma expressão que, por vários motivos, serve a este romance como uma luva. Desconheço a origem, desconheço até se carrega em si alguma pitada de racismo ou não, mas o facto é que esta rocambolesca história de perseguição merece em pleno a etiqueta de "samba do crioulo doido".
Uma das coisas que mais divertia os autores da Intempol, de resto desde que a série viu pela primeira vez publicação no conto Eu Matei Paolo Rossi, de Aragão, era brincar com personagens reais. Uns transformavam-nos em agentes da Intempol (muito à semelhança do que estão agora a fazer os argumentistas da série televisiva Ministério do Tempo, que tem vários pontos de contacto com a Intempol), outros vestiam-lhes as roupas de antagonistas, outros faziam as duas coisas. Manfredi é adepto desta última seita; Yeats, o poeta, é agente, e Lucy, a australopiteca cujo fóssil foi o primeiro esqueleto completo da sua espécie a ser descoberto, também o é. Do outro lado encontramos nomes como o de Adolf Hitler (que até tem honras de capa; aquela ilustração é dele) ou do ocultista Aleister Crawley.
E é precisamente uma longa e movimentada perseguição a Aleister Crawley, aqui retratado como um psicopata perigoso que arranjou forma de viajar pelo tempo, que este romance relata, protagonizada por agentes da Intempol que não são propriamente exemplos de virtude e competência, numa prosa ritmada e ágil, com claras referências pulp, mas com um enredo tão complexo e tão repleto de referências culturais e históricas que se afasta muito do simplismo típico dos velhos pulps. Manfredi leva o leitor numa louca correria por tempos e lugares, do passado longínquo ao não menos longínquo futuro, misturando alegremente tecnologias e jargão característicos da ficção científica com o ocultismo e a magia (de resto, um dos departamentos da Intempol, o Departamento M., dedica-se precisamente às artes mágicas).
O que é realmente estranho é que toda esta salganhada resulta. Lê-se este romance de um fôlego só, sempre à espera da maluquice seguinte, de surpresa em surpresa até à surpresa final, num romance que no fim de contas é tão bom que se torna bizarro nunca ter tido edição mais convencional do que o ficheiro PDF original e bastante amador que ainda se consegue encontrar algures na internet (não deixo link porque não faço ideia se a sua disponibilidade é ou não de vontade do autor).
Não sei é se resultará tão bem para quem nunca tenha tido contacto com a Intempol como comigo, que já acompanho o projeto praticamente desde o início. Suspeito que haverá várias referências que passarão ao lado do leitor neófito, ainda que este deva mesmo assim ser capaz de acompanhar a vasta maioria do enredo. A Intempol talvez lhe pareça uma coisa misteriosa e nebulosa, mas não há nisso nenhum mal, pois julgo que ela é assim até para o próprio Octávio Aragão, que a congeminou.
Seja como for, comigo resultou. Achei este livro francamente bom. Surpreendentemente bom, até.
Este livro foi descarregado legalmente da internet.
quarta-feira, 26 de abril de 2017
Lido: O Legado de Mrs. Baker
A literatura (e não só) está cheia de histórias sobre mentores, pessoas especiais na vida dos jovens que contribuem para a sua formação enquanto pessoas. Normalmente, embora nem sempre, as histórias são contadas a partir do ponto de vista do jovem que, não raro, é o protagonista ou herói e vem mais tarde a cumprir algum destino mais ou menos grandioso que sem a influência do mentor nunca seria alcançado. Ou simplesmente a tornar-se um adulto diferente. É um velho chavão, mesmo tendo muitas vezes base em factos reais, em verdadeiros mentores que os escritores assim recordam e homenageiam.
O Legado de Mrs. Baker, novela de Maria do Vale Cartaxo, é uma dessas histórias. A Mrs. Baker a que o título faz referência é uma excêntrica inglesa que a mãe de uma dondoca tímida e adolescente resolve contratar para dar lições de inglês à filhinha. É esta última a narradora, e o livro descreve o modo como a relação entre as duas se vai desenrolando, a forma como a burguesíssima criaturinha que é a portuguesa, educada na pasmaceira salazarenta, vai de sobressalto em sobressalto aprendendo que há muito mais vida para lá daquela que conhece. E descreve sobretudo, de episódio relatado em episódio descrito, a vida aventurosa da mentora, mulher de quem se pode dizer com total propriedade que viu muito mundo.
O livro está bem escrito, pesem embora algumas fragilidades aqui e ali, e provavelmente interessará a quem goste deste tipo de história. Eu não desgosto, desde que esta espécie de enredo de passagem venha acompanhada por mais alguma coisa que me sustente o interesse. É que só a interação entre as personagens não me chega, por já estar tão vista: mentora encontra jovem, mentora influencia jovem, jovem aprende, jovem torna-se adulta incorporando os ensinamentos (os legados) de mentora, fim. OK, e depois? Preciso de mais. E aqui pouco mais existe. À boa (ou nem por isso) maneira mainstream, o fulcro da coisa é a psicologia das personagens, com o mundo exterior pintado a breves pinceladas e, no fim de contas, pouco mais que irrelevante. E apesar de ser necessário fazer a Maria do Vale Cartaxo a justiça de reconhecer que soube criar personagens consistentes, o que nem sempre acontece, essa psicologia, muito francamente, não me aquece nem arrefece.
De modo que este livro sai da leitura com o rótulo de razoável. Há certamente quem o leia com bastante mais prazer do que eu. Também deverá haver quem tenha menos. Para mim, foi uma leitura indiferente.
Este livro veio da biblioteca dos meus pais.
O Legado de Mrs. Baker, novela de Maria do Vale Cartaxo, é uma dessas histórias. A Mrs. Baker a que o título faz referência é uma excêntrica inglesa que a mãe de uma dondoca tímida e adolescente resolve contratar para dar lições de inglês à filhinha. É esta última a narradora, e o livro descreve o modo como a relação entre as duas se vai desenrolando, a forma como a burguesíssima criaturinha que é a portuguesa, educada na pasmaceira salazarenta, vai de sobressalto em sobressalto aprendendo que há muito mais vida para lá daquela que conhece. E descreve sobretudo, de episódio relatado em episódio descrito, a vida aventurosa da mentora, mulher de quem se pode dizer com total propriedade que viu muito mundo.
O livro está bem escrito, pesem embora algumas fragilidades aqui e ali, e provavelmente interessará a quem goste deste tipo de história. Eu não desgosto, desde que esta espécie de enredo de passagem venha acompanhada por mais alguma coisa que me sustente o interesse. É que só a interação entre as personagens não me chega, por já estar tão vista: mentora encontra jovem, mentora influencia jovem, jovem aprende, jovem torna-se adulta incorporando os ensinamentos (os legados) de mentora, fim. OK, e depois? Preciso de mais. E aqui pouco mais existe. À boa (ou nem por isso) maneira mainstream, o fulcro da coisa é a psicologia das personagens, com o mundo exterior pintado a breves pinceladas e, no fim de contas, pouco mais que irrelevante. E apesar de ser necessário fazer a Maria do Vale Cartaxo a justiça de reconhecer que soube criar personagens consistentes, o que nem sempre acontece, essa psicologia, muito francamente, não me aquece nem arrefece.
De modo que este livro sai da leitura com o rótulo de razoável. Há certamente quem o leia com bastante mais prazer do que eu. Também deverá haver quem tenha menos. Para mim, foi uma leitura indiferente.
Este livro veio da biblioteca dos meus pais.
As primeiras improbabilidades vão deixar de estar disponíveis
Como talvez saibam, no final de 2015 foram encerrados os trabalhos no Infinitamente Improvável. O último ato foi a publicação de um ebook (em três versões: epub, mobi e pdf), contendo todas as histórias que saíram no zine, acompanhadas por uma quantidade razoável de texto exclusivo, de não-ficção, sobre o zine e as histórias. Veio este ebook somar-se a dois outros que já estavam disponíveis, incluindo as histórias publicadas até ao momento em que saiu (no caso de Improbabilidades de Verão - 2012) ou as que se seguiram ao primeiro e foram publicadas até sair o segundo (no caso de Improbabilidades de Tempo Chuvoso - 2012/2013).
