terça-feira, 26 de março de 2013

Lido: O Centauro

O Centauro, de John Updike, é um livro estranho. Podia ser um simples livro realista sobre a relação entre um pai e um filho, George e Peter Caldwell, centrado em três dias de inverno repletos de peripécias. Podia ser um retrato dessa relação e uma daquelas explorações psicológicas das duas personagens principais que tão do agrado são do mainstream literário. Podia simplesmente mostrar-nos um professor liceal carente de autoestima, preso numa atividade em que se sente desadequado mas que gosta de fazer e numa família que o exaspera mas que encara como uma forma adequada de expiar as suas falhas. E podia revelar-nos um filho adolescente dividido entre o embaraço e o orgulho que o pai lhe provoca, a vergonha e o amor que dele e por ele sente, enquanto vai tentando inserir-se na sempre intricada teia social de uma escola secundária. Podia ser tudo isto.

E de facto é.

Mas também é outra coisa. Porque em trechos de claro cariz fantástico, os Caldwells são retratados como personagens dos mitos gregos, como que reencarnadas num Olimpo microcósmico constituído pela escola que frequentam, um como professor, o outro como aluno, aí acompanhados pelos outros deuses e semideuses dos velhos mitos clássicos. George Caldwell, o pai, é Quíron, o mais sábio dos centauros, e Peter Caldwell, o filho, é o Prometeu por quem, segundo o mito, Quíron sacrificou a vida.

Ou seja: este romance é uma releitura e uma atualização do mito grego. Poderia ser uma releitura realista se não fossem os (breves) capítulos em que o Olimpo espreita, na qual a história que é contada, todas as suas peripécias e azares, estão ao serviço do retrato psicológico das personagens. Haverá, sem dúvida, quem ache enternecedora a relação de Caldwell/Quíron com o filho/Prometeu. Haverá, sem dúvida, quem a ache fascinante. Será aí, talvez, bem como no tratamento dado à língua inglesa (que não me parece que a tradução consiga transpor por inteiro para a portuguesa) que residem os principais motivos do sucesso que este romance obteve.

Pessoalmente, não achei grande interesse nessa relação e a psicologia do pai Caldwell irritou-me bastante. Vítimas que o são por vocação tendem a dar-me uma certa volta ao estômago... tanta como quem lhes responde com o abuso que elas parecem desejar. Isto, bem entendido, diz mais sobre mim do que sobre o livro, e o mesmo é verdade no que toca ao outro motivo que me levou a não retirar da leitura deste livro tudo o que poderia retirar: um grande desconhecimento das mitologias greco-latinas. Conheço algumas lendas, sei quais são os deuses, semideuses e heróis principais, mas falta-me a profundidade de conhecimento que provavelmente será necessária para desfrutar de todos os detalhes aqui contidos.

Por conseguinte, não gostei muito. Não houve nenhum tipo de identificação com as personagens — elas nem sequer me interessaram — e não consegui mergulhar no romance. Senti-me, ao lê-lo, gota de azeite flutuando em água: o texto como que me repelia, levando-me a pensar em tudo menos no que estava a ler. E isso, quando acontece, é sempre mau.

Não sei como este livro veio parar cá a casa: faz parte da biblioteca dos meus pais.

domingo, 24 de março de 2013

Lido: O Cavalo

O Cavalo é mais uma hilariante redação da Guidinha, o que equivale a dizer que é mais uma hilariante crónica de Luís de Sttau Monteiro, na qual a jovem inimiga de pontuação discorre abundantemente sobre esse nobre animal, enumerando os tipos de cavalos que conhece (sem se esquecer do "senhor Francisco que o [...] pai diz que é o maior cavalo que ele alguma vez viu"), e chegando mesmo ao pormenor de fazer referência aos "pupus" que eles fazem e que "parecem pastéis de bacalhau mas não são e por isso é preciso tomar cuidado porque se uma pessoa se engana pode ficar atrapalhada." É texto digno de valente gargalhada. Tão valente que se o leitor não toma cuidado é bem capaz de dar por si a relinchar. Muito bom.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Se Acordar Antes de Morrer

Se Acordar Antes de Morrer (bib.) é uma edição que já há muito tardava, como já há muito tardam edições equivalentes de outros autores da FC e do fantástico portugueses: uma compilação da sua ficção curta. Aqui, temos a de João Barreiros. Não toda, mas quase duas décadas dela, à parte as duas histórias ambientadas no mesmo universo ficcional que foram publicadas pela Presença em 2004. O volume é enriquecido por introduções do autor a cada conto, e mostra, mais do que em qualquer outro dos seus livros, os altos e baixos da sua produção pois, se por um lado inclui alguns dos melhores contos de toda a ficção científica (por vezes misturada com horror) produzida em língua portuguesa, como a noveleta que dá título à coletânea, a novela Por Detrás da Luz ou o conto Por Amor à Prole, por outro inclui também os piores textos de Barreiros desde o pequeno livro que editou em edição de autor, no já longínquo ano de 1977, como os muito chatos e inconsequentes Brinca Comigo! (que ainda por cima abre o volume, o que a meu ver é uma escolha mais que desastrada) e Fantascom.

Mas no fundo, é isso o que se pretende de uma compilação geral da produção de um autor. É isso que se pretende quando se reúne tudo o que o autor produziu na carreira ou num dado período: publicar tanto os acertos como os passos em falso.

E a verdade é que, apesar destes passos em falso, a qualidade geral é alta e o livro poderia ser muito bom se não tivesse sido pessimamente editado. Infelizmente, foi. Há gralhas em catadupa, há erros de palmatória que até uma revisão ensonada teria detetado e corrigido, evitando embaraços a autor e editora. Mas parece não ter existido qualquer espécie de revisão, nem ensonada nem outra qualquer, e esses embaraços surgem com demasiada frequência nestas páginas. Existe uma diferença, na língua portuguesa, entre eminência e iminência, coisa que fica aqui esquecida. Só para dar um exemplo, entre demasiados possíveis. E assim, Barreiros pode até ser uma eminência na FC portuguesa e lusófona, mas com edições destas fica na iminência de sentir as orelhas a arder, e com razão. Porque, no fim de contas, e por mais incompetente que a editora se mostre, a responsabilidade última pelos seus textos é a ele que pertence.

A consequência é que o livro não é muito bom. Nenhum livro pode ser muito bom quando dá de vez em quando a quem o lê vontade de o atirar à parede. Mas consegue mesmo assim ser bom. João Barreiros não tem livros maus.

O que penso de cada conto? Basta seguir os links:
Este livro foi comprado.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Mememos, leitores!

Vi isto na Viagem a Andrómeda e achei engraçado: um meme/post em cadeia sobre leituras fantásticas, com uma série de perguntas sobre as leituras de cada um nos três ramos tradicionais do fantástico. Cá vão as minhas respostas:

