terça-feira, 26 de junho de 2018

Ponto da situação

A menos que seja uma pessoa distraída, quem acompanha aqui a Lâmpada e o Bibliowiki já terá reparado que as coisas têm andado a meio gás, quando não é a menos que meio: o wiki desde o início de maio que não mexe, e a Lâmpada idem há meio mês. E eu achei boa ideia explicar porquê, tanto mais que é coisa que tenderá a prolongar-se.

É que estou mais ou menos como este tipo verde aqui ao lado.

Nos últimos tempos tenho tido uma tradução em mãos, que não só tem sido particularmente exigente (sabem que mais? Detesto quando as personagens dos livros que traduzo resolvem embarcar. Detesto de detestamento detestado.) como tem sido feita a um ritmo um pouco mais acelerado do que poderia ser porque eu pretendia tirar uns diazitos de férias antes de deitar mãos à próxima, cuja data de entrega estava estabelecida para outubro. Essa exigência, por um lado, e o adiantar de serviço pelo outro foram os principais motivos para ter deixado alguns dos meus projetos um pouco ao abandono, ainda que não tenham sido os únicos.

Mas ainda bem que fui adiantando serviço: é que de repente em vez de ter um livro para traduzir até outubro tenho três para traduzir até fevereiro.

Ou seja, estou cheio de trabalho, e vou continuar a estar nos próximos meses. Por um lado é ótimo: antes ter trabalho a mais que trabalho a menos (na vida de um freelancer as ocasiões em que temos precisamente a quantidade certa de trabalho não são muito frequentes; é um dos maiores problemas desta forma de ganhar a vida). Por outro, no entanto, isso leva ao congelamento de uma série de atividades não essenciais.

Ou seja: aqui a Lâmpada tem sofrido e deverá continuar a sofrer. Tenho uns quantos contos lidos à espera de opiniões, mais de 10 livros e periódicos idem aspas, e é bastante provável que não consiga escrevê-las tão cedo. Depende sobretudo da rapidez com que o próximo livro se deixe traduzir, a qual só conhecerei quando começar efetivamente o trabalho. Está por dias, que estou a acabar a revisão do que tenho em mãos. Felizmente (em certo sentido) pouco tenho lido nos últimos tempos além do material que tenho para traduzir, e portanto a lista de opiniões pendentes pouco cresce.

Daqueles posts com informações sobre os outros autores aceites na antologia Nanocuentos del Planeta Tierra (como este), então, nem se fala: não vou ter mesmo tempo para eles. Felizmente (de novo, em certo sentido) há grandes atrasos com a tradução de textos produzidos em algumas das línguas mais exóticas, e tudo tem sofrido adiamentos sucessivos por causa desses atrasos. E sim, também as mudanças relacionadas direta ou indiretamente com a criação da página Meus Livros, que não, ainda não acabaram, estão em banho-maria.

De igual modo, o Bibliowiki deverá continuar parado nos tempos mais próximos. Talvez haja alguns dias em que consiga ir introduzindo lá algum material, mas duvido.

Idem para a minha escrita de ficção. Tencionava descongelá-la este ano, e no inverno ainda escrevi dois ou três contos muito curtos e uns parágrafos de uma novela que continua incompleta, mas tudo indica que ainda não será desta. Isto apesar de ter voltado a apresentar textos a antologias...

(e há também um projeto de edição a que não tenho conseguido dedicar tempo quase nenhum... isto é, há se o editor ainda não se chateou de vez com os atrasos; se calhar já não há.)

A única coisa que pretendo manter realmente ativa é o Ficção Científica Literária. Interrupções no FCL geram muito rapidamente uma enorme acumulação de material por tratar, o que não convém nada. Mas mesmo isso poderá sofrer interrupções, se por acaso as necessidades no trabalho que paga o exigirem.

Em suma: tudo indica que me vão ver pouco por aqui nos próximos tempos.

Já agora, haveria interesse em pontos da situação periódicos? Coisas parecidas com esta? Digamos, uma vez por mês, ou assim? Isso talvez se arranjasse mais facilmente; afinal, é bem mais simples e rápido escrever um texto descritivo do que um texto opinativo, que exige reflexão. Digam coisas. Aqui, no twitter, no facebook, cara a cara, como vos der mais jeito.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Lido: Esvintola

São raros os contos recolhidos por Adolfo Coelho que ultrapassam as duas ou três páginas e os poucos que o fazem, não raro, são em grande medida compostos por versos. Esvintola não: embora inclua três curtos versos perto do fim, é quase tudo texto corrido. E ocupa quatro páginas.