Ora, como o conteúdo destes dois ebooks está integralmente incluído no último (ou quase; há algum texto introdutório que ficou de fora), desde que este foi publicado os dois primeiros só estão a ocupar espaço no servidor.
E não vale a pena manter disponíveis publicações que só estão a ocupar espaço no servidor, pois não?
Pois não.
Por conseguinte, elas no fim deste mês desaparecem. Mantêm-se lá as capas, que essas ocupam espaço, pouco, mas nos servidores do Google, mas os links para os ebooks propriamente ditos serão desativados e os próprios serão apagados. Se alguém tem links diretos para os ebooks, bookmarks, alguma dessas coisas, tem esta semana para se servir deles antes de ficar com links quebrados. Se alguém ainda quiser por algum motivo descarregá-los, poderá encontrá-los aqui até ao princípio de maio. Depois, chapéu.
Ou por outra, depois continuará a ter disponíveis as Improbabilidades de Fecho. Está tudo lá. Quase. Pronto para ser lido e eventualmente comentado, se vos der para aí. Podem acrescentá-lo ao Goodreads, se muito bem entenderem (aliás, também podem fazer isso aos outros dois, mesmo depois de eles serem retirados do servidor), enfim, são livres para fazer o que quiserem.
Sim, que ao contrário de muitos outros ebooks estes não estão trancados no espartilho do DRM. Aquilo no II era tudo diferente.
Aviso feito, siga a marinha.
Ora, como o conteúdo destes dois ebooks está integralmente incluído no último (ou quase; há algum texto introdutório que ficou de fora), desde que este foi publicado os dois primeiros só estão a ocupar espaço no servidor.
E não vale a pena manter disponíveis publicações que só estão a ocupar espaço no servidor, pois não?
Pois não.
Por conseguinte, elas no fim deste mês desaparecem. Mantêm-se lá as capas, que essas ocupam espaço, pouco, mas nos servidores do Google, mas os links para os ebooks propriamente ditos serão desativados e os próprios serão apagados. Se alguém tem links diretos para os ebooks, bookmarks, alguma dessas coisas, tem esta semana para se servir deles antes de ficar com links quebrados. Se alguém ainda quiser por algum motivo descarregá-los, poderá encontrá-los aqui até ao princípio de maio. Depois, chapéu.
Ou por outra, depois continuará a ter disponíveis as Improbabilidades de Fecho. Está tudo lá. Quase. Pronto para ser lido e eventualmente comentado, se vos der para aí. Podem acrescentá-lo ao Goodreads, se muito bem entenderem (aliás, também podem fazer isso aos outros dois, mesmo depois de eles serem retirados do servidor), enfim, são livres para fazer o que quiserem.
Sim, que ao contrário de muitos outros ebooks estes não estão trancados no espartilho do DRM. Aquilo no II era tudo diferente.
Aviso feito, siga a marinha.
terça-feira, 25 de abril de 2017
Se eu fosse francês
Se eu fosse francês, teria votado sem pestanejar em Jean-Luc Mélenchon nesta primeira volta e, apesar da imensa vitória que é um candidato de esquerda ter praticamente 20% na França dos dias de hoje, estaria agora muito aborrecido por não ter sido suficiente para afastar Marine Le Pen da segunda volta. E ficou tão perto! 600 mil votos, num universo de 47 milhões e meio de eleitores, ou até no de 37 milhões de votantes, é quase nada. É já ali.
Se eu fosse francês estaria neste momento muito zangado com Benoit Hamon. Porque Hamon surgiu em público com apelos para a união da esquerda quando as sondagens lhe davam vantagem e assim que se viu que não era ele quem era capaz de mobilizar o eleitorado de esquerda a unidade deixou de lhe interessar. Porque quando percebeu que nunca lá chegaria, em vez de ser consequente com os apelos e desistir, apelando ao voto em Mélenchon, ou mesmo que fosse a uma divisão dos seus votos entre Mélenchon e Macron, continuou teimosamente até ao final. É que somando os dois milhões de votos de Hamon aos sete de Mélenchon este teria sido primeiro e, mesmo que o não fosse, mesmo que só tivesse sido transferida para ele uma parcela minoritária dos votos de Hamon, não haveria agora extrema-direita na segunda volta. E seria assim que se conteria a extrema-direita.
Se eu fosse francês, ainda não teria decidido o voto na segunda volta. Não que houvesse a mínima possibilidade de ir votar Le Pen; essa possibilidade só não é abaixo de zero porque não existem possibilidades abaixo de zero. Mas haveria a possibilidade de ir votar branco, ou nulo.
Se eu fosse francês, entendamo-nos bem, votaria sem pestanejar em Macron se entendesse haver a mais remota possibilidade de Le Pen vencer. Sem pestanejar mesmo sabendo que Macron será um péssimo presidente para a França e para a Europa. Um banqueiro de investimento, adepto da desregulação, do capitalismo selvagem e financeiro, dos acordos comerciais draconianos para os estados e brandos como manteiga quente para com as grandes corporações, é tudo menos aquilo de que precisamos, e o plural aqui existe porque se aplica tanto aos franceses como ao resto dos povos da Europa e do mundo. Com Macron como presidente, e a menos que a paisagem parlamentar melhore muito nas próximas legislativas, França não será um aliado. Pelo contrário: irá continuar a fazer tudo ao contrário do que é preciso, irá continuar a criar todas as condições para o crescimento da extrema-direita.
Se eu fosse francês, mesmo assim, votaria nele se achasse que Le Pen tinha alguma possibilidade de ganhar. Porque fazer tudo para a extrema-direita crescer não é o mesmo de a extrema-direita governar e isso faz toda a diferença.
Se eu fosse francês, no entanto, estaria neste momento bastante seguro de que Le Pen não tem a mais remota possibilidade de vencer. Não só ficou em segundo ainda com todos os candidatos em campo, como não vai conseguir ir buscar votos em quantidade significativa a ninguém, com a notória exceção da direita dita civilizada, área em que mesmo assim Macron leva alguma vantagem. O boneco aqui em cima, roubado aos Ladrões de Bicicletas e resultado de uma sondagem feita no próprio dia das eleições, não deixa quanto a isso a mínima dúvida, e está inteiramente alinhado com outras sondagens feitas em outros momentos.
Se eu fosse francês, portanto, estaria neste momento inclinado a ir na segunda volta às urnas, sim, mas para votar branco ou nulo. Só inclinado, não decidido. Às vezes as coisas mudam significativamente quase de um momento para o outro e eu poderia acabar por me ver constrangido a ter mesmo de votar Macron.
Felizmente, ou talvez infelizmente pois o que os franceses decidirem me afeta diretamente, não estarei sujeito a tais dilemas. É que não sou francês. Sou português. Por isso só posso ficar a assistir de bancada.
Se eu fosse francês estaria neste momento muito zangado com Benoit Hamon. Porque Hamon surgiu em público com apelos para a união da esquerda quando as sondagens lhe davam vantagem e assim que se viu que não era ele quem era capaz de mobilizar o eleitorado de esquerda a unidade deixou de lhe interessar. Porque quando percebeu que nunca lá chegaria, em vez de ser consequente com os apelos e desistir, apelando ao voto em Mélenchon, ou mesmo que fosse a uma divisão dos seus votos entre Mélenchon e Macron, continuou teimosamente até ao final. É que somando os dois milhões de votos de Hamon aos sete de Mélenchon este teria sido primeiro e, mesmo que o não fosse, mesmo que só tivesse sido transferida para ele uma parcela minoritária dos votos de Hamon, não haveria agora extrema-direita na segunda volta. E seria assim que se conteria a extrema-direita.
