segunda-feira, 29 de maio de 2017

Lido: A Sombra

José Gomes Ferreira era outro autor que eu, por já ter experiência prévia com a sua (muito boa, diga-se) ficção fantástica, tinha esperança de vir a enriquecer o Bibliowiki com mais um continho. Assim, comecei a ler A Sombra, um conto que a princípio parece "apenas" (entre aspas porque não é pouco) irónico, bem escrito e bem construído. Um conto muito mundano, sobre um homem que um belo dia acorda feliz e é importunado cidade fora por conhecidos e desconhecidos, que parecem decididos a aborrecê-lo, desbobinando um autêntico rol de desgraças, em pleno nacional-coitadinhismo, enquanto ele se recusa a deixar-se afetar. Até que deixa. Bem pertinho do fim.

E é aí que o conto, que até aí é realista até à medula, ganha uma espécie de fantástico envergonhado, também ele irónico, pois a sombra do homem ganha autonomia e trata-lhe da saúde ao coitadinhismo com uma atitude bem firme. Essa irrupção fantástica parece ter incomodado Ferreira, que a justifica com um parágrafo entre parêntesis e em itálico em que se dirige diretamente ao leitor pedindo-lhe que acredite naquela parte que é "evidentemente mentira". Mas se o próprio autor admite que essa parte é evidentemente mentira, quem pode afirmar que tudo o resto, incluindo o parêntesis, também não o é? Quem pode afastar a possibilidade de a única parte verdadeira de todo o conto ser o ataque de rebeldia da sombra? Ninguém.

De modo que sim, caro José Gomes Ferreira, o conto é fantástico. Incomode isso ou não. Mas esse facto é secundário para todos os que não andam à procura de material para alimentar o Bibliowiki, porque o que o conto é acima de tudo é um divertido e bem feito ataque aos choradinhos.

Se gostei? Sim, gostei.

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domingo, 28 de maio de 2017

Lido: A Mãe Holle

Quase todos os contos populares, de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, são moralistas. Mas raramente isso é tão claro como neste A Mãe Holle que, segundo a extensa nota que os Irmãos Grimm lhe agregaram, na qual dão conta de uma vasta bibliografia de variantes e histórias aparentadas, nem terá sido muito alterado relativamente à versão recolhida junto da população. A Mãe Holle é uma bruxa, habitante de um reino mágico ao qual se tem acesso através de um poço, mas as verdadeiras protagonistas da história são duas raparigas, não quem lhe empresta o título. Duas raparigas que vivem na mesma casa casa, uma filha da mulher da casa, a outra enteada, a primeira feia e preguiçosa, a segunda bela, trabalhadora e com vários pontos de contacto com a Gata Borralheira.

Na história não há grande surpresa: depois de a enteada se ter atirado ao poço para recuperar uma roca e ido parar ao tal reino mágico, onde a sua natureza bondosa e trabalhadora acaba recompensada com ouro pela bruxa, o que se segue é tão previsível como dois e dois serem quatro, e nem seria preciso já conhecer, através d'A Gata Borralheira, o que acontece às filhas que maltratam meias-irmãs. Precisam que eu explique? Não, pois não? Então pronto.

Não é dos contos que mais me tenham agradado, como facilmente se compreenderá, mas até tem umas características agradáveis. Há nele umas pitadas de lengalenga, mas estão bem camufladas e por aí escapa. E, previsível ou não, é um conto bem estruturado, o que nem sempre acontece nos contos tradicionais em estado bruto. Mas sê-lo-á este conto? Pouco provável: falamos dos Grimm, e se foi pouco alterado, como parece ter sido, isso não quer dizer que não o tenha sido de todo.

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sábado, 27 de maio de 2017

Lido: As Velhas São o Diabo

Num livro como este, a série de contos fantásticos não podia durar para sempre. Três seguidos já não foi mau. Ao quarto conto, cá entramos finalmente em territórios realistas pela mão de João de Araújo Correia e, apesar de o título fazer referência a uma entidade mitológica, nada nesta história a leva a sair do mais puro mainstream.

As Velhas São o Diabo é um conto irónico em ambiente de tragicomédia sobre um homem novo que casa por interesse com uma velha, que toca de seguida a negligenciar porque o que realmente lhe interessava era fazer negócio. Com o dinheiro da velha, naturalmente, apesar de depressa começar a ampliá-lo. Mas a negligência vai ter resultados devastadores para ele e para a família, o que não deixa de ter o seu quê de moralista.

É um bom conto, sim senhor. Escrito num estilo enxuto, sem grandes arrebiques literários, mas contado com segurança. Um conto sobre o amor, o desamor, o ciúme e a ambição. Sobretudo a ambição. Há nele qualquer coisa de faca e alguidar, mas Correia escapa-se ao mau gosto inerente a tal coisa através de uma sobredade que não cede a exageros. Não pertencendo ao tipo de literatura que mais me costuma agradar, não posso dizer que me tenha desagradado. Leu-se bastante bem.

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sexta-feira, 26 de maio de 2017

Lido: O Senhor dos Navegantes

À semelhança d'A Reencarnação Deliciosa, também O Senhor dos Navegantes, de Ferreira de Castro, é conto já lido anteriormente por estar incluído na Antologia do Conto Fantástico Português. Trata-se, pois, de um conto fantástico. De um bom conto fantástico, como podem verificar lendo a opinião que escrevi há cinco anos e meio e à qual não tenho agora nada a acrescentar. É aquilo, sem tirar nem pôr.

E vão, nesta antologia, três contos fantásticos em três. Boa média.

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quinta-feira, 25 de maio de 2017

Lido: A Sina

Alguns destes contos pupulares, sejam portugueses, sejam de outros povos, parecem ser pouco mais que esboços de histórias possíveis ou de farrapos de histórias mais antigas, o pouco que resta de antigas epopeias. Outros, porém, são contos razoavelmente complexos, com começo, meio e fim, mesmo que as partes de que são feitos pareçam ter sido reaproveitadas de outras histórias.

É este último o caso de A Sina.