Ficção Científica
  • O último livro de ficção científica que li foi: Se Acordar Antes de Morrer, de João Barreiros
  • O livro de ficção científica que estou atualmente a ler é: Accelerando, de Charles Stross. E estou a ler mais dois livros que não serão de ficção científica mas que são com FC. Duas antologias: Nebula Awards Showcase 2009 e Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa
  • O próximo livro de ficção científica que irei ler será: Em princípio, A Boneca do Destino, do Clifford D. Simak
  • O último livro de ficção científica cuja leitura não concluí foi: Que me lembre, nenhum.
  • E porquê?: Nunca deixo os livros a meio.
  • O último livro de ficção científica que recomendei a um amigo foi: Não me lembro, até porque não costumo fazer recomendações de livros; digo às pessoas se gostei ou não — e as opiniões que aqui deixo no blogue são muito isso — e deixo que sejam elas a decidir se confiam o suficiente no meu gosto para encarar aquilo de que gosto como uma recomendação.
  • O último livro de ficção científica que me recomendaram foi: Não me lembro bem, mas acho que foi uma coisa do Peter Watts (Gostaste? Não sei; ainda não o li)
  • O meu livro de ficção científica preferido é: Ih, pá, há tantos! Mas se calhar é Os Despojados, da Ursula K. Le Guin
  • Um(a) autor(a) de ficção científica subvalorizado(a): John Brunner.
  • Subgénero preferido da ficção científica: A boa? Não pode ser? Então não sei.
Fantasia
  • O último livro de fantasia que li foi: Pequenos Mistérios, do Bruce Holland Rogers.
  • O livro de fantasia que estou atualmente a ler é: Nenhum. Mas as duas antologias que mencionei na FC também têm fantasia.
  • O próximo livro de fantasia que irei ler será: A minha próxima tradução, provavelmente. Até porque não tenho muita fantasia na lista de próximas leituras.
  • O último livro de fantasia cuja leitura não concluí foi: Ver acima.
  • E porquê?: Ver acima.
  • O último livro de fantasia que recomendei a um amigo foi: Ver acima.
  • O último livro de fantasia que me recomendaram foi: Não me lembro da última vez que alguém me recomendou fantasia. Provavelmente foi Martin. Sim, há esses anos todos. (Gostaste? Do Martin? Oh, sim.)
  • O meu livro de fantasia preferido é: A Storm of Swords, do Martin. Muito em especial a segunda parte, aquela que em Portugal recebeu o título de A Glória dos Traidores.
  • Um(a) autor(a) de fantasia subvalorizado(a): Todos aqueles autores que escrevem fantasia e passam debaixo do radar do pessoal ligado ao género porque a fantasia que escrevem é mais influenciada pelo realismo mágico e outras tendências próximas ao mainstream literário do que à Alta Fantasia que se costuma identificar erroneamente com o género.
  • Subgénero preferido da fantasia: Ver acima.
Horror (pouco ligo a horror, mas...)
  • O último livro de horror que li foi: Julieta, do Pinheiro Chagas.
  • O livro de horror que estou atualmente a ler é: Contos Assombrosos, de Steven Bauer (ugh!)
  • O próximo livro de horror que irei ler será: Histórias Fantasmagóricas do Hugo Rocha. Em princípio.
  • O último livro de horror cuja leitura não concluí foi: Ver acima.
  • E porquê?: Ver acima.
  • O último livro de horror que recomendei a um amigo foi: Ver acima.
  • O último livro de horror que me recomendaram foi: Acho que foi alguma coisa do Lovecraft. (Gostaste? Não. Detesto Lovecraft.)
  • O meu livro de horror preferido é: A Canção de Kali, de Dan Simmons.
  • Um(a) autor(a) de horror subvalorizado(a): Não me parece que esteja suficientemente por dentro do que se faz em horror para responder a esta.
  • Subgénero preferido da horror: Ver acima.
E pronto, é isto. Não querem responder também vocês?

sexta-feira, 15 de março de 2013

Lido: A Cabeleira do Inferno

A Cabeleira do Inferno (bib.), mais um conto de Steven Bauer a adaptar histórias alheias, desta feita de Gail e Kevin Parent, é uma história de... bem... se calhar é de humor, não sei bem se voluntário se involuntário, sobre uma peruca assassina.

Sim, leram bem: uma peruca assassina.

A coisa é uma parvoíce pegada, do princípio ao fim. O protagonista é um advogado de defesa que, de uma forma que viola todas as regras da verosimilhança, acredita, à primeira, na patética história que lhe é contada por um seu cliente, preso e acusado de homicídio: a de que ele, coitadinho, está inocente, e não se lembra de ter cometido os crimes de que é acusado, o que, claro, só pode dever-se a ter comprado por essa altura uma peruca. E segue por aí fora, de tropeção na suspensão da descrença em tropeção na suspensão da descrença, enquanto o advogado vai desvendando o mistério com a maior das facilidades... até porque a peruca, malandra que é, continua a matar.

Sim, sim, leram bem: uma peruca serial killer. E francesa.

Não percebi bem se isto pretende ser humor, se tenciona ser horror, se aspira a ser algum tipo de mistura entre as duas coisas. Mas sei que não consegue. Seja o que for que tenta ser, não consegue. É um conto ridículo, mal concebido, mal escrito e mal traduzido. Faz o pleno. Mais bien sûr: uma grande porcaria!

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 14 de março de 2013

Ficção Científica Literária, quais são os critérios de inclusão?

Há já algum tempo que sinto vontade de explicar quais os critérios que uso para decidir o que é divulgado através do Ficção Científica Literária e o que fica de fora. Até a mim próprio, em boa verdade; é que têm-me surgido com alguma frequência situações em que não sei bem se inclua ou não um determinado post ou notícia, e nesses casos a decisão vai um pouco ao sabor da maré do dia. O problema está, como sempre, no traçar de fronteiras, entre o que é ficção científica e não o é, e entre o que tem a ver com literatura e já não tem.

Em geral, tenho procurado ser abrangente. Ou seja, tenho normalmente usado um critério que se pode resumir como "na dúvida, sim". Se tenho dúvidas sobre se a obra x é FC, incluo-a. Se tenho dúvidas sobre se o artigo tal tem de alguma forma a ver com literatura, incluo-o. A inclusão acontece, portanto, não só quando aquilo que me surge é declaradamente sobre ficção científica literária, mas também quando apenas roça a FC literária.

Só que às vezes fico até na dúvida sobre a dúvida, por assim dizer. Uma fantasia steampunk, por exemplo, é FC ou não é? Roça a FC ou não? OK, chamam-lhe steampunk. Mas será que o é mesmo, ou não passará de uma história vitoriana com vampiros ou magia, sem nada que se assemelhe ainda que remotamente ao retrofuturismo que está na essência do steampunk? Nem sempre é fácil sabê-lo, e eu hesito. Muitas vezes resolvo estes problemas divulgando as primeiras menções à obra e ignorando as subsequentes. Resolvo entre aspas, porque isto na verdade não resolve nada.

Até porque provavelmente não há resolução possível.

Mas enfim, façamos os possíveis: quais são os critérios para incluir material no FC Literária?
  • Estão escritos em português ou fazem referência a autores de língua portuguesa;
  • Debruçam-se sobre obras literárias ou escritores de ficção científica, e entende-se aqui FC no sentido mais lato possível, conforme explicado acima;
  • Referem-se a adaptações de obras literárias de FC para outros media;
  • Eu dou com eles. Não posso divulgar aquilo que desconheço;
  • São obras de ficção científica publicadas online
E quando é que não incluo o material que me aparece?
  • Quando não tem declaradamente nada a ver com ficção científica ou com literatura;
  • Quando não passa da repetição de uma nota de imprensa, ou de uma lista de lançamentos, já divulgadas anteriormente. Por vezes distraio-me e repito a divulgação, mas tento evitá-lo. Estar a divulgar repetidamente as mesmas coisas torna-se chato, tanto para mim como para os leitores.
  • Quando os sites não têm RSS. A sério. Ainda há por aí quem tenha sites sem RSS. Ora, como eu baseio a descoberta do material relevante nos feeds RSS, se estes não existem só darei com ele por mero acaso.
  • Quando os donos dos sites impedem a cópia de um extrato para usar no scoop.it. Ou melhor: quando julgam que impedem, porque nada há de mais fácil do que copiar todo o material que se queira de páginas em HTML. Eu é que não estou para isso. Se és suficientemente ignorante para julgar que lá por impedires a seleção e a cópia de texto na página estás a proteger de alguma forma o teu texto de quem to quiser mesmo roubar, o mais certo é que não tenhas nada de interessante para dizer. Portanto deixo de te prestar atenção.
  • Quando não há texto de onde retirar um extrato. O FC Literária é ferramenta para leitores; leitores precisam de texto.
  • Quando o fulcro do texto é a polemicazinha à fandom. Não há paciência para essas coisas. Nem utilidade.
  • Quando as coisas são extemporâneas. Se me aparece alguém a republicar apenas a sinopse comercial de algum livro lançado há mais de um ano, vou divulgar essa republicação para quê? Digam alguma coisa de vosso sobre o livro; assim valerá a pena.
E pronto, parece que é mais ou menos isto. Gosto de fazer aquilo, e acho útil. As duas coisas, aliás, estão interligadas: se não achasse útil gostaria muito menos. E visto que a coisa já vai com mais de 14 mil pageviews em alguns meses de existência, não sou só eu a achá-la útil.