Se eu fosse francês, ainda não teria decidido o voto na segunda volta. Não que houvesse a mínima possibilidade de ir votar Le Pen; essa possibilidade só não é abaixo de zero porque não existem possibilidades abaixo de zero. Mas haveria a possibilidade de ir votar branco, ou nulo.
Se eu fosse francês, entendamo-nos bem, votaria sem pestanejar em Macron se entendesse haver a mais remota possibilidade de Le Pen vencer. Sem pestanejar mesmo sabendo que Macron será um péssimo presidente para a França e para a Europa. Um banqueiro de investimento, adepto da desregulação, do capitalismo selvagem e financeiro, dos acordos comerciais draconianos para os estados e brandos como manteiga quente para com as grandes corporações, é tudo menos aquilo de que precisamos, e o plural aqui existe porque se aplica tanto aos franceses como ao resto dos povos da Europa e do mundo. Com Macron como presidente, e a menos que a paisagem parlamentar melhore muito nas próximas legislativas, França não será um aliado. Pelo contrário: irá continuar a fazer tudo ao contrário do que é preciso, irá continuar a criar todas as condições para o crescimento da extrema-direita.
Se eu fosse francês, mesmo assim, votaria nele se achasse que Le Pen tinha alguma possibilidade de ganhar. Porque fazer tudo para a extrema-direita crescer não é o mesmo de a extrema-direita governar e isso faz toda a diferença.
Se eu fosse francês, no entanto, estaria neste momento bastante seguro de que Le Pen não tem a mais remota possibilidade de vencer. Não só ficou em segundo ainda com todos os candidatos em campo, como não vai conseguir ir buscar votos em quantidade significativa a ninguém, com a notória exceção da direita dita civilizada, área em que mesmo assim Macron leva alguma vantagem. O boneco aqui em cima, roubado aos Ladrões de Bicicletas e resultado de uma sondagem feita no próprio dia das eleições, não deixa quanto a isso a mínima dúvida, e está inteiramente alinhado com outras sondagens feitas em outros momentos.
Se eu fosse francês, portanto, estaria neste momento inclinado a ir na segunda volta às urnas, sim, mas para votar branco ou nulo. Só inclinado, não decidido. Às vezes as coisas mudam significativamente quase de um momento para o outro e eu poderia acabar por me ver constrangido a ter mesmo de votar Macron.
Felizmente, ou talvez infelizmente pois o que os franceses decidirem me afeta diretamente, não estarei sujeito a tais dilemas. É que não sou francês. Sou português. Por isso só posso ficar a assistir de bancada.
segunda-feira, 24 de abril de 2017
Lido: Dia do Pai
Muitos presidiários, certamente a maioria, têm família, laços, muitas vezes filhos. Não serão todos, provavelmente, mas a maioria dos que os têm deverá amar os filhos. Para um desses homens ser libertado no dia do pai pode ser uma felicidade dupla, caso ele ligue a essas datas, que acrescenta à alegria da liberdade a expetativa de chegar a casa e rever os filhos num dia dedicado aos laços familiares.
Pois é precisamente um desses homens que Ricardo Lopes Moura nos apresenta em Dia do Pai. Mas o júbilo depressa amarga, pois o protagonista encontra em casa um banho de sangue, a família toda estatelada no chão e caída sobre a mobília, imóvel, como morta.
Estamos perante um conto de horror psicológico, mais um. Com menos de quatro páginas bastante bem construídas e sem fragilidades estilísticas de monta, auxiliado por um final surpresa muito arrepiante, este é também o melhor conto que o livro apresentou até ao momento. Bastante bom.
Contos anteriores deste livro:
Pois é precisamente um desses homens que Ricardo Lopes Moura nos apresenta em Dia do Pai. Mas o júbilo depressa amarga, pois o protagonista encontra em casa um banho de sangue, a família toda estatelada no chão e caída sobre a mobília, imóvel, como morta.
Estamos perante um conto de horror psicológico, mais um. Com menos de quatro páginas bastante bem construídas e sem fragilidades estilísticas de monta, auxiliado por um final surpresa muito arrepiante, este é também o melhor conto que o livro apresentou até ao momento. Bastante bom.
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Lido: A Adivinha
Algumas destas histórias dos Irmãos Grimm têm muito pouca magia, sem que por isso deixem de ser contos de fadas, pois todo o ambiente e muitas das características destes se mantêm bem presentes mesmo assim. É o caso de A Adivinha, história bastante curta que relata como um príncipe decidiu correr mundo acompanhado apenas por um criado e que aventuras isso o levou a viver. Há bruxas metidas ao barulho, ainda que o máximo de bruxedo que delas sai é um veneno, há uma floresta daquelas boas para as pessoas se perderem, e há uma princesa que o príncipe acaba por encontrar e que tem a mania de mandar matar pretendentes que não consigam arranjar uma adivinha que ela não seja capaz de desvendar. Por outro lado é princesa e muito bela, e isso nas histórias de fadas é o mais importante.
(Nunca perceberei por que motivo os personagens dos contos de fadas estão sempre tão ansiosos por casar com princesas psicopatas assassinas em série. Mas divago.)
O desfecho do conto vem na sequência de um confronto de astúcias, uma a tentar matar, a outra a tentar sobreviver (e casar, não esqueçamos o casamento!), e o resultado é fácil de prever, ou não estivéssemos a falar de um conto de fadas. Não é dos contos mais interessantes dos velhos manos, longe disso, mas tem o seu quê.
Contos anteriores deste livro:
(Nunca perceberei por que motivo os personagens dos contos de fadas estão sempre tão ansiosos por casar com princesas psicopatas assassinas em série. Mas divago.)
O desfecho do conto vem na sequência de um confronto de astúcias, uma a tentar matar, a outra a tentar sobreviver (e casar, não esqueçamos o casamento!), e o resultado é fácil de prever, ou não estivéssemos a falar de um conto de fadas. Não é dos contos mais interessantes dos velhos manos, longe disso, mas tem o seu quê.
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domingo, 23 de abril de 2017
Lido: Cada Homem é uma Raça
Mia Couto. Para quem lhe conhece a prosa basta o nome para invocar um território feito de subtilezas, tanto de enredo como de linguagem. Um território muitas vezes realista mas também muitas vezes fantástico, mágico, sem nunca deixar de se enraizar na terra moçambicana e nas suas gentes.
Sem surpresa, é precisamente isso que se encontra neste Cada Homem é uma Raça, coleção de onze contos de nível geralmente muito alto. Alguns são autênticas maravilhas de construção narrativa e de linguagem. Outros ficam-lhes um pouco atrás, como é inevitável nesta espécie de compilação. Cerca de metade são contos fantásticos, o que também é comum em Mia Couto, ainda que em alguns o fantástico, sempre muito próximo do realismo mágico, esteja bastante diluído. Alguns são contos de fundo político, contos sobre o poder, a violência e o modo como essas coisas se entrecruzam com as pessoas e com vários momentos históricos. A época colonial. A época da guerra civil. Outros são mais atemporais, apesar de haver em quase todos um aspeto comum: a forma como o povo de Moçambique encara o Outro. Vários Outros, aliás, de vários tempos e lugares, com vários graus de domínio, seja imposto, seja consentido, sobre as vidas das pessoas.
Tudo somado, este é um livro muito bom, faltando-lhe muito pouco para ser excelente. Vários dos contos são-no mesmo; outros ficam aquém.
Eis o que achei de cada um:
Este livro foi "caçado" na biblioteca dos meus pais.
Sem surpresa, é precisamente isso que se encontra neste Cada Homem é uma Raça, coleção de onze contos de nível geralmente muito alto. Alguns são autênticas maravilhas de construção narrativa e de linguagem. Outros ficam-lhes um pouco atrás, como é inevitável nesta espécie de compilação. Cerca de metade são contos fantásticos, o que também é comum em Mia Couto, ainda que em alguns o fantástico, sempre muito próximo do realismo mágico, esteja bastante diluído. Alguns são contos de fundo político, contos sobre o poder, a violência e o modo como essas coisas se entrecruzam com as pessoas e com vários momentos históricos. A época colonial. A época da guerra civil. Outros são mais atemporais, apesar de haver em quase todos um aspeto comum: a forma como o povo de Moçambique encara o Outro. Vários Outros, aliás, de vários tempos e lugares, com vários graus de domínio, seja imposto, seja consentido, sobre as vidas das pessoas.