Adolfo Coelho não tem fama de retocar as histórias que recolheu, ao contrário dos Irmãos Grimm, mas apesar disso este conto nada deve aos dos alemães no que toca à qualidade narrativa. Tudo começa com um rei que, obedecendo à tradição, manda ler a sina dos dois filhos (um menino e uma menina) após o nascimento. Não contente com a leitura, procura enganar o destino, encerrando a filha numa torre do castelo e pondo o filho num caixão, que deita a um rio com a criança ainda viva. Geram-se assim duas sub-histórias, que vão convergir na sina que intitula o conto. A da filha parece uma adaptação ou variante da célebre história de Rapunzel; a do filho também ressoa a lenda conhecida, ainda que de uma forma mais vaga; são várias as histórias que têm como protagonistas crianças perdidas, frequentemente de sangue real, criadas por gente humilde. Tudo somado, este é um bom conto de fadas que, se não contivesse tantos elementos tão usados em histórias tradicionais e em ficções que delas derivam, poderia dar origem a uma boa novela, ou até romance, de fantasia.

Contos anteriores deste livro:

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Lido: A Reencarnação Deliciosa

Se o primeiro conto deste livro foi supreendente no elemento fantástico que contém, o mesmo não posso dizer do que o segue, A Reencarnação Deliciosa (bibliografia), de Aquilino Ribeiro, pois este já algum tempo marca presença no Bibliowiki dado ter sido incluído na Antologia do Conto Fantástico Português. Por esse mesmo motivo, já tinha sido lido e comentado aqui na Lâmpada há quase seis anos. Remeto-vos, portanto, para o que sobre ele escrevi então, acrescentando apenas que existe no conto um elemento onírico importante, que deixa no ar a possibilidade de nada daquilo ter realmente acontecido, de tudo não passar de sonhos sucessivos. Ou seja: é um conto fantástico tal e qual o definiu Todorov. Fora isso, falta apenas dizer que a avaliação que dele fiz agora foi a mesma que fiz há seis anos.

Conto anterior deste livro:

Lido: Eucaristia

Algumas destas historinhas de Luiz Bras são mais poemas do que contos, tanto pela forma como a prosa poetiza como pela sua brevidade, que por vezes é tanta que obriga a sugerir muito mais do que é narrado. Este Eucaristia, que tem como subtítulo "mini-romance em vinte e um capítulos" e é o texto mais extenso de todo o livro (embora certamente não seja aquele com maior número de palavras), é um pouco diferente, ainda que também aqui a poesia esteja bem presente. O título torna óbvia a inspiração: Bras cria aqui uma história de fantasia sobre uma sociedade de caçadores de gigantes que transformam essa caça numa experiência mística e religiosa, e explica-a de uma forma muito lírica, especialmente em alguns dos "capítulos" do seu "mini-romance". Estes existem mesmo mas não passam de parágrafos, alguns dos quais muito curtos (uma linha, duas linhas). Ao lê-lo, lembrei-me de alguns dos textos publicados por Braulio Tavares no seu blogue, nos quais sistematiza, parágrafo a parágrafo, romances que com grande probabilidade nunca desenvolverá. Este conto (perdão: mini-romance) de Luiz Bras é mais ou menos assim, mas mais poético e palavroso e menos sistemático.

É uma história com o seu interesse, mais na forma do que no conteúdo mas, em parte por essa disparidade, não creio que seja das melhores do livro e do autor.

Textos anteriores deste livro:

terça-feira, 23 de maio de 2017

Lido: A Casa de Hóspedes

Na minha permanente busca por publicações onde possa estar incluído material relevante para o Bibliowiki, por vezes pego em coisas que leio sem grande esperança de a encontrar, pelo menos fora de um punhado de suspeitos habituais que nelas possam estar publicados. Esta foi uma delas. Como verão mais adiante, encontram-se aqui alguns escritores com presença razoavelmente relevante no nosso fantástico, portanto esperava vê-lo nas ficções deles. O que não esperava era encontrá-lo logo no primeiro conto.

A Casa de Hóspedes contém uma mistura curiosa entre um começo e meio que parece quase antecipar de algumas décadas o neorrealismo, com a sua plétora de personagens muito solidamente enraizados na vida quotidiana das camadas populares e um pendor ideológico claramente favorável à emancipação dessas camadas, carregado de filosofia, com o cuidado com a caracterização psicológica das personagens que é característico do mainstream literário, e um final com características fantásticas bem marcadas, em que uma personagem pensa ver um rasto, uma espécie de cauda de cometa, atrás de cada transeunte que passa, contendo, e mostrando a quem conseguir ver, o seu passado e o que são. Um fantástico todoroviano, que deixa no ar a dúvida sobre se será mesmo assim ou tudo não passa de ilusão da personagem.

Acresce a isso a prosa de Raúl Brandão, que é magnífica, e o resultado é um belo conto.

Lido: A Morte do Lidador

Ainda há dias, a propósito de A Cidade da Ciência, eu criticava aqui na Lâmpada aquela prosa que procura ressumar heroísmo a cada linha, chamando-lhe, e não pela primeira vez, "tonitruante". E eis que me aparece à frente Alexandre Herculano, um nome cimeiro da literatura portuguesa do século XIX, e o seu conto A Morte do Lidador que, na introdução que o antecede nesta publicação, é apelidado não de tonitruante, mas de estrepitoso, o que vai basicamente dar no mesmo.

Trata-se de uma ficção histórica, um conto de cavalaria ambientado na época da Reconquista, e relata um par de batalhas entre as tropas portuguesas, lideradas pelo tal Lidador, um colosso de oitenta anos, aquartelado na praça de Beja, e a mourama que ainda chama seu ao Algarve e a partes do Baixo Alentejo. Gonçalo Mendes da Maia, verdadeiro nome do Lidador, é uma personagem histórica, e também históricos são os sucedidos que servem de base à ficção de Herculano, o que não surpreende dado que este era também historiador. O texto, porém, dificilmente será fiel à realidade histórica. Apesar da qualidade no manejo da língua portuguesa, o tom patrioteiro de exaltação do herói militar é tão ridículo em Herculano como em qualquer outro escritor, e certamente afasta o texto de qualquer aspiração a rigor. No meio de batalhas intensas, à espadeirada quando não é corpo a corpo, não se para de combater para ladainhar discursos plenos de patriotismo e lealdade, só para dar um exemplo gritante. Licença poética? Fruta da época? Provavelmente, provavelmente. Afinal, o mesmíssimo Herculano que escreveu isto foi amplamente acusado de falta de patriotismo por pôr em causa alguns mitos muito correntes (e ainda hoje) sobre certos episódios da Reconquista portuguesa.

