terça-feira, 30 de agosto de 2022

Luísa Costa Gomes: Não Ir e Outras Formas de Chegar ao Porto

É raro eu gostar dos contos de Luísa Costa Gomes. Há qualquer coisa no estilo dela, e também, ou talvez sobretudo, nos seus temas e na forma como os aborda, que eu costumo achar profundamente desinteressante. Não escreve mal, pelo contrário, mas nem só de bem escrever se faz a literatura, e mais ainda a experiência de leitura, e entre os textos dela e o meu gosto há frequentemente uma barreira dificilmente transponível.

É raro eu gostar dos contos de Luísa Costa Gomes, mas por vezes acontece, pelo que parto sempre para a leitura de mais um com aquela pepita de esperança. Sabem? Pode ser que este seja um dos. Sim. Pode ser.

Mas a probabilidade é baixa. O mais frequente é a esperança ver-se gorada. E foi isso mesmo que aconteceu com este Não Ir e Outras Formas de Chegar ao Porto.

Este conto é a história de um homem que vive com o sonho de ir ao Porto, mas por um motivo ou por outro acaba sempre por não ir. Fica o sonho, insistente. Aquela esperança que espelha a minha de gostar de um conto de Luísa Costa Gomes. E, tal como acontece comigo e os contos de Luísa Costa Gomes, também ele calha conseguir ir ao Porto. Muitos anos depois do sonho nascer e depois de muitas tentativas.

O conto é basicamente isto. Podia ser insólito mas não é. Podia ser magico-realista mas não é. Podia ser interessante mas não é. É apenas a história mundana de um tipo que queria ir ao Porto mas não ia. Até que foi. E o Porto tratou de o recompensar por isso.

Não foi agora, mas pode ser que um dia os contos de Luísa Costa Gomes também me recompensem. Haja esperança.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Irmãos Grimm: Os Seis Criados

E de novo, aqui temos uma princesa casadoira cuja mãe (desta vez é a mãe) exige que os pretendentes realizem uma façanha qualquer, tendo a morte como recompensa pelo falhanço. Esta crueldadezinha casual dos governantes é o pão-nosso de cada dia nestas histórias, pelos vistos, ainda que desta vez até haja justificação para ela: a mulher é feiticeira. Das más.

Até que chega, como sempre chega, um herói particularmente desembaraçado que resolve a situação. No caso desta história que os Irmãos Grimm parecem nem ter alterado por aí além, apesar de ser bastante extensa, o desembaraçado é príncipe e o desembaraço é conseguir encontrar e contratar criados prodigiosamente habilidosos. Criados com superpoderes, digamos. Os Seis Criados são seis (duh!), e um seria capaz de engolir o mundo (e expande), outro de ouvir o mundo, outro é tão alto que se ergue acima de qualquer montanha do mundo (e estica), outro despedaça tudo com o olhar, outro tem o termostato avariado e sente calor quando faz frio e vice-versa e o último é capaz de ver tudo o que há no mundo.

Ou seja, são os avozinhos dos X-Men.

E o príncipe tem tanta sorte ou perspicácia que todas estas extraordinárias habilidades dos criados lhe vão ser úteis para cumprir as tarefas da feiticeira. E, depois da descrição dos criados, dos seus poderes, das tarefas e da forma como estas são ultrapassadas, vivem todos felizes para sempre, como é da praxe.

É um conto interessante, em especial pela ascendência direta que nele encontro para as modernas histórias de super-heróis. Ao contrário destas, contudo, não existe aqui nenhuma película mais ou menos ciencioficcional (o Luís Filipe Silva chamar-lhe-ia tecnofantástica) a revestir a fantasia de base, o que também tem o seu interesse próprio: mostra como as mesmas histórias feitas para mundos diferentes assumem características também diferentes. O que devia fazer pensar quem põe num pedestal as literaturas (e outras formas narrativas) do passado e despreza as contemporâneas. Se calhar, um dos motivos para aquelas terem perdido popularidade é não se adaptarem bem ao mundo contemporâneo. Só se calhar.

Contos anteriores deste livro:

Irmãos Grimm: Os Sapatos Desfeitos a Dançar

Uma das coisas que têm sido mais curiosas para mim durante a leitura destas histórias é o rasto de mortandade que elas deixam para trás. Curiosa não tanto pelas mortes em si, mas sobretudo porque parte destes contos são histórias que eu conhecia de miúdo (ainda que em adaptações várias, frequentemente) e não tenho memória de tanto sangue. Claro, o mais provável é só mesmo o eu infantil não dar atenção a essas coisas: afinal, em histórias como o Capuchinho Vermelho o Lobo Mau faz vítimas e estas passam mais ou menos batidas. Mas ao longo destes contos deparei com muitas ocasiões em que gente (e não gente) morre por motivos absolutamente fúteis, em exibições de crueldade gratuita que por vezes me incomodam. Sinais dos tempos? Talvez.

Este Os Sapatos Desfeitos a Dançar não é dos piores, mas mesmo assim cá temos um rei que desafia súbditos e não súbditos a descobrir onde vão as filhas (que não, não são três... nem sete... são doze) desfazer os sapatos todas as noites, oferecendo a mão de uma delas em casamento como recompensa ao que consiga... e prometendo a morte em castigo a quem não seja capaz de o fazer. E será que tal falhanço vale realmente a morte? Não, pois não? Mas claro que há gente que morre por isso até que aparece um soldado a desvendar o mistério.

Aqui pode-se falar com propriedade de um conto dos Irmãos Grimm, pois a nota fala de um episódio acrescentado à história, proveniente de um outro conto aparentado com este. E quanto à história... bem, narra o modo como o soldado resolve a questão, ficando invisível e seguindo as princesas até um palácio subterrâneo onde passam todas as noites a dançar com doze príncipes encantados. E eu, que já não sou a criança que fui, não evitei o pensamento óbvio: "a dançar? Só a dançar?"

Seja como for, o conto é interessante, mais do que muitos dos mais recentes. E ainda bem, que já andava um tanto ou quanto saturado de histórias fracas.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 28 de agosto de 2022

Leiturtugas #167

Os domingos fazem-nos velhos. Parece que foi só há uma semana que houve um, e aqui está já outro. E com ele, chega também mais uma lista de Leiturtugas.

E desta vez temos uma por dia, rigorosamente (embora não tenham sido publicadas uma por dia... é coisa da estatística). Ou seja, sete. Com participação da malta oficial e da malta oficiosa.

Entre a malta oficial, o primeiro a aparecer foi o Artur Coelho, trazendo a sua opinião sobre uma antologia editada por Inês Montenegro. Como o título indica, Rua Bruxedo é sobretudo um livro de horror, mas parece ter também toques de FC e outras coisas, e saiu já este ano pela Imaginauta. Toques de FC põem o livro na coluna dos "com", e o Artur passa a 3c13s.

O segundo e o último fui eu, que deixo aqui o nome, Jorge Candeias, para que o negrito ajude a encontrá-lo quando for preciso. A opinião que deixei foi, claro, sobre Os Cadáveres, o conto de FC de Pedro Cipriano publicado pela Fantasy & Co. em 2015. Passam as sinalefas a 4c3s.

Quanto à malta oficiosa, a primeira a aparecer foi a Silvana. Ela opinou sobre Aquorea, de M. G. Ferrey, romance de fantasia que foi publicado no ano passado pela Nuvem de Tinta. Fantasia-fantasia, não fantasia científica, ou seja sem FC.

