sábado, 31 de março de 2018

Lido: Xibalba Sonha com o Oeste

Não me lembro de alguma vez ter lido algum texto do André S. Silva e não houve nada neste Xibalba Sonha com o Oeste (bibliografia), nem algum maneirismo temático, nem nenhum tique estilístico, que me tenha feito lembrar outras histórias. Mas isso não impediu que eu tivesse saído desta leitura bem impressionado.

Esta noveleta não é perfeita. Há nela algumas falhas a nível do texto, que me pareceram cair mais no capítulo das gralhas do que no das falhas propriamente ditas (palavras em falta, palavras repetidas, sobretudo coisas dessas) e há também uma certa aura de capítulo de história mais extensa, pontas soltas que assim permanecem ao concluir a leitura. Não daquelas pontas soltas que pouca relevância têm, mas das que são fulcrais no contexto do universo ficcional criado. Pior: ao longo do texto vai sendo construída uma tensão que não se resolve quando ele chega ao fim. E há também alguns pontos do enredo em que a narrativa é apressada com o recurso a técnicas que se aproximam talvez demasiado do deus ex machina.

Mas a verdade é que a tensão é muito bem construída, com uma prosa de bom ritmo e agradável, personagens quase sempre credíveis e com alguma tridimensionalidade (em especial a protagonista). E acima de tudo, um universo ficcional muitíssimo interessante e cheio de potencial para desenvolvimento futuro.

A história desenrola-se no Rio de Janeiro. Ou melhor, na Guanabara, cidade-estado situada no local onde no nosso universo existe o Rio. É que neste universo ficcional criado pelo André Silva uma catástrofe qualquer parece ter-se abatido sobre a Europa, e como consequência não houve portugueses que confundissem a baía de Guanabara com um rio no dia 1 de janeiro de 1502. Sem europeus a baralharem as cartas, a potência principal parece ser um estado oriental (ou, para os guanabarenses, ocidental) chamado Zonguá, isto é, o nome chinês da China, e a Guanabara é uma cidade-estado num continente (ou em dois, pois os zonguanenses chegaram às nossas Américas pelo estreito de Bering — que naturalmente tem outro nome — e por isso não estamos apenas a falar da nossa América do Sul mas de ambas) que está em grande medida sob a influência mais ou menos direta, mais ou menos marcial, de Zonguá. Incluindo as potências subjugadas das nossas Américas, os grandes impérios indígenas, dos maias aos astecas. A Guanabara, de resto, situa-se no espaço cultural destes últimos.

A protagonista é a filha de um dissidente, um cientista que teria desenvolvido pesquisas que o governo considerou subversivas e por isso foi desterrado para muito longe. Pesquisas sobre o que está no fulcro da divergência entre o nosso universo e esta alternativa que André Silva aqui cria, um fenómeno energético qualquer, nunca explicado e envolto em mitologia, que teria arrasado a Europa ao mesmo tempo que criava as condições para o desenvolvimento de civilizações energeticamente sustentáveis nas regiões que não foram demasiado tocadas pela catástrofe. Mas claro: qualquer situação repressiva, mesmo que subtilmente, gera os seus dissidentes, e quando estes se cruzam com a protagonista e lhe despertam a curiosidade com o que poderá estar a acontecer e sobretudo com a forma como os acontecimentos se relacionam com o pai há muito desaparecido, as coisas precipitam-se.

Este é um exemplo bastante sólido de história alternativa, significativamente melhor, apesar das falhas, do que os que o antecedem e baseado num universo ficcional que certamente será desenvolvido em outras ficções.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 30 de março de 2018

Lido: Acho que Posso Ajudar

Conto após conto, esta coleção de contos digitais publicada pelo DN e pela Escrit'orio foi reduzindo a expetativa para o seguinte, à medida que, depois da agradável surpresa inicial com a do JP Simões, se foram sucedendo histórias que no melhor dos casos me mereceram uma encolhedela de ombros de indiferença, fazendo prever que a qualidade média iria deixar muito a desejar.

Eis senão quando me aparece à frente este Acho que Posso Ajudar, de mais um autor que nunca tinha lido, David Machado. E eu fiquei feliz, porque é o segundo conto realmente bom deste conjunto. Ainda por cima dificilmente podia ser mais diferente do primeiro.

Enquanto o conto de JP Simões é adulto até à medula, David Machado apresenta um conto infantil concebido em jeito de conto popular (e muito bem ilustrado por Mafalda Milhões, com ilustrações que por vezes são animadas, aproveitando assim da melhor forma as potencialidades da publicação eletrónica), completo com elementos de lengalenga e tudo. A história é sobre um rapaz de oito anos que tenta ajudar a avó, a qual tinha um problema: queria sair à rua mas não podia porque o vento lhe iria de certeza destruir o novo penteado. O que fazer? Ora, basta armar uma armadilha ao vento e depois trancá-lo num barracão, claro.

Só que esse ato original de auxílio e resolução de um problema vai causar uma catadupa de outros problemas, os quais o rapaz vai ter de resolver, não só porque gosta de ajudar mas também porque se sente responsável por os ter gerado. A história acaba convoluta, metendo monstros, balões, nuvens, bruxas e mais uma série de outras coisas, mas tão bem escrita, com um ritmo tão perfeito, que tudo parece estar no lugar que lhe é próprio, sem tirar nem pôr.

E é precisamente essa a mensagem que David Machado pretende transmitir: a de que todas as coisas têm o lugar que lhes é próprio, e qualquer tentativa para as manipular, por mais bem intencionada que seja, acaba por causar uma série de consequências indesejadas, para as quais será depois necessário encontrar respostas. E transmite essa ideia com total clareza sem para isso ter a necessidade de a esfregar na cara do leitor, o que só sublinha a qualidade da obra.

(Já agora, em relação à moral da história, eu concordo e discordo: concordo porque sim, é absoluta verdade que mexer em equilíbrios delicados pode redundar em desastre, mas discordo porque não, a resposta não é remeter-nos à inação e à promoção da imutabilidade das coisas. Porque elas, as coisas, mudam sempre, queiramos ou não; é essa a natureza do Universo, é assim que funciona tudo isto que nos rodeia e constitui: através da permanente mudança. A resposta tem de ser, portanto, a ação informada, porque só a informação e o conhecimento, só sabermos o melhor possível o que estamos a fazer, é capaz de reduzir a possibilidade de causarmos algum desastre com o que fizermos. Ou com o que deixarmos por fazer, pois também a inação pode ter consequências desastrosas.)

Fim de parêntesis que mostra que este conto, além de tudo o mais, ainda por cima convida à reflexão. O que mais lhe poderíamos pedir? Este é mesmo um conto francamente bom.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Lido: O Diabo com os Três Cabelos Dourados

Este conto também parece não ter sido muito alterado pelos Irmãos Grimm, exceto, provavelmente, no que toca à elaboração literária do texto propriamente dito. A acrescer-lhe ao interesse está uma história invulgarmente iconoclasta, daquelas que tenho encontrado muito nos contos portugueses recolhidos pelo Adolfo Coelho mas não nos dos Grimm. O Diabo com os Três Cabelos Dourados podia intitular-se com igual proveito "O Felizardo Bondoso e o Rei Cruel", pois é basicamente disso que a história trata: um miúdo que nasce prodigioso e que ao qual se profetizam grandes feitos e um casamento real e o rei com cuja filha esse casamento real se viria a efetuar. Só que o rei não está pelos ajustes — um plebeu a casar com a filha de sangue azul? Deus salve a monarquia de tal sorte! — e trata de se livrar o importuno. Ou de tentar, pelo menos, que a sorte do felizardo parece ser inabalável por crueldades ou magia ou seja mais o que for. Há uma série de provações que o jovem acaba por ter de ultrapassar, enredo arquetípico pelo menos desde o original grego do mito de Hércules e, como quase sempre acontece nestas histórias, tudo acaba em bem, com os bons felizes para sempre e os maus devidamente punidos. Um conto tradicional que, apesar de ter os seus motivos de interesse, se situa numa segunda ou terceira linha; não é propriamente memorável.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 26 de março de 2018

Lido: A Cerimónia

Nunca tinha ouvido falar de João Bonifácio antes de pegar neste conto, uma parede de texto contínua que preenche todas as (abençoadamente escassas) páginas que ele ocupa, efeito contra o qual nada tenho, por princípio, até porque pode ser usado com grande eficácia para transmitir uma impressão de torrencialidade de discurso, de urgência, de sufoco, mas que neste A Cerimónia depressa se torna muitíssimo cansativo, para não dizer chato, porque, parece-me, a história não tem interesse algum e portanto nada existe que leve o leitor a ter gosto em fazer o esforço de leitura acrescido a que o artifício obriga.