Se é também o vosso caso, podem colaborar. Sugerindo conteúdo de dentro do scoop.it, por exemplo. Ou instalando um feed no vosso site se ele não o tiver (e estou a pensar em ti, ó Irmandade!). Ou informando-me de sites ou blogues que eu possa desconhecer. Ou deixando-vos de restrições inúteis à cópia de extratos.

E se fores o Google, deixando o Reader a funcionar!

Adenda: Quando escrevi isto esqueci-me de um critério bastante importante: não aparece material que seja disponibilizado em subredes fechadas. Nada de coisas escritas para fóruns, para o facebook ou para redes sociais literárias como o goodreads ou o skoob. Porque as redes fechadas estão a destruir a internet. Tão simples como isso.

Adenda à adenda: Mais um esquecimento, ainda mais tardio. Não aparece material que esteja publicado em sites com música automática. Porque pôr música automática em sites e blogues é pura vilania.

terça-feira, 12 de março de 2013

Lido: Pequenos Mistérios

Pequenos Mistérios (bib.) é uma coletânea de Bruce Holland Rogers, composta quase por completo por histórias muito curtas, entre o conto curto e a vinheta, e também quase todas enquadráveis na fantasia. Não naquilo que muitas vezes se entende como fantasia, a épica, de traços medievais, à Tolkien ou à Martin, mas numa fantasia do quotidiano, próxima do realismo mágico e por vezes com traços mais ou menos fortes de um certo horror existencial. O que confere unidade a este livro, contudo, é mais a voz do autor do que outra coisa qualquer. Uma voz muito subtil, que se socorre com alguma frequência de uma abordagem inusitada ao banal para subverter aquilo que em princípio talvez fosse demasiado familiar. Uma voz que é muito mais observadora do que interventiva. Uma voz muitas vezes bem humorada, mas cujo humor vem sempre salpicado de melancolia; um humor de sorriso, não de gargalhada. E uma voz poética sem que para o ser precise de qualquer tipo de floreado literário; a poesia que contém está nas histórias propriamente ditas, e por isso é mais profunda do que as demãos de lirismo passadas sobre textos vazios que tantas vezes aparecem impressas por aí.

Não gostei por igual de todas estas histórias, naturalmente. Mas em todas vi um autor no pleno domínio da sua técnica narrativa, que conta precisamente aquilo que quer contar e como quer contar. Não vi aqui nenhuma história que achasse má, só algumas que não me interessaram muito. E vi várias que achei magníficas, claramente do melhor que tenho lido nos últimos anos em ficção curta. Por vezes, pareceu-me encontrar nestas histórias traços de Ray Bradbury, de outras vezes vestígios de Lorde Delany, mas se essas me parecem influências razoavelmente claras, não maculam de nenhuma forma a unicidade de Rogers. Também aí, na forma como as influências são amalgamadas e retrabalhadas para produzir algo de original este livro é bastante interessante. Na verdade, em muitos aspetos, Pequenos Mistérios é uma lição de como escrever ficção curta. Muito bom.

Eis o que achei dos seus muitos contos:
  1. Histórias
  2. Metamorfoses
  3. Insurreições
  4. Contos
  5. Simetrinas
Este livro foi comprado.

Lido: O Sótão da Minha Avó

O Sótão da Minha Avó é uma crónica humorística de Luís de Sttau Monteiro... ou será que é uma redação da Guidinha? Para uma certa geração de portugueses, que hoje terá para cima de 50 anos, o nome de Guidinha é suficiente para trazer um sorriso aos lábios. Trata-se de uma miúda, de uns 10 anos, que Sttau Monteiro criou para escrever umas crónicas irreverentes e sem pontuação alguma sobre a vida de todos os dias dela e da família, o que é o mesmo que dizer sobre o Portugal do tempo. Com piada. Com muita piada. Esta crónica, em que a Guidinha conta uma viagem à província para visitar a avó, é de gargalhar praticamente do princípio ao fim. E está muitíssimo bem escrita, por mais que os quadrados destas coisas possam amofinar-se com a inexistência de uma virgulazinha para amostra. Excelente.

Textos anteriores deste livro:

Consagrações pelo uso

Muito se tem falado de exceções consagradas pelo uso a propósito do acordo ortográfico de 1990. Tanto que eu decidi ir ver ao texto quantas vezes tais expressões aparecem. E também, como termo de comparação, ao texto que define a ortografia de 1945. E descobri, com alguma surpresa, que é expressão que pouco aparece, tanto num como no outro. Na verdade, até eu, que já li aquilo tudo várias vezes, tinha ficado com a sensação de que era coisa mais frequente. Mas não. Vejamos:
  • O texto das bases do acordo de 1945 tem 10670 palavras;
  • O texto das bases do acordo de 1990 tem 9075 palavras;
  • A expressão "consagrado pelo uso", ou similares, aparece no texto das bases do acordo de 1945 apenas duas vezes;
  • A mesma expressão, ou similares, aparece no texto das bases do acordo de 1990 apenas quatro vezes;
  • em termos de frequência, pode-se dizer que ela mais que duplica de 1945 para 1990. Mas mesmo assim, surge neste último só uma vez por cada 2269 palavras.
Pessoalmente sou de opinião que essas quatro vezes são quatro vezes a mais. O ideal, em termos de coerência ortográfica, seria não haver nenhuma. Mas o facto permanece: os usos consagrados não são tão relevantes como a celeuma à volta deles pode levar a supor. E não são novidade de 1990, visto que eram coisa que já existia no texto de 1945.

sábado, 9 de março de 2013

Nem as opiniões mais interessantes se salvam na oposição ao AO

Desidério Murcho, que nada sabe de ortografia e acha que saber-se que proporção de palavras convergem e que proporção de palavras divergem com a nova ortografia depende de como se fazem as contas republicou há dias um contributo que um tal H. Castro (não sei se nome se pseudónimo) deixou no site do grupo de trabalho da AR que acompanha a implementalção do acordo ortográfico. Uma das pessoas que comentou contestou uma afirmação particularmente tola que se faz nesse contributo, afirmando que nem valia a pena ler mais, o que foi contestado por outro comentador, que acha que um contributo tão estruturado merece uma resposta, também ela mais estruturada. Tudo isso pode ser encontrado aqui.

Até concordo com o segundo comentador. Apesar do disparate ser muito, o tal contributo tem algumas ideias que vale a pena debater. O resultado é este texto, muito longo, que inclui a citação completa do contributo do tal H. Castro, bem como o que tenho a dizer sobre ele.