Sem surpresa, é um conto com um pouco mais de elaboração do que a maioria dos outros. Conta a história de um rei que vai para a guerra deixando as três filhas para trás, o que como se sabe, e porque as mulheres destas histórias são inerentemente presas de machos predatórios, é um risco imenso para as virtudes das donzelas. Mas o rei não se embaraça, dando a cada uma um ramo mágico, que murchará caso a menina escorregue. Claro que aparece logo um conde malandro que trata de aviar as piquenas, o que consegue fazer sem problemas, naturalmente, pelo menos quanto às duas mais velhas.

Mas a mais nova, a tal Esvintola (e que raio de nome!), era espertalhona e pouco dada a roçadelas prematrimoniais, e vai daí o conde mau dá-se mal. Bem feita.

Este conto é uma propaganda à virtude, já se vê, tal como esta era entendida nos tempos de antanho, com a correspondente moralidade. Um conto destinado a ensinar meninas, provavelmente. Podia resultar numa história engraçada se fosse modernizado, desenvolvido, tratado com saudável iconoclastia, mas a verdade é que tal como está não me parece que seja leitura particularmente aconselhável.

Dito isto, não deixa de ser agradável encontrar de vez em quando neste livro algo um pouco mais elaborado do que as três pancadas habituais.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 10 de junho de 2018

Lido: Sozinho no Deserto Extremo

E se de repente toda a gente desaparecesse e te visses sozinho num planeta inteiro? É uma ideia que pouco tem de novo, tendo já sido desenvolvida variadíssimas vezes em ficção e provavelmente muito mais vezes na especulação indolente de miúdos sem muito que fazer, sozinhos na cama à espera de adormecer. Sim, estou a falar de mim e a supor que não sou caso único: na já distante época em que fui pré-adolescente foram várias as vezes em que passei horas insones a especular sobre como reagiria num cenário destes. Antes ainda de sequer saber que havia uma coisa chamada "ficção científica", apesar de já ter lido quase todo o Júlio Verne publicado na coleção da Bertrand.

Luiz Bras não se limitou a especular: escreveu. E não se limitou a escrever uma vez, pois ainda há uns meses publiquei aqui na Lâmpada uma outra opinião a outra obra com o mesmo título e mais ou menos o mesmo tema. Mas só mais ou menos. Sim, a base do indivíduo que se vê subitamente sozinho é igual, mas ao passo que a Sozinho no Deserto Extremo original se ambientava na biblioteca infinita de Borges, esta versão ambienta-se numa grande cidade brasileira, pelo menos de início. Tem portanto um fundo mais realista, o que a aproxima mais da ficção científica. E há outras diferenças, a começar pela óbvia: a primeira obra é uma vinheta, esta é um romance.

A estrutura narrativa também é bastante diferente. A vinheta é sequencial. No romance, porém, Bras vai repescar a mesma estrutura narrativa que utilizou noutra vinheta de que também aqui falei há pouco tempo, Olho por Olho, Dente por Dente: uma estrutura não linear, em que os episódios se misturam no fluir da narrativa e é necessário estar particularmente atento às datas que os identificam para se perceber o que antecede o quê ou o que tem o quê como consequência.

De resto, trata-se de uma história obviamente distópica, com uma certa atmosfera em comum com o Ensaio Sobre a Cegueira do Saramago. Numa grande cidade brasileira (São Paulo?), um publicitário acorda para um novo dia e descobre a família misteriosamente desaparecida. Desesperado, tenta procurá-la, mas depressa se apercebe de que não é só a sua família que desapareceu, a mulher, os filhos, mas também todas as outras pessoas, substituídas por pilhazinhas de roupa espalhadas por toda a parte. Há nisto fortes ecos do arrebatamento milenarista cristão, mas o desenvolvimento da história é, tal como acontece com a obra de Saramago mencionada acima, fundamentalmente de ficção científica, seguindo o leitor o que o protagonista faz e pensa à medida que vai tomando consciência da situação em que se encontra, vai fazendo o luto pelos seus entes queridos, e vai tentando perceber o que pode fazer com o resto da vida.