Trata-se no fundamental de um estudo de personagem, e de uma personagem razoavelmente desaparafusada, muito burguesa mas aparentemente endividada, que procura convencer alguém a aceitar um disco como pagamento dessas dívidas. Mas um disco cujo valor é sentimental e portanto íntimo, o que não faz sentido nenhum a não ser para si própria. Isto no meio de um denso matagal de apartes e parêntesis e que de repente acaba sem

E aquilo que fica ao terminar a leitura é um redondo meh. OK, a língua portuguesa não sai disto maltratada, 'tá certo que há alguma ironia, crítica social e etc. e tal, mas no fundo... meh. É um exercício de estilo, do parágrafo único ao final interrompido, daqueles que têm bastante mais interesse para quem os faz do que para quem os lê, e eu, estando do lado de cá da leitura, solto um meh e depressa o esqueço.

É mau? Não, não creio que seja. Mas coisas destas, para realmente resultarem, precisam de histórias fortes, de histórias que causem verdadeiro impacto. E esta está muito, muito longe de a ter. Por conseguinte, é simplesmente esquecível.

Lido: O Osso Cantante

O Osso Cantante parece ser uma das histórias menos alteradas pelos Irmãos Grimm, ajuizando tanto pela habitual nota que a acompanha, a qual desta vez fala de outras histórias aparentadas ou semelhantes mas não de fusões nem de reformulações, como pela sua extensão (ou melhor: brevidade) e estrutura, que a assemelham bastante mais do que é hábito às histórias portuguesas recolhidas pelo Adolfo Coelho.

É um daqueles contos morais sobre a bondade e a maldade, focando-se num rei que quer ver morto um certo javali muito selvagem que vive numa floresta, para o que promete (como sempre) a mão da filha em casamento ao bravo que o matar, e nos dois irmãos que encaram o desafio, ainda que por motivos bem diferentes. Um dos irmãos é bom, recebe uma lança mágica de presente de um velho misterioso e mata o javali, o outro é mau, mata o irmão e apresenta-se em seu lugar como caçador vitorioso, ganhando assim a mão da princesa. Mas como nestas histórias morais a maldade nunca vence, passado algum tempo um dos ossos do irmão assassinado é encontrado, é feita com ele uma flauta, e é essa flauta que constitui o osso cantante do título, pois dela em vez sair música sai a verdade.

É um exemplo curioso de literatura popular, daqueles que é possível imaginar desenvolvidos (e adulterados... digo, adaptados) em obras mais extensas, mas bastante previsível se não nos detalhes pelo menos nos seus traços gerais, como de resto acontece quase sempre neste tipo de história.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 25 de março de 2018

Lido: Pulp Feek, nº 1

Tempos houve em que, por limitações de espaço, e numa tentativa de fidelizar leitores pagantes, as publicações comerciais ligadas à ficção científica e à fantasia tinham por norma incluir entre os contos completos que publicavam algumas histórias mais extensas (geralmente novelas longas ou pequenos romances) subdivididas em várias partes publicadas em números sucessivos. Era compreensível que assim fosse: para lá da já referida questão da fidelização, essa era a única forma de publicar essas histórias mais extensas em revistas com um número padronizado de páginas que por um lado era frequente serem menos do que as necessárias para a publicação da história completa e por outro dificilmente alguém arriscaria ocupar todas (ou quase) com uma só história, por receio de desagradar demasiado aos leitores que dela não gostassem.

Estes fatores compensavam claramente o principal problema desta abordagem: a chatice que era para os leitores (e para os autores, diga-se) ficarem com histórias incompletas nas mãos, tendo de esperar um mês ou mais pela continuação (ou para sempre se a publicação fechasse, o que era sempre uma possibilidade a ter em conta). Ou apanhando as histórias a meio se por acaso calhassem comprar pela primeira vez uma revista a meio de uma publicação dessas.

Mas se isto se compreende nas publicações comerciais em papel, já me custa perceber o que leva alguém a apostar nesta forma de edição quando a publicação em questão é um ficheiro digital, que por definição não tem limitações físicas, muito em especial quando, ainda por cima, é distribuído gratuitamente na internet. Com toda a certeza, a mera procura de fidelização não compensa os incómodos que a prática origina.

Já perceberam que foi isso mesmo o que se fez nesta Pulp Feek, nº 1, não é verdade? Pois. Não só foi isso o que se fez no número 1, como essa é praticamente toda a proposta da publicação, a par com a abordagem pulp às histórias (isto não é bem verdade, mas por agora fica assim porque para explicar o resto é melhor esperar pela leitura e comentário ao nº 2). Este número da publicação, dedicado à fantasia épica e espada e magia, é constituído por dois inícios de duas histórias, por um conto completo e não muito extenso e por dois artigos. Ah, e um texto que não se assume como editorial mas funciona como tal. Nada mais.

Não falarei dos inícios das histórias para além de dizer que a língua portuguesa não sai deles lá muito bem tratada: o início de uma história pode fornecer pistas para o que a história será quando completa, certamente, mas a obra só é realmente obra quando está completa. O conto completo? É fraco, opinião que desenvolvo mais no texto que lhe dediquei (ver mais abaixo). E quanto aos artigos, são artigos de caráter didático sobre escrita criativa e sobre o que é, ao certo, o pulp, claramente dirigidos à formação de autores iniciantes, o que é bastante interessante. O outro lado da moeda, claro, é o foco ser a escrita de ficções mais ou menos pulp, como não poderia deixar de ser dada a abordagem da iniciativa. Ora, a minha opinião sobre o pulp é bem conhecida por qualquer pessoa que leia o que aqui escrevo com alguma regularidade. Apesar disso, os artigos são a parte mais interessante desta publicação... o que também dá uma ideia da opinião com que fiquei a respeito dos dois inícios de história.

Ou seja, saí desta leitura muito longe de estar satisfeito. Na verdade, quem leu o balanço do ano de 2017 já sabe que esta foi a minha pior leitura do ano. Pois. Está tudo dito, não está? Não gostei da ficção, não gosto da abordagem e não me parece que o estilo de publicação faça grande sentido no contexto da publicação digital.

E aqui está o que achei do único conto completo:

sábado, 24 de março de 2018

Lido: O Homem que Busca Estremecer

E cá temos mais um dos contos recolhidos por Adolfo Coelho. Este, apesar do seu título à ficção científica pulp ("O Homem que" isto ou aquilo é um dos grandes clichés dos títulos de FC, e O Homem que Busca Estremecer, apesar de não fazer uma referência imediata à ficção científica, certamente a faz a esse cliché dos títulos usados no género), mais parece uma variante, bastante resumida, da muito conhecida história sobre o intrépido rapaz que desconhece o medo e parte pelo mundo em busca de aventuras (e do próprio medo), incluído na compilação de contos dos Irmãos Grimm sob o explicativo título de Conto do Rapaz que Partiu para Aprender a Ter Medo, e que inspirou uma das mais interessantes incursões dos grandes escritores portugueses pela literatura fantástica: As Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira. Aqui, tudo está resumido ao máximo, em pouco mais de uma página, salpicado de palavras que talvez fossem de uso corrente no Minho do século XIX, que foi onde e quando Adolfo Coelho apanhou o continho, mas certamente não o são no Portugal (e sobretudo no Algarve, que está na outra ponta do país, falando não só geográfica mas também linguisticamente) do século XXI. Esta característica linguística é um dos encantos que este continho tem, mas empalidece perante aquilo que quem o lê e conhece as outras obras lincadas acima sabe que esta ideia pode dar.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 23 de março de 2018

Lido: A Casa do Eremita

Há já longos anos li um livro português que roçava pela ficção científica, visto passar-se num futuro razoavelmente distante, mas na realidade era uma alegoria com umas roupagens vagamente ciencioficcionais. Chamava-se esse livro, uma novela, A Cidade da Luz, e mostrava num Portugal invertido com capital na Cidade da Luz, uma espécie de Aldeia da Luz sob o efeito de esteroides, não aquela que foi submergida pelo reservatório do Alqueva, mas a que foi reconstruída a uma cota mais elevada.

