terça-feira, 29 de março de 2022

Luiz Bras: Bilhetes

Se com o conto anterior Luiz Bras não conseguiu satisfazer por inteiro o meu gosto de leitor, com este Bilhetes volta a atingi-lo em cheio.

É um conto profundamente kafkiano no que o termo implica de labirintos aparentemente sem saída e de absurdo nas tarefas burocráticas. Mas não é kafkiano nos pormenores que formam o pano fundo da história; esses têm mais a ver com Dick, mais uma vez. É também um conto muito curto, um daqueles contos de situação sem um enredo propriamente dito, ou por outra, com um enredo implícito mas não explícito. E sim, vêm aí spoilers.

Um analista trabalha afincadamente num edifício cheio de outros analistas. Todos têm uma só função: procurar, em resmas de papel aparentemente intermináveis, uma sequência de cinco números cinco. Porquê? Porque isso seria indicação de que a máquina do tempo está funcional. Mas ninguém encontra essa sequência. Mais: ninguém encontra um só cinco para amostra. E as teorias mais ou menos conspirativas abundam. Isso e os colapsos nervosos que levam os analistas a saltar pela janela.

O que este conto tem de realmente bom é o ambiente opressivo e paranoico que Bras consegue criar em meras quatro páginas e a forma como deixa implícita uma história muito maior do que aquela que conta, com uma economia de palavras muito bem conseguida. Não será conto para todos os leitores: há quem não goste desta forma de contar histórias. Mas é conto para mim. Bastante bom.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 27 de março de 2022

Leiturtugas #146

Ora vivam, e sejam bem-vindos a mais uma semana de leiturtugas, ainda que nem tudo o que aqui vem seja, estritamente falando, desta semana.

Temos para vocês uma opinião de uma participante oficial no projeto, a Carla Ribeiro, uma vez mais. O que a Carla leu e comentou esta semana foi uma fantasia infantojuvenil — o mais recente volume da série de Bruno Matos A Família Monstro. Com ilustrações de Raquel Carrilho, o livro intitula-se Receita em Chamas e foi publicado já este mês pela Booksmile. Não tem nada de FC, claro, e a Carla passa a 2c9s.

Entre os oficiosos, temos uma opinião publicada mesmo a abrir março, que só agora detetámos (consequências da falta de um feed RSS funcional no site). Quem opina é Pedro Nóbrega Serra, e o livro que foi lido é a coletânea de Luísa Costa Comes intitulada Afastar-se. Trata-se de uma edição de 2021, da Dom Quixote, e julgo que também não traz nada de próximo à FC.

Mesmo desta semana é a opinião do Pedro Miguel Silva sobre A Menina do Mar, outra fantasia infantojuvenil. Publicado originalmente em 1958, este conto de Sophia de Mello Breyner Andresen foi reeditado em 2021 pela Porto Editora e foi essa a edição lida pelo Pedro. Também nada tem de FC, claro.

Três livros, zero FC. A malta que lê habitualmente FC anda muito preguiçosa, com exceção do Artur Coelho. Mea culpa, mea maxima culpa.

Veremos o que nos reserva a próxima semana. Até lá.

sábado, 26 de março de 2022

Carina Portugal: A Menina que não Gostava de Doces

Há uma coisa que já sei à partida que me vai irritar em todas as histórias englobadas nesta antologia, pelo que vou fazer os possíveis por ignorar essa irritação quando chegar a hora de falar delas: o Halloween em si mesmo, essa americanice que chega a Portugal pela mão dos filmes de Hollywood e do comércio, substituindo as tradições locais (que também não me dizem nada, diga-se de passagem) em volta do dia de todos os santos.

Dito isto, a Carina Portugal conseguiu fazer aqui um conto engraçado. E aviso já os alérgicos a spoilers que vai haver disso neste texto.

A Menina que não Gostava de Doces é uma história sobre uma menina que resolve pela primeira vez ir brincar ao Halloween, naquilo que a festa tem de mais típico: os miúdos que andam a aborrecer os vizinhos exigindo doces sob ameaça de travessuras. Esperava a protagonista que lhe dessem oportunidade de fazer travessuras, mas o raio dos vizinhos — os que lhe abrem a porta, pelo menos — só lhe dão doces, coisa que ela detesta. E ela irrita-se. E tenta vingar-se.

É que a miúda não é propriamente uma miúda vulgar, pelo que não tem propriamente os gostos e prioridades dos miúdos vulgares: é uma bruxinha. E com isso a Carina arranja uma história divertida e de uma forma geral bem escrita, de pegada algo infanto-juvenil (o que não tem nada de mal, caso estejam a pensar que isto rebaixa de alguma forma a história), à qual talvez só falte um final mais forte para ser realmente um bom conto.