Depois veio a Maria João Covas com mais uma das suas opiniões em vídeo. O livro intitula-se Se Me Amas não te Demores, o autor é Raul Minh'Alma, e parece tratar-se de um exemplar de realismo mágico com história romântica à mistura. É uma edição da Manuscrito, também do ano passado. E também não tem FC.

Em seguida houve dose dupla da «Ladyxzeus». O primeiro livro que ela nos trouxe é algo marginal nestas contas, contando sobretudo como eventual inspiração para eventuais autores. Intitula-se Mitologia Popular Portuguesa e é uma recolha feita por Alexandre Parafita da mitologia proveniente das nossas histórias tradicionais. Editado pela Zéfiro também no ano passado, neste livro também não há FC.

Já no segundo livro que ela nos trouxe há FC com fartura. Expansão é uma antologia publicada pela Imaginauta em 2017, com histórias pertencentes ao universo partilhado do Comandante Serralves.

Por fim, a Katrina encerra a semana com a sua opinião sobre o primeiro livro de Patrícia Morais, reeditado este ano em edição da autora, uma fantasia urbana intitulada Sombras. Também aqui não existe FC.

E é só e é tudo. Para a semana haverá mais. Provavelmente. Até lá.

sábado, 27 de agosto de 2022

Pedro Cipriano: Os Cadáveres

É bastante bom este conto de Pedro Cipriano, uma história muito breve de ficção científica pós-apocalíptica. A premissa é simples mas está bem desenvolvida e, embora pudesse sê-lo num texto mais extenso, neste tamanho curto também funciona (na verdade, para um desenvolvimento maior o estilo usado teria de ser diferente, pois o ritmo sincopado que Cipriano aqui usa é de molde a tornar-se cansativo bastante depressa... o que não é problema aqui porque não há tempo para isso).

De que premissa falo?

Bem, se soubesses que és um homem condenado num mundo condenado e tivesses os meios para fazer o que quisesses, o que farias? O que farias contigo e com os teus, tão condenados como tu? E falar aqui de condenados não é figura de estilo. A morte é certa e está próxima, só o seu momento preciso e a quantidade de sofrimento que haverá que aguentar até lá são ainda incógnitas. O que farias?

A resposta que Cipriano dá neste Os Cadáveres é bastante dura, mas inteiramente adequada ao que se entrevê da psicologia do seu protagonista. E o estilo usado, sincopado, nervoso, desesperado, também ajuda. Este é dos tais contos em que tudo encaixa bem. Não é particularmente original, é certo, mas funciona. E mesmo o final é deixado suficientemente em aberto para não colidir com a narrativa em primeira pessoa, um risco que Cipriano correu mas conseguiu evitar in extremis. Sim. É bom, o conto.

Este livro, como todos os livros publicados pela Fantasy & Co., está disponível gratuitamente aqui.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Manuel Machado: Reciprocidade Amável

É francamente divertido, este conto de página e meia de Manuel Machado. Intitula-se Reciprocidade Amável porque, de facto, o tema é as consequências da amabilidade. Ou melhor, da falta dela. O ambiente é militar, e tudo começa quando um soldado tropeça e se vai estatelar contra a porta do gabinete do capitão, levando este a reagir com absoluta amabilidade.

(Quem é essa besta quadrada de quatro patas arreios e cascos que está para aí aos coices na porta da cocheira?, diz ele sem vírgulas nem hesitações)

E por aí fora, até que o soldado desastrado finalmente riposta. O resultado não é bonito de se ver, como está bem de ver-se. Mas a amabilidade mútua é indesmentível. E eu ri, confesso. Ri da verve, ri da situação, ri da ironia. Não é muito frequente eu rir de coisas destinadas a fazer rir, pois muitas vezes o humor não encaixa no meu. Mas desta feita aconteceu.

Textos anteriores desta publicação:

Algernon Blackwood: A Outra Ala

Bradbury tem uma série de histórias (quase sempre ambientadas no outono do Halloween) em que crianças encaram de forma natural os acontecimentos sobrenaturais com que se deparam, acolhendo fantasmas e outras manifestações mais ou menos fantasmagóricas sem sombra de medo, antes com fascínio e curiosidade. E eu, agora, ao ler esta noveleta de Algernon Blackood, pergunto-me se terá sido aqui que ele foi buscar a ideia.

É provável que não. Afinal, já nos contos tradicionais se encontram histórias assim, embora essas sirvam normalmente como histórias cautelares, avisos, nos quais as crianças que assim agem encontram fins terríveis ou só conseguem salvar-se depois de muito penar. Mas este A Outra Ala (bibliografia) assemelha-se tanto a algumas dessas histórias que também me parece provável que sim.

Esta é uma história de casarão assombrado, protagonizada por um pequeno aristocrata que vive num daqueles solares ingleses, uma de cujas alas está encerrada. É essa a ala habitada por fantasmas, incluindo, acha ele, o fantasma do avô. E a Soberana, ou Dama do Sono, a qual o visita regularmente antes de adormecer. Como qualquer criança imaginativa, o pequeno constrói histórias e explicações muito suas para os estranhos fenómenos com que se depara, acabando por se salvar (e à casa) de um incêndio, anos mais tarde, graças a essas histórias.

É que as histórias, afinal, eram a realidade.

Este é outro bom conto, embora não tanto como Os Salgueiros. Toda a narrativa está muito bem construída, mas há nesta história uma série de clichés que não encontrei na novela que abre o livro. O conto de fantasmas inglês tem características bem marcadas, que aqui estão muito presentes.

Conto anterior deste livro:

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Irmãos Grimm: A Raposa e o Cavalo

Contos tradicionais com títulos em que apareçam raposas são quase invariavelmente fábulas, nas quais a raposa surge como criatura astuta e matreira. E este A Raposa e o Cavalo, conto que, uma vez mais, não parece ter sido muito alterado pelos Irmãos Grimm, não é exceção.

É também um dos muitos contos em que alguma personagem tem de demonstrar o seu valor. Aqui, essa personagem é um velho cavalo de que o dono já não precisa mas mesmo assim encarrega de lhe trazer um leão, dizendo que se for capaz de o fazer ainda lhe poderá ser útil. E o cavalo lá parte, triste com a ingratidão do mundo, achando que tentar procurar um leão para levar ao dono equivale a uma sentença de morte. Acaba, claro, por ser a raposa quem arranja a solução, fazendo com que tudo termine em bem.

Este está longe de ser dos contos mais interessantes do livro mas não é mau.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Irmãos Grimm: A Bela Catarinela e Pim Pam Pum

Pim Pam Pum quer casar com a Bela Catarinela, nesta lengalenga apropriadamente intitulada A Bela Catarinela e Pim Pam Pum. E para isso vai correndo toda a família a pedir autorização até chegar à própria. E é isso, esta historinha que não me parece ter sido nada alterada pelos Irmãos Grimm. E disso não passa.

Confesso que detesto lengalengas. Nem sempre detestei: tempos houve em que soube até uma de cor (a do macaco do rabo cortado), mas nessa época tinha pouco mais de metade da altura que tenho agora e rapidamente o divertimento que as intermináveis repetições me causavam se transformou em tédio e depois em irritação. Aconteceu mais ou menos na mesma altura em que me apaixonei por histórias mais complexas, o que basicamente quis dizer Júlio Verne. Lá pelos sete ou oito anos.

Portanto não, também não gostei desta. Os nomes têm a sua graça (bem conservada pela tradutora)? Têm. Mas há muitos, muitos anos que isso não me chega.