Não gostei, como facilmente compreenderá quem for dar à opinião que na altura escrevi para o velho e-nigma.

Opinião publicada, e José Murta Lourenço, o autor, contactou-me para, além de corrigir uma imprecisão no meu texto, me perguntar se podia enviar-me um outro livro seu, para que eu o lesse e sobre ele opinasse. Disse-lhe que podia enviar-mo e eu o leria quando tivesse oportunidade, mas atenção, pois era provável que demorasse algum tempo, talvez anos. Murta Lourenço não se deixou intimidar e este A Casa do Eremita lá me chegou à caixa de correio, após o que foi parar ao fundo de uma das minhas pilhas de livros para ler, em parte por puro acaso, em parte porque a leitura do primeiro livro, de facto, não me deixou com muita vontade de voltar a experimentar as prosas do autor (nem de voltar a escrever uma opinião tão negativa como a que está no e-nigma e seria inevitável se voltasse a não gostar).

Passaram-se os anos e a pilha em que estava A Casa do Eremita foi sendo lida aos poucos e poucos. De profundamente soterrado, este livro chegou quase à superfície e por fim, por descargo de consciência e porque queria perceber se o livro também teria lugar no Bibliowiki, peguei mesmo nele para o ler. Sem grandes expetativas.

E fiquei agradavelmente surpreendido.

A prosa continua a não ser perfeita, é certo. Não há em Murta Lourenço aquela precisão linguística que faz as delícias de quem se interessa por literatura, especialmente pela sua vertente mais realista. Mas esta é uma obra significativamente mais bem construída, mais complexa e até mais divertida do que A Cidade da Luz. Trata-se, no essencial, de um romance histórico, desenvolvido em dois tempos diferentes. Um, o inicial, é o presente, ou um passado recente, no qual um tal Viriato chega a um velho casarão abandonado e dele toma posse, começando lentamente a investigá-lo e recuperá-lo. Trata-se da Casa do Eremita do título, o qual está bem escolhido pois é essa casa que liga o tempo de Viriato a um outro tempo mais antigo, em meados do século, no qual é narrada a história da família que mandou construir a casa, por entre breves (ou nem tanto) regressos ao tempo de Viriato para irmos acompanhando o que ele anda a fazer e a forma como se vai integrando na sociedade da região.

Mas é de facto a parte histórica que predomina, não só em extensão mas também em conteúdo. Somos apresentados à família, uma família burguesa e bem comportada, apesar das suas excentricidades artísticas. O filho da família faz-se engenheiro e, depois de um período a trabalhar em Lisboa, parte para Angola, onde as condições coloniais e a forma como as populações indígenas são tratadas vão causar um despertar da consciência política em vários dos membros da família. Talvez não total, pois já antes de partirem para África tinha havido contactos e desagrados com as injustiças sociais em Portugal, mas pelo menos um despertar mais rápido. A partir desse momento, a história ganha contornos mais trágicos e ligações à luta antifascista, onde a presença do Partido Comunista é quase sempre subtil mas existente, intercaladas por muito corrosivas (e por vezes bastante divertidas) bocas do autor a Salazar e aos seus acólitos.

O resultado é um livro bastante interessante. Está longe de ser um livro perfeito, talvez até nem seja propriamente um livro bom, mas também está longe de ser um mau livro. É um livro razoável, cuja leitura acabou por me agradar, contrariamente aos receios que eu tinha ao começar, e mesmo prejudicada por uma encadernação que é daquelas que se desfazem com um sopro, coisa de que o autor não é culpado mas vítima.

E quanto à questão que contribuiu para esta leitura, se desta vez José Murta Lourenço escreveu algo que tenha lugar no Bibliowiki, a resposta é não.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Mito e realidade, edição FC

Diz o mito que ninguém fala de FC nos países de língua portuguesa. Que a blogosfera está morta e a presença da ficção científica na imprensa é residual, quando não nula.

E qual é a realidade?

Ó Mythbusters! Venham cá!

Os Mythbusters chegam e reparam que o Ficção Científica Literária começou em meados de dezembro último a incluir informação sobre as fontes de cada peça a que liga. Como essas fontes são identificadas por siglas/abreviaturas (para poupar no limitado espaço disponível para etiquetas nos blogues do Blogger), estão reunidas numa página própria onde é feita a descodificação dessas siglas. Aqui. E quantas são elas neste momento, três meses depois de começarem a aparecer?

253. Sim, duzentas e cinquenta e três.

Sim, é verdade que a maioria chega do Brasil, é certo que um número significativo dessas fontes tem um interesse bastante residual (quando não é nulo) pela FC literária, aparecendo na lista sobretudo ou inteiramente devido às adaptações para cinema e TV, mas mesmo assim... São duzentas e cinquenta e três. Em três meses.

O veredito dos Mythbusters sobre o mito é, pois, um claro busted.

A queixa recorrente sobre a inexistência de media (um blogue também é um medium, por mais informal e amador que seja) a falar de FC, portanto, não faz nenhum sentido. Sim, há poucos media específicos de FC, mas não faltam aqueles que incluem referências à ficção científica no meio de outras coisas. Será uma chatice para quem só quer falar de FC, mas não só é inevitável que assim seja se quisermos que a FC saia do gueto (e eu quero), como é muitíssimo saudável.

Isto não quer dizer que não haja queixas que façam sentido. Eu próprio tenho algumas, e se acompanham a Lâmpada já as terão visto por aí. Há pouquíssima gente a falar da FC lusófona, por exemplo, e em especial a fazer resenhas ou críticas. E isso é mau porque não basta divulgar lançamentos, convém que as coisas sejam lidas com olhos de ler. A crítica é necessária a um ecossistema literário equilibrado, e é necessária não só em quantidade mas também em variedade. Nunca é bom quando se afunila demasiado as opiniões e é inevitável que isso aconteça quando há poucas pessoas a opinar.

Também é verdade que se restringirmos as fontes às que falam sobre FC com alguma regularidade este número de 253 se reduz substancialmente. Com efeito, neste momento existe uma fonte que aparece em 40 posts, mais 5 que surgem em mais de 20 e outras 22 que surgem em 10 ou mais. Dá cerca de 30 fontes que se referem à ficção científica literária três vezes ou mais por mês, em média. Não é muito, é certo, mas é consequência da falta de especialização (embora muitas destas fontes mais produtivas não sejam fontes especializadas) e o grande número de fontes compensa o suficiente essa escassa produtividade para já me ter obrigado a subir de três para quatro o limite de posts por dia no FCL (quando há material a mais fica para o dia seguinte... e só com três posts estava a acumular).

E depois haverá decerto queixas que fazem sentido no que toca à qualidade. É verdade que muitas das referências à FC literária não são grande espingarda, não só nos blogues mais descontraídos e informais, mas até na imprensa profissional. Até entre "especialistas", na verdade (aspas porque se abusa muito da palavra "especialista", tratando-se assim muita gente que não o é. De vez em quando até me chamam isso a mim, vejam só. Sim, sim, não vo-lo vou dizer na cara se me chamarem isso, mas recuso por completo o rótulo: não basta ter um bocadinho mais de conhecimentos do que a média para se ser especialista). No entanto, isso é algo que acontece com qualquer coisa, não é específico da FC. Aliás, quanto mais massificada for a coisa mais isso acontece. Ou seja: se a literatura de FC algum dia se massificar realmente (improvável, eu sei) é de esperar que a qualidade média das referências que lhe são feitas baixe ainda mais. É, simplesmente, a vida.