1. Enquadramento da matéria

Diz o Castro:
Discute-se a aplicação do acordo ortográfico de 1990 (AO90). Este surgiu após várias tentativas goradas de unificação da ortografia de Portugal e do Brasil, desde o início do século passado. Uma dessas tentativas conseguia uma unificação de praticamente 100% e mesmo assim não foi seguida por ambas as partes. Ao fim de quase um século de deriva gradual, tentou-se então uma vez mais regressar à quimérica “unificação” com o AO90.
Isto é uma deturpação grosseira da realidade. Não houve um século de deriva gradual, mas sim um século de gradual convergência, após a divergência iniciada por Portugal em 1911 e prosseguida pelo Brasil nos anos 30. Desde aí, todas as alterações ortográficas que se vieram fazendo e implementando no português tiveram como resultado uma convergência efetiva entre as duas ortografias oficiais da língua. O AO90 dá sequência a esse trabalho e, mais uma vez, aproxima os usos ortográficos, apesar de não os unificar completamente. Tem, no entanto, uma diferença importante relativamente a acordos anteriores: pela primeira vez desde a divergência, o documento que define a ortografia do português é um só. É isso que se quer dizer com unificação ortográfica. Os dois documentos existentes até aqui unificaram-se, passando a ser só um.
Esta não só não é conseguida com o presente “acordo” como as alterações propostas não colhem a aceitação dos especialistas. Nem do lado de cá nem do lado de lá do Atlântico. Daí que chamar-lhe “acordo” seja um abuso.
Mais disparates. O acordo não colhe a aceitação de alguns especialistas, mas colhe a aceitação de outros, começando por aqueles que o negociaram e que incluíam algumas das maiores sumidades da linguística lusófona do século XX. Quem ignora factos tão básicos como quem foi Lindley Cintra ou Antônio Houaiss devia ter, pelo menos, um pouco de tento nos arroubos estilísticos.
Este facto foi olimpicamente ignorado e prosseguiu-se na aplicação cega de uma completa inutilidade, recorrendo-se por diversas vezes nesta história a expedientes, no mínimo, duvidosos (para não lhes chamar uma verdadeira batota, de que é exemplo icónico o II Protocolo Modificativo) para levar esta empreitada em frente, sem que daí advenha qualquer vantagem para os utilizadores da língua.
Não vou perder tempo a falar de expedientes duvidosos. Basta-me apontar para aqui e para aqui, entre oh! tantos outros exemplos possíveis, para se perceber bem quem em toda esta história mais se socorreu de expedientes duvidosos.
Bastariam algumas questões elementares:
– Vem resolver alguma coisa? (Não)
– Serve para alguma coisa? (Não)
– Melhora a situação anterior? (Não)
Aqui estou parcialmente de acordo. De facto, bastam essas três questões elementares. Só que as respostas são, às três, sim. Uma explicação completa daria para vários artigos, portanto dou apenas um exemplo de cada uma (até porque, na verdade, basta um exemplo de cada para a resposta passar a sim).

Vem resolver alguma coisa? Vem. Vem, como dito acima, acabar com a situação anómala em que a língua portuguesa se encontrava entre as grandes línguas internacionais, a única que tinha dois documentos normativos mutuamente exclusivos a definir-lhe a ortografia. Hoje, há apenas um. Problema resolvido.

Serve para alguma coisa? Sim. Serve para aproximar os usos ortográficos na língua portuguesa.

Melhora a situação anterior? Aqui, entramos no reino da opinião pura e simples. Se se considerar desejável que a língua portuguesa tenha apenas um documento normativo a definir-lhe a ortografia e que a prática ortográfica sofra aproximações, então sim. Se não, não.
Não deveria ser preciso mais do que isto para ser evidente que o AO90 é um absurdo inútil, mas continuemos para os pontos seguintes.
Não deveria ser preciso mais do que isso para ser evidente que o AO90 é de toda a utilidade, de facto. E adiante.

2. Objectivos do Acordo Ortográfico
Unificação da língua: não acontece
Simplificação da língua: não acontece
Evolução da língua: não acontece
Três asneiras crassas. Nunca foi objetivo do acordo ortográfico unificar, simplificar ou fazer evoluir a língua. O acordo é ortográfico, não linguístico. A própria ideia de um acordo linguístico, aliás, é completamente estapafúrdia. As línguas não mudam por decreto. As ortografias que as representam, sim. Isto é absolutamente básico.

Não, os objetivos do AO não são esses. São unificar dois documentos normativos num só. São estabelecer uma forma nova de trabalhar, de cooperação entre os vários países que têm o português como língua oficial, de decisão conjunta, por forma a evitar duas coisas que se considerou ser negativas: o domínio neocolonialista de Portugal sobre os demais países lusófonos nas questões linguísticas, e/ou a tentação de fragmentar ainda mais a grafia do português, com cada país adotar a sua própria norma.

Numa discussão intelectualmente séria, pode-se discutir se esses objetivos foram, ou não, bem sucedidos. O que não se pode é inventar objetivos diferentes dos reais para depois se dizer que não se cumprem. Haja algum decoro.

3. Vantagens decorrentes da aplicação do Acordo Ortográfico
Não há.
É a opinião do Castro. Há outras. Mas isto dava uma série de artigos.

4. Inconvenientes e problemas resultantes da aplicação do Acordo Ortográfico

É aqui, finalmente, que se encontra algum sumo. Dispensavam-se os muitos disparates que ficaram para trás, francamente. Se o contributo se reduzisse a isto teria sido bem melhor. Não que não haja aqui também muita asneirola, mas há algumas ideias decentes. Vamos lá.
a) As “soluções” encontradas pelo AO90 para “resolver” as diferenças ortográficas podem sintetizar-se em:
- admissão de facultatividades naquilo que é irresolúvel (na prática, não só não resolve nada como aumenta a confusão)
Não propriamente. Em primeiro lugar, não há nada que seja irresolúvel. Aliás, um dos argumentos mais válidos usados pelos defensores da primazia etimológica para a escrita do português é, precisamente, que isso permite resolver uma série de questões que com critérios fonológicos se tornam mais problemáticas. Claro: a etimologia cria outros problemas, motivo pelo qual foi posta em plano secundário em 1911. A verdade é que as duplas grafias surgem, basicamente, em duas situações:
  • quando há uma oscilação na pronúncia de determinadas consoantes entre os vários dialetos da língua;
  • quando há uma oscilação entre a pronúncia aberta e fechada de algumas sílabas tónicas.
E isto não é nada de novo. Já antes do AO90 havia em português uma grande abundância de palavras com formas múltiplas, parcialmente originadas por variações dialectais (ramela/remela), parcialmente criadas pela dicotomia entre as derivações populares e as eruditas (ervanária/herbanária).
- referência à “forma consagrada pelo uso” sem que esteja definido em lado nenhum o que está consagrado pelo uso e o que não está; além de que quem está a aprender a língua não tem forma de adivinhar isso
Esta é uma objeção válida, e concordo que o uso e abuso das "formas consagradas pelo uso" é uma das maiores fragilidades do texto do AO90. Não tanto pelo motivo que o Castro aqui aponta (afinal, formas consagradas pelo uso não têm grande mistério: são as formas já dicionarizadas e/ou que se encontram na literatura), mas principalmente porque reduz a coerência das soluções encontradas.
- referência à “norma culta” (conceito já completamente ultrapassado) sem que esteja registada foneticamente em lado nenhum essa dita norma culta
Esta também é uma objeção válida, mas convém lembrar que o texto do AO90 já tem mais de vinte anos de idade. Desde então muita água passou debaixo das pontes. O conceito de norma culta tinha muito mais força nessa época do que tem hoje. Hoje poderia ser substituída, com vantagem, por referências às pronúncias dos falantes instruídos da língua.
- convergência do Pt-Br para o Pt-Pt: alteração de acentos/trema e hífenes
- convergência do Pt-Pt para o Pt-Br: alteração de acentos e hífenes, amputação de letras
- para obedecer ao critério da fonética, inventam-se formas novas para o Pt-Pt que, pasme-se, desunificam ao invés de unificar
Basicamente correto, embora não seja apenas nos hábitos ortográficos portugueses que surgem formas novas. E não me pasma nada que apareçam algumas formas divergentes: elas são consequência da evolução assimétrica dos vários dialetos da língua na mesma direção geral, evolução essa que vem decorrendo há muitos séculos: a supressão de sequências consonantais. Essa é uma das mais constantes e profundas tendências da nossa língua, e as divergências, em princípio, tenderão por isso mesmo a ir desaparecendo com o tempo à medida que esse processo se for completando.
- afirma-se reiteradamente a máxima de que “o que não se pronuncia não se escreve”, mas depois não se aplica: basta pensar em todas as palavras começadas por “h”, ou em todos os casos de “u” mudo a seguir ao “q”; afinal é para seguir a fonética ou não?
É para seguir a fonética, sim, tal como foi para seguir a fonética que se fez a reforma de 1911. Mas será que vale a pena fazer alterações em ortografias que não levantam quaisquer problemas aos utilizadores da língua e são iguais em todo o lado (com a única exceção da família de húmido)? Não se achou agora que valesse, como não se achou que valesse em 1911. E eu concordo: não vale. Mas não me chocaria ver mudanças também aí. O italiano suprimiu os "h" iniciais e não sobreveio nenhuma catástrofe. O espanhol regularizou o "qu", transformando o q em c sempre que o u é pronunciado e nenhum cataclismo caiu sobre os países de língua espanhola. Nós poderíamos fazer o mesmo, sem qualquer problema. Mas valerá a pena? Não me parece, em especial enquanto houver problemas mais sérios por resolver.