É um bom começo para a antologia. Até conseguiu reduzir um pouco a irritação causada pelo tema.

terça-feira, 22 de março de 2022

Irmãos Grimm: O Judeu Entre Espinhos

Autores alemães, a escrever, ou a transcrever, no século XIX. História tradicional, oriunda de uma região de antissemitismo profundo e arraigado. Personagem judeu. O que poderá correr mal?

Se responderam "tudo", acertaram em cheio.

Sim, O Judeu Entre Espinhos, conto que os Irmãos Grimm parecem ter reconstituído (ou construído) a partir de fontes dispersas, visto que ao contrário do que é hábito nas suas notas não referem uma origem para ele, falando apenas das versões que foram encontrando aqui e ali, é uma história profundamente antissemita.

Começa com um pobre que é pessimamente pago por um amo avarento e vai correr mundo com o parco pecúnio no bolso, como em tantas outras histórias. Um anão, que encontra na floresta, enriquece-o com objetos mágicos. E depois encontra um judeu, que maltrata sem razão nenhuma para isso, só porque sim. Compreensivelmente, o judeu jura vingança. Mas, sendo judeu, a vingança só serve para reforçar os preconceitos antissemitas de quem conta a história e o desgraçado acaba enforcado.

Este é daqueles contos dos Grimm que são um tanto ou quanto repugnantes. Não é o primeiro, e provavelmente não será o último. Fruta da época, em boa parte, fruto da cultura vigente, mas não é saber disso que me poupa à volta ao estômago.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 21 de março de 2022

Luiz Bras: Nuvem de Cães-Cavalos

Philip K. Dick ganhou renome mundial, entre outras coisas, pela forma como muitas das suas histórias apresentam uma realidade de alicerces corroídos, instáveis, prestes a desfazer-se em sucedâneos mais ou menos alucinatórios regados a paranoia. E Luis Bras, nesta Nuvens de Cães-Cavalos, faz o mesmo, juntando-lhe um burilamento literário a que Dick pouca importância dava.

O ambiente é um aeroporto num futuro indeterminado mas próximo, ou talvez num presente paralelo. Ou até, quem sabe, numa simulação habitada por simulacros. O protagonista é um homem que mostra desde as primeiras linhas sinais claros de paranoia («não havia ninguém me vigiando, quero dizer») e se prepara para uma viagem que não deseja fazer. Mas encontra uma rapariga misteriosa e suicida, que se calhar nem sequer existe, e isso vai fazê-lo repensar os planos e a vida. Ou talvez não.

É tudo muito nebuloso nesta história de ficção científica bem soft. Tudo muito dickiano. Muito alucinatório. Tudo muito bem escrito, também. Mas não gostei tanto dela como de algumas das anteriores. Sim, é verdade que o efeito que Bras quer alcançar está bem alcançado, mas não encaixa tão bem na minha sensibilidade literária como a maior parte das histórias anteriores. É um bom conto, sem dúvida, mas não é um conto que me tenha agradado muito.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 20 de março de 2022

Leiturtugas #145

Finalmente no dia certo, vamos lá fazer a história de mais uma semana de Leiturtugas.

É uma história que parece um tanto ou quanto em modo de déjà vu. As personagens são exatamente as mesmas das da semana anterior, e sobem a palco precisamente na mesma ordem. Só os títulos mudam, e por consequência também muda a imagem que podem ver aqui ao lado.

Sim, que a semana começou com a Carla Ribeiro e mais uma sua opinião, desta feita sobre um romance. O autor é João Pedro Vala, o título é Grande Turismo, e foi publicado pela Quetzal no mês passado. Não parece ter nenhuma FC (e mesmo o fantástico é algo escasso), pelo que a Carla passa a 2c7s.

E se a semana começou com a Carla Ribeiro, terminou com o Artur Coelho, que mais uma vez nos traz uma das suas breves opiniões sobre BD, mais desenvolvidas noutro lugar. Desta feita a luz cai sobre o número 3 da revista Umbra (perceberam? Luz, umbra? OK, deixem lá), uma edição do ano passado. E o Artur passa a 0c6s.

E está feito. Para a semana teremos cá mais coisas a divulgar, provavelmente. Até lá.

sábado, 19 de março de 2022

Escrita de fevereiro


O mês até ia bem lançado. Até parecia tudo encaminhado não para bater recordes, não para ser particularmente produtivo, mas com toda a certeza para terminar com mais texto escrito do que qualquer um dos mais recentes. Mesmo sendo o mais curto do ano. As coisas pareciam estar finalmente a engrenar, a chegar a uma espécie de velocidade de cruzeiro, enfim, a avançar.

Depois começou a guerra. E eu paralisei, como expliquei aqui.

E nunca mais escrevi nem uma só palavra de ficção. Nem em fevereiro nem agora em março. Nada. Zero. E, como talvez tenham reparado, as de não ficção têm sido escassas. Recomeçam agora a aparecer. A custo.