Resumindo e concluindo: la nave va. Seria bom que andasse mais depressa e/ou com um rumo algo diferente, mas que anda é incontestável.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Ontem caiu-me o queixo

Ao contrário do que provavelmente pensarão, o que me fez passar a fazer com alguma regularidade buscas pelo meu nome no Google não foi a mera vaidade, foram principalmente os piratas. Não só os do tipo de que falo no post lincado acima, que nem são muito comuns, mas os que tratam de pegar em livros, físicos ou não, e de os distribuir de forma mais ou menos grátis ("mais ou menos" porque há alguns chicos-espertos que deixam grátis os livros propriamente ditos, mas cobram pelo acesso às bibliotecas de obras pirateadas). Depois de ter tido alguns contactos com essa fauna passei a querer mantê-los debaixo de olho para ver o que andam a fazer com as minhas coisas. E para isso, o método mais eficaz é procurar-me no google.

E ontem encontrei coisas minhas pirateadas, como encontro sempre, tanto originais como traduções, mas houve uma que me fez cair o queixo.

Num site, que obviamente não divulgo, encontrei isto:


Esta imagem é uma parte de uma impressão de écran de um sítio que tem o meu livrinho quase premiado de FC, Sally, pirateado e disponível em PDF, epub e noutros formatos. Tudo muito organizadinho, com a ficha completa do livro e tal e coiso. Só falta a capa (ó: é esta aqui em baixo). E eu, francamente, tive uma daquelas reações à desenhos animados: olhei para isto, pensei cá com os meus botões, algo indiferentemente, "pois, mais um", mas depois olhei melhor, sacudi a cabeça, e olhei mesmo com atenção para aqueles números. E pumba, queixo no chão.

Não me refiro à média das avaliações: é boazinha e isso é agradável, mas não é nada que me espante muito, tendo em conta as reações que o livrinho teve. O que me espanta mesmo é o número de votos.

O Sally ter sido votado quase quatro mil e quatrocentas vezes, só naquele site, deixa-me estupefacto. Será possível que isso queira dizer que houve quatro mil e quatrocentos leitores que leram o livro?! Ou melhor, que houve mais que quatro mil e quatrocentos leitores a lerem o livro, visto não ser muito crível que cada leitor se tenha dado ao trabalho de ir lá clicar nas estrelinhas depois de ler?! E eu ainda com exemplares encalhados em casa?!

Isto foi ontem, mas ainda não me refiz desta. E suspeito que vou levar alguns dias a tentar perceber o que se passa aqui.

Chico-espertismo com ebooks

Há alguns anos, ganhei o hábito de googlar o meu nome uma ou duas vezes por ano. Os resultados trazem-me sempre à memória coisas de cuja existência já não me lembrava e, o que é mais interessante para mim, coisas cuja existência desconhecia por completo. Entre estas, há um subgrupo particular de coisas francamente bizarras.

Hoje, aproveitando uns minutos de sossego, fiz uma dessas pesquisas. E descobri um chico-esperto.

É um chico-esperto brasileiro, chamado Décio Novaes e com base na cidade de Palmas, estado de Tocantins. Isto, claro, partindo do princípio de que nenhuma desta informação é falsa, o que é algo arriscado.


Pois o amiguinho Décio achou boa ideia tentar lucrar fraudulentamente com obra alheia. Como? Pondo à venda (este link tenderá a desaparecer... mas aqui fica a prova em print screen) por 9 reais (pouco mais de 2€) um ebook do meu conto de ficção científica/horror O Telepata Experiente no Reino do Impensável, publicado no e-nigma há mais de dez anos. Sem autorização nenhuma, obviamente. Mas a questão nem é essa: a venda de artigos em segunda mão segue regras muito próprias e, embora seja muito duvidoso que um ebook se possa enquadrar aí, a questão é suficientemente nebulosa para dar a este tipo de vigaristas alguma margem de manobra.

A questão é que este indivíduo está a tentar defraudar os seus putativos clientes porque o conto está disponível, gratuitamente, como sempre, no site onde foi publicado, tanto em HTML como em PDF. É só irem lá e lerem ou fazerem download. Livremente. Poupam dinheiro e, ao contrário do que é hábito, é o acesso gratuito que é legal.

Quanto ao site onde isto está a decorrer, o Mercado Livre, dificulta de tal forma a denúncia de situações destas (eu inscrevo-me no programa de proteção à propriedade intelectual é o caraças... era o que faltava ter de me associar ao site antes de poder denunciar um negócio fraudulento) que só pode ter o nome de cúmplice. Afinal, ganha dinheiro com cada transação, seja ela legal ou fraudulenta, portanto quanto mais porcarias destas houver, melhor. Não é, amiguinhos?

Sic transit gloria interneti.

segunda-feira, 12 de março de 2018

Nanocuentos del planeta tierra - quem é esta gente? (3)

Mais um grupinho de autores aceites para o livro Nanocuentos del Planeta Tierra, depois de já ter falado brevemente sobre 20, no primeiro post (onde também há uma descrição mais detalhada do que isto é, para quem precisa) e no segundo. Os autores de hoje são:

James Dorr é um escritor provavelmente americano (vive nos EUA, pelo menos), com uma carreira que já vem dos anos 80 e é composta principalmente por uma longa lista de ficção curta e poesia, embora tenha publicado o primeiro romance no ano passado. É autor fundamentalmente de horror e fantasia, ainda que também molhe o bico na ficção científica.

Jay Caselberg é outro dos nomes que eu já conhecia. Australiano nascido em 1958, vem publicando desde 1996, fundamentalmente ficção científica, mas também horror, fantasia e por aí fora. Tem vários romances publicados e alguns dos contos estão reunidos em duas coletâneas.

Alejandro Marcelo Guarino é mais um argentino, aparentemente de Rosario, sem livros publicados em nome próprio mas com textos (microficções, principalmente, mas também ficções mais extensas e poesia) dispersos por várias publicações online e em papel.

Sergio Gaut vel Hartman é o antologista. Também argentino, nascido em Buenos Aires em 1947, tem uma vasta obra que vem sendo publicada desde meados dos anos 80, constituída essencial mas não exclusivamente por contos. Mas é talvez mais conhecido como editor, visto ter estado durante vários anos à frente da revista de ficção científica e fantástico Axxón e ter vindo a promover desde então intensa atividade ligada à ficção ultracurta, entre projetos online e antologias.

Pedro José García Gambín é espanhol, nascido em Murcia em 1975, e só encontrei informações sobre ele enquanto poeta. E mesmo essas, escassas. Não parece ter escrito ficção até agora, ou pelo menos eu não encontrei nada sobre ela.

Julia Martín é um nome demasiado comum para ter certezas, mas suspeito que se trata de uma autora argentina que publicou pelo menos um conto num dos números da revista Axxón, em 2013. Talvez não seja, mas faz sentido que seja.

Bruce Memblatt é um nova-iorquino que se tem vindo a dedicar sobretudo ao horror e tem sido bastante produtivo nos últimos anos, com produção dispersa por várias antologias e publicações online e publicada em nome próprio, geralmente (ou sempre?) em autoedição.

J.S. Meresmaa é mais uma finlandesa, nascida em 1983 e com base em Tampere, escritora profissional dedicada à ficção científica, fantasia (sobretudo) e weird fiction, não só em finlandês mas também em tradução para inglês.

Hector Ranea é mais um argentino, nascido em Salta em 1950. Físico, publicou literatura em nome próprio pela primeira vez em 1990, uma compilação de poemas. É presença habitual nas iniciativas do Sergio Gaut vel Hartman, tanto online como em papel.

John Paul Allen é um americano do Michigan que se tem dedicado sobretudo ao horror. Publica desde 2002, ano em que saiu o seu único romance, mas desde então a sua produção tem sido algo esporádica e restrita a ficção curta, e a sua lista de obras não é muito extensa.

E vão trinta. Até daqui a uns dias.

domingo, 11 de março de 2018

Lido: A Enjeitada

Se o mundo da literatura em geral está (ao contrário do que por vezes se pensa) longe de estar vazio de histórias aparentadas com outras histórias, seja por derivação, seja por reutilização das mesmas ideias, seja por abordagens independentes mas comuns ao tema x ou y, isso é significativamente mais habitual no mundo da literatura tradicional que, pela sua própria natureza, a de literatura de transmissão oral que depende mais da memória do que da criatividade dos contadores de histórias para sobreviver, se presta ao surgimento de múltiplas variações, ramificações, amputações, ampliações ou fusões de histórias, o que, se alguém algum dia conseguir mapear todas as ligações e influências existentes entre os contos que se contavam entre os vários povos, redundaria numa rede de interligações quase tão complexa como aquela que nos junta a todos.