De modo que me sinto ambivalente com este conto. Acho-o ridículo, sim, mas até compreendo o que pode ter levado à sua criação. Os homens e o que escrevem são frutos da época em que vivem e coisas que hoje só se encontram, felizmente, na extrema direita nacionaleira, há duzentos anos eram quase questão de sobrevivência. E quem conseguir ver para lá do tom estrepitoso descobre que o conto até está bem concebido e escrito com qualidade. Eu até consigo, com certo esforço, mas a verdade é que as trombetas que soam a cada página me fazem doer a cabeça. Portanto não, não gostei.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Lido: O Confronto dos Reinos

Quando ouvi falar da proposta Solapunk vinha de ter tido uma novela e uma noveleta publicadas nos volumes anteriores desta série (Vaporpunk e Dieselpunk) e arregacei as mangas para completar a tríade com mais uma história ambientada no mesmo universo. Mas deparei com um problema: a proposta Solarpunk era tendencialmente otimista e a minha história estava a afastar-se bastante daí. E, pior, não tinha ideias para histórias otimistas de futuros radiosos e ecologicamente sustentáveis. Às tantas, já perto do fim do prazo, dei-me por vencido e decidi que não iria submeter nada à Solarpunk.

Foi por isso com alguma surpresa que, quando surgiram os nomes dos autores selecionados, encontrei o de Telmo Marçal. Não que duvidasse da sua capacidade para escrever um conto bom o suficiente para ser selecionado, entenda-se; quanto a isso não há qualquer dúvida. Mas já conhecia razoavelmente bem o seu estilo e a espécie de histórias que gosta de escrever e não estava nada a vê-lo escrever uma história otimista. O Telmo é escritor de histórias bem negras, bem cínicas, bem violentas, que gosta de ambientar em sociedades ultradistópicas das quais a esperança está ausente. De repente sai-se com uma história radiosa ambientada numa sociedade repleta de futuro? Não pode ser, pensei.

E agora que li O Confronto dos Reinos vejo que tinha razão nas minhas dúvidas, ainda que não uma razão absoluta. Marçal faz, de facto, algumas cedências à proposta Solarpunk tal como a entendi: não só a sociedade que aqui apresenta está algo longe de ser tão negra como as que desenvolveu n'As Atribulações de Jacques Bonhomme, como imagina que num futuro não muito longínquo algumas pessoas, por intermédio de tratamentos não detalhados, passam a incluir clorofila nos seus corpos, tornando-se portanto capazes de se autossustentar, pelo menos em parte. Lá está o tal futuro ecológico e sustentável.

Mas tirando isto, o tom noir é tal e qual se esperaria. O texto é o habitual: duro e seco, carregado de oralismos, gírias e calão, relatado em primeira pessoa pelo protagonista-narrador. E este é um agente da polícia, extremamente perconceituoso contra os "folhas de couve", um dos vários epítetos "carinhosos" com que mima as pessoas alteradas, que é acometido por dois azares de monta: um, ainda que não o primeiro, é ser encarregado de ir investigar, discretamente e acompanhado por uma colega, alguns desaparecimentos que teriam ocorrido numa espécie de reserva de clorofilizados que o governo cria na zona de Sintra. E o outro é apaixonar-se. Precisamente por essa colega.

E claro está que as coisas não correm nada bem, ou não estaríamos perante um conto de Telmo Marçal. Ou seja: embora a sociedade não seja tão negra como é hábito, há nela suficiente ambiguidade, e até suficiente cinismo, para poder criar para algumas pessoas negríssimas distopias pessoais.

Isso, creio, cria um elemento de subtileza e também de incerteza, que sob um certo ponto de vista melhora a ficção de Telmo Marçal. Enquanto nas ficções mais antigas o leitor tem desde o início a certeza de que tudo é negro e irredentível, o que diminui o elemento surpresa que é combustível para todas as ficções, aqui a dúvida insinua-se, o que tem o resultado de aumentar o interesse pela história. Mas por outro lado, acontece-lhe o que acontece a todos os especialistas quando saem da sua zona de conforto: ao abandonarem, mesmo que parcialmente, aquilo que fazem realmente bem, surge alguma insegurança, a firmeza narrativa atenua-se. Nada que não se resolva com a prática. Mas aqui, onde a prática ainda não existe, estes dois fatores equilibram-se e o resultado final não é melhor do que nas ficções anteriores. A qualidade é mais ou menos igual. Ou seja: o conto é bom, e melhor seria se alguns abrasileiramentos que a edição provavelmente exigiu não entrassem tanto em choque com a grande portugalidade da maioria dos oralismos, mas não chega ainda ao melhor da ficção de Marçal, e muito menos o ultrapassa.

Conto anterior deste livro:

domingo, 21 de maio de 2017

Lido: Capitania de São Vicente

José de Anchieta foi um missionário jesuíta espanhol, nascido nas Canárias no início do século XVI, que viveu boa parte da vida no Brasil colonial, onde morreu quase a terminar o século. Não só foi bastante importante na consolidação do domínio português no Brasil, contando-se entre os fundadores daquelas que são hoje as duas principais metrópoles do país, Rio de Janeiro e São Paulo, como contribuiu grandemente para o conhecimento inicial do território brasileiro e da sua fauna, flora e populações autóctones por intermédio de cartas enviadas aos superiores da sua ordem, que se leem como relatos detalhados de viagem.

Este livrinho de cerca de 50 páginas, editado pela Expo'98 apesar de pouco ter a ver com os oceanos que constituíram o tema da exposição (bem... há a narração de uma tempestade... sempre conta), é um desses relatos, e descreve viagens, flora, fauna e detalhes etnográficos sobre o modo de vida dos indígenas e as enfermidades que os afligem, em vários pontos da Capitania de São Vicente, a qual tem o seu núcleo no que hoje é o estado de São Paulo mais incluía também algum território que atualmente pertence ao Rio de Janeiro e ao Paraná.