E não vi aqui nenhum inconveniente nem problema. Só uma caracterização, em geral correta, do que muda e do que não muda.
b) Com o AO90, há uma perda de informação irrecuperável. Isto é comprovado pelo facto de não existir um “anti-Lince” que reponha o português na forma correcta (sem AO90). Tal não é possível porque se perde, por exemplo, a distinção entre formas verbais de tempos diferentes (compramos/comprámos, chegamos/chegámos), a distinção entre “pára” e “para” e tantos outros exemplos. É sempre possível passar automaticamente de um texto sem o AO90 para um texto com o AO90, mas o inverso não é verdadeiro.

Desta perda de informação decorre uma menor clareza na leitura, ou seja, na transmissão da mensagem para o receptor. Isto não é bom, útil ou minimamente desejável. Os defensores do AO90 parecem centrar-se nas (alegadas) vantagens da escrita, esquecendo-se daquilo que é mais importante num texto escrito: a sua leitura.
Ora aqui está uma objeção que, superficialmente, parece fazer todo o sentido. De facto, o AO90 aumenta o número de palavras homógrafas. O aumento não será grande, mas existe. E é verdade que sempre que um par de palavras não homógrafas passa a homógrafas, uma análise individualizada, centrada nas palavras e só nas palavras, ignorando tudo o que as rodeia, torna mais difícil saber-se quais os seus significados. Portanto, à primeira vista, a inexistência de um anti-Lince parece provar que o Castro tem razão. Mas vamos um pouco mais fundo, sim?

Um anti-Lince não existe, para começar, porque não é necessário. O conversor faz sentido como ferramenta de apoio à transição da velha ortografia para a nova, e foi para isso que foi criado. Em princípio, as pessoas sabem como se escrevia segundo a ortografia de 1943, portanto para quê estar a desperdiçar tempo e recursos a criar uma ferramenta informática que ajude a fazer o trajeto oposto que não é útil para ninguém? Não há a mínima necessidade.

Porque se fosse necessário existiria. É que a leitura, e a própria língua, não é um processo tão sequencial como pode parecer aos desavisados. Nós não lemos nem falamos ou escutamos apenas palavra a palavra, letra a letra, fonema a fonema. Pelo contrário: há uma componente holística que vai buscar uma quantidade apreciável de informação ao contexto. E isso é replicável informaticamente. Vão ao Google Translator, um tradutor que é pior que qualquer tradutor humano com um mínimo de competência, e digitem "eu jogo um jogo." Verão que o tradutor não se confunde com as homógrafas e traduz corretamente, por exemplo para inglês: "I play a game."

O que isto quer dizer é que a informação não desaparece com a esmagadora maioria das novas homógrafas. Ela continua lá. A única coisa que lhe acontece é mudar de sítio, da grafia para o contexto. Querem provas? Voltem ao Google translator e digitem: "ontem jogamos um jogo."

Mas isto só é verdade relativamente à esmagadora maioria das novas homógrafas, não a todas. Em quatro anos a usar exclusivamente a nova ortografia só encontrei problemas com a supressão do acento diferencial em pára. É o único caso em que, de facto, existe em certos casos uma supressão de informação que impossibilita a cabal compreensão do que é escrito, e concordo que, nesse caso em concreto, o acento deveria regressar.

Quanto à distinção entre formas verbais em tempos diferentes, curiosamente, encontrei-a mais vezes ausente em textos (até textos literários) publicados antes do AO90 entrar em vigor do que depois. Porque temos aí um caso em que a informação já não existe na fala em certos dialetos, e portanto já antes da nova ortografia havia quem não a transpusesse (ou neste caso não a criasse) quando reproduzia essa fala por escrito. A mim, que sou falante de um dialeto em que a distinção existe, causa-me estranheza, e obviamente mantenho-a nos textos que escrevo, mas imagino que essa minha estranheza seja simétrica à que falantes de um dialeto em que ela não existe sentem quando a encontram nos textos que leem.
c) Afirma-se que o AO90 “simplifica” a língua e ao mesmo tempo permitem-se duplas (ou quádruplas ou múltiplas) grafias, o que é uma contradição à própria noção de ortografia. Ou seja, se, em vez de saber sem qualquer dúvida como se escreve “caracterizámos”, temos, em vez disso “caracterizámos/caraterizámos/caracterizamos/caraterizamos”, em que medida é que isto constitui uma simplificação? Dir-se-ia antes que ficou quatro vezes mais complicado. Chamar a isto “ortografia” é um abuso.
Aqui voltamos ao completo disparate, que não é por ser muitas vezes repetido por pessoas que tinham obrigação de saber alguma coisa do que estão a dizer que é menos disparatado. Vamos ao básico dos básicos: definir o que raio é uma ortografia:
  • Ortografia é um conjunto de regras segundo as quais uma determinada língua se expressa corretamente por escrito.
Curiosamente, o AO90 é um conjunto de regras segundo as quais a língua portuguesa se expressa corretamente por escrito. Por conseguinte, o AO90 define a ortografia do português. Pode-se concordar ou discordar dessas regras, mas afirmar que não existem é, numa palavra, estúpido. E dizer que são o oposto da ortografia, então, ultrapassa em muito a simples estupidez. Mostra a completa ignorância de quem faz tais afirmações sobre o assunto em pauta.

Este argumento também me dá vontade de rir por outro motivo: é que sempre que o encontro penso cá com os meus botões: "pronto, mais um pateta que não sabe como fala". É que se Fulano não sabe sem qualquer dúvida como se escreve "caracterizámos" é porque não sabe como se diz "caracterizámos" e só por isso. Eu, que sei bem como falo, e sei que em geral falo corretamente, não tenho qualquer dificuldade em saber que "caracterizámos" está bem escrito. Tal como sei que ouro está bem escrito. Ou bêbado. Ou ervanária. Ou qualquer outra das milhares de palavras com várias grafias ou variantes que já existiam na língua portuguesa antes do AO90 — e ainda bem, porque essa variabilidade tem sido usada com bom efeito pelos melhores cultores da língua escrita.
d) Com o AO90, em vez de assegurar a sobrevivência da língua, o que se está a verificar na prática é a contribuição para a extinção a passos largos do português de Portugal. Com o AO90, este já está a ser completamente eclipsado, por exemplo, em qualquer pesquisa na Internet e desde logo em inúmeros “sites” de acervo e/ou repositório (a Wikipedia, por exemplo). Experimente-se pesquisar “material elétrico” sem especificar que queremos páginas de Portugal e veja-se o que acontece. Repita-se a experiência com “material eléctrico”. Em que é que isto pode ser bom para as empresas portuguesas?
Curioso. Concluo, então, que o Castro concorda comigo quando digo que os números que circulam por aí a falar de uma divergência ortográfica criada pela nova ortografia são puras invenções. É que se houvesse divergência ortográfica haveria menos dificuldade do que antes em identificar o "português de Portugal", visto que as diferenças seriam maiores, o que, segundo o Castro, contribuiria para a sua salvação. Certo? Então estamos de acordo que a nova ortografia reduz as diferenças, ao contrário do que se apregoa por aí. Ainda bem.