Vem isto a propósito das óbvias semelhanças entre este conto recolhido por Adolfo Coelho, A Enjeitada, e a célebre história da Cinderela. Especialmente no início. Como a Cinderela, a Enjeitada está em casa alheia e é vítima dos desmandos e crueldades de uma mãe e uma filha, que a maltratam. Como a Cinderela, também a Enjeitada acaba noiva, embora não de um príncipe, e tal como à Cinderela também à Enjeitada as mulheres más que com ela vivem tentam roubar o noivo. E claro que não conseguem, embora não pela intervenção mágica do sapatinho de cristal, que aqui não existe. Mas há magia envolvida, naturalmente.

Este é outro dos tais contos que parecem estar a pedir que alguém neles pegue e os desenvolva, mesmo apesar das parecenças com uma história célebre.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 10 de março de 2018

Lido: Antologia Fénix I

No rarefeito mundo da ficção especulativa portuguesa volta e meia surgem antologias temáticas em que aos autores é proposto que desenvolvam à sua maneira o tema x ou y. Há quem lhes torça um pouco o nariz, preferindo que aos autores seja dada a liberdade de proporem para publicação a melhor história que conseguirem escrever, independentemente do tema, mas creio que são mais os que as preferem, com base na ideia de que um livro (físico ou eletrónico, pouco importa) multiautoral que disponha de alguma unidade temática tem condições para ser mais interessante do que um que não a tenha. Eu não concordo nem com uns nem com os outros: acho que, salvo casos particulares em que o projeto é tão específico que fica indiscutivelmente maior do que a soma das partes (caso da antologia sobre a pulp fiction portuguesa, ou do universo partilhado construído em volta das histórias do João Barreiros inspiradas por Lisboa no Ano 2000 de Melo de Matos) tudo depende dos contos em si: se estes são bons, o resultado é bom; se não são...

Este primeiro volume da Antologia Fénix, organizado por Marcelina Gama Leandro e Álvaro de Sousa Holstein, teve dois pontos explícitos de limitação: as histórias tinham de ser elaboradas em volta dos livros e não podiam ultrapassar o tamanho de vinheta, embora houvesse uma certa flexibilidade (João Ventura, por exemplo, apresentou um conjunto de três minicontos). O género era livre, dentro dos parâmetros da ficção especulativa, e há contos de fantasia, ficção científica, terror (ou algo de semelhante) e fantástico mais todoroviano.

Como sempre acontece em compilações multiautorais de histórias (e até nas de um só autor), a qualidade destas é variável, mas pode-se dizer em seu favor que não há nenhuma que seja decididamente má, o que é mais do que algumas antologias publicadas em papel por editoras profissionais se podem gabar. Há algumas histórias fracas, ou bastante fracas (em especial a de Manuel Mendonça), mas situam-se mais no campo do medíocre do que no do mau. Por outro lado, também não há obras-primas e as histórias realmente boas são escassas. Mas existem, e entre elas destacaria as de Raquel da Cal, de Inês Montenegro, de Diana Sousa e, talvez, de Ana C. Nunes, embora a maior parte destas quatro histórias pouco acima esteja de um conjunto de outras seis ou sete no que toca à qualidade. Curiosamente, as autoras são todas mulheres. É absoluta coincidência esta opinião (muito atrasada) sair logo depois do 8 de Março, mas calhou bem.

No que toca aos passos em falso, há várias histórias que falham por a ambição da ideia se adequar mal à dimensão exigida para os contos. Não foram nem duas nem três as que exigiriam uma extensão maior (e por vezes muito maior) para os autores poderem realmente explorar as ideias a contento. Sintoma de falta de hábito e inexperiência na escrita de ficção ultracurta, parece-me, ou talvez, em certos casos, de falta de tempo para arranjarem ideias mais apropriadas; afinal, os próprios organizadores admitem na introdução que o prazo concedido foi curto. Essa inexperiência resolver-se-ia com o tempo, caso houvesse lugares para publicação regular deste tipo de ficções (e de outras mais extensas) e algo muitíssimo importante: mais leitores dispostos a fazer leituras críticas e com capacidade para as fazer. Mas aparentemente não temos nada disso, portanto a inexperiência só poderá agravar-se. É pena. Há aqui autores com potencial que assim, muito provavelmente, nunca conseguirão desenvolvê-lo.

E quanto a apreciação geral é tudo o que tenho a dizer. Eis agora o que achei das histórias individualmente consideradas, exceto uma, sobre a qual não opinei:
Esta antologia pode ser obtida gratuitamente em versões digitais, aqui.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Lido: Sozinho no Deserto Extremo

Mais uma vinheta com sabor a poema de Luiz Bras, este Sozinho no Deserto Extremo é um texto que faz referência direta à biblioteca infinita de Borges, descrevendo as crises existenciais de um dos habitantes da biblioteca que de repente se vê sozinho na interminável vastidão hexagonal da criação borgesiana. Este texto tem alguns pozinhos de ficção científica — os bibliotecários são descritos como um exército de clones — mas é fundamentalmente um texto fantástico que exige a leitura prévia do conto de Borges em que se inspira para um desfrute pleno. Mas não se pense que Bras respeita por inteiro o imaginário de Borges; na verdade subverte-o ironicamente, transformando a biblioteca, casa de todos os livros possíveis e portanto de todo o conhecimento imaginável (e de muito disparate, também), num igualmente gigantesco centro comercial.

Não sendo dos contos que mais me agradaram, é mesmo assim bastante bom.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 8 de março de 2018

Lido: Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa

Na minha constante busca por literatura que possa ser enquadrada nalguma das vertentes do fantástico, em que mergulhei desde que me meti a fazer o Bibliowiki, por vezes pego em livros e textos em que antes disso nunca pegaria. Exemplo disso é esta obra de Manuel Ferreira, um ensaio sobre as Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa publicado logo a seguir às independências dos PALOP, em 1977.

Li estes dois livros com o fito quase exclusivo de descobrir o que haveria de fantástico nessas literaturas, sabendo de antemão que não encontraria neles nem Agualusa nem Mia Couto nem nenhum dos outros autores africanos mais ou menos modernos que têm vindo a lidar com o fantástico, de uma forma ou de outra, nas décadas mais recentes. Falta-me a competência para analisar esta obra segundo o contexto em que foi produzida, o do ensaio académico, e portanto nem começarei a tentar fazê-lo. O que aqui irão encontrar é apenas a impressão com que fiquei no contexto do objetivo que me levou à leitura e nada mais do que isso.

E essa impressão não foi boa; terminei a leitura muito desapontado.

É que de fantástico quase não se encontra aqui nem sinal. A exceção é um par de autores de Cabo Verde, que parece terem tido alguma atividade dentro do género e por isso foram os únicos a fazer com que esta leitura tenha valido a pena. Porque, de resto, o deserto é total.

E não sei porquê. Não sei eles foram de facto os únicos a cultivar essa abordagem à literatura, se existiram outros mas a obra os esquece. É que Manuel Ferreira quase poderia ter intitulado esta sua obra "Poesias Africanas de Expressão Portuguesa", de tal forma se concentra na poesia em detrimento da prosa. Pode ser que fosse a poesia a forma literária predominante naqueles territórios e por isso se justifique essa abordagem, mas a verdade é que enquanto os poetas se veem extensamente analisados, incluindo até republicação de poemas, inteiros ou em excerto, quando chega a hora de falar da prosa, esta é despachada em dois tempos, quase sem citações ou exemplos.

E existe também uma outra questão que me faz ter saído desta leitura sem certezas quanto à existência ou inexistência de fantástico literário nos países africanos de expressão portuguesa. É que este livro tem uma abordagem marcadamente ideológica à questão sobre o que é, ao certo, "literatura africana". Manuel Ferreira parte do princípio, inteiramente compreensível, de resto, de que só é realmente africana a literatura que protesta contra o colonialismo ou a dominação do europeu, pondo portanto de parte toda a literatura (ou quase) que possa ter sido produzida em África antes das independências mas não se enraíze nessa luta pela autodeterminação e/ou dignidade dos povos africanos. Esta não seria literatura africana mas sim literatura colonial, animal de outra espécie.