Foi assim que fevereiro terminou com cerca de 10 páginas novas escritas, um pouco mais de três mil palavras. Todas escritas antes do dia 24. Quase todas escritas antes do dia 15, na verdade, pois a guerra começou uns dias antes de ser disparado o primeiro tiro.

Não sei se em abril haverá um post destes. Depende de haver ou não alguma coisa a dizer; não vou fazer um post só para dizer "olhem, continuo sem escrever nada". Se não o virem, já sabem: continuo sem escrever nada. Mas um dia voltarei a escrever, e aí estes posts regressarão. Até lá.

sexta-feira, 18 de março de 2022

Leiturtugas #144

E como a ideia é pôr isto em dia, vamos lá pôr isto em dia, trazendo-vos hoje as Leiturtugas da semana de 6 a 12 de março. Inclusive dos dois lados, claro.

A tarefa é facilitada por, mais uma vez, só haver duas opiniões a referir. Ambas de participantes oficiais, desta vez.

Começou com a Carla Ribeiro, que nos trouxe a sua opinião sobre uma antologia organizada por Pedro Lucas Martins. Editada no ano passado pelo próprio organizador, por intermédio do Projecto Foco, a antologia intitula-se Sangue Novo e consiste de histórias de horror e géneros conexos, aos quais não parece ter chegado a FC. A Carla passa, assim, a 2c6s.

E terminou com o Artur Coelho e mais uma das suas já habituais opiniões breves sobre BD, desenvolvidas mais a fundo noutro lado. A obra comentada desta vez é o nº 3 de Holy, com o título de A Serpente. Uma BD de Rafael Marques e Katiurna, publicada já este ano pela RK Comics. E o Artur passa a 0c5s.

E pronto, estamos em dia. Depois de amanhã deverão ter aqui a nota correspondente a esta última semana e depois há de seguir a programação habitual. Salvo imprevistos, claro.

Até lá.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Leiturtugas #143

Vamos continuar com isto? Bora lá.

Hoje recuperamos as Leiturtugas que surgiram por aí na semana de 27 de fevereiro a 5 de março. E é rápido porque foram só duas, uma oficial outra oficiosa.

A oficial coube à Tita, que publicou uma opinião em vídeo sobre dois livros de autoras portuguesas, um dos quais é de fantasia. Aquorea - Inspira, assim se chama o livro, é um romance que a autora que assina com o pseudónimo de M. G. Ferrey publicou no ano passado pela Nuvem de Tinta. É o arranque da Tita nas leiturtugas de 2022, com a primeira leitura sem FC. Ou seja, 0c1s.

Quanto à oficiosa, chegou-nos pela mão da Toupeira, que opinou sobre um livrinho infantil de José Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida. Não faço ideia da edição lida pela Toupeira, mas sei que este texto data de 1997. E sei também que não tem nenhuma FC.

E pronto, estamos conversados. Venha a semana seguinte.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Leiturtugas #142

OK, isto atrasou-se um tudo-nada.

Razões? Bem... a guerra, essencialmente.

Quando acontecem coisas assim importantes, eu tenho uma tendência algo desagradável para ficar um bom bocado obcecado, à procura de todos os bocadinhos de informação que consiga recolher, adiando tudo o resto. Não é bom, nem para a produtividade, nem para os projetos em curso, muito menos para a saúde mental. Mas não consigo evitar cair nesses torvelinhos informativos sempre que algo assim acontece, especialmente quando as consequências potenciais do que vai sucedendo são de molde a tornar tudo o resto irrelevante.

E tudo o resto inclui, evidentemente, este blogue e as Leiturtugas.

Depois tenho de fazer um esforço consciente para regressar às coisas dos tempos normais. E é mesmo esforço. Portanto, olhem, não vos sei dizer quando as Leiturtugas voltarão a estar em dia, mas o esforço começa aqui.

(Ou já começou há algum tempo, na realidade, mas aqui começa por fim a dar resultados.)

E começa com as opiniões que apareceram por aí na semana de 20 a 26 de fevereiro. Nenhuma de nenhum dos participantes oficiais, duas de oficiosos.

A Inês Pereira leu e comentou um dos melhores romances de José Saramago. Publicado originalmente em 1984, O Ano da Morte de Ricardo Reis foi lido pela Inês numa das edições recentes da Porto Editora e, ao contrário de alguns dos outros livros dele, não tem FC nenhuma.

Já a Anabela Risso voltou ao mundo das fantasias infantis, opinando sobre um livrinho de Joana Lopes intitulado De Onde Vêm as Bruxas?, uma edição da Alêtheia de 2014. Também não tem FC nenhuma, suponho.

E por hoje é tudo. Nada prometo quanto ao próximo post, exceto que virá. Um dia.