Tudo somado, este é um livro muito bom, faltando-lhe muito pouco para ser excelente. Vários dos contos são-no mesmo; outros ficam aquém.
Eis o que achei de cada um:
Este livro foi "caçado" na biblioteca dos meus pais.
Lido: O Saque da Lampedusa
Encerra-se este livrinho com O Saque da Lampedusa, de José de Barros, já conhecido alter ego de João Barreiros. Trata-se de um conto integrado no universo ficcional electropunk que serviu de esteio à antologia Lisboa no Ano 2000, de que já falei aqui na Lâmpada há coisa de um ano. E é um típico conto de Barreiros, bastante bem escrito, irónico, cínico, carregado de hiperviolência. Trata-se de um depoimento, de uma ruminação desencantada da consciência de um soldado da Grosse Germânia após ter sido transferida para um tanque de assalto robótico cuja missão é combater fábricas automáticas que se tentam instalar e se combatem umas às outras na ilha de Lampedusa (não deveria o título ser "O Saque de Lampedusa"? "A" Lampedusa sugere uma nave ou coisa que o valha), no meio do Mediterrâneo, depois de terem dominado todo o Norte de África. A coisa é complicada pela parte do saque, pois as potências europeias (e não só), ao mesmo tempo que procuram refrear a expansão destrutiva das autofábricas, desejam o que elas produzem, e por isso combatem-se umas às outras pela posse dos despojos, numa situação de todos contra todos absolutamente caótica.
Barreiros faz muito bem este tipo de conto caótico, sabe transmitir de forma extremamente palpável a sensação de confusão e sobrecarga sensorial e emocional inerente a situações em que tudo acontece ao mesmo tempo e nunca existe uma saída óbvia. Por isso, e mesmo havendo neste conto umas certas quebras de ritmo provocadas pela necessidade de informar o leitor o mais depressa e completamente possível do que se está a passar, esta é, claramente, a melhor história de todo o livro.
Textos anteriores deste livro:
Barreiros faz muito bem este tipo de conto caótico, sabe transmitir de forma extremamente palpável a sensação de confusão e sobrecarga sensorial e emocional inerente a situações em que tudo acontece ao mesmo tempo e nunca existe uma saída óbvia. Por isso, e mesmo havendo neste conto umas certas quebras de ritmo provocadas pela necessidade de informar o leitor o mais depressa e completamente possível do que se está a passar, esta é, claramente, a melhor história de todo o livro.
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sábado, 22 de abril de 2017
Lido: Colombo
É curioso, e decerto que não foi propositado, mas este conto tem vários pontos de contacto com o anterior. Tal como em Coração Atómico, em Colombo, de Carla Ribeiro, vamos encontrar um homem genial que cria uma inovação tecnológica revolucionária que não tarda a haver quem queira usar para a guerra e a violência. Também aqui esse homem é torturado e está à beira de acabar destruído pelas consequências indesejadas da sua criação, numa forma de encarar a tecnologia que tem o seu quê de ludita. E também este conto está bem escrito.
O protagonista é um jovem engenheiro genial, criador de umas superengenhocas muito steampunk que, depois de se ver humilhantemente rejeitado pelo seu país natal, se vai pôr ao serviço de uma potência rival, à semelhança do velho Fernão de Magalhães, a fim de que as inovações que imagina acabem por ver mesmo a luz do dia. Encontramo-lo bastante depois desse momento, como passageiro, algo involuntário, de uma das máquinas voadoras que concebeu e foram usadas por essa potência para derrotar e destruir a sua terra numa guerra devastadora. Encontramo-lo no momento em que é forçado a confrontar a realidade do que fez, em todas as suas facetas e consequências, no momento em que realmente se compreende traidor. Traidor não só à sua terra e povo, mas à própria família.
Este é um conto forte, centrado no conflito interior do protagonista, mas sem grandes exageros. Em textos de Carla Ribeiro que li anteriormente havia uma certa tendência para hiperromantizar as situações, os diálogos e as personagens, mas vejo com agrado que essa tendência, embora não totalmente desaparecida, está agora muito mais controlada. E como consequência, este é certamente o melhor dos seus contos que já li.
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O protagonista é um jovem engenheiro genial, criador de umas superengenhocas muito steampunk que, depois de se ver humilhantemente rejeitado pelo seu país natal, se vai pôr ao serviço de uma potência rival, à semelhança do velho Fernão de Magalhães, a fim de que as inovações que imagina acabem por ver mesmo a luz do dia. Encontramo-lo bastante depois desse momento, como passageiro, algo involuntário, de uma das máquinas voadoras que concebeu e foram usadas por essa potência para derrotar e destruir a sua terra numa guerra devastadora. Encontramo-lo no momento em que é forçado a confrontar a realidade do que fez, em todas as suas facetas e consequências, no momento em que realmente se compreende traidor. Traidor não só à sua terra e povo, mas à própria família.
Este é um conto forte, centrado no conflito interior do protagonista, mas sem grandes exageros. Em textos de Carla Ribeiro que li anteriormente havia uma certa tendência para hiperromantizar as situações, os diálogos e as personagens, mas vejo com agrado que essa tendência, embora não totalmente desaparecida, está agora muito mais controlada. E como consequência, este é certamente o melhor dos seus contos que já li.
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Lido: João Mandrião
Estão cheias de Joões, estas histórias tradicionais portuguesas.
Aqui está mais um, neste conto recolhido por Adolfo Coelho, o qual relata a maravilhosa história de João Mandrião, um João que era tão mandrião, mas tão mandrião, que para ir a algum lado tinha de arranjar quem o levasse ao colo. Mas não foi isso que o impediu de entrar em aventuras nem de encontrar um peixe mágico que, por nenhum motivo que se perceba, decidiu que o haveria de ajudar sempre que ele o pedisse. E o João Mandrião não se fez rogado, acabando casado com uma filha do rei e a viver, presume-se, feliz para sempre, ou não estivéssemos em ambiente de conto de fadas. De resto, que lugar social é melhor para um verdadeiro mandrião do que o de rei, não é verdade?
Esta é uma historinha com o seu quê de iconoclasta, mas que me deixa fundamentalmente a impressão de estar truncada, pois muitas das situações e reviravoltas são tão forçadas que não consigo sacudir a impressão de que deve faltar-lhe qualquer coisa. É um pouco como uma paisagem vista através de uma janela interrompida por grossas barras de qualquer coisa opaca.
Não é, portanto, dos melhores destes contos. Longe disso.
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Aqui está mais um, neste conto recolhido por Adolfo Coelho, o qual relata a maravilhosa história de João Mandrião, um João que era tão mandrião, mas tão mandrião, que para ir a algum lado tinha de arranjar quem o levasse ao colo. Mas não foi isso que o impediu de entrar em aventuras nem de encontrar um peixe mágico que, por nenhum motivo que se perceba, decidiu que o haveria de ajudar sempre que ele o pedisse. E o João Mandrião não se fez rogado, acabando casado com uma filha do rei e a viver, presume-se, feliz para sempre, ou não estivéssemos em ambiente de conto de fadas. De resto, que lugar social é melhor para um verdadeiro mandrião do que o de rei, não é verdade?
Esta é uma historinha com o seu quê de iconoclasta, mas que me deixa fundamentalmente a impressão de estar truncada, pois muitas das situações e reviravoltas são tão forçadas que não consigo sacudir a impressão de que deve faltar-lhe qualquer coisa. É um pouco como uma paisagem vista através de uma janela interrompida por grossas barras de qualquer coisa opaca.