É uma abordagem que tem a sua razão de ser, mas também tem um problema: pode levar a ignorar obras que não são explícitas nessas ideias mas onde elas existem de uma forma implícita ou discreta. E, sem saber se assim é ou não, parece-me plausível que algumas dessas obras possam ser fantásticas. Porquê? Porque tanto na Europa como nas Américas existiu e continua a existir uma corrente nos nacionalismos literários que leva os autores em busca de tradições e lendas dos respetivos povos para as elevar a literatura e contribuir assim para a dignificação das suas culturas ancestrais. Não será uma forma explícita de combater opressões estrangeiras, não será literatura de intervenção, mas é uma forma de dizer "nós estamos aqui, já cá estávamos antes, criámos estas histórias e temos orgulho delas". Ora, sendo as lendas e as tradições o que são, fácil se torna perceber por que motivo muita da literatura que daí resulta é fantástica (em sentido lato, não todoroviano).

É possível que em África não se tenha dado o mesmo fenómeno? É. África tem, mais agudamente do que outros territórios colonizados, o problema de ter fronteiras traçadas pelas potências coloniais em completo desrespeito pelos povos autóctones, o que resulta num conflito latente entre as nações modernas, pós-coloniais e culturalmente mestiças, e os povos originais. É possível que a recuperação das tradições antigas seja vista como problemática por poder despertar velhos fantasmas em nações multiétnicas e por isso mesmo frágeis, o que já se deveria fazer sentir na época colonial entre as elites capazes de produzir literatura em português. Portanto sim, é possível que isto tenha levado os autores a ignorar as lendas que se contavam em volta das fogueiras.

Mas, francamente, não me parece provável. O encanto dessas histórias parece-me demasiado forte para poderem ser ignoradas. A verdade completa, porém, é que não sei se assim é ou não. Fica a desconfiança, mas esta é apenas um achismo. O que é certo é que neste livro Manuel Ferreira não faz qualquer referência a isso, e para já tenho de me contentar com esse facto.

O que achei do livro? Bem, acho-o muito interessante para quem estiver interessado nas poesias africanas até às independências, significativamente menos para quem tiver interesse pelas respetivas prosas e quase nada para os que se interessam por literatura fantástica. Eu aprendi algumas coisas mas muito menos do que gostaria de ter aprendido. E saí da leitura cheio de dúvidas.

Este livro foi disponibilizado gratuitamente pelo Instituto Camões e pode ser descarregado, em PDF, aqui.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Lido: A Dança das Letras

E para terminar o livro, Ana C. Nunes apresenta A Dança das Letras, um continho não tão curto como a generalidade dos outros (mas muito curto na mesma) em que nos diz que qualquer livro pode encontrar o leitor certo (e vice-versa, qualquer pessoa terá algures um livro certo para si) por intermédio de uma mulher que se vê como que invadida pela apresentação de um livro, enquanto se refugia da chuva num café. Sim, que a abordagem é bastante magico-realista e algo que se assemelha a magia — a magia dos livros, lá está — invade a banalidade do quotidiano, a banalidade da própria protagonista, acabando por ter sobre esta um efeito profundo.

É uma história bonita, bem concebida e bem escrita que, não sendo perfeita, acaba por constituir um dos pontos altos da antologia em que se insere.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Meu Nome é Lobo

De regresso aos pequenos contos e outros textos mais difíceis de classificar de Luiz Bras, deparo com Meu Nome é Lobo, uma vinheta de uma ficção científica muito poética, contada na primeira pessoa por uma criatura que aparenta ser uma espécie de lobisomem cibernético, vítima de uma insaciável sede de violência como qualquer outro lobisomem. Mas atenção: neste caso a violência não é indiscriminada. Pelo contrário, tem um alvo preciso, o que no fundo sugere que a criatura terá sido concebida como arma. O alvo é Brasília, e mais concretamente a sua classe política, os deputados e senadores que, pelo menos para aquele cujo nome é Lobo, são invariavelmente corruptos e merecedores de estraçalhamento.

É um conto de raiva, este. Uma daquelas histórias geradas pela fúria impotente contra os desmandos dos que têm muito mais poder do que deviam ter. Conheço-as bem: também escrevi algumas. Por isso sei que servem de catarse para o escritor, e provavelmente também para parte dos leitores. E é essa a sua principal qualidade. Quando têm outras, como neste caso (o conto está bem escrito e estrutrado), é só lucro.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 6 de março de 2018

Lido: Lisboa no Ano 2000

Justamente considerada uma das primeiras obras de ficção científica propriamente dita escrita em Portugal, Lisboa no Ano 2000 (bibliografia - a precisar urgentemente de atualização) é um texto curioso por vários motivos. Em termos de extensão, trata-se de uma noveleta, mas quando a lemos deparamos com um texto híbrido, entre o documental e o ficcional. Melo de Matos, o autor, parece hesitar entre apresentar-se como engenheiro, futurista, inventor, cheio de projetos mais ou menos mirabolantes para uma Lisboa quase 100 anos no futuro (o texto data de 1906), e escritor, alguém que cria uma obra ficcional, com enredo e personagens e não apenas cenário.

E ao chegarmos ao fim, feitas as contas, ganha o engenheiro.

O cenário é inegavelmente fascinante. A Lisboa do ano 2000 que nos é apresentada é uma megalópole cosmopolita, economicamente próspera e politicamente influente à escala global, intensamente influenciada pelo progresso fabril que era a ideia de progresso em absoluto predominante na viragem do século XIX para o XX, antes de deixar de ser possível ignorar os problemas, ambientais mas não só, causados pelos desenvolvimentos da Revolução Industrial. Existe uma ingenuidade cativante nesse cenário utópico, pelo menos até ao momento em que se começam a entrever as condições sociais que se escondem por detrás dele.

Melo de Matos não fornece muitas pistas quanto a essas condições. A leitura deixa claro que isso não o preocupava minimamente, ou pelo menos que o mesmo tipo de ingenuidade que o leva a extrapolar a Fábrica e o capitalismo selvagem de 1900 para cem anos mais tarde o leva também a postular que os fundamentos da sociedade não iriam sofrer quaisquer alterações ao longo desse século. E é aqui que quem conhecer alguma coisa sobre as condições em que viviam as várias classes sociais no apogeu da sociedade fabril clássica se arrepia um bocadinho (ou um bocadão) com a ideia de cem anos de mais do mesmo, só que mais intenso. Já para não falar de algo que está implícito: o domínio europeu, e por conseguinte português, sobre vastas extensões do globo não sofre quaisquer alterações. É bem sabido que os progressistas europeus da época eram quase sempre profundamente colonialistas e estavam convictos de que a superioridade tecnológica europeia gerada pelos séculos de inovações que acabaram por desembocar na Revolução Industrial e na reorganização fabril da sociedade lhes conferia uma espécie de "missão civilizadora" cujo objetivo era arrancar à "selvajaria" os povos colonizados. Na ficção científica, encontramos essas ideias em Júlio Verne, por exemplo. E só muito raramente elas vinham acompanhadas pela consciência de que essa "missão" chegava sempre de braço dado com grandes doses de opressão e violência.

Tudo isto, no entanto, é fruta da época. O pensamento europeu era quase sempre assim, e Melo de Matos não constitui nenhuma exceção. Adiante; falemos de literatura propriamente dita.

Literariamente, a obra é fraca. Como o objetivo principal era apresentar grandes ideias para grandes projetos de engenharia, personagens, enredo, diálogos e tudo o mais que constitui a literatura, embora existam, são secundarizados e pouco importantes. Não é nada que desconheçamos na ficção científica, mas Matos exagera porque não se limita a sacrificar as personagens à Ideia, como fazem tantas obras de FC, em especial as mais antigas, sacrifica-lhe também o enredo ao ponto de o tornar inconsistente.

E além disso, parece incompleta. A publicação de Lisboa no Ano 2000 fez-se em forma de folhetim, tendo saído quatro partes na revista Ilustração Portugueza e, no fim da quarta, há fortes indicações de que o autor pretendia prolongá-la, descrevendo mais das maravilhas tecnológicas com que sonhava, pelo menos os estaleiros do Seixal. No entanto, por motivos desconhecidos, esta continuação nunca chegou a ver a luz do dia, chegando-nos uma obra que parece amputada de um final propriamente dito.