O que o Castro volta a dar mostras de ignorar é que não há extinção nenhuma de português de Portugal nenhum porque o acordo é ortográfico, e a diferença entre o português de Portugal e o do Brasil é principalmente questão dialetológica, não ortográfica. A wikipédia é como é porque demasiados wikipedistas portugueses foram suficientemente patetas para se recusarem a colaborar na wikipédia em português, preferindo dedicar-se à versão em língua inglesa, aumentando assim artificialmente a proporção de brasileiros envolvidos no projeto. E isso conheço eu bem porque andei por lá durante o arranque da coisa. Fui eu, aliás, quem criou as primeiras regras de convivência linguística do projeto (há frases inteiras nesta página que ainda continuam a ser basicamente iguais ao que eu escrevi há uma década. Esta passagem, por exemplo: "A Wikipédia em língua portuguesa, também chamada de Wikipédia lusófona é de todos os falantes do português, seja qual for a variante que utilizam. Consequentemente, mudar da variante "A" para a "B" não é bem-vindo, porque isso significa uma falta de respeito para com os editores anteriores.") e quem teve violentas discussões com xenófobos linguísticos, tanto portugueses como brasileiros, que exigiam que tudo estivesse escrito conforme a sua ignorância determinava. E de resto, com a nova ortografia, uma vez que as diferenças diminuem, a wikipédia em português tenderá a tornar-se mais legível para os leitores portugueses, o que será ótimo.

Em que é a unificação de palavras como "elétrico" boa para as empresas portuguesas, pergunta o Castro, dando mostras de monumental miopia. Pois bem, não é boa, de facto. É ótima: abre-lhes mais facilmente as portas de um mercado imenso e em crescimento, ao contrário do deste nosso país, em encolhimento há anos e que levará mais anos a encolher, porque é, o país e o mercado, sistematicamente sabotado por gente pequenina e sem visão. Por cegos. Porque só cegos não compreendem que, sobretudo neste momento da nossa história, nós temos muito mais interesse em tudo o que nos aproxime do que os brasileiros. Neste momento da nossa história, Portugal não oferece oportunidades a ninguém. O Brasil sim. Fechar-nos em volta do nosso umbigo equivale a darmos um tiro na cabeça. É suicídio, puro e simples.
e) Com o AO90, para “aproximarmos” o português de Portugal (Pt-Pt) do português do Brasil (Pt-Br), afastamo-lo das restantes línguas europeias; não se vê qualquer vantagem daí decorrente, nem para os portugueses que queiram aprender outras línguas nem para os estrangeiros que queiram aprender português. Qualquer professor competente consegue explicar as diferenças entre o Pt-Pt e o Pt-Br sem que isso constitua um obstáculo intransponível para quem aprende. (Continua a ter de explicá-las, em qualquer dos casos, porque, mesmo que a ortografia ficasse igual – que não fica –, a sintaxe e a semântica continuam a ser diferentes.) O AO90 altera, sim, a forma como as palavras se pronunciam. Ouve-se até à exaustão o argumento da pharmácia/farmácia para justificar a “evolução” da língua, mas esses defensores do AO90 esquecem-se de que ao passar de “pharmácia” para “farmácia” não se alterou absolutamente em nada a forma como a palavra era lida. Ao passar de “fraccionar” para “fracionar” altera-se, sim, inegavelmente, a leitura da palavra. Ou de “espectador” para “espetador”, para dar um exemplo mais conhecido...
A questão do afastamento do português das restantes línguas europeias (quais? o russo?) é totalmente irrelevante. E disparatada. A língua não se move um milímetro; a ortografia não é a língua. E as vantagens de uma escrita próxima da fonética na aprendizagem de línguas são demasiado óbvias para se perder muito tempo a explicá-las. Basta dizer que em línguas como o inglês é necessário fixar as pronúncias das palavras quase uma a uma, enquanto em línguas de escrita mais fonológica basta aprender-se algumas regras genéricas e depois aplicá-las.

E a alteração da pronúncia das palavras com o AO90 é mais uma ideia velha, poeirenta, cheia de teias de aranha e errada. A base da língua é a oralidade, não a escrita. É a palavra X que se escreve da forma Y, não é a palavra Y que se da maneira Z. Quando se aboliu o trema em Portugal, em 1943, ninguém passou a dizer "frekência". Passar de "fraccionar" para "fracionar" não altera em nada a forma como a palavra é pronunciada: o A permanece aberto, como era até aqui. Tal como o E de espetador é aberto quando se trata de alguém que assiste a um programa de televisão. Tal como o primeiro O de "eu jogo" é aberto. Tal como não apareceu nenhum U em "treze" para os lisboetas desatarem a dizer "treuze". O que determina a pronúncia não é a forma como as palavras se escrevem; é a história da pronúncia das palavras.

Só existe uma maneira de alterar pronúncias por causa da escrita: quando as pessoas são suficientemente ignorantes para não saberem que língua é fala e a escrita é apenas a representação da língua. Representação essa que é sempre imperfeita. Para evitar deturpações, basta não disseminar disparates.
f) Com o AO90, continua a ser necessário haver duas traduções, uma para o Brasil e outra para os restantes países de língua oficial portuguesa. A necessidade de duas versões diferentes era apresentada como um dos principais motivos para a indispensável e propalada “unificação”. Continua... exactamente na mesma.
Objeção habilidosa, esta. Quem ignorar que o que realmente era problemático era a necessidade de existirem duas versões diferentes em documentos oficiais até pode pensar que isto é verdade. Porque, de facto, se estivermos a falar de livros continua a ser necessário, ou pelo menos conveniente, fazer adaptações ao dialeto dominante em cada mercado. Mas nunca foi objetivo do AO90 acabar com essas diferenças, e se alguém assim o apresentou estava muito mal informado. Repito: o AO90 é um acordo ortográfico, e disso não passa. Diferenças lexicais ou gramaticais não estão, nem podem estar, abrangidas por ele.

Mas, uma vez que com o AO90 passa a haver um único documento normativo da ortografia do português, bastará escrever uma única versão dos documentos, em obediência às regras nele definidas, para se estar a cumprir, até porque o jargão jurídico é praticamente idêntico em toda a língua. Era isso que estava em causa, nada mais. E isto não tem nenhum impacto na vida normal de quem se expressa em português; o objetivo era apenas remover obstáculos desnecessários à projeção do português como a grande língua internacional que é.
g) Por causa do AO90, já houve gastos inúteis e incompreensíveis, nomeadamente no ensino e na administração pública, com a “nova” “ortografia”. Mais grave ainda porque foram feitos sem que esta tivesse sido sequer definida com rigor (provavelmente porque é impossível definir-se com rigor aquilo que assenta em "regras" que o negam à partida).
Que gastos? A substituição normal dos manuais, que se faria com acordo ou sem ele? Isso teve custo zero — a atualização dos manuais é periódica e não foi antecipada, aconteceu ao ritmo a que aconteceria de qualquer maneira. Ou estará o Castro a referir-se a ações de formação, que só foram necessárias por causa da monumental campanha de desinformação que foi desencadeada pelos opositores da mudança? Se é a isso que se refere, tem razão, mas a culpa não é do AO90: é de quem disseminou quantidades abjetas de lixo, procurando lançar o máximo de confusão possível. Seria bom que se lhes apresentasse a conta, realmente. Diminuiria bastante a circulação de asneiras.
h) O documento de base do AO90 contém erros, ambiguidades, incongruências e parte de premissas falsas. Contém opiniões (tão válidas como quaisquer outras...) e nem um único estudo científico que sustente o que é afirmado.
Esta é para rir, não? Então o Castro queria que o documento legal que contém o AO90 contivesse estudos científicos? Lanço aqui um desafio: mostre-me uma lei que contenha um estudo científico. Basta uma.