Contos anteriores deste livro:

Virgílio Várzea: Núpcias Marinhas

Desconhecia por completo Virgílio Várzea antes de pegar nesta pequena compilação de contos seus. Fiquei a saber que é um autor brasileiro da viragem do século XIX para o XX, com pai português e militar, da marinha, o que fez com que a sua infância tivesse sido marcada pelas coisas do mar, o que certamente terá contribuído para a génese destas Núpcias Marinhas.

Mas não fiquei fã.

Apesar de saber que Várzea se rebelou contra o romantismo literário, o que aqui para nós que ninguém nos ouve é um ponto a seu favor, encontro muito de romantismo nestes seus contos... e eu que não gosto nada do romantismo. São contos cheios de drama de faca e alguidar, demasiado adjetivados, enxameados de vírgulas, frequente e francamente desagradáveis de ler. Por mim, obviamente; leitores de gostos diferentes terão decerto opiniões diferentes.

Não posso dizer que estes contos sejam maus, pois tenho de reconhecer que Várzea até conseguiu fazer o que se propôs fazer com eles. Mas digo que nenhum deles me agradou. Não me agradou o estilo, o tema e a abordagem e tampouco me agradaram algumas das ideias que neles vi expressas.

O livro não é mau. Também não é bom; é um livro medíocre de um autor grandemente esquecido por motivos que me parecem certos. E é livro que eu li movido pela curiosidade de saber se nele haveria alguma coisa de fantástico e teria passado perfeitamente sem ler. Até porque não há.

Eis o que achei sobre as três histórias deste livro:

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Irmãos Grimm: Um-Olhinho, Dois-Olhinhos e Três-Olhinhos

E eis-nos de volta aos grupos de três.

Um-Olhinho, Dois-Olhinhos e Três-Olhinhos são três irmãs cuja dinâmica familiar tem grandes semelhanças com a da história da Cinderela. E o final desta história que os Irmãos Grimm parecem ter alterado pouco também é muito semelhante ao da Gata Borralheira, ainda que o caminho que a história encontra para lá chegar seja diferente.

Seja como for, os nomes das três irmãs referem-se ao número de olhos que cada uma tem e Dois-Olhinhos, por ser igual a toda a gente, é maltratada na família e tratada como alguém que não pertence. Tal como a Cinderela, também Dois-Olhinhos passa fome e só tem para vestir os piores trapos. Até que encontra nos campos uma velha que lhe fornece um feitiço para ter mesa farta sempre que precisar.

O conto é razoavelmente longo, e isto é só o princípio — há uma série de outras peripécias e magias até ao "e viveram felizes para sempre" da praxe, que até são suficientemente únicas para tornar a história interessante apesar das semelhanças óbvias com a da Cinderela. Às vezes a reciclagem de elementos não interessa muito, bastando que uma história contenha outros fatores que retirem relevância a essa reutilização. É o caso aqui.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Irmãos Grimm: Os Quatro Irmãos Arteiros

Ao contrário do que é padrão nestas histórias, não temos aqui três irmãos (ou, ocasionalmente, sete), mas sim quatro. E é pouco mais que isso o que esta história, que os Irmãos Grimm parecem ter alterado pouco, tem de original.

Os Quatro Irmãos Arteiros é mais uma daquelas histórias em que um grupo de pessoas pobres parte mundo fora para tentar ganhar a vida ou, como neste caso, aprender um ofício. E conseguem fazê-lo de forma prodigiosa, ou não estivéssemos no reino das histórias de encantar. Um torna-se astrónomo, outro ladrão, um terceiro é caçador e o quarto alfaiate. E, juntos, não há nada que não consigam fazer.

Exceto casar-se com uma princesa, aparentemente. Como tão valoroso é um como o outro, e como todos desejam o matrimónio real, a coisa acabaria em discussão (e em destruição mútua, talvez) se não acabassem por abdicar da princesa. Em troca de meio reino cada um, atenção, o que não é nada mau.

Também o conto não é mau. É certo que não tem grande originalidade, mas sempre tem alguma: o facto de eles serem quatro é invulgar, o acordo final também o é, e há mais dois ou três pormenores lá no miolo que não se encontram noutras histórias. Mas o grosso do conto é reutilizado. Mais uma vez, a leitura desta história seria mais agradável sem ter todas as outras em volta a deixar tão evidente o seu caráter remastigado. E também isto é ideia repetida, eu sei.

Mea culpa.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 21 de agosto de 2022

Leiturtugas #166

Domingo, dia de Leiturtugas. Parece que também é dia de outras coisas, mas por aqui é só mesmo dia de leiturtugas.

E até as temos, embora escassas. A maioria dos oficiosos parece ter feito uma pausazinha, só não desaparecendo porque dois furaram a "greve".

E um dos oficiais também apareceu esta semana com uma opinião nova. Falo da Tita, que comentou em vídeo um álbum de BD de Jorge Miguel, uma edição deste ano da Arte de Autor e A Seita, intitulada O Fado Ilustrado. É reedição de um álbum publicado pela primeira vez em 2011 e, sendo BD, conta como "sem", pelo que a Tita passa a 1c2s.

Quanto aos oficiosos, a primeira a aparecer foi a Carla e a opinião que ela trouxe é sobre um livro infantojuvenil. Publicado pela Gailivro em 2009, A Porta é um conto (talvez noveleta, se as ilustrações não forem muito abundantes e/ou o tipo do texto for pequeno o suficiente) de José Fanha repleto de fantasia. Não tem é FC nenhuma, aparentemente.

Por fim, a semana fechou com a Rita Costa, que nos apresenta a sua opinião sobre a mais recente edição de Hugo Gonçalves, a reedição de O Coração dos Homens publicada este ano pela Companhia das Letras. E este tem FC.

sábado, 20 de agosto de 2022

Pedro Pereira: Vingança

E com este continho de Pedro Pereira encerra-se a história do sabre e do corvo. O título de Vingança é descritivo, pois trata-se de facto de uma história de vingança, na qual se reúnem praticamente todas as personagens que foram sendo criadas e por vezes abandonadas nas histórias anteriores. A djinn vem ter com o homem que tem o sabre na sua posse, a fim de o convencer a entregar-lho, a bem ou a mal. Este recusa. Vai ter de ser a mal. E tudo parece estar a correr bem à djinn quando reaparece o corvo e as coisas mudam de figura.

OK, é um encerramento. E a espécie de epílogo que fecha conto e antologia nem está mal pensado. Mas a historinha não está particularmente bem escrita e não funciona de todo sozinha (o que aliás é comum às outras), pelo que chamar-lhe conto e antologia ao livro talvez não seja o mais adequado. Digamos que no contexto da obra, este texto de Pedro Pereira é razoável, cumprindo razoavelmente o que lhe cabe fazer. Fora do contexto da obra não faz sentido.

O que nos leva à obra. Mas isso fica para outro dia.

Contos anteriores deste livro:

Irmãos Grimm: A Fiadeira Preguiçosa

Outro grupo de histórias entre estes contos escritos e/ou recolhidos pelos Irmãos Grimm são as pequenas comédias de enganos, frequentemente sem nada de fantástico, que no entanto surgem aqui em muito menor número do que os contos do maravilhoso. Também existe nelas o seu quê de repetitivo, mas, talvez por serem em menor número, esse aspeto é nelas bastante menos evidente do que nos acordos faustianos, nas histórias de feitiços quebrados através de improváveis demonstrações de valor, etc.