E é um relato bastante interessante e tão objetivo quanto se poderia esperar de um padre do século XVI. Está, naturalmente, crivado dos perconceitos do homem que o escreveu, mas isso é parte do que torna este relato interessante, pois é sempre curioso apercebermo-nos de quem é e como pensa o narrador aparentemente objetivo através das coisas que lhe chamam a atenção e por isso escolhe relatar, e das comparações que faz com aquilo que conhecia previamente ou julga ser familiar aos destinatários da missiva.

Acresce que Anchieta sabia manejar as palavras na sua forma escrita. É autor de peças de teatro e de poemas, além deste tipo de relatos, o que o transforma num dos primeiros autores a produzir literatura no Brasil e faz com que, por isso mesmo, seja celebrado no país. Essa habilidade com as palavras transparece por inteiro neste relato, que à partida se destinaria menos a produzir literatura do que a transmitir informação, o que lhe aumenta o interesse para quem lê.

O resultado é um livrinho agradável, que se lê num ápice.

A minha única fonte de algum desapontamento foi não ter encontrado nele nada de fantástico. É que uma parte razoável das minhas leituras é movida a Bibliowiki, isto é, destina-se a investigar se a publicação x ou y é ou não relevante para o wiki. E foi o caso deste livro, pois bem sei como alguns dos relatos de viagem da época dos Descobrimentos estavam carregados de elementos fantasiosos, tantas vezes apresentados como verdade incontroversa. Não é o caso. Anchieta, pelo menos aqui (e pelo que aqui li não me custa acreditar que sempre), não se deixou contaminar por histórias prodigiosas, limitando-se a relatar a realidade tal como a via o que, apesar de ter sido da maior utilidade para os recetores da informação, frustra um pouco o amante de literatura fantástica que sou. Mas só um pouco.

Este livro, cujo conteúdo há muito caiu em domínio público, foi descarregado legalmente da internet (entretanto parece ter ficado indisponível).

Lido: A Sagração da Primavera

Eis-nos perante aquele que é o conto mais eficaz que este livro contém até agora. Passado algures na Margem Sul do Tejo, num tal "Planalto Verde" que parece ser ficcional mas estaria sob a responsabilidade operacional da PSP do Montijo, A Sagração da Primavera lê-se quase como parte de um episódio da série Mentes Criminosas. O foco, porém, está não na investigação criminal propriamente dita, mesmo sendo a história protagonizada por polícias, mas no horror psicológico.

A escrita de Ricardo Lopes Moura é também ela eficaz, relatando com segurança como um carro de polícia sobe ao tal Planalto Verde com a missão anual de cortar os arrebatamentos aos adolescentes que têm como tradição subir ao local, aos pares, nos carros dos papás, a fim de celebrar o fim das aulas com sexo e rock and roll (Moura só não menciona as drogas que completariam a célebre tríade). Mas o que os polícias vão encontrar naquele ano não é o costume, e mais não digo porque boa parte do que faz mover o conto e lhe dá força é o desvendar do acontecido e das suas causas.

Embora o cenário seja razoavelmente cliché e um pouco mais americano do que português, este conto funciona bastante bem porque todas as peças de que é feito se encaixam harmoniosamente. Trata-se, acima de tudo, de um conto bem construído.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 20 de maio de 2017

Lido: A Cidade da Ciência

Diz-se com frequência que a ficção científica é a literatura das ideias, querendo com isso dizer-se que é aquela literatura em que ideias novas, invulgares, muitas vezes iconoclastas, encontram espaço para se desenvolverem literariamente. Muitas vezes, essas ideias são tecnológicas mas é raro que não tenham na literatura de FC um impacto social explícito, o que as transforma também em ideias sociais e por consequência políticas. Há quem tente esconder que assim é, há quem procure fechar os olhos à política que a FC sempre trouxe, e para isso conta com a ajuda de muitos dos autores do género que procuram camuflar a vertente política daquilo que escrevem com fragilíssimas capas de senso comum. Outros autores, porém, não perdem tempo com exercícios tão fúteis e assumem claramente o lado político dos seus trabalhos. E assim, por vezes, nascem as melhores e mais inesquecíveis obras do género, das Vinte Mil Léguas Submarinas à Guerra Sempre, do 1984 a Os Despojados, entre muitos eteceteras.

A assunção do lado político da ficção científica não é, contudo, nenhuma garantia de qualidade. Não faltam obras muito claramente políticas mas também muito, muito más. E este A Cidade da Ciência (bibliografia), do francês Maurice Vernon, é uma delas, mesmo dando o devido desconto à idade já razoavelmente vetusta da obra. E mesmo dando o devido desconto àquilo que lhe deu origem, que me parece razoavelmente claro.

O enredo conta-se em duas palavras. Numa sociedade totalitária, distópica, um grupo clandestino de Oposicionistas (sim, em maiúscula; é tudo em maiúscula neste livro) procura um herói para derrubar o regime que depressa se percebe que é dirigido não propriamente desde a capital (chamada, imaginativamente, Capitalopolis), mas de uma cidade secreta, onde ninguém não autorizado pode entrar e de onde ninguém não autorizado pode sair, a Cidade da Ciência do título. E claro que o encontra, ao herói. E claro que o herói vai acabar por heroicamente fazer os seus heroísmos e derrubar os mauzões dos cientistas e os piorezões dos que os dirigem. Tudo escrito naquele tom tonitruante dos escritores medíocres, que é sempre ridículo até à medula (com muitas Maiúsculas, pois), tudo inteiramente dependente da vontade e ação dos Líderes e dos raríssimos não líderes que acabam por agir, transformando-se obviamente também eles em Líderes. As personagens, mesmo as principais, resumem-se a recortes bidimensionais de papelão. Ou nem isso, talvez. Na verdade, até custam a chegar à bidimensionalidade. Tudo repleto do pior da pulp fiction e sem nenhuma das suas qualidades redentoras (para quem gosta), pois a verdadeira ação nem é muito frequente, ficando-se boa parte do enredo por conversas. Diálogos que, ainda por cima, são tão maus que se tornam inverosímeis, contribuindo decisivamente para tornar quase impossível suspender a descrença relativamente a tudo isto.