E apesar de todas estas falhas, o que nos chegou é realmente interessante, podendo ser mesmo inspirador. E para o provar nem teria sido preciso que João Barreiros tivesse tido a ideia de pegar nas ideias de Melo de Matos e desenvolvê-las à sua maneira, agregando outros autores para compor a antologia homónima. Existe neste tecnoutopismo de Matos qualquer coisa que enche o cérebro criativo de vontade de o explorar, nem que seja para expor os pés de barro em que assenta. E isso é uma inegável qualidade.

Mas esta não é uma obra de qualidade; limita-se a ser uma obra com qualidades, algumas. E é também uma obra fundamental para qualquer pessoa que tenha algum interesse pela ficção científica portuguesa.

E além disso, pode ser obtida gratuitamente, em ebook, através do Projeto Adamastor.

domingo, 4 de março de 2018

Lido: Procura-se Homem para Satisfazer Dona de Casa

O longo título de Procura-se Homem para Satisfazer Dona de Casa deixa de imediato claro que o que Ana Ferreira pretende com este conto é sobretudo fazer sorrir. E ao ler-se o conto, essa ideia vê-se justificada, pois o que a autora faz é pegar no 50 Shades of Grey e numa das donas de casa que são o público de eleição dessa opus (ha!) e satisfazer a fantasia de leitora sexualmente carente, cuja maior ambição seria, aparentemente, que a história se tornasse real consigo como protagonista. Pelo menos até certo ponto.

E é o que acontece, numa série de metamorfoses que primeiro a espantam e logo a levam ao êxtase.

A historinha, não sendo particularmente original, é razoavelmente divertida, sim. E até está razoavelmente bem estruturada. O problema está no português, demasiado fraco mesmo para uma publicação amadora. Frases como "Olha lá mete os óculos, o que vez aqui?", com falhas de pontuação e a troca de "vês" por "vez" (e não falo da estranheza do "meter", porque isto é uma fala e em discurso direto aceitam-se todas as incorreções lexicais), não são admissíveis, pura e simplesmente. É certo que parte da responsabilidade cabe à inexistência de uma revisão eficaz, mas a responsabilidade maior por coisas destas é sempre do autor porque o erro inicial é seu.

Ou seja, este é mais um continho medíocre, que podia ser bastante melhor se tivesse havido mais competência no manejo da língua.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 3 de março de 2018

Lido: O Regresso

Julgo que nunca tinha lido nada de Andrei Platónov, autor russo falecido em 1951, mas este O Regresso, publicado poucos anos antes da morte do autor, logo a seguir ao fim da Segunda Guerra Mundial, deixou-me muito bem impressionado. Trata-se de uma história de guerra, naturalmente, mas não no sentido mais próprio da expressão. É, antes, uma noveleta que trata das consequências da guerra na mais profunda intimidade dos que por ela passam. O protagonista é um soldado do Exército Vermelho que, finda a guerra, se vê desmobilizado e regressa a casa anos depois de ter partido para a frente. Vai encontrar uma família que quase não reconhece e que por sua vez quase não o reconhece a ele, uma família que, durante esses anos e devido às dificuldades inerentes ao estado de guerra, mudou profundamente, quase tanto como ele, e encontrou novas relações e papéis sociais. Platónov mostra tudo isto com enorme sensibilidade, numa prosa enxuta e muito eficaz, com personagens tridimensionais, contraditórias, absolutamente credíveis, e através dessa família mostra ao leitor toda a desagregação social que uma guerra total como aquela que a União Soviética travou contra a Alemanha vai provocar. Há muito de sombrio nesta história, e tem mesmo de haver numa história como esta. Mas nem tudo o é: o final é um raio de esperança, para o qual os dois filhos do protagonista são absolutamente fundamentais. Platónov como que nos diz que sim, foi duro, sim, foi terrível, sim, tudo ficou de pantanas, mas ainda há crianças, por mais traumatizadas que elas estejam, logo ainda há futuro.

Percebe-se que gostei mesmo muito desta noveleta? Ainda bem. Porque gostei mesmo. Muito.

Contos anteriores desta publicação:

Nanocuentos del planeta tierra - quem é esta gente? (2)

Continuando a divulgar o que fui descobrindo sobre os autores aceites para publicação na antologia Nanocuentos del Planeta Tierra, trago-vos hoje os dez seguintes. Para verem a primeira parte e lerem uma explicação ligeiramente mais detalhada do que é isto podem dar um saltinho aqui. Se não for preciso, siga para...

Jorge Ariel Madrazzo foi outro argentino de Buenos Aires, nascido em 1931 e morto em 2016. Embora tenha tido alguma atividade no campo das microficções mais ou menos próximas da fantasia, era conhecido sobretudo como poeta e teve uma longa carreira, pois há trabalhos seus publicados desde 1966.

Samuli Antila é mais um autor finlandês, nascido em 1976, sobre o qual, mais uma vez, só encontrei informação em finlandês. E lá veio o tradutor do Google em socorro, mas os resultados não foram minimamente satisfatórios. Parece ser autor de ficção científica. Parece.

Kostas Paradias tem um nome muito grego e é isso mesmo que ele é. Ateniense, mais propriamente. Pela informação disponível em inglês, parece ser um autor virado para a fantasia, o horror e o weird ficion, e tem já uma lista bastante extensa de publicações em inglês, que vem acumulando desde 2013.

Luisa Axpe é mais uma argentina de Buenos Aires, nascida em 1945, e vem publicando ficção científica desde a década de 1980, embora só tenha um livro publicado em nome próprio, sendo o resto da sua produção constituída por contos.

Armando Azeglio é mais um argentino mas, para variar, não é de Buenos Aires e sim de San Juan. Académico ligado ao turismo, nascido em 1964, parece ter uma atividade literária relativamente diminuta e restrita à publicação de microficções em alguns blogues.

Eduardo Cerdán é outro mexicano, este muito jovem; parece ter nascido em 1995. Naturalmente, também a sua atividade literária é recente, tendo eu encontrado rastos dela desde 2015, o que não o impede de já ter publicado bastantes obras, quase todas no campo das microficções, e de ter recebido alguns prémios.

Fabio Calabrese é italiano, nascido em Trieste em 1952, e com extensa atividade na ficção científica e no fantástico italianos: tem pelo menos três livros publicados em nome próprio e vários contos dispersos por outras publicações.

Martijn Adelmund é holandês, nascido em 1977 em Bennekom, uma vilória do leste dos Países Baixos. Dedicou-se entre 2006 e 2008 a uma série de livros sobre mistérios, lendas urbanas e folclore das várias regiões da Holanda e desde 2010 vem publicando romances de fantasia juvenil, até agora quatro.

Giovanni Agnoloni é outro italiano, nascido em Florença em 1976, e é colega meu, pois dedica-se à tradução. Ao contrário de mim, no entanto, já tem vários livros publicados, num estilo que parece estar entre a ficção científica, o fantástico e o mainstream. Isto quanto à ficção, pois também tem não-ficção publicada, quase toda baseada nas obras de Tolkien.

Carlos Almira Picazo é espanhol, nascido em Castellón, Comunidade Valenciana, em 1965. Historiador e professor do ensino secundário, tem uma extensa e diversificada atividade literária (mesmo só tendo começado a publicar em 2005) que vai da literatura histórica à ficção científica e do romance às microficções, sem esquecer a poesia.

Vinte já estão. Um dia destes virão mais alguns.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Lido: Continhos de Alfarrobeira

"Continhos" é a palavra certa para intitular este Continhos de Alfarrobeira, porque, apesar de nem todos os textos contidos no livro se poderem designar com propriedade como "continhos", a grande maioria pode. São vinte e quatro textos, entre os quais se contam dois artigos ou crónicas, quase todos com uma dimensão que os situa entre a vinheta e o conto curto, só ocasionalmente se estendendo mais do que isso. Tematicamente são diversos, como é natural em qualquer coletânea de contos, mas existe uma clara preponderância do registo irónico e de uma abordagem entre o realista e o fantástico-realista, ainda que por vezes se encontrem também elementos de outros géneros. Pode mesmo dizer-se que este livro de Alexandra Pereira é sobretudo um livro de literatura fantástica, pois a abordagem fantástica marca presença em mais de metade destas histórias.