Um detalhe, porém, é pouco rigoroso em termos de FC, pressupondo que esta história se ambienta mais ou menos no nosso presente (e dá todos os sinais disso): a resistência das comodidades da civilização à ausência de atenção e manutenção. A luz, a internet, canais de televisão, a água canalizada, por aí fora, tudo vai deixando de funcionar aos poucos, é certo, mas perdura durante bastante mais tempo do que perduraria na realidade.

Mas isto é só um detalhe, relativamente pouco importante.

A primeira parte do romance é apenas o que ficou sugerido acima: a confrontação de um homem com a sua solidão e o desespero que daí advém. Mas um toque de telefone muda tudo. Um toque de telefone que lhe mostra que afinal não está inteiramente sozinho no mundo, um toque de telefone que ao mesmo tempo que lhe devolve alguma esperança de, pelo menos, poder existir alguma espécie de futuro, lhe traz também uma sombra de perigo à existência, pois onde há uma pessoa pode haver mais, e quem sabe que tipo de pessoas serão? E o que poderão fazer e sobretudo fazer-lhe, desaparecida como está toda a rede social de segurança e justiça?

E nesse momento, o romance transforma-se numa história de estrada e sobrevivência, com cada indivíduo por si, uma espécie de Mad Max tropical, no qual o protagonista vai entrar num confronto mais profundo com a loucura e um punhado de outras personagens (e por falar em loucura, será que essas personagens são mesmo reais? Ou frutos da sua imaginação endoidada?) enquanto serpenteia de lambreta por uma selva de veículos acidentados até sair da cidade e fugir a um homem que aparentemente o quer matar, por nenhum motivo que consiga compreender. Uma fuga acompanhada por uma boneca insuflável (que ele insufla de personalidade, o que provavelmente é uma pista relevante) e por muito pouco mais.

No fim, ele acaba como começa, sozinho no deserto extremo, como provavelmente seria inevitável desde o início.

Este é um romance sobre a solidão, claro, mas também sobre a condição humana de animal social, e ainda sobre a absoluta falta de sentido de todas as realizações humanas a partir do momento em que deixa de haver seres humanos para lhes conferirem esse sentido, desde as de grande escala, como uma metrópole, até às mais impalpáveis, como um livro ou um filme. Tudo contado de uma forma cronologicamente sinuosa que contribui para acentuar a sensação de estilhaçamento da realidade que está na base da história. Um romance que, tal como o Ensaio Sobre a Cegueira, é de uma espécie de ficção científica cheia de impurezas. E bom.

Este livro foi-me oferecido pelo autor.

sábado, 9 de junho de 2018

Lido: A Tentação de Eva

As experiências literárias, como quaisquer experiências, comportam sempre um risco: falhar. Na verdade, a maioria falha mesmo, se não por completo pelo menos em parte ou para parte dos leitores, pois mesmo quando a experiência é compreensível é sempre invulgar (de contrário não seria experiência) e aquilo que é invulgar traz sempre em si uma dificuldade acrescida e muita gente não gosta disso. E por vezes é pouco compreensível.

Vem isto a propósito de A Tentação de Eva, um poema (aqui não há dúvida) de Luiz Bras em que é possível compreender que estamos em territórios bíblicos e paradisíacos e se conta a história da expulsão de Eva do paraíso, mas pouco mais. Trata-se de um exercício de invenção de linguagem, possivelmente ancorado em brasileirismos obscuros mas nem disto tenho certeza. Certeza tenho é de que só citando compreenderão o que quero dizer.

O poema começa assim: Flecheira, a serpeste fliduchou. Estão a ver? Não estão, não, que há pior. Olhem este verso: Vapt-vupt! Eva-nuvem blablaviu e badulatiu. E é tudo assim, do início ao fim, uma impenetrável selva de neologismos cujos significados nem tenho a certeza de que o próprio Luiz Bras conhece, pois por vezes parece-me mais preocupado com a sonoridade da junção de sílabas do que com o significado subjacente.

Enquanto pessoa que já fez coisas destas (ainda que nunca a este extremo), entendo o gozo que dá fazê-las. Mas estar do lado do leitor não dá nem um décimo do prazer, e isso é um problema, a meu ver.