Quem consiga sacudir as teias de aranha com que tanta falta de qualidade acaba inevitavelmente por envolver o pensamento, acaba por compreender de onde vem a inspiração para este livro. Publicado dez anos após o fim da II Guerra Mundial, numa França ainda cheia de cicatrizes de guerra, tanto físicas como psicológicas, e mal refeita das barbaridades do regime nazi que só vieram a lume após o fim do conflito, este pequeno romance tenta ser um ataque violento ao tipo de investigação fria que psicopatas como Josef Mengele levaram a cabo nos campos de concentração nazis e em outras instalações criadas ou reformadas pelo regime à sua semelhança. É uma reação compreensível, ainda que equivocada quando resume a ciência a isso e esquece o papel que essa mesma ciência teve na derrota do Eixo, e até poderia ter dado origem a uma obra de qualidade. Mas a concretização de Vernon é tão desastrada que o que se obtém deste livro é sobretudo uma enorme sensação de vergonha alheia.

Em suma: um livro péssimo.

Este livro foi comprado.

Lido: O Ratinho, o Passarinho e a Salsicha

Os Irmãos Grimm parecem ter tido opiniões razoavelmente fortes sobre quais das histórias que andaram e recolher valia a pena fundir, retocar ou desenvolver e quais mais valia deixar mais ou menos tal qual as encontraram no seu habitat natural, por assim dizer. Esta O Ratinho, o Passarinho e a Salsicha pertence ao segundo grupo. É uma história tradicional que se poderia perfeitamente encontrar na recolha de Adolfo Coelho, um continho de menos de uma página, acompanhado por uma nota minúscula por comparação com o que é habitual, um fábula infantil e bastante mal desenvolvida sobre as desgraças que acontecem quando o ratinho, o passarinho e a salsicha decidem abandonar as funções que lhes são próprias na bem oleada máquina da vida em comum. Com outros contos dos Grimm tem em comum o conservadorismo e o apelo à resignação, mas afasta-se muito da maioria dos que foram lidos até ao momento pelo fraquíssimo desenvolvimento da história. História essa que, convenhamos, também não dá pano para grandes mangas.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Lido: Starsong

Imaginem um futuro longínquo, uma colónia planetária não menos distante, cuja sociedade se baseia na cultura mexica, a cultura pré colombiana que estava no núcleo do Império Asteca. Imaginem, nessa cultura, uma rapariga, cujo destino é tornar-se guerreira apesar de não ser de sangue puro mas misto, meio mexica, meio oriental, e certamente não é por acaso que a autora, Aliette de Bodard, é fruto de uma mistura muito semelhante (no caso, francesa e vietnamita). Imaginem que, neste futuro distante, a palavra "guerreiro" implica piloto de uma nave à velha maneira da space opera. Imaginem que é só isso o que nesta história existe de space opera, que não temos batalhas espaciais nem atos de heroísmo cometidos pelos heróis a derrotar a vilania dos vilões. Imaginem, além disso, uma prosa de grande qualidade e um enredo que se vai desenvolvendo com profusão de memórias, as quais relatam os factos mais relevantes da vida da protagonista até se encontrar na situação presente. A qual é invulgar, inaudita até.

Imaginaram?

Então fazem uma pálida ideia do que é Starsong. Trata-se de ficção científica, obviamente, mas esta é sobretudo uma história sobre racismo, bullying e superação. Com todos os elementos descritos acima e mais alguns que se tornaria fastidioso descrever. Uma história que merece muito ser lida. Uma história muito boa. A melhor história do livro.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Lido: Pele-de-Cavalo

Uma das coisas mais curiosas que estou a ganhar com a leitura simultânea destes contos tradicionais de Adolfo Coelho e dos contos de Grimm é noções muito fortes das relações de parentesco entre os contos de cá e de lá, das semelhanças e diferenças que existem entre eles e da forma como todo este manancial de histórias contadas à volta da fogueira se deve ter ido entrelaçando e subtilmente alterando ao longo dos séculos, das viagens e dos contactos entre povos.

Ao ler-se este Pele-de-Cavalo, por exemplo, é quase impossível não pensar na Cinderela. Parece quase uma versão desse conto, apesar do início ser totalmente diferente e de não haver nem madrasta (pelo menos presente na história; é uma madrasta que lhe dá início, expulsando a protagonista — uma princesa — da casa do pai) nem irmãs malvadas nem sapatinho de cristal (que também não existe no conto dos Grimm) ou qualquer outra peça de calçado especial. Mas a estrutura do conto é praticamente idêntica, o enredo genérico também e o desfecho idem aspas, ainda que aqui tudo seja mais apressado do que na história alemã.

Seja como for, achei este conto muito interessante.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Only Friends

Philip Harris é o autor que se segue, apresentando uma história fantástica que conta a vida de dois amigos (só amigos, diz-nos o título de Only Friends, ainda que eu reserve o direito de nutrir as minhas dúvidas) desde a escola primária. Almas gémeas, dir-se-ia, vivendo vidas paralelas desde o momento em que se conheceram até que a um deles lhe começa a dar para desaparecer sem deixar rasto. Literalmente.