Não é, portanto, dos melhores destes contos. Longe disso.
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sexta-feira, 21 de abril de 2017
Lido: Coração Atómico
E eis que depois de muitas páginas ocupadas com ficções disfarçadas de outras coisas (a par de alguns artigos, entrevistas e anúncios genuínos) chegamos finalmente aos contos propriamente ditos. Ao todo são três. O primeiro é este Coração Atómico, de Manuel Alves.
Trata-se de um conto filosófico centrado em dois autómatos dotados de inteligência artificial complexa, os primeiros do seu género, um de alguma forma masculino, o outro feminino, e relata o momento em que tudo muda para eles e, de certa forma, para tudo o que os rodeia. Também é um conto de laboratório bastante comum, completo com cientista brilhante e excêntrico e tudo, que não destoaria das ficções científicas do início do século XX, o que talvez tenha sido propositado. Se foi, essa parte da estruturação da história está muito bem conseguida. Também bem conseguido é o texto em si, pois está bastante bem escrito. No entanto, o enredo torna-se algo previsível quando começa a matutar sobre as insuficiências da humanidade, numa atmosfera de conto cautelar muito óbvia, movida principalmente a diálogos entre os dois autómatos e o seu Criador e, depois, entre aqueles e um agente, que não se percebe muito bem se é revolucionário, reacionário ou outra coisa qualquer, mas tem como objetivo claro a obtenção de controlo sobre aquelas máquinas miraculosas, pois tecnologia é poder, e é sem grande surpresa que chegamos ao desfecho. A última frase, então, é quase uma moral da história.
Eu teria preferido menos previsibilidade e menos frases de efeito e tiradas com a ambição de ser profundas, mas o conto é bom.
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Trata-se de um conto filosófico centrado em dois autómatos dotados de inteligência artificial complexa, os primeiros do seu género, um de alguma forma masculino, o outro feminino, e relata o momento em que tudo muda para eles e, de certa forma, para tudo o que os rodeia. Também é um conto de laboratório bastante comum, completo com cientista brilhante e excêntrico e tudo, que não destoaria das ficções científicas do início do século XX, o que talvez tenha sido propositado. Se foi, essa parte da estruturação da história está muito bem conseguida. Também bem conseguido é o texto em si, pois está bastante bem escrito. No entanto, o enredo torna-se algo previsível quando começa a matutar sobre as insuficiências da humanidade, numa atmosfera de conto cautelar muito óbvia, movida principalmente a diálogos entre os dois autómatos e o seu Criador e, depois, entre aqueles e um agente, que não se percebe muito bem se é revolucionário, reacionário ou outra coisa qualquer, mas tem como objetivo claro a obtenção de controlo sobre aquelas máquinas miraculosas, pois tecnologia é poder, e é sem grande surpresa que chegamos ao desfecho. A última frase, então, é quase uma moral da história.
Eu teria preferido menos previsibilidade e menos frases de efeito e tiradas com a ambição de ser profundas, mas o conto é bom.
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Lido: Coronel Pança em Pânico
Quem não perceba de imediato a referência contida no título dificilmente deixará passá-la no início deste continho, que se refere a uma "aldeia da Mancha" de cujo nome o narrador recusa lembrar-se e, se deixar, só pode ser por nunca ter passado os olhos pelo Dom Quixote de Cervantes. Mas Luiz Bras não se limita a tirar o chapéu ao espanhol com este Coronel Pança em Pânico; se dá início ao conto com uma aparência de simples homenagem, depressa pega no caráter alucinatório da cruzada do cavaleiro hispânico contra os moinhos de vento e a extrapola, dando-lhe a volta, acabando por construir um continho de ficção científica surpreendente, muito bem congeminado e igualmente bem escrito, sobre uma ação militar que se volta contra quem a comete e tem a ver com granadas de gás alucinogénico. O narrador, em primeira pessoa, é, percebe-se, o tal Coronel Pança (chamar-se-á Sancho? Quiçá), a voz da sensatez no meio da loucura, como não poderia deixar de ser, e ele lança ao mundo um alerta contra o delírio. Infrutífero? Luiz Bras não nos diz, mas quer-me parecer que sim.
Um continho delicioso, este. Dos melhores de todo o livro, pelo menos para já.
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Um continho delicioso, este. Dos melhores de todo o livro, pelo menos para já.
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quinta-feira, 20 de abril de 2017
Lido: O Verdadeiro Dr. Fausto
Uma constante da literatura ocidental (e não só ocidental, diga-se de passagem) é a apropriação e reimaginação de antigas lendas populares pelos escritores, grandes e pequenos. Algumas dessas lendas funcionaram como sementes de que brotaram autênticas e frondosas árvores, e aqui ia adjetivar com literárias mas a verdade é que elas muitas vezes extravasam a literatura. Em alguns casos, géneros inteiros nasceram delas — é bem conhecida a influência que as sagas nórdicas tiveram na fantasia épica, por exemplo — e acontece com frequência que as adaptações, releituras ou reimaginações acabem por eclipsar as lendas que lhes deram origem (ao mesmo tempo que as perpetuam, paradoxalmente).
A história de Fausto, uma antiga lenda alemã sobre um erudito entediado que vende a alma ao diabo em troca de conhecimento ilimitado e prazeres terrenos, muitas vezes adaptada e interpretada antes disso, ganhou especial notoriedade após a sua adaptação a teatro em verso por Goethe, um dos fundadores das letras alemãs. Depois, tudo e mais alguma coisa serviu de veículo para adaptações ou inspirações faustianas: óperas, sinfonias, teatro, cinema... e, naturalmente, literatura. Literatura fantástica. Não direi que sempre, pois não conheço tudo, mas pelo menos a esmagadora maioria das obras o é.
O Verdadeiro Dr. Fausto (bibliografia) é mais uma dessas adaptações. Há um detalhe, porém: Michael Swanwick, o autor, é um escritor que se notabilizou principalmente na ficção científica, e é a linguagem da FC que ele traz para o mito de Fausto. Ele presta-se a isso, convenhamos: a ideia de que a venda da alma pelo erudito resulta na sua obtenção de conhecimento ilimitado abre desde logo a porta à exploração do mito pela ficção científica, pois o conhecimento, a sua evolução e a tecnologia que ele traz por arrasto (e as mudanças sociais que as evoluções tecnológicas precipitam) são o principal material de que é feita a FC. Em consequência, o Mefistófeles de Swanwick não é propriamente a criatura demoníaca e sobrenatural que se esperaria encontrar, mas sim uma espécie de alienígena tecnologicamente avançado (e muito, muito iconoclasta; e muito, muitíssimo sádico), que comunica com Fausto por intermédio de uma espécie de portal espaçotemporal.
E Fausto é de facto muito verdadeiro, no sentido de seguir fielmente a personagem da lenda, mas também de ser um homem credível do tempo em que Swanwick o coloca: um tipo intratável, insultuoso para com os que encara como inferiores (toda a gente, basicamente), mas ao mesmo tempo brilhante, dono de uma curiosidade insaciável, à semelhança de qualquer grande nome da ciência renascentista, agudamente consciente das insuficiências da sua época. Quando a mefistofélica criatura lhe propõe o trato, nem tenta resistir, reconhecendo de imediato o imenso potencial dos conhecimentos científicos de que ela dispõe, pondo-se logo a fazer planos para melhorar isto e aperfeiçoar aquilo. É aqui que os antecedentes ciencioficcionais de Swanwick mais contribuem para destacar das demais esta adaptação do mito, pois enquanto estas se ficam quase sempre pelos dilemas interiores do protagonista, a de Swanwick cedo se volta para o impacto social do conhecimento acabado de chegar ao mundo.
Não que este impacto seja grande, pelo menos de início. Fausto é ingénuo o suficiente para julgar que os factos e ideias revolucionários que Mefistófeles lhe fornece vão ser acolhidos pelos demais com algo que não seja chacota e rejeição, e o início do romance é uma história de desilusão e raiva impotente contra a estupidez do mundo, o qual, por seu turno, olha Fausto com a condescendência vagamente apiedada que se concede aos loucos.