Aqui, A Fiadeira Preguiçosa é isso mesmo: uma fiadeira que é um prodígio de preguiça, o que deixa o marido absolutamente exasperado. Mas ela tem a esperteza dos sonsos e arranja as formas mais criativas de justificar a preguiça, convencendo o pobre de que há sempre qualquer coisa que lhe falta para poder fazer o trabalho que devia fazer.

Comédia de enganos muito típica, como se vê. E sem nada de fantástico, também. Este é um conto realista — falar em prodígio de preguiça, como fiz ali em cima, é apenas força de expressão — e razoavelmente divertido à sua maneira simples.

Contos anteriores deste livro:

Algernon Blackwood: Os Salgueiros

Existe uma região, naquilo que é hoje a zona fronteiriça entre a Áustria, a Hungria e a Eslováquia, pouco depois de passar por Bratislava, em que o Danúbio se torna pântano e se subdivide numa miríade de braços separados por ilhas. É uma região bastante vasta, correspondendo a uns 50 km ou mais do curso do rio, e ainda existe (está, de resto, parcialmente protegida por parques naturais), apesar dos trabalhos de regularização do curso que foram sendo feitos ao longo dos anos, com a construção de canais e eclusas, imagino que para minorar cheias e manter o rio navegável. É nessa região que se ambienta esta novela.

Os pântanos sempre foram terreno fértil para histórias de terror. Como não o ser? São terreno difícil de atravessar, especialmente antes da tecnologia moderna o tornar mais acessível, são terreno confuso onde era fácil os viajantes perderem-se antes dos satélites do GPS virem resolver muitos problemas, e são terrenos húmidos onde a água, estagnada, nem sempre é particularmente salubre e onde as névoas são comuns. Não é difícil povoar um ambiente desses com monstros, com criaturas do além, com mistérios sobrenaturais, e foi precisamente o que fez a imaginação popular e os muitos escritores que escreveram sobre ele. Algernon Blackwood é um deles, e esta sua história é realmente arrepiante.

A novela tem basicamente três protagonistas. Um é o narrador, visto que a história usa a primeira pessoa tão comum nos contos de terror. Outro é um sueco, seu amigo e companheiro de viagem, com o qual, por motivos que nunca são explicitados — a simples sede de aventura, provavelmente — o narrador está a descer o Danúbio de canoa. E o terceiro protagonista, provavelmente o mais importante, são Os Salgueiros (bibliografia) do título.

Tudo começa quando, contrariando os avisos que lhes são feitos pelos habitantes locais (e é sempre boa ideia ignorar os avisos de quem conhece as zonas, não é?), os dois aventureiros penetram no pântano, que parece até estar mais perigoso do que habitualmente porque o Danúbio está em cheia. Apesar da corrente forte, não conseguem transpor a área antes de cair a noite, e por isso decidem parar numa ilha das muitas que há na zona, baixa como todas as outras e, como todas as outras, habitada por salgueiros.

Blackwood consegue criar um ótimo ambiente opressivo de terror psicológico. O protagonista passa boa parte da novela a tentar lutar contra uma inquietação crescente, sobressaltado com todos os ruídos mas sempre na dúvida sobre se estes serão reais ou poderá estar, na realidade, apenas a imaginar coisas. Ruídos e não só; também acontecem umas aparições que os viajantes procuram racionalizar, sem grande sucesso.

No fim da história, no entanto, deixam-se disso. Cedem por completo ao sobrenatural, deixam de duvidar que as coisas bizarras que vão acontecendo acontecem de facto e passam a desejar apenas conseguir sair vivos daquela ilha. Vivos e o mais depressa possível. Mesmo quando parece impossível.

Tudo é muito bem feito. Este é um daqueles casos em que uma história é contada da forma certa, na extensão certa e com o estilo certo. Teria havido muitas formas de a estragar, mas Blackwood não o fez. Os Salgueiros é um clássico e, se é certo que nem sempre os clássicos me parecem merecer a distinção, este merece-a em pleno.

Muito bom mesmo.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Irmãos Grimm: O Fogão de Ferro

Não os contei, embora provavelmente já terá havido quem o tenha feito, mas parece-me que o conjunto de contos mais numeroso entre estas histórias escritas ou recolhidas (ou as duas coisas) pelos Irmãos Grimm é a das que incluem um feitiço e uma série de tarefas que é preciso realizar para quebrar esse feitiço. Outro conjunto bastante numeroso é o dos contos em que um príncipe ou princesa que se prepara para casar com a pessoa que realiza alguma proeza de vulto, mostrando-se assim valorosa, são enganados por algum ambicioso sem escrúpulos que lhes usurpa a identidade, ou simplesmente que dizem ter sido eles a fazer o que foi feito por outrem, tendo o verdadeiro herói da história de arranjar algum estratagema para levar a cabeça coroada casadoira a perceber o engano.

Este O Fogão de Ferro pertence a ambos os grupos.

A heroína é uma princesa que se perde ao tentar regressar ao reino do pai, penetrando numa floresta onde um príncipe está preso por um feitiço dentro de um fogão de ferro, do qual ninguém o consegue libertar. A princesa consegue, depois de várias peripécias, mas depois seguem-se mais uma série de peripécias, incluindo a tal troca de identidades, antes de finalmente se chegar ao inevitável viveram felizes para sempre. Com todas as peripécias, esta podia ser uma história interessante (bem, há que reconhecer que não deixa de ter algum interesse) se não fosse tão previsível no seu desfecho final, e também nos desfechos das suas várias secções, uma vez que quase todas já apareceram sob alguma forma em histórias anteriores.

Há diferenças nos detalhes, sim, e no encadeamento geral da coisa, mas é um bocado como a sequência de cartas num baralho: pode não ser exatamente igual a sequências anteriores mas nenhuma carta que apareça é nova ou surpreendente; todas já foram vistas muitas vezes. Não é como se de repente aparecesse um dois, sei lá, de chaves ou de bois.

Mas OK, a história não deixa de ter alguns motivos de interesse.

Contos anteriores deste livro:

Escrita de julho


Então, como têm passado? Já julgavam que isto do regresso do jorge-que-escreve tinha sido sol de pouca dura, não é? Que a pausa tinha feito uma pausa e regressado logo à pausa, certo?

Pois, é compreensível. Mas não. Este post só aparece agora porque isto das coisas que quero pôr no blogue anda mesmo muito atrasado. E mais atrasado ficou com umas alterações que fiz no processo, destinadas a agilizá-lo. Não, não foram contraproducentes: deram é trabalho, pelo que a coisa atrasou provisoriamente mais ainda enquanto esse trabalho foi sendo feito. A palavra chave aqui é provisoriamente. Aqueles de vocês que são visitantes regulares terão certamente reparado que os posts nos últimos tempos têm sido mais constantes, e isso quer dizer que o atraso já está a ser recuperado.

No entanto, este post foi apanhado no processo, junto com uma série de outros, uns que já viram a luz do dia e outros que ainda estão na linha de montagem. Daí só aparecer agora e não logo no início do mês.

Ou seja: não, não voltei a parar. Pelo contrário, este mês de julho produzi três vezes mais ficção do que tinha produzido em junho, regressando a níveis de produção que não tinha desde outubro de 2021. Ainda não é propriamente um ritmo intenso (até porque é muito raro que eu consiga realmente um ritmo intenso na produção de ficção... não sou gajo para Nanowrimos), mas já é um ritmo razoável. Para mim, pelo menos.