Parece-me bastante evidente que o fantástico é aqui usado como parábola para a forma como se desenvolvem e deterioram as relações humanas, para o afastamento que tantas vezes ataca até os mais íntimos. E tudo o resto é mais ou menos cenário, ainda que um cenário bastante bem construído, um cenário que ajuda a sublinhar a mensagem principal. A boa construção é, de resto, o que mais ressalta desta história. É um conto contado em bom ritmo, com segurança, com alguma ironia, que sustenta o interesse até ao fim e consegue um remate em final semiaberto bastante peculiar e também muito bem feito: Harris termina o conto de uma forma que o deixa cerrado para quem achar que sim e em aberto para quem achar que não. E isso a meu ver basta para tornar o conto bastante bom. Poderia ser estragado se, ao fazê-lo, Harris maltratasse a língua inglesa. Mas não maltrata, portanto o resultado é de qualidade.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 9 de maio de 2017

Lido: Bolas de Feno ao Sabor do Vento

Ora aqui está uma abordagem bastante original à ideia do cliché. Não, diz-nos Luiz Bras, não são ideias tornadas cansativas de tantas vezes serem repetidas. São sinais. Sinais de uma civilização extraterrestre desaparecida num derradeiro ato de solidariedade para connosco, num ato último de altruísmo. Cabe-nos a nós compreendê-las, e para isso temos de estar atentos. Estaremos? Esta vinheta de uma página é um alerta para que estejamos. Ficção científica, obviamente, entrelaçada com outras literaturas mais ou menos iniciáticas. E boa, sim, francamente boa. Mas sinto o dever de dizer ao Luiz que o cliché dos livros de faroeste a que faz referência no título não são Bolas de Feno ao Sabor do Vento. É certo que andam ao sabor do vento mas não são bolas de feno. São uma estrutura especializada de certas ervas do deserto que serve precisamente para isso. E daí, é bem provável que o Luiz o saiba. É que o nome que a coisa tem em português — estepicursor — não é grande coisa para um título porque poucos o conhecem. Não é? Pois. Retiro, portanto, o que disse sobre o título.

Textos anteriores deste livro:

Lido: News from a Dwarf Universe

Há muitas maneiras de estragar uma história. A ideia pode ser má, a qualidade linguística do escritor pode ficar aquém do desejável, a extensão escolhida pode ser a menos indicada para a história que se quer contar, e muitos eteceteras. Dănuţ Ungureanu, romeno (lê-se "Danuts"), estragou a sua "infodumpando-a".

O excesso de infodumps (i.e., despejos de informação) é um defeito comum em histórias de FC escritas por escritores menos hábeis, e News from a Dwarf Universe leva esse defeito a um extremo qualquer. Bem vistas as coisas, este continho não passa de um longo infodump. E é pena, porque a ideia até tem interesse. Um desenvolvimento tecnológico (muitíssimo improvável, mas deixemos passar essa), a criação de "máquinas de encolher", vai ter um profundo impacto social e económico, que se cristaliza quando uma erupção solar destrói todas essas máquinas, gerando duas sociedades distintas: a normal e a dos encolhidos. Segue-se a guerra. E sim, estou a resumir, mas não muito.

Com esta premissa, um autor mais hábil que Ungureanu poderia ter escrito uma história complexa, emotiva, detalhada, repleta de reflexões sociais e políticas, tecnoconsciente. Mas Ungureanu despacha a coisa em duas penadas, com um relato frio, resumido e muito desinteressante. O resultado é uma das histórias realmente fracas desta antologia.

Contos anteriores deste livro:

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Lido: Soylent Green is People!

Carlos Orsi pode ter cometido um erro ao dar título a esta noveleta. Quem conhece menos mal a história da ficção científica de certeza já ouviu falar do filme Soylent Green e conhece a sua premissa básica. O mais certo será tê-lo mesmo visto. Seja como for, reconhece de imediato a referência contida num título como Soylent Green is People! e quando a história começa e depara com um detetive privado, em ambiente de policial razoavelmente noir mas futurista, fácil é que pense que já sabe onde a história vai dar. E o mais certo é ter razão.

E isso é pena porque retira à noveleta um dos principais motores de mistério que poderiam sustentá-la. Conhecendo-se desde o início, graças ao título, qual irá ser de uma forma geral o desfecho, o interesse é obrigado a derivar para os pormenores, sejam de construção narrativa, sejam de enredo. A sorte, ou melhor, o mérito de Carlos Orsi é conseguir fazer com que estes pormenores bastem para sustentar a história.

Trata-se realmente de uma história policial futurista, muito clássica no sentido de termos como protagonista/narrador o detetive privado que anda a investigar o crime, contratado por um mulherão que o hipnotiza e pretende que ele prove que tem direito à herança de um determinado morto. Não interessa revelar como; esses detalhes e a forma como Orsi entretece neles o seu futuro e a tecnologia que nele existe são boa parte do que faz mover o conto. Direi apenas que tem a ver com uma certa Igreja dos Puritanos, seita fundamentalista que rejeita as alterações corporais e as terapias genéticas e se comporta como uma versão mais agressiva da nossa Igreja Universal do Reino de Deus, e com uma inovação tecnológica revolucionária que pode mudar tudo no que toca à produção de combustível mas é, como de resto todas as inovações tecnológicas, uma faca de dois gumes.

E é uma noveleta bastante boa, também por causa deste sublinhar da ambiguidade inerente à inovação. Embora eu ache que ficaria melhor com outro título, com um mistério mais completo que se sustentasse até ao final, mesmo assim é boa.

Lido: The Royal Library (Scrolls of the Bards)

O ucraniano Vladimir Arenev não nos apresenta uma história, mas três, compiladas num grupo a que chamou The Royal Library (Scrolls of the Bards). Lendo-as, pouco parecem ter a ver umas com as outras, no sentido de não parecer haver nelas nenhum sinal de pertencerem realmente a uma série. São todas histórias irónicas, é certo, mas as semelhanças não vão muito além disso... embora vão um pouco como adiante se resumirá.

Fatal Passion, a primeira das três histórias, parece ser um conto de futuro longínquo e pós apocalíptico; ficção científica, portanto. Um daqueles contos protagonizados por quem procura recuperar o conhecimento perdido estudando os velhos artefactos deixados pela nossa civilização, há muito desaparecida. No caso, um livro escrito numa tal língua comum, que começa por ter de decifrar. E consegue, como o conto relata, mas o livro não é propriamente aquilo que esperava.

The Prophet's Word já não tem nada a ver com FC. Trata-se de uma história cómica de fantasia, protagonizada por um deus menor (o Deus da Caligrafia), que seleciona um profeta para escrever o seu Texto Sagrado. Faz a escolha com cuidado, por motivos que o conto explica, e dita meticulosamente o seu Texto, assim mesmo, com maiúscula. O resultado é que... mas não falemos do resultado.