Mas a verdade científica tem esta curiosa característica de acabar sempre por prevalecer (e é pena que pareça ser preciso ler autores de ficção científica para se ter contacto com obras que reconheçam totalmente este facto) e, aos poucos, Fausto vai conseguindo arranjar maneiras de aplicar os conhecimentos que lhe são oferecidos de formas que nem o mais obtuso é capaz de negar. Claro: os problemas nunca cessam e aí surgem as inevitáveis acusações de bruxaria. Mas também isso é ultrapassado e, com o auxílio sempre irreverente de Mefistófeles, que parece estar a fazer uma experiência sociológica muito sua, Fausto acaba por dar origem a uma revolução industrial antecipada, o que faz também com que o romance entre pela história alternativa. E por fim...
Mas não, vou deixar o fim para os leitores do livro.
Porque acho mesmo que devem ler o livro. Vale muito a pena. Quer se aprecie ficção científica, quer se queira ter uma visão mais abrangente do que se pode fazer a partir dos mitos faustianos, ou de literatura popular em geral, quer se tenha um sentido de humor capaz de apreciar uma dose considerável de iconoclastia, quer se tenha tendências filosóficas, quer se alimente interesse por sociologia, quer se goste de boa literatura, este é livro que vale muito a pena ser lido. É um livro francamente bom, uma daquelas ficções científicas que não precisa de estar permanentemente a atirar à cara do leitor que se trata de FC mas que não é por isso que funciona pior tanto como FC quando como literatura tout court.
Este livro foi comprado.
A história de Fausto, uma antiga lenda alemã sobre um erudito entediado que vende a alma ao diabo em troca de conhecimento ilimitado e prazeres terrenos, muitas vezes adaptada e interpretada antes disso, ganhou especial notoriedade após a sua adaptação a teatro em verso por Goethe, um dos fundadores das letras alemãs. Depois, tudo e mais alguma coisa serviu de veículo para adaptações ou inspirações faustianas: óperas, sinfonias, teatro, cinema... e, naturalmente, literatura. Literatura fantástica. Não direi que sempre, pois não conheço tudo, mas pelo menos a esmagadora maioria das obras o é.
O Verdadeiro Dr. Fausto (bibliografia) é mais uma dessas adaptações. Há um detalhe, porém: Michael Swanwick, o autor, é um escritor que se notabilizou principalmente na ficção científica, e é a linguagem da FC que ele traz para o mito de Fausto. Ele presta-se a isso, convenhamos: a ideia de que a venda da alma pelo erudito resulta na sua obtenção de conhecimento ilimitado abre desde logo a porta à exploração do mito pela ficção científica, pois o conhecimento, a sua evolução e a tecnologia que ele traz por arrasto (e as mudanças sociais que as evoluções tecnológicas precipitam) são o principal material de que é feita a FC. Em consequência, o Mefistófeles de Swanwick não é propriamente a criatura demoníaca e sobrenatural que se esperaria encontrar, mas sim uma espécie de alienígena tecnologicamente avançado (e muito, muito iconoclasta; e muito, muitíssimo sádico), que comunica com Fausto por intermédio de uma espécie de portal espaçotemporal.
E Fausto é de facto muito verdadeiro, no sentido de seguir fielmente a personagem da lenda, mas também de ser um homem credível do tempo em que Swanwick o coloca: um tipo intratável, insultuoso para com os que encara como inferiores (toda a gente, basicamente), mas ao mesmo tempo brilhante, dono de uma curiosidade insaciável, à semelhança de qualquer grande nome da ciência renascentista, agudamente consciente das insuficiências da sua época. Quando a mefistofélica criatura lhe propõe o trato, nem tenta resistir, reconhecendo de imediato o imenso potencial dos conhecimentos científicos de que ela dispõe, pondo-se logo a fazer planos para melhorar isto e aperfeiçoar aquilo. É aqui que os antecedentes ciencioficcionais de Swanwick mais contribuem para destacar das demais esta adaptação do mito, pois enquanto estas se ficam quase sempre pelos dilemas interiores do protagonista, a de Swanwick cedo se volta para o impacto social do conhecimento acabado de chegar ao mundo.
Não que este impacto seja grande, pelo menos de início. Fausto é ingénuo o suficiente para julgar que os factos e ideias revolucionários que Mefistófeles lhe fornece vão ser acolhidos pelos demais com algo que não seja chacota e rejeição, e o início do romance é uma história de desilusão e raiva impotente contra a estupidez do mundo, o qual, por seu turno, olha Fausto com a condescendência vagamente apiedada que se concede aos loucos.
Mas a verdade científica tem esta curiosa característica de acabar sempre por prevalecer (e é pena que pareça ser preciso ler autores de ficção científica para se ter contacto com obras que reconheçam totalmente este facto) e, aos poucos, Fausto vai conseguindo arranjar maneiras de aplicar os conhecimentos que lhe são oferecidos de formas que nem o mais obtuso é capaz de negar. Claro: os problemas nunca cessam e aí surgem as inevitáveis acusações de bruxaria. Mas também isso é ultrapassado e, com o auxílio sempre irreverente de Mefistófeles, que parece estar a fazer uma experiência sociológica muito sua, Fausto acaba por dar origem a uma revolução industrial antecipada, o que faz também com que o romance entre pela história alternativa. E por fim...
Mas não, vou deixar o fim para os leitores do livro.
Porque acho mesmo que devem ler o livro. Vale muito a pena. Quer se aprecie ficção científica, quer se queira ter uma visão mais abrangente do que se pode fazer a partir dos mitos faustianos, ou de literatura popular em geral, quer se tenha um sentido de humor capaz de apreciar uma dose considerável de iconoclastia, quer se tenha tendências filosóficas, quer se alimente interesse por sociologia, quer se goste de boa literatura, este é livro que vale muito a pena ser lido. É um livro francamente bom, uma daquelas ficções científicas que não precisa de estar permanentemente a atirar à cara do leitor que se trata de FC mas que não é por isso que funciona pior tanto como FC quando como literatura tout court.
Este livro foi comprado.
Lido: Em Breve: "O Intrépido Teófilo no Rio Amazonas"
Mais mangas feitas com o pano Teófilo, ainda, claro sob a batuta de Carlos Silva. Depois de um artigo que descreve um dia na agitada vida da personagem na capital portuguesa e de uma crítica literária arrasadora para obra e obreiro, aqui temos um anúncio tonitruante, que basicamente fornece uma sinopse do próximo (e excitante!) lançamento saído da pena aventureira e intrépida de Teófilo Pais. Em Breve: "O Intrépido Teófilo no Rio Amazonas" promete com uma prosa algo tosca (terá sido propositado? Se sim, tiro o chapéu) e com umas peculiaridades ortográficas um pouco estranhas (Amazônia é como se escreve Amazónia... no Brasil) um livro cheio de aventura e mistérios desvendados em rigoroso exclusivo! Soem fanfarras.
Não fico propriamente com vontade de ler o livrinho aqui anunciado, mas fico com vontade de ler mais sobre o Teófilo, intrépido ou aldrabão. Não gosto de pulp, é certo, como aliás quem não tenha caído aqui por acaso já deve estar farto de saber, mas divirto-me com coisas a gozar com o pulp. Até escrevi um romance assim e tudo. E este filão Teófilo tem pano para mais mangas.
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Não fico propriamente com vontade de ler o livrinho aqui anunciado, mas fico com vontade de ler mais sobre o Teófilo, intrépido ou aldrabão. Não gosto de pulp, é certo, como aliás quem não tenha caído aqui por acaso já deve estar farto de saber, mas divirto-me com coisas a gozar com o pulp. Até escrevi um romance assim e tudo. E este filão Teófilo tem pano para mais mangas.