Foram cerca de 6 mil palavras novas. Umas 18 páginas, o que dá mais que meia página por dia. A variedade é que foi escassa: faz tudo parte da mesma história, o romance que tenho andado a escrever por entre as pausas. Ao terminar o mês, já ia com uma dimensão razoável, quase 160 páginas de manuscrito. Mas ainda falta bastante para o fim. Isto está para durar.

E agosto, perguntam vocês? Bem, o que aconteceu em agosto só saberemos quando agosto se transformar em passado. Por enquanto ainda está entre passado, presente e futuro. Há que esperar. Em setembro logo falaremos, se os Homo sapiens parva (ou Homo stultus, talvez melhor dizendo) que andam por aí a estragar tudo quiserem.

Até lá.

Irmãos Grimm: Fernando Fiel e Fernando Infiel

Entre estes contos dos Irmãos Grimm, ou recolhidos por eles, há um grupo razoavelmente numeroso de histórias que parecem ter como objetivo contrastar a bondade de uns com a maldade de outros, histórias exemplares destinadas a ensinar boas práticas aos seus ouvintes, quando se transmitiam oralmente, ou leitores quando passaram a escrito. Uma história famosa é um bom exemplo disso: Cinderela, com a sua madrasta má e filhas piores. E como o próprio título já indica, Fernando Fiel e Fernando Infiel faz parte desse grupo.

É uma daquelas histórias em que o bom parece dar-se mal, apesar de ir de caminho fazendo alianças com todas as criaturas que o encontram, humanas ou não. Ajudado por meios mágicos do princípio ao fim da história e prejudicado pela insídia do Fernando Infiel, o bom lá acaba no proverbial (embora neste caso não explícito) viveram felizes para sempre, casado com uma rainha, não sem que antes não seja forçado a passar as passinhas do Algarve. E beneficiando para isso de um assassinato, que as rainhas para poderem casar com os homens que escolhem têm primeiro de ficar viúvas.

É um conto com o seu interesse, apesar de haver nele algo de errado, como de resto os próprios Grimm afirmam na nota que o acompanha. Para isso contribui a sua extensão, suficiente para uma certa complexidade que adiciona elementos razoavelmente originais a uma estrutura básica que está longe de o ser. Se se limitasse a essa estrutura básica seria mais uma história aborrecida porque repetida. Assim, não é. E ainda bem.

Contos anteriores deste livro:

Inês Montenegro: O Bom Negociante

É com esta história de Inês Montenegro, tão curta como as outras, que as muitas pontas soltas que foram sendo deixadas nas anteriores começam a deixar-se amarrar. Em O Bom Negociante regressamos à loja mágica do primeiro conto e reencontramos a djinn do terceiro, a qual vem à procura de informação sobre o homem que levou o sabre do primeiro e do segundo. Também lá descobrimos o corvo do terceiro conto.

Montenegro parece ter feito um esforço consciente para reunir tudo num todo coerente, e fê-lo bem, com uma prosa de boa qualidade — a sua, a par da de Carlos Silva é a mais bem escrita destas histórias — e sem deixar, por uma vez, muitas pontas soltas para o próximo conto. Tirando o final, claro. Esse é mais uma vez deixado em aberto.

Porquê? Ora, porque ainda há mais uma história para rematar esta antologiazinha.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Irmãos Grimm: O Diabo e a Avó Dele

Fausto, o do trato com o diabo, tem vasta parentela nas histórias tradicionais alemãs. E não só, a bem dizer, mas o que aqui nos traz são as alemãs. No entanto, as histórias em que aparece Fausto e família não são todas iguais, divergindo da história mais conhecida em personagens, situações e até, por vezes, no tema principal. É o caso deste O Diabo e a Avó Dele, que os Irmãos Grimm talvez não tenham alterado muito, à parte alguns ajustes literários, pois esta história traz um elemento curioso: a avó do diabo.

Sim, existe um acordo faustiano razoavelmente típico. Três (claro!) soldados maltratados e mal pagos no exército decidem desertar, após o que estabelecem um acordo com o diabo: seriam seus criados durante sete anos, período em que nada lhes faltaria, mas depois o diabo ficar-lhes-ia com as almas, salvo se conseguissem solucionar um enigma.

Mas o diabo tem uma avó. E esta, que é bem tratada por um dos soldados, resolve ajudá-los, enganando o neto e fornecendo-lhes a solução do enigma ao chegar o fim dos sete anos.

É uma história bastante interessante, esta. Não só por causa da ideia do diabo ter uma avó a andar por aí, como por o acordo com o diabo acabar em bem para quem o faz, o que, não sendo inédito, não é propriamente vulgar.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Miguel Carqueija: Urros no Porão

Esta é capaz de ter sido a melhor forma possível de rematar esta coletânea. Porque este é capaz de ser o melhor conto de todos os que aqui se incluem.

Decididamente, Miguel Carqueija é bastante melhor a escrever histórias deste género do que contos de ficção científica (ou de fantasia, pelo menos ajuizando pelos exemplos encontrados aqui). É que Urros no Porão (bibliografia) é mais um conto de horror lovecraftiano pertencente à sua série de Pedra Torta, à semelhança de Não é Humano, também presente neste livro. E é um bom conto.

Dois irmãos, um miúdo e uma miúda, ficam órfãos de mãe, depois de já terem perdido o pai muito tempo antes. Sem família imediata, a única solução é irem viver com o avô, na terreola de Pedra Torta. Mas o avô é um homem ríspido e misterioso, e parte do interesse do conto está no desvendar do porquê.

Pelo que disse acima, já terão percebido que as criações lovecraftianas terão qualquer coisa a ver com esse porquê, e não vale a pena explicar ao certo que qualquer coisa é essa. Vale a pena simplesmente dizer que este conto está bem construído e que o mistério que faz mover a narrativa se sustenta razoavelmente bem, apesar de as coisas por vezes se tornarem um pouco evidentes em demasia.

Há clichés, claro, mas toda a ficção lovecraftiana se sustenta nos clichés do universo criado pelo senhor de Providence, pelo que fazem parte das regras do jogo. Este conto funciona. É, repito, um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

Irmãos Grimm: Os Três Irmãos

Este é um continho muito simples, pertencente ao grupo dos que parecem não ter sido significativamente alterados pelos Irmãos Grimm. Em página e meia (ainda que estas páginas sejam bastante grandes) conta-se a história de três irmãos, o que nunca se imaginaria com um título como Os Três Irmãos, filhos de pai pobre, que partem mundo fora a aprender ofícios para competir pela parca herança: aquele que se tornasse melhor no seu ofício ficaria com ela.

É ideia que não será inteiramente reciclada mas certamente tem grande componente de reciclagem. Quanto ao resultado da competição, cada um dos irmãos tornou-se prodigiosamente competente no ofício que escolheu... ou isso ou quem conta a história é muitíssimo mentiroso.

Tem a sua graça, não digo que não, mas este está longe de ser um bom conto.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 14 de agosto de 2022

Leiturtugas #165

O quê? Já é domingo? Era capaz de jurar que ainda ontem foi sábado!

Bem, ser domingo quer dizer que é dia de Leiturtugas, portanto vamos lá, muito embora esta semana não tenha havido nenhuma.

Nenhuma das oficiais, entenda-se. Porque temos das oficiosas em boa quantidade.

Começou em mais uma incursão ao instagram e a mais uma opinião sobre Vanda, o último de D. D. Maio. Quem opina é desta feita alguém chamado Mário Silva e o livro foi autopublicado este ano na Bubok. Não tem FC.