Por fim, The Librarian é outra história de fantasia com um pé solidamente implantado nas velhas lendas europeias. Conta a história de um bibliotecário muito especial que o castelão do rei encontra como aprendiz analfabeto de uma arte bem diferente, mas transforma em bibliotecário porque lhe descobre a capacidade de intuir que livro é o mais adequado para todos os que o procuram... até ao dia em que lhe aparece alguém que não consegue "ler", o que tem uma consequência inesperada.

Duas histórias fortemente irónicas e a terceira menos, escritas em volta dos livros, de géneros diferentes, e todas com interesse ainda que nem sempre muito originais. A primeira é a que o é menos, a segunda a que o é mais. Mas embora tenha algumas dúvidas quanto à bondade da sua reunião, não tenho quanto à qualidade. São boas histórias.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 7 de maio de 2017

Lido: The Server and the Dragon

Há algumas histórias de futuro distante (ou tão alienígenas) que exigem dos autores uma verdadeira prestidigitação textual para conseguirem arrancar sentido de histórias tão distantes da experiência humana. Prestidigitação é sinónimo de truques, e os principais truques que Hannu Rajaniemi emprega nesta sua história é evocar o imaginário dos dragões para algo que nada tem a ver com esse imaginário... e mesclar a conceitos físicos de ponta (e razoavelmente especulativos, pelo menos alguns) uma história de amor bastante banal.

The Server and the Dragon é no seu âmago uma história de colonização mal sucedida. Uma história de ficção científica de futuro longínquo protagonizada por uma sonda automática avançada (o "server" do título), dotada de inteligência artificial, que chega a um sistema solar extragaláctico e dá os primeiros passos para preparar esse sistema para a chegada dos colonos... que nunca chegam. Por fim, farta de esperar, farta de solidão, a IA decide criar um universo próprio, mas no processo de o fazer é distraída pela chegada de um pacote de informação com instruções para a criação de um ambiente virtual, onde surge um dragão. Fascinada, a sonda mergulha neste ambiente virtual e esquece-se do resto, o que origina o desfecho da história.

Este conto é interessante, ainda que haja nele alguns detalhes que dificultam a suspensão da descrença. Exemplo: o esquecimento é uma falha muito humana; é duvidoso que uma IA tão avançada fosse vítima de tal falha... e sem ela esta história não resultaria de todo, o que a meu ver constitui uma fragilidade de monta. Ou seja, a sensação que fica é que Rajaniemi, confrontado com a necessidade de arranjar personagens capazes de provocar empatia nos leitores, fê-lo em detrimento da coerência da história. É no mínimo arriscado e parece-me que o risco não compensou. Mas apesar de tudo o conto tem interesse, pelo menos para quem conseguir entender a parte cosmológica da coisa.

Contos anteriores deste livro:

sábado, 6 de maio de 2017

Lido: Rebellion

E eis que surge mais uma história portuguesa que está, tanto quanto sei, inédita em português. Tal como a outra, também esta foi escrita por uma mulher, Diana Pinguicha, mas é aqui que param os paralelos. Rebellion, que tem como subtítulo "a short story from Number Nine", o que faz supor que atrás dela se encontra uma série (igualmente inédita?) que provavelmente explora a protagonista aqui apresentada, passa-se num Novo Mundo futurista e aparentemente distópico e é razoavelmente intimista, consistindo de uma conversa entre uma fascinada jovem, Aisha, e Violeta, antigamente membro de uma unidade de soldados de elite geneticamente alterados denominada Os Onze. Detalhe: não se sai d'Os Onze, pelo menos com vida.

É uma história interessante, esta. Relata a forma como Violeta foi chegando à decisão de violar todas as regras e tentar abandonar a unidade e depois a forma como o faz, por entre sentimentos conflituosos (e reciprocados) por um dos camaradas. Não sendo propriamente uma obra-prima, é boa o suficiente para não ficar abaixo de outras histórias deste volume, desde que se ache (e eu acho, embora haja outras opiniões) que uma FC que se foca mais no humano do que no tecnológico ou no político (ou na tão venerada ideia) é absolutamente válida.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Lido: Big Bing, Larissa

Quem nutre alguma saudável desconfiança pelos círculos financeiros, ao ouvir falar certos evangelistas do Santo Mercado, já terá certamente feito a correlação com aqueles jovens de sotaque americano, invariavelmente vestidos com camisas brancas e calças pretas, que se passeiam aos pares pelas ruas das nossas cidades, os chamados "meninos de deus", os missionários mórmones. Ou então com as Testemunhas de Jeová que nos vêm bater à porta de casa, também sempre aos pares.

Pois bem, Cristian Mihail Teodorescu, cujo nome obviamente romeno não engana ninguém, apresenta-nos em Big Bing, Larissa uma literalização dessa ideia. No mundo futuro que Teodorescu aqui descreve, as finanças transformaram-se numa entidade mística e misteriosa, totalmente separada da vida real, e uma casta hereditária de mulheres sacerdotisas do dinheiro gere produtos especulativos altamente especializados, servida por criados homens, num eterno jogo de bolsa dominado e determinado pelas interações entre as contas. O conto é obviamente sarcástico e a ideia em si domina tudo o resto. Não que a concretização seja deficiente. A história segue uma mãe que está a introduzir a filha pré-adolescente aos mistérios da finança e as ideias algo iconoclásticas que as dúvidas desta vão provocar naquela, e o desenrolar da narrativa é alcançado com segurança. E com graça. Mas não é dos contos mais fortes do livro no que toca à literatura propriamente dita e haverá certamente muita gente a sentir as suas ideias postas em causa por ele, sejam as financeiras, sejam as religiosas, sejam até as sociais, pois há aqui um antifeminismo razoavelmente claro (todo o sistema é profundamente irracional, e Teodorescu tê-lo posto a ser gerido por mulheres e apenas por mulheres não é certamente coincidência), ainda que esta última parte pareça ser um pouco secundária nas preocupações do autor, mais centradas na crítica à finança e à religião. Ter-se as ideias desafiadas não é mau, entenda-se, mas esse desafio pode gerar anticorpos contra o conto em vários grupos de leitores. Eu gostei, ainda que não muito; apesar de algum incómodo com o antifeminismo, o resto compensou.