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quarta-feira, 19 de abril de 2017
Lido: Crítica Literária de "O Intrépido Teófilo nas Ruínas do Cairo"
Das notícias falsas passamos à crítica falsa a um livro inexistente, nomeadamente um livro do Intrépido Teófilo que já encontrámos alguns textos antes. Trata-se da Crítica Literária de "O Intrépido Teófilo nas Ruínas do Cairo", um dos populares volumes do intrépido autor, e diga-se que o anónimo crítico (de novo o Carlos Silva, naturalmente) está tudo menos embevecido pelos dotes literários do amigo Teófilo Pais. Na verdade, desanca-o com violência. Ou melhor: desanca-o a ele, desanca a obra (uma obra que não obriga o leitor a consultar o dicionário, francamente!) e desanca os leitores que teimam em ler aquilo, ainda que essa surra seja pelo menos em parte movida a preconceitos de classe e a uma conceção de literatura a atirar para o pedante.
Escrevi antes que o Intrépido Teófilo é personagem que dá pano para mangas, e aqui está mais uma manguinha. Uma manguinha que não só é francamente divertida, pois um leitor fica na dúvida se há de achar mais merecedor de risos condescendentes o criticado ou o crítico, como contribui para tornar a personagem mais tridimensional e complexa. Para este texto ser realmente bom, parece-me, só faltaria adequar a prosa do crítico à sua personalidade e às suas opiniões, enchendo-o com os rodriguinhos presunçosos e as palavras rebuscadas que alguém assim certamente escreveria, mesmo numa crítica de jornal.
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Escrevi antes que o Intrépido Teófilo é personagem que dá pano para mangas, e aqui está mais uma manguinha. Uma manguinha que não só é francamente divertida, pois um leitor fica na dúvida se há de achar mais merecedor de risos condescendentes o criticado ou o crítico, como contribui para tornar a personagem mais tridimensional e complexa. Para este texto ser realmente bom, parece-me, só faltaria adequar a prosa do crítico à sua personalidade e às suas opiniões, enchendo-o com os rodriguinhos presunçosos e as palavras rebuscadas que alguém assim certamente escreveria, mesmo numa crítica de jornal.
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terça-feira, 18 de abril de 2017
Lido: Obituário do Barão das Antas
Mais sintonizado com o steampunk do que os artigos ficcionados de João Ventura, este Obituário do Barão das Antas, de A. M. P. Rodriguez, é um exercício de bairrismo tripeiro-futebolístico, bem sucedido na ironia mas não muito bem sucedido na condição de obituário, pois resume uma pessoa apresentada como relevante o suficiente para ter ganho uma baronia a uma única invenção: a de um árbitro de futebol robótico "cheio de fair-play" (ou seja: que rouba para o Porto da forma mais objetiva possível). Dá a ideia de que Rodriguez teve a ideia da engenhoca mas não soube bem como pô-la em prática, e esta é outra das várias notícias ficcionadas presentes no livro que muito provavelmente ficariam melhor em contos ou novelas ou até, em certos casos, romances mais bem desenvolvidos. Isso e algumas frases em que não consegui descobrir sentido (o que significa, por exemplo, o fim da seguinte frase: "Embora parte do algoritmo nunca tenha sido revelado ao grande público, sabe-se que há uma conjugação entre as decisões de impasse e as correntes do vapor interior do autómato por magnetismo."?)
fizeram com que não tivesse gostado muito deste texto.
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segunda-feira, 17 de abril de 2017
Lido: No Útero da Mãe
Uma mulher aterrorizada espera o marido neste continho de quatro páginas. O título, No Útero da Mãe, dá algumas pistas do porquê, mas é no decorrer do conto que Ricardo Lopes Moura as concretiza melhor. A mulher está aterrorizada porque o marido tem tendência para explodir em violência quando é contrariado, quando as frustrações e a pobreza levam a melhor sobre o seu autocontrolo, e no útero da mãe, no seu útero, há algo que, pensa ela, vai fazer com que a explosão aconteça com uma força até aí inaudita. O que de facto acontece não é bem o que está à espera.
Este é um conto inteiramente vinculado ao real, mas onde o terror não deixa de estar presente. Um terror psicológico, movido a abuso e a violência, e Lopes Moura constrói toda a história de uma forma razoavelmente subtil. Infelizmente, o desfecho é demasiado delicodoce para a realidade mais comum dos factos; não que a espécie de redenção que aqui nos é descrita não possa acontecer, mas a triste realidade é que com grande frequência as relações abusivas permanecem abusivas até chegarem ao fim... e, dizem-nos as estatísticas, demasiadas vezes esse fim é uma morte.
Em todo o caso, isto é um conto e, não fossem algumas fragilidades na escrita, penso que poderia ser um bom conto, pois não é nada fácil criar uma densidade psicológica tão grande em meras quatro páginas de texto.
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Este é um conto inteiramente vinculado ao real, mas onde o terror não deixa de estar presente. Um terror psicológico, movido a abuso e a violência, e Lopes Moura constrói toda a história de uma forma razoavelmente subtil. Infelizmente, o desfecho é demasiado delicodoce para a realidade mais comum dos factos; não que a espécie de redenção que aqui nos é descrita não possa acontecer, mas a triste realidade é que com grande frequência as relações abusivas permanecem abusivas até chegarem ao fim... e, dizem-nos as estatísticas, demasiadas vezes esse fim é uma morte.
Em todo o caso, isto é um conto e, não fossem algumas fragilidades na escrita, penso que poderia ser um bom conto, pois não é nada fácil criar uma densidade psicológica tão grande em meras quatro páginas de texto.
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Lido: O Vapor e a Electricidade
Ainda na senda de escrever artigos ficcionados que subvertem de algum modo o conceito de steampunk, João Ventura apresenta de seguida este O Vapor e a Electricidade, texto inteiramente jornalístico, meio em jeito de crónica social, meio em jeito de crítica teatral, que se debruça sobre a apresentação de um espetáculo com esse título onde versões antropomorfizadas do vapor e da eletricidade discutem em verso heptassilábico — com exemplos — os méritos de cada forma de captação e utilização energética. Um texto curioso que, tal como o anterior, seria muito verosímil enquanto texto real do mundo real, não sendo pois preciso postular alternativas steampunk para o enquadrar. Em parte por isso, mas também por estar despido da ironia habitual em Ventura, parecendo destinar-se principalmente a demonstrar dotes de versejador e a debitar uma ou duas ideias sobre os méritos e deméritos das máquinas a vapor ou elétricas, mais a mais pouco originais, não creio que ultrapasse o grau de "curioso". João Ventura tem muito melhor.
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domingo, 16 de abril de 2017
Lido: Herói da Causa
Pega-se em mais um conto de Telmo Marçal ou, como neste caso, numa noveleta, e já se sabe que o que aí vem é uma absoluta distopia ambientada numa sociedade totalitária em que a vida humana não vale nada e só a crueldade e a prepotência são valores que talvez deem alguma garantia de alguma espécie de sobrevivência. Ou talvez não; talvez nem assim.
Herói da Causa (bibliografia) não destoa. Ornatus Ludiv, o protagonista, é um condenado e por isso é sujeito a todas as violências e torturas imagináveis num sistema prisional cujo único fito discernível é arrancar confissões custe o que custar. Se alguém fizesse perguntas e conseguisse evitar ser atirado para algum calabouço esquecido ou, bem pior, não esquecido, talvez obtivesse a resposta de que os fins, como é timbre dos sistemas opressores, justificam os meios. Mas aos poucos vamos percebendo que não é só isso que Ludiv é.
A questão é que apesar de tudo, como que milagrosamente, subsiste uma resistência ativa, clandestina, composta por subversivos que combatem pela simpatia. E sim, mesmo ali nas trevas sociais das prisões. Segundo acabamos por perceber, Ludiv foi encarregado de se infiltrar nas fileiras dessa resistência para melhor a destruir por dentro. Mas o sistema é o sistema. Apesar de se dedicar tão aplicadamente a infligir o máximo possível de dor a suspeitos e condenados, não deixa de ser impessoal, burocrático, tão indiferente como qualquer sistema. E sendo as ficções de Marçal o que são, Ludiv não poderia nunca deixar de ser vítima disso.