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Lido: Supremo Supermercado

Supremo Supermercado é um microconto de Luiz Bras, de que não gostei muito, sobre alguém que se constrói como se fosse o monstro de Frankenstein de si próprio, mas não consegue encontrar todos os itens de que precisa para se completar. E não gostei muito porque não me parece que a ideia funcione bem neste formato ultracurto (apenas três linhas); creio que precisa de mais extensão para conseguir criar o impacto emocional que julgo que o autor procurava. E este texto já vai muito mais extenso do que a história, portanto chega.

Textos anteriores deste livro:

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Lido: A Vingaçna das Fêmaes de Lnuaris

Não, não estou bêbado. Nem vocês. É mesmo este, A Vingaçna das Fêmaes de Lnuaris, o título deste texto, e todo ele se serve do conhecido fenómeno de a generalidade das pessoas ser capaz de ler quase tão facilmente um texto com letras alteradas como um texto com tudo no sítio que lhe é próprio, desde que a primeira e a última letra de cada palavra sejam as corretas. Aqui, porque se trata de um texto literário com tudo o que isso implica, a leitura torna-se mais difícil do que é norma nos textos deste tipo, os quais costumam ser muito diretos e simples, mas não impossível; longe disso.

É mais um dos textos de Luiz Bras que se situam algures entre o poema e o conto, que neste caso seria uma pequena vinheta. Um texto muito experimental, como já fica claro pelo que foi dito acima, no qual a forma é muito importante. No entanto, é dos tais casos em que as peculiaridades da forma fazem absoluto sentido tendo em conta o conteúdo: uma história de ficção científica que consiste de um alerta deixado por um cirurgião, aparentemente num planeta distante chamado Lunaris, contra respirar-se o pólen das flores locais porque este provoca alucinações. O texto distorcido é um reflexo do estado alterado do pobre explorador afetado pelo pólen, e contribui para a plena compreensão do problema. Muito bom.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Lido: Coisas Caem de Sua Boca

Ao começar a ler Coisas Caem de Sua Boca, mais um daqueles mistos de conto e poema que Luiz Bras por vezes faz, lembrei-me intensamente dos contos da série das Ratazanas, publicados no Infinitamente Improvável. Mas ao contrário destes, de cujas bocas só caem ratazanas, nas personagens de Bras o que salta boca fora pode ser de tudo um pouco, e portanto essa lembrança depressa se desvaneceu, o que foi auxiliado pelo tema ser também bem diferente, não a política e os seus discursos ocos ou enganadores, mas discussões conjugais e tudo aquilo que é arremessado pelo ar em todas elas.

É bom? É bom, sim, mas não me enche as medidas. E é fantástico? Sim, se encararmos o prodigioso vomitório ao pé de letra e não como hipérbole. Não se pelo contrário. Para efeitos de wiki vou preferir sim.

Textos anteriores deste livro:

Lido: O Outro

Já se sabe que Jorge Luis Borges, embora nunca tenha sido um escritor de ficção científica, namorou o género (deliberadamente ou não, pouco interessa) em vários dos seus contos, ao ponto de os ver incluídos em algumas antologias de histórias de FC. E este O Outro é precisamente um desses contos.

Apesar de ter um fundo aparentemente onírico, ou pelo menos fantástico no sentido todoroviano do termo, no sentido de o inexplicável irromper na normalidade do mundo, este é no fundo um conto bastante clássico de viagem no tempo, relacionado com o paradoxo gerado por um encontro de alguém consigo próprio noutra fase da vida. A ligação com a ficção científica é evidente, mesmo não sendo este conto FC no sentido estrito.