Em vídeo tivemos a opinião da Maria João Covas sobre O Coração dos Homens. O autor, Hugo Gonçalves, já tinha aparecido nestes posts mas com outro livro, uma vez que este, uma distopia, foi publicado originalmente em 2006, bastante antes das Leiturtugas arrancarem. Mas agora (i.e., já este ano) foi reeditado pela Companhia das Letras, e foi essa a edição lida. É um livro com FC. Alguma.

A obrigatória leitura de literatura infantil coube ao Pedro Miguel Silva com uma fábula de Ana Pessoa e Madalena Matoso. Com o título de Está a Chover, é uma edição deste ano da Planeta Tangerina e não tem FC.

Por seu lado, a «Despenteada» leu e comentou Atlântico, o segundo volume da série Prisioneira do Tempo, de Patrícia Madeira. Edição deste ano, da Cultura. Há uns pozinhos de FC, portanto conta como tendo.

Seguindo agora para as também obrigatórias (este ano) opiniões sobre José Saramago, temos duas num artigo só. Quem opina é a Maria Pinto e os livros lidos são os dois romances mais religiosos do nosso Nobel, com bastante fantástico mas sem nenhuma FC: O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Caim. O primeiro foi publicado originalmente em 1991 e o segundo em 2009, ambos pela Caminho, mas as edições lidas pela Maria Pinto são as recentes da Porto Editora.

Por fim, a Andreia Ferreira leu e comentou mais um livro de fantasia: Aquorea, de M. G. Ferrey, edição do ano passado da Nuvem de Tinta. Nada de FC, claro.

Sete dias, sete livros em seis posts. Não está mal. Venham os próximos sete.

sábado, 13 de agosto de 2022

João Barreiros: A Agonia da Arte Reprimida

Algumas das histórias que compõem este "romance em mosaicos", como os autores lhe chamam, são só razoavelmente autocontidas, provavelmente por terem sido concebidas mais para fornecer estrutura ao livro como um todo do que para contar propriamente uma história, ou uma parte da história. É o caso das histórias que abrem o livro, e também das que o encerram, se a memória não me falha (sim, que isto é uma releitura, apesar da leitura original já ter umas décadas e ser da edição original, não desta edição revista).

Mas há outras que poderiam perfeitamente ser publicadas sozinhas numa antologia, revista ou fanzine, e ninguém se aperceberia de que fazem parte de um todo maior. E na verdade algumas foram-no; A Arder Caíram os Anjos, por exemplo, teve publicação independente no fanzine brasileiro Somnium.

Esta novela de João Barreiros, no entanto e que eu saiba, não foi publicada fora do contexto deste livro. Mas a verdade é que podia perfeitamente ter sido.

A Agonia da Arte Reprimida (bibliografia) leva o leitor ao Canadá, ou mais concretamente a uma cidade canadiana que funciona como enclave de boa vizinhança entre os terrestres e "hóspedes" extraterrestres de várias espécies. E são mesmo hóspedes: fazendo lembrar a situação da série de animação American Dad (cuja criação é cerca de uma década posterior à do Terrarium, note-se), os extraterrestres vivem com famílias humanas num ambiente tipicamente americano de burguesia suburbana. Uma dessas famílias é a do protagonista principal da novela, um adolescente que, como qualquer adolescente, se ressente de o terem metido numa situação que não controla. O hóspede da família é um ET vegetariano, o que leva toda a família ao veganismo... e ele que adora hambúrgueres!

Mas os seus problemas estão só a começar e ele nem sabe, o que de resto é um tema omnipresente nas ficções de João Barreiros. Os seus protagonistas são quase invariavelmente pobres desgraçados cujos mundos são postos de pantanas por acontecimentos que eles não controlam minimamente e só a sorte, ou rasgos de inspiração, ou outros acontecimentos que controlam ainda menos, os levam à sobrevivência... quando levam.

Pois o bom do Joel, assim se chama o miúdo, nem sabe o que o espera. As coisas começam a descambar ainda mais do que já estavam quando encontra um jovem vulpis. Vulpis? Sim. Outro ET, uma espécie particularmente agressiva que passa a infância como animal irracional numa luta até à morte pela sobrevivência e só ganha inteligência quando se aproxima da maioridade... altura em que ganha acesso às memórias genéticas transmitidas pelo pai e sente a compulsão de o procurar e assassinar para ascender à chefia do clã.

Detalhe relevante: os vulpis juvenis também têm um mecanismo de cunhagem psicológica, semelhante ao dos pintos de várias espécies de aves, que os levam a vincular-se à primeira criatura senciente que encontram quando saem da fase irracional. E qual é a primeira pessoa que este vulpis específico encontra, qual é? O Joel, está claro.

Vida de pantanas. O adolescente mergulha de cabeça, mais involuntariamente que de moto próprio, numa vida dupla, arrastado pelas necessidades do vulpis. E do pai do vulpis, pois este decide encarregar o filho de uma missão. E isso acaba por lhe salvar a vida.

É que a cidadezinha começa a ser palco de misteriosos desaparecimentos de crianças. E é precisamente Joel quem descobre o que lhes aconteceu... mas não a tempo de salvar a família de um destino semelhante.

Há um assassino à solta. Um assassino em série. Um assassino interplanetário em série, perseguido no seu planeta de origem, acabando por encontrar refúgio na Terra por um oceano de sorte. Ou de azar. Mas ele acha-se artista e revolta-se contra todos os que procuram reprimir a sua arte. E cá está o significado do título.

É outra história muitíssimo boa, claro. Das tais histórias com tudo no sítio.

Contos anteriores deste livro:

Vítor Frazão: Último Desejo

E de repente, o sabre desaparece. Mas entra o corvo. Vítor Frazão quebra com as histórias anteriores, ambientando a sua numa batalha contra criaturas monstruosas que o protagonista tinha estado a travar e estava prestes a perder definitivamente. Nisto aparece-lhe um djinn, nome árabe daquilo que conhecemos como génios, com lâmpadas mágicas ou sem elas, que lhe dá a oportunidade de expressar um Último Desejo. Este acaba por se transformar num trato mais ou menos faustiano do qual, sendo os génios o que são, o protagonista sai muito a perder.

Sem que se perceba em quê e como esta história encaixa nas anteriores, o leitor é deixado um tanto ou quanto no ar, ainda que Frazão acabe por criar um conto mais fechado em si próprio do que os dois que o precedem. Isto é, um conto que funciona melhor enquanto conto.

Mas não gostei muito. O português é competente mas não passa disso e os diálogos, que funcionam como o motor da história, não são propriamente convincentes. Há neles (especialmente no que o protagonista diz) um tom melodramático, cheio de sentenças tonitruantes, que se torna algo ridículo. E cansativo, ao fim de algum tempo.

Mas OK, talvez funcione no contexto da história mais ampla que este livro constrói. Venha o próximo conto, portanto.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Emanuel Félix: As Raparigas lá de Casa

Repito sempre, para que não haja dúvidas, que eu pouco percebo de poesia, mas também vou dizendo que gostei bastante deste poema de Emanuel Félix.

É um poema de amor, o qual tem como alvo, obiamente, As Raparigas Lá de Casa. Quem são essas raparigas, que grau de parentesco terão com o autor? Não fica dito, e pouco importa, até porque o amor retratado é essencialmente fraternal.