É mais um bom conto, se encarado de forma isolada mas que, no contexto deste livro, se torna previsível. Entre uns contos e outros deste livro mudam os cenários, umas vezes mais, outras menos, mudam um pouco os enredos, mas o que está subjacente às várias histórias pouco se altera, o que as vai tornando um pouco cansativas à medida que se vão sucedendo. E esta, por ser a última, é entre todas a que é mais prejudicada por isso.
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Herói da Causa (bibliografia) não destoa. Ornatus Ludiv, o protagonista, é um condenado e por isso é sujeito a todas as violências e torturas imagináveis num sistema prisional cujo único fito discernível é arrancar confissões custe o que custar. Se alguém fizesse perguntas e conseguisse evitar ser atirado para algum calabouço esquecido ou, bem pior, não esquecido, talvez obtivesse a resposta de que os fins, como é timbre dos sistemas opressores, justificam os meios. Mas aos poucos vamos percebendo que não é só isso que Ludiv é.
A questão é que apesar de tudo, como que milagrosamente, subsiste uma resistência ativa, clandestina, composta por subversivos que combatem pela simpatia. E sim, mesmo ali nas trevas sociais das prisões. Segundo acabamos por perceber, Ludiv foi encarregado de se infiltrar nas fileiras dessa resistência para melhor a destruir por dentro. Mas o sistema é o sistema. Apesar de se dedicar tão aplicadamente a infligir o máximo possível de dor a suspeitos e condenados, não deixa de ser impessoal, burocrático, tão indiferente como qualquer sistema. E sendo as ficções de Marçal o que são, Ludiv não poderia nunca deixar de ser vítima disso.
É mais um bom conto, se encarado de forma isolada mas que, no contexto deste livro, se torna previsível. Entre uns contos e outros deste livro mudam os cenários, umas vezes mais, outras menos, mudam um pouco os enredos, mas o que está subjacente às várias histórias pouco se altera, o que as vai tornando um pouco cansativas à medida que se vão sucedendo. E esta, por ser a última, é entre todas a que é mais prejudicada por isso.
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Lido: Este Nosso Vasto Mundo
Mantemo-nos ainda na secção de "notícias", onde João Ventura torce de forma curiosa o conceito de steampunk, escrevendo um artigo de jornal muito típico e também muito verosímil, que não faria má figura em qualquer coluna de curiosidades (aliás, Este Nosso Vasto Mundo podia perfeitamente ser título de uma coluna dessas) de qualquer jornal ou revista do século passado. Descreve o artigo um culto à carga, descrito durante um congresso de antropologia, que se teria desenvolvido numa ilha da Polinésia e teria como centro de adoração o motor a vapor de um navio encalhado. A habitual ironia de Ventura está aqui presente e a forma redonda com que o conto/artigo é fechado atenua a sensação de que seria mais interessante ler uma ficção mais desenvolvida sobre o dito culto, o povo que lhe deu origem e a proveniência da maquineta a vapor. Ventura especializou-se neste tipo de ficções ultracurtas, frequentemente envoltas em roupagens jornalísticas, ou quase, e fá-las muito bem. E uma das razões para as fazer muito bem é saber evitar deixar água na boca dos leitores. Ou saber deixar pouca, pelo menos. É isso o que faz aqui: deixa, mas pouca.
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sábado, 15 de abril de 2017
Lido: Quadragésima Quinta Demonstração Pública Anual da Academia Real de Ciências
Continuando a avançar pela secção de "notícias", encontramos uma peça sobre a Quadragésima Quinta Demonstração Pública Anual da Academia Real de Ciências, escrita por Pedro Cipriano, e aqui a utilização da gíria jornalística faz todo o sentido porque se trata, de facto, de uma notícia. Falsa, naturalmente. Ficcionada. Descreve o evento que o título identifica, uma competição de inventores num Portugal steampunk e monárquico, e respeita fielmente o estilo jornalístico de produção noticiosa, o que é em parte responsável por ser um texto seco e pouco interessante em termos ficcionais. É o paradoxo desta secção que quanto mais inadequados os textos sejam enquanto exemplares noticiosos mais interessantes se tornem enquanto ficções. Mas neste caso não se trata só disso, pois as próprias invenções referidas na peça são pouco imaginativas, o que também contribui para retirar interesse ao texto.
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sexta-feira, 14 de abril de 2017
Lido: Um Dia na Vida do Intrépido Teófilo
Ainda na secção dedicada a "notícias", encontramos este texto de Carlos Silva, alegadamente escrito por um repórter que tem como incumbência acompanhar Um Dia na Vida do Intrépido Teófilo, Pais de apelido, uma daquelas personagens maiores que a vida que aparecem de vez em quando nas artes narrativas. É um conto interessante (e, apesar de ser apresentado como notícia, funciona perfeitamente se encarado como conto típico), apresentando-nos a personagem, o ambiente, naturalmente steampunk, e o que a personagem faz na vida. Mas de forma ambígua, pois o Teófilo tanto pode ser realmente intrépido, um verdadeiro aventureiro que financia as aventuras produzindo livros populares em que as narra, como um mero vigarista, que arranjou um estratagema para viver confortavelmente com a renda que obtém da personagem em que se transformou.
Mais uma vez, este é conto que dá pano para mangas. O Teófilo é uma personagem que merece ser explorada. Contudo, ao contrário de vários dos outros contos em que sobra muito pano para as mangas que apresenta, neste as coisas encaixam bem ainda que, e talvez paradoxalmente, a sua fraca adequação ao que se espera de uma notícia seja um dos fatores que fazem com que funcione enquanto texto de ficção.
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Mais uma vez, este é conto que dá pano para mangas. O Teófilo é uma personagem que merece ser explorada. Contudo, ao contrário de vários dos outros contos em que sobra muito pano para as mangas que apresenta, neste as coisas encaixam bem ainda que, e talvez paradoxalmente, a sua fraca adequação ao que se espera de uma notícia seja um dos fatores que fazem com que funcione enquanto texto de ficção.
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quinta-feira, 13 de abril de 2017
Lido: Gata Borralheira
Poucos dos contos dos Irmãos Grimm são tão famosos como este, Gata Borralheira, e nenhum o é mais. Contudo, aquilo que o tornou especialmente famoso, a adaptação da Disney, não lhe é inteiramente fiel. Oh, sim, temos aqui a madrasta má e as respetivas filhas, ainda piores, a pobre rapariga maltratada que sonha ir aos bailes do príncipe, e o próprio príncipe que por ela se apaixona com o estalar de um dedo. E sim, também cá existe uma peça de calçado que resolve a história. Mas quem pega neste conto esperando encontrar nele um sapatinho de cristal termina a leitura tristemente desapontado, pois o original fala, isso sim, de um chinelo dourado. E o original também é significativamente mais sanguinolento do que as adaptações suavizadas dão a entender.
Mas o que mais me surpreendeu ao ler esta história não foi nada disso: foi ter deparado com características de lengalenga, que tão comuns são nos contos populares portugueses mas têm rareado nestas reinvenções dos Grimm. Que os irmãos tenham preservado essas características nesta história, assumidamente composta a partir de três contos diferentes, leva-me a supor que provavelmente haverá bastantes mais lengalengas também nos contos tradicionais alemães do que a leitura das histórias dos Grimm pode levar a pensar.
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Mas o que mais me surpreendeu ao ler esta história não foi nada disso: foi ter deparado com características de lengalenga, que tão comuns são nos contos populares portugueses mas têm rareado nestas reinvenções dos Grimm. Que os irmãos tenham preservado essas características nesta história, assumidamente composta a partir de três contos diferentes, leva-me a supor que provavelmente haverá bastantes mais lengalengas também nos contos tradicionais alemães do que a leitura das histórias dos Grimm pode levar a pensar.
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