Borges usa este artifício para refletir sobre si próprio, para o que se usa como protagonista da história. Escrito já numa fase avançada da vida do Borges que escreve, mais ou menos a mesma em que se encontra o Borges-personagem mais velho, o conto faz o contraponto de quem o personagem (e o autor?) foi e quem é, analisando nas entrelinhas o que se manteve constante e o que mudou. Só nas entrelinhas, pois à superfície a história é quase toda ocupada pela tentativa do velho provar ao novo que é ele mesmo décadas mais tarde. Essa camada superficial contribui para que o conto esteja longe de ser tão umbiguista como poderia ter sido, e o caráter universal das mudanças que o envelhecimento causa na personalidade faz o resto. Este não será um dos grandes contos de Borges, pois falta-lhe uma certa frescura e o transbordante prazer no exercício intelectual que essas histórias costumam conter, mas não deixa de ser um conto bastante bom.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Lido: Singularidades de uma Rapariga Loura

Singularidades de uma Rapariga Loura, apesar de ser "apenas" um conto, deve ser dos mais conhecidos títulos de Eça de Queirós, graças em boa medida à adaptação que Manuel de Oliveira dele fez para cinema. É uma história bem contada, como seria de esperar do melhor escritor português do século XIX. Uma história de paixão entre um caixeiro que trabalha na loja do tio e uma rapariga loura que mora em frente e tem uma determinada singularidade que o leitor atento compreende bastante antes do protagonista. E, aparentemente, o tio percebe antes de todos, uma vez que proíbe tão intransigentemente o eventual namoro que deixa o sobrinho entregue a si próprio caso insista nele. Coisa que faz, com as consequências que não é muito difícil prever.

Narrada com mão de mestre, habitada por personagens tridimensionais e cheias de solidez, esboçando com grande eficácia um retrato com todo o ar de ser fiel da burguesia mercantil lisboeta de há coisa de cento e cinquenta anos, é uma história repleta de qualidades e portanto de qualidade. Mas também é daquelas histórias que pouco interesse costumam despertar-me, em especial quando a partir de certa altura só apetece esbofetear o mancebo enamorado para ver se acorda e percebe quem ali vai de braço dado com ele. Prefiro histórias que sinto que me enriqueçam de algum modo, e estes contos mais ou menos morais sobre relações sentimentais e relações sociais não costumam dar-me grande coisa. Na verdade, tendem a despertar-me algum tédio, por melhores que sejam. E esta é, de facto, muito boa, ao ponto de o que mais me interessou ter sido mesmo a mestria do autor. Mas não, não me encheu as medidas.

domingo, 3 de junho de 2018

Lido: The Cure

Às vezes surgem na ficção científica histórias que quase parecem proféticas. Curiosamente, ou talvez não, elas são mais comuns na FC mais politizada do que naquela que se preocupa principalmente com as grandes mudanças tecnológicas que poderão vir a ocorrer num futuro mais ou menos próximo. Isto acontece por um motivo: a sociedade e as suas dinâmicas estão menos sujetas do que a ciência e a tecnologia a grandes e revolucionárias mudanças de paradigma. Por outras palavras, mudam mais devagar e só depois dos agentes de mudança estarem visíveis durante bastante tempo.

Tempo suficiente para os autores repararem neles e elaborarem as suas histórias à sua volta.

The Cure, de Robert Reed, é uma dessas histórias. Protagonizada por um escritor fracassado que tem um sucesso repentino e é obrigado a enfrentar as consequências desse sucesso, é uma história que, por entre ironias sobre o mundo editorial e algumas tendências que Reed vê na sociedade sua contemporânea, delineia uma teoria da conspiração baseada num plano para levar o público a perder a confiança nas instituições.

É uma abordagem claramente de direita: Reed insurge-se, entre outras coisas, contra o "politicamente correto," esse papão que tão útil tem sido a tanta gente, sugerindo que será daí que virá a vaga de irracionalidade a varrer a nação, para grande benefício de uns demagogos que não chegam a deixar-se identificar. Mas isso só contribui para a derradeira ironia de ter sido precisamente a direita e as suas fake news a pôr em prática algo de muito semelhante ao que Reed aqui descreve e que acabou por desembocar no trumpismo (ironia essa que muito provavelmente não lhe terá passado despercebida; Reed não faz segredo do desprezo que a dita "alt-right" lhe provoca).

Esta é uma boa história. Muito boa? Não, apenas boa. Uma daquelas histórias que se servem da ironia para transmitir opiniões muito sérias acerca do mundo. Uma história relevante, talvez mais nos dias de hoje do que quando foi publicada, em 2005.

Contos anteriores desta publicação:

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Em maio falou-se de...