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quinta-feira, 4 de maio de 2017

Lido: Repeat Performance

Carmelo Rafala leva-nos a um futuro aparentemente longínquo e muito distópico, repleto de alterações genéticas e backups de personalidade, contando uma história violenta de resgate e vingança ambientada na península do Iucatão, no México. Repeat Performance é uma história complexa, cheia de reviravoltas, e falar muito sobre ela torna inevitável o spoiler, portanto não o farei. Direi apenas que se lê como uma história do João Barreiros sem o cinismo e a ironia habituais no português, misturada com umas pitadas razoavelmente abundantes de Dashiel Hammett e de Tarantino em versão Kill Bill. O enredo, tal como é apresentado ao leitor logo no início, resume-se a uma jovem "pintada" (isto é: alterada e acompanhada em permanência por um animalzinho agressivo e parasitário chamado, adequadamente, chupacabra) que contrata uma mercenária para a ajudar a recuperar o corpo do irmão que está na posse do cartel que controla a cidade de Mérida, chefiado por um tal Durakovic. Mas vai muito além disso, em parte, mas não só, porque, como depressa se percebe, a mercenária tem a sua própria agenda. É um bom conto, este. O interesse é bem sustentado pelo mistério da situação e pela forma hábil como Rafala vai fornecendo aos poucos os bocadinhos de informação necessários ao acompanhamento da intriga, e as reviravoltas não chegam a parecer manipulação gratuita do leitor, como acontece demasiadas vezes neste tipo de história. E a violência, abundante, aparece como um efeito secundário, não como o objetivo principal, o que também é bom.

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quarta-feira, 3 de maio de 2017

Lido: Digits Are Cold, Numbers Are Warm

Com Digits Are Cold, Numbers Are Warm, do romeno Liviu Radu, regressamos às histórias literariamente fortes. Trata-se de uma história lovecraftiana com vestígios de história alternativa, muito bem construída e com um final perfeito, contada por uma velha recém-viúva que chora o marido. Que chora o marido e vai contando, por entre exortações ao seu pobre morto e comentários depreciativos sobre outras pessoas presentes no velório, o motivo e o modo como o marido morreu. Sendo a história lovecraftiana fácil se torna deduzir que há Grandes Antigos nela metidos, mas não contarei detalhes, pois boa parte do seu interesse consiste no lento desvendar desses detalhes. Há em Radu uma técnica apurada de transmitir informação sem infodumps, entretecendo-a ao avançar da narrativa, mesmo quando constrói a sua história como uma narrativa de contador, como neste caso. Há também nele uma capacidade francamente boa para conduzir a narrativa no ritmo que lhe interessa, o qual, para o meu gosto, poderia ser um pouco mais rápido, ainda que isso talvez fizesse com que se perdesse alguma atmosfera. Mas a maior insuficiência que lhe encontrei está na memorabilidade. Não é uma história memorável. Apesar de conter algumas ideias curiosas, o impacto que causa não é forte, o que torna fácil esquecê-la, um pouco à semelhança do que acontece com a de Ian R. MacLeod. Não fora isso, seria uma história excelente; assim é apenas boa. O que já não é nada mau.

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terça-feira, 2 de maio de 2017

Lido: Memory Recall

Aparece a seguir nesta antologia uma história portuguesa que, tanto quanto eu saiba, é inédita em português. O título é Memory Recall, e foi escrita por Regina Catarino. Trata-se de uma história de ficção científica, em ambiente de space opera, e assim começa logo a colidir com o meu gosto pessoal pois, como não me canso de repetir, não acho esse subgénero particularmente interessante. Mas mesmo assim, há alguma diferença entre as space operas modernas de um Baxter ou até de um Hamilton, e este conto, que se lê quase como uma fanfic de Star Trek.

A história em si até poderia ter interesse se tivesse sido escrita de outra forma. A narradora-surpresa, revelada no final, podia ser uma cereja no topo do bolo, a rematar a coisa com uma piscadela de olho ao leitor, mesmo numa história de space opera bastante típica, passada numa nave cuja missão é transportar uma carga misteriosa que a vai meter em problemas. Mas a forma de contar a história que a Regina escolheu é tão antiquada que os pontos positivos que o conto possa ter nada conseguem fazer para o salvar. Especialmente seguindo-se a duas histórias literariamente muito fortes, o que só amplia o contraste. É pena.

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Se eu fosse francês II

Se eu fosse francês manteria agora tudo o que escrevi aqui, com uma diferença crucial. Macron, com uma primeira semana de campanha para a segunda volta absolutamente estapafúrdia, deu o flanco a Le Pen. E se durante muito tempo as notícias sobre a subida das intenções de voto nesta última pareciam ser sobretudo alarmismo dos cronicamente assustados, neste último par de dias essa subida parece ter-se concretizado de facto. O boneco abaixo, retirado daqui e construído a partir de uma sondagem regular cujo principal fator de interesse é mostrar a evolução das intenções de voto ao longo do tempo, eliminando coisas como house effects e efeitos de amostragem, parece mostrá-lo. É certo que Le Pen só subiu até níveis próximos aos que já tinha tido a 10 de abril, é certo que ainda é cedo para que a subida se confirme de facto (pode perfeitamente seguir-se-lhe uma descida igual; já aconteceu antes), mas a possível chegada de Le Pen aos 42-43% retira do zero a possibilidade de ser ela a ganhar as eleições. E isso muda tudo.
Se eu fosse francês, por conseguinte, estaria hoje bem mais próximo de me decidir a votar Macron (de nariz tapado e com um bombom na boca para afastar o fel) do que há dias. Mas sobretudo, iria seguir com enorme atenção a evolução desta sondagem nos dias que faltam. Se Le Pen subisse mais alguma coisa, quer a tendência continuasse a ser de subida quer fosse de estabilização, o meu voto ficaria decidido e seria em Macron. Se voltasse a descer, manter-me-ia inclinado ao voto branco ou nulo. E aí a indecisão manter-se-ia até à cabine de voto porque poderia bastar mais uma gaffe de Macron ou de algum dos seus próximos ou a costumeira ajudinha dos terroristas à extrema-direita para mudar muita coisa. E para me forçar também a votar Macron.

Se eu fosse francês, uma coisa seria certa: neste momento estaria um bom bocado deprimido.