Patético.
Há, pelo contrário, e como se sabe, muito mais pareceres negativos do que positivos (estes, aliás, no singular... porque só há um). Além de isto ser academicamente inacreditável, um documento assim não tem qualquer credibilidade. Não pode servir de base a coisa alguma e muito menos à ortografia de mais de duzentos milhões de pessoas. Uma vez que as “regras” do AO90 são sobretudo a consagração das excepções, há um fenómeno evidente de sobrecorrecção e de total confusão por parte de quem escreve.
Nem vou perder tempo com isto. Só quem nunca leu uma palavra do texto do AO90 pode fazer afirmações como "as regras do AO90 são sobretudo a consagração das exceções". Aconselho o Castro a ir ler o acordo, uma vez que obviamente ainda não o fez.
Se muitas pessoas escrevem com o AO90 (em muitos casos, unicamente porque a isso são obrigadas), isso deve-se sobretudo ao facto de ser possível carregar num botão para transformar a ortografia automaticamente e não tanto porque saibam efectivamente aplicar a “nova” “ortografia” (uma vez mais, como saber aplicar aquilo que não tem regras claras?). Isto, na prática, corresponde a um inegável analfabetismo funcional.
Mais asneira a rodos. Vou ser curto e grosso: quem não sabe escrever segundo a nova ortografia é incompetente no uso da língua. A generalidade das regras é simples, clara, e não exige o uso de nada além do cérebro de cada um.

Aliás, essa é uma vantagem inesperada do acordo. Um efeito secundário positivo. Destapar muita incompetência, ignorância e má-fé que andavam escondidas por aí. Por vezes entristece ver até que ponto elas chegam, mas é preferível sabermos onde estão os incapazes do que continuarmos a julgá-los capazes.
i) Com o AO90, em vez de uma unificação, temos uma multiplicação de ortografias. Em vez de Pt-Pt e Pt-Br, temos: Pt-Pt, Pt-Br, AO90-Pt, AO90-Br e ainda o uso de critérios diferentes para o estabelecimento daquilo que se considera ser o AO90 em Portugal e no Brasil... variações deixadas ao critério de cada um, porque o documento de base não é claro ou é omisso nas diversas possibilidades. Porquê esta falta de clareza e esta omissão? Porque as “soluções” apresentadas são uma farsa que na prática não resolve nada.
Estamos a meio do período de transição. Só por completa má-fé se pode exigir que a meio de uma transição tudo esteja estabilizado. É evidente que a meio de uma transição tem de haver mais do que uma ortografia em uso. Há trabalho a fazer em vários níveis, que aliás já estaria muito mais adiantado do que está se houvesse menos disseminação de aldrabices e menos arrastar de pés por parte de algumas pessoas infelizmente colocadas em posições de influência. E é um facto que a ABL, a ACL e o IILP se têm mostrado incompetentes no trabalho que lhes compete: a elaboração do vocabulário ortográfico da língua portuguesa. Especialmente esse fóssil que é a ACL. Não é por acaso que o vocabulário oficial é, hoje, aquele que foi produzido pelo ILTC. Mas, de novo, a culpa não é do AO90 mas sim da incompetência destas entidades. Algumas incoerências e sobretudo omissões presentes no acordo não ajudam, é certo, mas isso está muito longe de explicar por que motivo o trabalho, 23 anos depois da assinatura do AO, ainda não está concluído, tanto mais que temos hoje milhares, talvez milhões, de pessoas a escrever segundo a nova ortografia sem dificuldades de maior.

5. Proposta que apresenta
Suspensão imediata da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990.
Pontos nos is: uma ortografia evoluir é admissível e em muitos casos desejável; uma ortografia ficar estável também; mas uma ortografia andar aos ziguezagues, ora agora é assim, ora agora é assado, é idiota, e pode ser catastrófico. Nada pode ser pior do que voltar para trás depois das alterações ortográficas estarem em aplicação generalizada. Nem que a nova ortografia fosse o absurdo que alguns dizem ser, e que está muito longe de ser, voltar para trás faria o mínimo sentido. Não se pode andar a brincar dessa maneira com a ortografia da nossa língua.

É por isso que toda esta discussão é extemporânea. Não é depois das coisas aprovadas e aplicadas que elas devem ser discutidas. Há dois momentos bons para a discussão: antes das coisas serem aprovadas, e depois de passar tempo suficiente desde a sua aplicação para a poeira assentar e se poderem ver resultados reais em vez de alarmismos mais ou menos histéricos. Os outros momentos são maus, mas nenhum é pior do que durante a implementação. Ou seja: nenhum é pior do que este.

Esta é, aliás, uma doença de que Portugal padece há muito, e que contribuiu sobremaneira para nos trazer ao estado miserável em que nos encontramos: esta tendência estúpida para discutir insuficientemente as coisas antes de as aprovar, para desatar depois a discuti-las durante a implementação, com muito mais histeria do que ponderação, e para acabar por fazer alterações em cima do joelho, muitas vezes deitando no processo milhões pela janela. No caso do AO, felizmente, os impactos financeiros são reduzidos, mas há outros impactos muito mais importantes do que o dinheiro.

Esta discussão teria feito sentido há duas décadas. No ponto em que estamos, a única coisa inteligente a fazer é aplicar o AO90 o melhor e o mais completamente possível e esperar até que a poeira assente. Depois, avaliar os resultados, com calma, ponderação, competência e algum sentido de história. De seguida, alterar o que houver a alterar, aperfeiçoar o que houver a aperfeiçoar. Será esse o momento para recuar no pára, por exemplo. Será talvez esse o momento para ir mais além no que agora ficou por fazer. Será esse o momento para reavaliar que consoantes são mudas, e quais as que não o são. Até lá, que se aplique!
Obrigar milhões de pessoas a alterar a sua ortografia sem que isso sirva para alguma coisa de válido é de uma falta de senso indescritível. Em vez de uma “unificação” ortográfica reconhecidamente impossível a esta altura, promovamos o intercâmbio cultural, científico e de oportunidades de trabalho entre todos os países de língua oficial portuguesa. Reforcemos o ensino de Português no estrangeiro em vez de fecharmos leitorados. Não é preciso unificar a ortografia para fazer nada disto e seria muito mais eficaz para a promoção da língua no mundo. Existem mecanismos democráticos mais do suficientes para anular este erro colossal: uma iniciativa legislativa de cidadãos pela revoção da RAR 35/2008 (o instrumento que forçou a entrada em vigor do AO90) ou uma iniciativa legislativa dos próprios deputados para o mesmo efeito.
Estou inteiramente de acordo que se devia também promover o intercâmbio cultural, científico e de oportunidades de trabalho entre todos os países de língua oficial portuguesa. Estou inteiramente de acordo que falta, e não devia faltar, uma verdadeira política de língua que não se limite ao acordo ortográfico. É verdade que não é preciso unificar a ortografia para fazer isso, mas é inegável que unificar a ortografia facilita. E pode-se, e deve-se, fazer tudo ao mesmo tempo.

6. Outras questões
Este acordo ortográfico não resolve nenhum dos alegados “problemas” que pretendia “solucionar”. Baseia-se, além disso, num paradoxo fundamental: procura unificar a língua utilizando ao mesmo tempo um critério, o da fonética, que torna automaticamente impossível a referida unificação, dadas as variadíssimas cambiantes de pronúncia entre os milhões de falantes da língua. Partindo de premissas erradas é impossível chegar-se a conclusões correctas. Ou válidas.
Exato: partindo de premissas erradas é impossível chegar-se a conclusões corretas. É precisamente por isso que as conclusões a que o Castro chega são quase todas erradas.
O AO90 nega a real evolução da língua portuguesa, fazendo de conta que esta não existiu. A verdade é que o português de Portugal e o português do Brasil já se afastaram (sim, irremediavelmente – admitamo-lo de uma vez por todas)
Longe disso. O português de Portugal e o português do Brasil estão, isso sim, em convergência. É consequência inevitável do fim do isolamento que existiu durante 200 anos, originado primeiro pelos media tradicionais (só quem não viu os brasileirismos entrarem com toda a naturalidade no léxico português após a chegada das primeiras telenovelas ignora este facto) e mais recentemente pela internet. Essa convergência far-se-á com acordos ortográficos ou sem eles simplesmente porque a lusofonia é hoje uma realidade concreta e presente na vida de milhões de cidadãos lusófonos que intercambiam usos linguísticos todos os dias e nada indica que deixe de ser, bem pelo contrário. Só entre os infoexcluídos e em grupos muito dados à criação de modas linguísticas, frequentemente de vida curta, como os jovens, a língua continua a divergir. E normalmente não são esses os grupos mais determinantes no futuro das línguas.

Aliás, o próprio facto de que o uso de critérios fonológicos para alterar a ortografia origina muito mais convergências ortográficas do que divergências é prova cabal de que as antigas ortografias do português exageravam o afastamento entre os dialetos portugueses e brasileiros. Eles são, sendo obviamente diferentes, bastante mais próximos do que a divergência ortográfica levava a crer. E bastaria essa revelação para conferir utilidade ao AO90.
e estas duas variantes já não voltam a ficar iguais, nem que por acaso o AO90 conseguisse unificar a ortografia (que não consegue). Não pode designar-se como “evolução”esta proposta lamentável e inútil de ortografia “unificada”. Em conclusão, o “acordo” “ortográfico” de 1990 não é sério e não pode ser levado a sério. Suspenda-se de imediato a sua aplicação.
Enfim... mais tolices, pois então.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Da indigência

Helena Buescu apresentou na AR um "parecer" em que se refere obliquamente à análise que aqui fiz sobre o Vocabulário da Mudança. Insiste na fraude perpretada por Regina Rocha e publicada no Público, e diz que ela foi, cito:
objecto de contra-resposta que não apresentou qualquer comprovada anulação baseada em dados alternativos
Claro que não. Eu não me baseei em dados alternativos: baseei-me nos mesmos dados que Regina Rocha diz ter utilizado para obter os números que inventou.

E claro que não apresentei "qualquer comprovada anulação". Só forneço a tabela com todos os dados, todas as contas e todas as fórmulas a quem ma pedir (e desde a última vez que o mencionei já a forneci a mais três pessoas, subindo o total para cinco — uma das quais opositora ao AO (finalmente!), pelo menos por enquanto). Mais nada. Coisa pouca, bem sei. O que é isso comparado com todas as provas que a Regina Rocha fornece de que não inventou os seus números? Hm?

Já agora, que foi ao certo que Regina Rocha forneceu a quem quiser verificar a bondade dos seus dados e contas? É que estou aqui a puxar pela cabeça e não me lembro de nada.

Deve ser, decerto, falha na minha memória. Com certeza que há abundante materal comprovativo. Uma tabelinha com contas, talvez? Talvez feita em papel? Uns rabiscozinhos a lápis? Não?

Doutoramentos à portuguesa...

domingo, 3 de março de 2013

O Vocabulário da Mudança, o excel e eu

Quem acompanha a Lâmpada com regularidade certamente saberá que gastei os tempos livres que fui tendo ao longo de cerca de uma semana a dissecar o Vocabulário da Mudança, para tentar perceber o que há de verdade e o que há de mentira em toda a propaganda anti-nova ortografia que tem vindo a lume nos últimos tempos dando conta de uma pretensa divergência ortográfica gerada por ela.

Quem não acompanha aqui o meu velho bloguezinho, no entanto, provavelmente só terá tomado contacto com essa análise através de um artigo em que resumi os resultados principais e que o jornal Público acabou por publicar. Para surpresa minha, há que dizê-lo, dada a consabida sanha anti-nova ortografia de que esse jornal tem dado vastas provas desde que as mudanças começaram a sair da teoria legislativa e a ganhar lugar na vida prática dos falantes e escreventes de português.

O artigo no Público, contudo, está atrás da pagarede (que tal este neologismo para substituir paywall? Podem usar à vontade) do jornal. Mas como o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa tem vindo a republicar todos os tipos de artigos sobre a controvérsia, achei que seria boa ideia mandar-lho, e eles, claro, publicaram-no.

Depois surgiu uma questão: eu tinha feito uma análise muito mais detalhada do que aquilo que, por constrangimentos de espaço, foi possível incluir no artigo enviado para o Público. Não seria boa ideia dar aos interessados uns lamirés sobre os mais relevantes desses resultados? Está certo que eles já estavam publicados aqui na Lâmpada, mas se os resultados gerais chegaram à muito maior visibilidade do Ciberdúvidas, não seria boa ideia que os detalhes principais também chegassem? Achei que sim. E o pessoal do Ciberdúvidas também. Portanto escrevi um artigo complementar, que também foi publicado no Ciberdúvidas, com aquilo que me parecia mais necessário dizer sobre este assunto.

Entretanto, no post que deu início à divulgação da análise aqui na Lâmpada voluntariei-me para fornecer a folha excel com os resultados a qualquer um que ma pedisse. Até agora, só duas pessoas o fizeram. Uma levou-a ainda numa fase inicial da análise, a outra levou-a já completa.

Não posso dizer que isso me surpreenda.

sábado, 2 de março de 2013

Hoje

Hoje houve uma repetição do 15 de setembro. Mas uma repetição, pelo menos no caso de Portimão, em maior, com mais gente, com mais força, e com mais alegria graças à presença dos Homens da Luta na parte final da manifestação. Também com bastante mais frio. Mas foi bom. Foi muito bom. Foi mais um passo num caminho que é longo e difícil.
Alguém um dia disse que o caminho se faz caminhando. E foi isso que fizemos, provavelmente mais de 4 mil pessoas (vi estimativas de 3 mil, vi estimativas de 5 mil, inclino-me mais para as segundas que para as primeiras): caminhámos. E protestámos. E gritámos a nossa revolta contra tanta estupidez, tanto assassínio económico. E grandolámo-los a todos. E enchemo-los de azia.

Para mim, a coisa teve ainda um insólito adicional. Quando cheguei a casa, liguei o computador e tuitei:
De volta a casa. Cansado. Rouco. Com as mãos inchadas e vermelhas de tanto bater palmas. Feliz. Foi a maior manif de sempre em Portimão
Fui algumas vezes retuitado, nada de especial. Mas qual não é o meu espanto quando, ao ver o telejornal da RTP 1, deparo com esta cena:
Reconhecem-nos? É o Alexandre Brito, ali, de pé. E no écran gigante, aquela manchinha cor de pele, sou eu. O Alexandre naquele momento está a dizer o meu nome, ou a começar a ler o tuito; depois a cena muda para um écran completo do twitter e a leitura prossegue. Se quiserem ver o segmento, chama-se Manifestações nas redes sociais. E inclui mais dois tuitos, de outras pessoas, várias fotos e as primeiras reações da imprensa online, nacional e estrangeira.

A manifestação foi histórica. A maior de sempre em Portimão, com provável exceção das primeiras grandes manifestações após o 25 de Abril. Apenas provável porque a essas não assisti. Seguro é ter sido maior que a de 15 de setembro. Seguro é ter sido a maior a que eu assisti, em que estive presente, numa terra sem grande tradição de se manifestar, habituada a ver desfilar meia dúzia de gatos pingados. Em 15 de setembro fomos muito mais que meia dúzia de gatos pingados, e hoje fomos mais ainda. Hoje, voltámos a fazer história.

E o pós-manifestação, para mim, foi divertido, muito divertido.

Venha a próxima! A menos que o governo caia entretanto. Isso é que era o melhor resultado possível.

Amanhã

A Lâmpada, amanhã, fica aqui mesmo no ciberespaço, porque não pode sair dele, coitada. Mas o dono da Lâmpada vai estar na rua.
Venham daí. Não fiquem refastelados no sofá. É que só podemos contar connosco para tirar aqueles azelhas do poleiro.

E além disso, cá em Portimão, temos os Homens da Luta a ajudar.