E cá está mais um destes apanhados mensais, o quinto. Quem frequenta a Lâmpada habitualmente já deverá conhecê-los, e os outros podem dar um salto aqui para saber mais e/ou ir à tag leituras fc para dar uma olhadela aos anteriores. E aos futuros, se só der com isto depois de julho de 2018. Este mês há uma pequena alteração relativamente a meses anteriores, pois passei a fazer uma coisa que não fazia antes: incluir informação sobre o número de vezes que cada obra é comentada ao longo do mês.

E como sempre passo já às listas deixando para o fim dizer mais umas coisas sobre elas.

Ficção portuguesa:
  1. Os Monociclistas, de António Ladeira (2x)
  2. Anjos, de Carlos Silva
  3. A Caverna, de José Saramago
  4. Shark-Killer, de Bruno Martins Soares
Ficção brasileira:
  1. O Último Homem, de Luiz Bras (conto)
  2. Saltitantes Sentinelas, de Luiz Bras (conto)
  3. A Fortaleza, de Day Fernandes
  4. Enquanto Eles não Vêm, de Robson Gundim
  5. Adução: Dossiê de um Transmutado Alienígena, de Pedroom Lanne
  6. O Homem, de Furio Lonza
  7. Guerra à Ruína, de Jonas de S. Martins
  8. Estratégias de Combate, de Carlos André Mores (conto)
  9. O Conto Fantástico, org. Jerônimo Monteiro
  10. Boas Meninas não Fazem Perguntas, de Lucas Mota
  11. A Era dos Mortos - parte I, de Rodrigo de Oliveira
  12. Horror Familiar, de Diogo Ramos (conto)
  13. O Vôo do Ranforrinco, de Gerson Lodi-Ribeiro (conto)
  14. O Filho do Homem, de Roberto Schima (conto)
  15. Cometas, de Cesar R. T. Silva (conto)
  16. Mitos Modernos, org. Leonardo Tremeschin, Andrioli Costa e Lucas R. Ferraz
Ficção angolana:
  1. Barroco Tropical, de José Eduardo Agualusa
Ficção internacional:
  1. Doctor Who: Heroes and Monsters Collection, org. ??
  2. Guerra Americana, de Omar El Akkad
  3. O Poder, de Naomi Alderman
  4. Todos os Pássaros no Céu, de Charlie Jane Anders (2x)
  5. O Conto da Aia, de Margaret Atwood
  6. Oryx e Crake, de Margaret Atwood (2x)
  7. The Player of Games, de Iain M. Banks
  8. As Crônicas de Medusa, de Stephen Baxter e Alastair Reynolds
  9. Ficciones, de Jorge Luis Borges
  10. Matar o Presidente, de Sam Bourne
  11. Os Viajantes, de Alexandra Bracken
  12. The Darkest Minds, de Alexandra Bracken
  13. Fahrenheit 451, de Ray Bradbury
  14. Anjos e Demônios, de Dan Brown
  15. Robô Selvagem, de Peter Brown
  16. Kindred - Laços de Sangue, de Octavia E. Butler
  17. A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil, de Becky Chambers
  18. 2001 - Uma Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke
  19. Armada, de Ernest Cline
  20. Jogador nº 1, de Ernest Cline
  21. Leviatã Desperta, de James S. A. Corey
  22. O Círculo, de Dave Eggers
  23. Um Vento à Porta, de Madeleine l'Engle (4x)
  24. A Libélula Presa no Âmbar, de Diana Gabaldon
  25. Sombra do Paraíso, de David S. Goyer e Michael Cassut
  26. Dez Mil Céus Sobre Você, de Claudia Gray
  27. A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin
  28. Como Parar o Tempo, de Matt Haig
  29. Os Humanos, de Matt Haig (4x)
  30. Fatherland, de Robert Harris
  31. Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (2x)
  32. A Incendiária, de Stephen King (6x)
  33. Angles of Attack, de Marko Kloos
  34. Chains of Command, de Marko Kloos
  35. Fields of Fire, de Marko Kloos
  36. Lines of Departure, de Marko Kloos
  37. Points of Impact, de Marko Kloos
  38. Terms of Enlistment, de Marko Kloos
  39. Justiça Ancilar, de Ann Leckie (2x)
  40. O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu
  41. Sonhos na Casa da Bruxa, de H. P. Lovecraft (conto)
  42. Criaturas da Noite / Vigilante Noturno, de Marie Lu (5x)
  43. Warcross, de Marie Lu
  44. Arquivo X: Histórias Inéditas, org. Jonathan Mabery
  45. Santuário dos Ventos, de George R. R. Martin e Lisa Tuttle
  46. O Milésimo Andar, de Katharine McGee
  47. Cinder, de Marissa Meyer (2x)
  48. Gigantes Adormecidos, de Sylvain Neuvel
  49. 1984, de George Orwell
  50. Felicidade para Humanos, de P. Z. Reizin
  51. Encarcerados, de Kim Stanley Robinson
  52. A Sexta Extinção, de James Rollins
  53. As Máquinas da Destruição, de Fred Saberhagen
  54. Coração de Aço, de Brandon Sanderson
  55. Encarcerados, de John Scalzi (3x)
  56. Head On, de John Scalzi
  57. Dimension of Miracles, de Robert Sheckley
  58. As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift
  59. A Ilha do Doutor Moreau, de H. G. Wells
  60. Where Late the Sweet Birds Sang, de Kate Wilhelm
  61. Interferências, de Connie Willis (6x)
  62. Pré-História do Futuro, de Stefan Wul
  63. Thrawn, de Timothy Zahn
  64. Nós, de Evguéni Zamiátin
Não-ficção internacional
  1. De Volta Para o Futuro, de Caseen Gaines
  2. Homo Deus, de Yuval Noah Harari
  3. A Verdadeira História da Ficção Científica, de Adam Roberts
Isto este mês foi um pouco melhor do que em meses anteriores e sim, até em Portugal, apesar de números totais idênticos aos de abril. Em todo o caso, houve comentários a três livros de FC portugueses e a um quarto livro que, não sendo de ficção científica, apresenta alguns elementos do género. É uma melhoria. Também houve mais comentários a não-ficção internacional e a ficção internacional, e apareceu um comentário a ficção angolana, algo a que nem sempre temos direito.