Pareceu-me encontrar qualquer coisa de Álvaro de Campos neste poema. Talvez por tender a gostar dos poemas de Álvaro de Campos, de longe o meu heterónimo preferido, talvez pela estruturação do texto e pela ausência de grandes grilhetas formais. Rima livre (ou nenhuma), métrica livre, essas coisas. Isto apesar do tema ter pouco a ver com os temas típicos dessa Pessoa poética. Mas sim, fez-me lembrar.

Gostei. Já disse? Tudo bem, então repito.

Textos anteriores desta publicação:

Lídia Jorge: Cálice de Porto

Enquanto leitor, parece-me sempre que é um pouco de batota quando os autores presentes em antologias temáticas, quer sejam convidados a participar, quer apresentem de moto próprio trabalhos para inclusão, resolvem escrever histórias cuja ligação com o tema é ténue ou inexistente. Mesmo que na condição de autor até ache graça ao desafio de subverter o tema por forma a não ultrapassar a delicada fronteira entre o que é iconoclasta mas aceitável para o tema e o que cai decididamente fora dele.

E neste Cálice de Porto, Lídia Jorge faz isso mesmo, pois a sua história sobre os cinismos e hipocrisias do meio cultural só por acaso se passa no Porto, podendo ambientar-se em qualquer outro lugar.

A protagonista é alguém que é convidada para uma festa da burguesia intelectual bem instalada e vai, sem conhecer ninguém. Lá, um "poeta recentemente laureado" põe-na sob a sua proteção evitando que se sinta demasiado deslocada, e trata imediatamente de desatar a má língua, denunciando os podres deste e daquele, mas dedicando particular atenção ao anfitrião, o que leva a protagonista a tirar as suas conclusões.

E eu encolho os ombros. Muito bem, percebo as ironias várias que espreitam desta história mas o interesse que ela me desperta é praticamente nulo. Não há, nestes enredos de telenovela movidos a diz-que-disse, nada que realmente me chame a atenção e a parte literária da coisa, que é tão boa como seria de esperar, não basta para compensar.

Termino a leitura com um "meh" a dançar-me nos lábios. Meh.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Miguel Carqueija: Hiperespaço

Este conto podia ter sido razoável. A ideia, aliás, é boa. Uma nave, no Hiperespaço (bibliografia), é palco de uma situação velha como o mundo: um triângulo amoroso entre os dois homens que protagonizam a história e uma mulher, que nunca aparece, mulher do primeiro e amante do segundo. Pelo meio, Miguel Carqueija arranja umas cobiças e umas falhas de caráter para criar uma ameaça de crime perfeito.

São bons ingredientes para quem saiba o que fazer com eles.

Mas Carqueija comete dois erros que em combinação se revelam fatais: escreve o conto na primeira pessoa, com a perspetiva centrada no marido traído, e tenta dar à história um final surpresa. O resultado é... tosco.

Um final surpresa, para ser eficaz, para ser bem feito, não pode violar a lógica narrativa que ficou estabelecida até lá chegar. Tem de forçar a uma revisão dessa lógica narrativa, tem de levar a vê-la com novos olhos, mas não a pode violar. Os elementos do final surpresa têm de já lá estar, escondidos mas presentes. O que não pode nunca acontecer é, por exemplo, uma personagem sentir desespero por se encontrar numa situação sem saída, e depois, magicamente, tirar uma carta da manga que dá uma reviravolta completa à situação. Pode fingir desespero, pode mostrar desespero, mas não pode senti-lo.

Ora, Carqueija, ao escrever o conto na primeira pessoa, põe o leitor na cabeça do protagonista. E ao fazê-lo perde a possibilidade de criar um verdadeiro final surpresa que não se transforme numa violação grosseira da lógica narrativa do conto.

Bastaria ter usado uma perspetiva exterior a ambas as personagens, mostrando os atos delas sem nunca nos dizer o que elas sentem, só o que parecem sentir, para fazer um conto no mínimo razoável. Mas não. Ao errar a mão na escolha do ponto de vista, o que fez foi um mau conto.

Contos anteriores deste livro:

Irmãos Grimm: A Velha no Bosque

É curioso, este conto, uma daquelas histórias curtas que dá vontade de desenvolver em textos mais longos de fantasia. Não muita vontade, que já houve muito quem o fizesse, com variados graus de sucesso, e porque vários dos elementos que contém encontram-se também de alguma forma em muitas outras destas histórias.

A Velha no Bosque é, naturalmente, uma bruxa, nesta história que os Irmãos Grimm não parecem ter alterado muito. Mas a protagonista é uma criada que viajava pela floresta na companhia dos amos quando um bando de ladrões ataca o grupo matando toda a gente à exceção da rapariga. Esta vai cair sob a proteção de uma pomba branca falante, que em muitas histórias destas funciona como aparição divina e, depois de ser ajudada pela pomba, vai fazer-lhe um favor como paga. E é aí que aparece a velha no bosque.

No fim, um príncipe encantado livra-se do feitiço lançado sobre ele pela bruxa, e príncipe e criada vivem felizes para sempre, como é da praxe.

Não será das coisas mais sofisticadas que já se viram, longe disso (mesmo no contexto destes contos populares), mas é uma história bem construída que funciona.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 7 de agosto de 2022

Leiturtugas #164

Já é domingo? Então está na hora de mais um destes posts sobre as Leiturtugas que foi havendo na semana que acaba hoje. E temos um número bastante razoável, sobretudo vindas dos participantes oficiosos neste projeto.

Mas também há um oficial, o Artur Coelho. O Artur continua o seu mergulho nos clássicos, e vem-nos desta vez falar sobre Branquinho da Fonseca. Publicada pela Europa-América em 1971 (ou antes; há várias publicações anteriores com esse título, mas não é claro se o conteúdo é idêntico ou diferente), O Barão é uma coletânea que inclui a novela homónima e outras duas histórias, com fantástico mas sem FC. E as sinalefas do Artur passam a 2c13s. Anda a ler muito mais não FC do que FC, ele.

Quanto aos oficiosos, tivemos direito a quase um post por dia.

Começou pelo Carlos Faria, que opinou sobre o romance que Afonso Cruz publicou em 2013 pela Companhia das Letras: Para Onde Vão os Guarda-Chuvas. Também aqui há fantástico mas não FC.

Depois, tivemos a «Toupeira», que desta vez leu um livro infantil. Era Uma Vez Um Coelho Francês é uma pequena fábula que Carlos Pinhão publicou em 1981 pelos Livros Horizonte e também aqui não existe FC.

De seguida, num dos raríssimos saltos ao instagram, encontrámos a Rita, que comentou o mais recente livro de D. D. Maio, um romance de fantasia intitulado Vanda e autopublicado este ano via Bubok. A Rita já tinha aparecido com um outro comentário a este livro, noutro sítio, mas este é mais desenvolvido. Nada de FC, uma vez mais.

Depois chegou a Ana Rute Primo trazendo a sua opinião sobre o romance de Hugo Gonçalves intitulado Deus Pátria Família. Uma edição do ano passado da Companhia das Letras, este livro é história alternativa (ou pelo menos tem elementos de), o que por aqui conta como FC.

Na leitura que é para mim a mais interessante da semana, a Cris Rodrigues fala-nos de um livro de Jacinto Lucas Pires que parece entrar pela distopia dentro, ainda que talvez não inteiramente. Oração a que Faltam Joelhos é um romance publicado este ano pela Porto Editora e distopia é FC. E vão dois.

Por fim, é o Paulo Nóbrega Serra que encerra a semana com a sua opinião sobre outro romance publicado este ano. As Pessoas Invisíveis, livro de José Carlos Barros, saiu pela Leya e também não tem FC.