Os contos estão em geral bem escritos, ainda que a autora tenha um problema demasiado comum nos escritores portugueses quando chega a hora de escrever diálogos: só muito raramente estes conseguem transmitir a voz própria das personagens, ficando-se quase sempre por trechos rebuscados que em nada se distinguem da parte descritiva das histórias. Por vezes, isto é tão intenso que consegue estragar os contos respetivos, mas quando Alexandra Pereira consegue evitar cair nessa armadilha é capaz de escrever textos de leitura bastante agradável. Ela não tem uma prosa perfeita, há algumas falhas aqui e ali, mas escreve bem. E feitas as contas são mais os bons contos que aqui apresenta do que os maus, mesmo que alguns dos primeiros não correspondam propriamente às minhas preferências literárias e outros me pareçam um bom bocado inconsequentes. Ora, como eu repito com frequência, basta uma compilação de histórias conter várias boas ou nem que seja uma muito boa para valer a pena a publicação e a leitura, e é claramente o caso desta.

Em suma: não se tratando de nenhuma obra-prima, este é um livro que quem gosta de contos deverá achar interessante, e quem gosta de conhecer a literatura fantástica portuguesa, especialmente aquela que se situa na vertente mais mainstream do espectro, tem aqui algumas obras que merecem claramente leitura.

Eis o que achei de cada um dos contos e artigos:
Este livro foi disponibilizado gratuitamente sob a forma de ficheiro PDF pela editora, que entretanto fechou portas, mas continua disponível em vários sítios, nomeadamente no scribd.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Em fevereiro falou-se de...

Não sabem o que é isto? Então deem um salto a este post, onde a ideia está explicada com algum detalhe. Não vou repetir o que escrevo aí, digo apenas que isto é apenas a sequência, um mês mais tarde, que por causa de uma gripe o FCL está com uns dias de atraso, logo haverá coisas de fevereiro que só aparecerão nas listas de março, e que depois das listas teremos algumas notas.

E despachada esta brevíssima introdução, vamos lá às listas.

Ficção portuguesa:
  1. Sinal de Vida, de José Rodrigues dos Santos
Ficção brasileira:
  1. Delacroix Escapa das Chamas, de Edson Aran
  2. O Velho, de Clóvis Garcia (conto)
  3. O Macaco que se Fez Homem, de Monteiro Lobato
  4. Tuj, de Walter Martins (conto)
  5. Ninguém Nasce Herói, de Eric Novello
  6. A Casca da Serpente, de José J. Veiga
Ficção internacional:
  1. Os Pássaros do Fim do Mundo, de Charlie Jane Anders
  2. Originais, de Jennifer L. Armentrout
  3. Os Próprios Deuses, de Isaac Asimov
  4. A História de uma Serva, de Margaret Atwood
  5. 4 3 2 1, de Paul Auster
  6. Nova Antologia Pessoal, de Jorge Luis Borges
  7. A Máquina do Tempo, de Ray Bradbury (conto)
  8. F de Foguete, de Ray Bradbury
  9. Origem, de Dan Brown
  10. Bloodchild, de Octavia E. Butler (conto)
  11. Kindred - Laços de Sangue, de Octavia E. Butler
  12. A Coroa, de Kiera Cass
  13. Alvo em Movimento, de Cecil Castelluci e Jason Fry
  14. Mundo Perdido, de Valerie Nieman Colander
  15. A Peste Negra, de Gwyneth Cravens e John S. Marr
  16. Uma Dobra no Tempo, de Madeleine l'Engle
  17. A Cruz de Fogo, parte I, de Diana Gabaldon
  18. Submissão, de Michel Houllebecq
  19. Nunca me Deixes, de Kazuo Ishiguro
  20. A Quinta Estação, de N. K. Jemisin
  21. Illuminae, de Amie Kaufman e Jay Kristoff
  22. A Torre Negra, de Stephen King
  23. Lobos de Calla, de Stephen King
  24. Novembro de 63, de Stephen King
  25. Belas Adormecidas, de Stephen King e Owen King
  26. A Sombra de Innsmouth, de H. P. Lovecraft
  27. Tudo que Deixamos Para Trás, de Maja Lunde
  28. Ases pelo Mundo, org. George R. R. Martin
  29. As Crônicas de Marte, org. George R. R. Martin e Gardner Dozois
  30. O Silêncio das Filhas, de Jennie Melamed
  31. Levana, de Marissa Meyer
  32. Estação Perdido, de China Miéville
  33. Carbono Alterado, de Richard Morgan
  34. Deuses Renascidos, de Sylvain Neuvel
  35. A Súbita Aparição de Hope Arden, de Claire North
  36. Who Fears Death, de Nnedi Okorafor
  37. Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe
  38. Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe, de Edgar Allan Poe
  39. Medo Clássico, de Edgar Allan Poe
  40. Felicidade Para Humanos, de P. Z. Reizin
  41. The Collapsing Empire, de John Scalzi
  42. Frankenstein, de Mary Shelley
  43. A Nuvem Púrpura, de M. P. Shiel
  44. O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson
  45. Piquenique na Estrada, de Arkádi e Boris Strugátski
  46. Aniquilação, de Jeff VanderMeer
  47. Borne, de Jeff VanderMeer
  48. Cama de Gato, de Kurt Vonnegut
  49. Até o Fim do Mundo, de Tommy Wallach
  50. Ficção Curta Completa, vol. I, de H. G. Wells
  51. A Estrada Subterrânea, de Colson Whitehead
  52. O Livro do Juízo Final, de Connie Willis
  53. Robopocalipse, de Daniel H. Wilson
Não-ficção internacional:
  1. Habitable Planets for Man, de Stephen H. Dole
  2. O Mito da Singularidade, de Jean-Gabriel Ganascia
  3. Romantic Outlaws: The Extraordinary Lives of Mary Wollstonecraft and Her Daughter Mary Shelley, de Charlotte Gordon
  4. WTF?: What's the Future and Why It's Up to Us, de Tim O'Reilly
  5. Coração Assombrado, de Lisa Rogak
  6. Superman: Uma Biografia não Autorizada, de Glen Weldon
As notas finais:

Um mês pequeno e a minha gripe, que fez com que eu tivesse escrito bastante menos na Lâmpada e deixado atrasar o Ficção Científica Literária (por causa da gripe e porque depois tive de mergulhar a fundo no trabalho, para recuperar do atraso), conspiraram para a redução significativa do número de obras que receberam uma opinião no mês que passou. Os portugueses, em particular, parecem não ler, e quando leem não opinam, sobre a FC nacional, e é deprimente e, francamente, vergonhoso, que ao longo de um mês inteiro só tenha aparecido uma opinião sobre uma obra de (ou melhor: com) FC escrita por um autor português (e logo o José Rodrigues dos Santos. Malta... francamente!). Mas os brasileiros também não se ficam a rir: das seis obras que receberam opiniões, duas receberam-nas de mim e uma é tão periférica ao género que é muito provável que esteja fora dele.

A redução face ao mês de janeiro é enorme, tanto num caso como no outro, e tanto nas minhas leituras como nas leituras alheias. Portanto, a hipótese que aventei (com muitas dúvidas), de que a enorme diferença entre leituras e opiniões de material estrangeiro e lusófono se devesse a algum desvio estatístico, parece concretizar-se mas ao contrário: janeiro pode ter sido um mês particularmente fértil em leituras lusófonas, as quais normalmente são ainda mais escassas do que esse mês levava a crer.

Entendamo-nos: assim é impossível. Se ninguém lê, se ninguém comenta (ou quando comenta só o faz em circuito fechado, o que é uma tremenda parvoíce), os escritores vão perder tempo a escrever e/ou publicar para quê? Com que motivação?

Eu continuo por aqui, e para março estão previstas mais algumas opiniões a material português e (sobretudo, que as minhas leituras portuguesas têm sido nos últimos tempos dominadas por outras coisas que não a FC) brasileiro. Mas convinha haver mais gente a fazer o mesmo. Muito mais gente.