Mas onde realmente se notou uma melhoria significativa foi nos comentários à FC brasileira. Não se deixem enganar pelos números: sim, é verdade que em abril foram 20 e em maio 16, mas esses 20 correspondiam a apenas 6 livros, ao passo que este mês os livros subiram a 9. Mais expressivo ainda é o facto de após remover-se as referências oriundas aqui da Lâmpada restarem 5 obras em abril e 10 em maio. O dobro.

Será para continuar? É o que veremos nos próximos meses. Em todo o caso, continua a ser enorme a desproporção entre opiniões a material lusófono e a material estrangeiro, bem maior do que a que também existe entre a edição de material lusófono e estrangeiro. Há malta que faz gala de nunca ler (ou pelo menos nunca comentar) nada escrito por portugueses e brasileiros (ou só por portugueses ou só por brasileiros; para demasiada gente, dos dois lados do Charco Atlântico, é como se também na internet houvesse um oceano a separar Portugal e o Brasil, "impossibilitando-a" de chegar àquilo que vai saindo online), já para não falar dos escritores africanos que escrevem FC ou coisas que roçam por ela que, se existem, não se dão a conhecer.

Quando chegará o afrofuturismo aos PALOP? Sim, sim, o Agualusa. Mas o Agualusa é a exceção que confirma a regra, e o que ele faz é mais roçar pelo afrofuturismo do que mergulhar realmente nele.

Mas voltemos ao tema.

Essa desproporção, de resto, é ainda maior do que aparenta ser pela simples listagem de obras, porque se por um lado só uma obra, entre todo o material lusófono, apareceu mais que uma vez ao longo do mês, no caso do material traduzido tivemos dois livros a surgir seis vezes, um a surgir cinco vezes, mais dois a aparecer quatro vezes e por aí fora.

Mudará isto algum dia? Não falo do material lusófono passar a ser maioritário, que isso talvez nem sequer seja desejável, mas pelo menos de haver algum crescimento. Não sei, e duvido. Mas um dia gostaria de ver regularmente nestas listas cerca de 20 opiniões a coisas brasileiras e outras tantas a material português (ou talvez um pouco menos, que não temos assim tanta gente a produzir... e aqui tenho culpas no cartório, bem sei).

Impossível? Só enquanto não o tornarmos possível.