E é só, e não está mal. Haverá mais para a semana? É provável. Basta virem cá verificar e saberão.

sábado, 6 de agosto de 2022

Virgílio Várzea: Núpcias Marinhas

Embora não tão acentuadamente como no primeiro conto, neste Núpcias Marinhas Virgílio Várzea volta a servir-se de todas as técnicas e muletas literárias de uma espécie de romantismo tardio que me desagradam sobremaneira.

De resto, há muito de comum entre as duas histórias, o que é mais um fator a contribuir para o fraco prazer com que eu li esta. Temos aqui um casamento que, como o lugar onde os noivos habitam é pobre e vazio ao ponto de nem ter uma capela, envolve uma travessia marítima. Várzea é igual a si próprio: vírgulas por todo o lado, adjetivação em excesso, montes de advérbios. E aqui resolve pôr personagens a avisar o cortejo de que uma tempestade se aproxima, pelo que melhor seria adiar-se o casório. Mas claro que as ignoram. E o leitor compreende com total clareza todo o enredo da história pouco depois de ela começar.

Claro que tudo termina em tragédia, com facas e alguidares em abundância. Se o estilo do escritor ajudasse, podia ser que o conto tivesse algum interesse. Mas o estilo de Várzea só desajuda. Este é mais um conto perfeitamente dispensável.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Emanuel Félix: Os Mortos e as Sementes

Claro que a evocação do falecido (ver texto anterior) não ficaria completa sem apresentar a poesia do falecido. É precisamente o que se faz por intermédio deste Os Mortos e as Sementes e de um segundo poema de Emanuel Félix de que falarei um pouco mais adiante.

Este é um poema sobre a morte, que Félix dedica à memória do pai. E pareceu-me um bom poema, embora deva mais uma vez sublinhar que eu pouco sei de poesia. Félix trata a morte como parte da vida, uma etapa mais do ciclo de vida, morte, renascimento que é, de facto, a natureza verdadeira desta nossa biosfera planetária. Sem misticismos, embora os que sejam de inclinações místicas possam encontrar aqui interpretações que os contentem. De uma forma muito terra-a-terra. Literalmente.

Não sei se é de facto um bom poema; pode ser só impressão minha. Mas sei que gostei. No fundo é o que mais me importa.

Textos anteriores desta publicação:

Sara Farinha: Uma Herança Familiar

E foi ao ler esta história que eu percebi a ideia do livro e o motivo por que a história anterior termina de forma tão abrupta. Uma Herança Familiar volta a ser uma história bastante curta, mas nela vamos reencontrar o sabre que se tinha como que imposto ao protagonista da história de Carlos Silva. Ou seja: este é um livro composto de várias histórias, mas existe uma linha narrativa global a uni-las.

Sara Farinha, no entanto, não tem a qualidade literária de Carlos Silva e a sua história ressente-se desse facto. O protagonista é um homem numa missão. Talvez seja o mesmo da primeira história, talvez não seja (o da primeira é conhecido apenas como Cliente, o desta tem nome: Xavier), mas parece bastante diferente em termos de personalidade. Seja como for, a ideia dele é vingar o sabre, que terá sido demasiadas vezes desembainhado sem razão e embainhado sem honra. Fica-se sem perceber como nem quando nem propriamente por quem; sabe-se apenas que tudo se passa entre gente (ou não-gente) capaz de manusear a magia.

O final é mais uma vez deixado escancarado, agora na iminência de violência, mas se a primeira história tinha na construção de um universo ficcional o seu ponto forte, esta não tem pontos fortes. É uma historinha bastante banal e pouco inspirada, embora não o suficiente para ser má. É daquelas histórias que se leem com um encolher de ombros, servindo principalmente para, agora que já está entendida a ideia da publicação, ficar na expetativa do que virá a seguir.

Conto anterior deste livro:

Miguel Carqueija: Não Pintem o Rosto do Palhaço

As comédias românticas de sessão da tarde têm várias coisas em comum. Uma delas, provavelmente a mais importante, é serem tão formulaicas que na maioria dos casos basta ver alguns minutos do início para já se conseguir prever o final com alguma segurança. Outra é dirigirem-se a um público predominantemente feminino, pelo que é muitas vezes a rapariga que salva as situações problemáticas em que se mete o seu interesse romântico, invariavelmente bonito e bom rapaz (pelo menos lá beeeem no fundo) mas um tanto ou quanto apatetatado, coitado.

Miguel Carqueija, aparentemente, gosta de fazer misturadas. Não é má ideia, em abstrato: misturar géneros e introduzir elementos inesperados nas histórias pode ser uma boa forma de alcançar alguma originalidade, ainda que seja conveniente fazê-lo com cuidado porque há coisas que são muito pouco compatíveis (ou nada). Aqui, neste conto, misturou um whodunnit com vida de circo e ficção científica e acrescentou-lhe um final de comédia romântica. E o resultado não é mau, ainda que a comédia romântica esteja claramente a mais.

O protagonista de Não Pintem o Rosto do Palhaço (bibliografia) é um homem desesperado para encontrar emprego, que finalmente o arranja num circo como maquilhador de um palhaço que é a criatura mais detestável à face da Terra. O ambiente é um futuro indeterminado, no qual a tecnologia da hibernação está desenvolvida e traz benefícios a quem tem dinheiro suficiente para dela usufruir. Há no Brasil, aliás, uma cidade inteira dedicada a esse negócio. Hibernópolis. Pois.

É esse o único elemento futurista em todo o conto, o que nem chega a contar muito como ponto fraco. Noutro contexto sê-lo-ia, e dos fortes, mas o ambiente circense é de tal forma anacrónico que não é grande ataque à suspensão da descrença supor que continuará a sê-lo no futuro. Caso diferente é a polícia; vê-la aqui atuar como numa história de Agatha Christie é... hm... bizarro.

Sim, que não há whodunnit sem polícia. E sem homicídio. Por coincidência, ou talvez não, este acontece na tal cidade da hibernação, que o circo visita para recuperar o ilusionista da companhia que resolvera fazer umas férias numa cápsula criogénica. E o principal (ou único) suspeito é, naturalmente, o nosso protagonista principal.

Como disse, o conto não é mau. A relação entre o palhaço e todos os outros, especialmente o protagonista, está bem estabelecida, e isso é importante para o que acontece a seguir, e mesmo os diálogos, apesar de um tanto ou quanto simplórios aqui e ali, funcionam bem. E o elemento de whodunnit, que como é óbio inclui a típica revelação do criminoso (que como é igualmente óbvio não é o suspeito inicial), do móbil e do método do crime, está razoavelmente bem amarrado.

Mas também não é bom, o conto. Todos os elementos formulaicos que contém, e são muitos, impedem-no de o ser, a quantidade de deus ex-machina também o impede e aquele final à comédia romântica, com amor instantâneo à mistura, dá cabo do qualquer possibilidades que ainda pudessem restar.

Sim, porque tudo é desvendado pela trapezista. Que, vejam só, é membro de um certo Clube dos Amantes de Mistério, no qual é colega do filho do delegado da polícia que é encarregado de investigar o caso. Coincidências do caneco, hã? E não é que a rapariga se perde de amores pelo nosso protagonista, apesar de só aparecer na história já em Hibernópolis? Fantástico.

Mas pronto, é um conto razoável. Melhor do que vários dos anteriores, o que já não é mau.

Contos anteriores deste livro: