sábado, 31 de dezembro de 2016

Lido: A Mulher Gritando

Uma das formas de criar em literatura uma sensação de horror, de pesadelo, é colocar o protagonista a fazer os possíveis por comunicar com os outros e ninguém o entender, seja porque não compreendem mesmo o que diz, seja porque nada consegue dizer, seja porque não querem ou não podem aceitar a verdade do que diz. São frequentemente histórias muito simples, pois a contínua repetição da tentativa gorada de comunicação não se presta a grande complexidade estrutural, mas são também com frequência histórias muito eficazes.

E é isso mesmo que Ray Bradbury faz em A Mulher Gritando (bibliografia), servindo-se também de um outro estratagema que usou em vários contos: a dissociação entre o mundo dos adultos e o das crianças.

Aqui, a protagonista é uma miúda de dez anos que um dia, ao percorrer o terreno baldio atrás de sua casa, ouve uma mulher a gritar e depressa percebe que os gritos vêm do chão. Segue-se uma série de peripécias, com a miúda a tentar convencer os adultos de que está uma mulher a gritar debaixo da terra e ninguém a acreditar, o que acaba por a levar a decidir cavar ela própria, o que é posto pelos adultos na conta de brincadeiras, e termina com um final não muito surpreendente, mas com a sua subtileza. É outro bom conto. Não dos melhores, mas bom.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Lido: O Pescador e a Sua Mulher

Uma das coisas que me tem causado alguma surpresa ao ler, lado a lado, estas histórias tradicionais alemãs dos Irmãos Grimm e as portuguesas do Adolfo Coelho é a ausência, naquelas de algo que tem sido muito comum nestas últimas: a lengalenga.

Pois bem, O Pescador e a Sua Mulher muda a feição das coisas.

Trata esta história de um pescador que um belo dia pesca uma solha falante, logo encantada, que promete satisfazer-lhe todos os desejos se ele lhe poupar a vida. O homem é um bom homem, um pachola, que tem por ambição simplesmente viver a vida descansado e não lhe pede nada de especial. Mas a mulher não está pelos ajustes e obriga o marido a ir exigir à solha coisas cada vez mais exorbitantes. E o marido, bem mandado, obedece sempre, mesmo contrariado. A lengalenga está nisto, nas sucessivas viagens entre a casa (ou o palácio, ou o castelo) e o mar onde a solha vivia, nos versinhos sempre iguais que o homem recita para convocar a criatura mágica e na conversa que têm, também sempre igual, antes do desejo ser satisfeito.

Claro que se trata de um conto exemplar, conservador, que pretende transmitir a ideia de que cada um está bem é no seu lugar, sem levantar ondas, sem querer mais do que tem. Nisso parece ser bastante "grimesco". Mas a lengalenga é aqui novidade.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

À atenção das pessoas que me querem enviar coisas...

... e só têm como endereço o meu apartado.

Informo que, a partir de 1 de janeiro, esse apartado vai deixar de ser meu e, portanto, não devem enviar nada para lá. O meu endereço volta a ser só um, o de casa.

Arranjei o apartado porque os CTT privatizaram o serviço de entrega de encomendas em casa e ele tornou-se péssimo (papéis enfiados debaixo da porta do prédio, encomendas que nunca chegavam — talvez por causa disso — etc.), a caixa postal não ficava muito longe de casa e o preço não era muito alto.

Mas começaram por fechar a estação de correios mais próxima de casa, transferindo a caixa postal para o centro da cidade, depois privatizaram os CTT e a primeira coisa que os CTT-empresa-privada fizeram foi subir de surpresa, no fim do ano e muito o preço do apartado. Por fim, o serviço de entrega de encomendas teve algumas melhorias — ao mesmo tempo que o serviço postal normal ia de mal a pior — portanto vou mandá-los pastar.

Em suma: quem quiser enviar-me coisas e não saiba para onde, pergunte-me.

Ah, sim, e claro: viva a iniciativa privada! Nada é mais eficaz e amigo do cidadão do que a iniciativa privada! Empresas públicas? Que horror!

sábado, 17 de dezembro de 2016

O Bibliowiki está de cara lavada

Ó pra ele aqui, tão renovadinho:


Ao fim de dez anos de existência, e para comemorar a primeira década, o Bibliowiki acabou de receber uma reformulação geral da sua página inicial com o objetivo de a tornar mais prática e atraente. A história, que não é tão linear como pode parecer, está contada no blogue do projeto, e as opiniões dos utilizadores são bem-vindas.

De todos os projetos que eu fui desenvolvendo na web ao longo dos anos, este é claramente o melhor. Mesmo estando ainda longe de ser o que eu gostaria que fosse.

Se o ótimo é inalcançável, o chegarmos ao bom já não é mau.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Lido: O Conde Encantado

O Conde Encantado é mais uma destas histórias recolhidas por Adolfo Coelho com um considerável potencial para expansão. Contudo, enquanto na maioria dos casos esse potencial aparece porque a história até resulta razoavelmente bem tal como está mas dá pano para mais mangas, aqui é porque está reduzida ao osso e dá mesmo sinais de talvez lhe faltarem alguns. Ossos, quero eu dizer.

Conta a história da neta de uma velha má que a detestava e fazia tudo para a maltratar, o que a leva a fugir e a arranjar emprego no castelo de um conde. Só que o conde estava encantado e transformava-se em passarinho, o que vai levar a certas peripécias e estas ao desfecho. Há qualquer coisa de Gata Borralheira aqui — algumas ideias, sobretudo — mas a história em si segue caminhos diferentes.

E quando eu sigo "segue" talvez devesse dizer "esboça", pois tudo se despacha em página e meia e há até algumas voltas de enredo que parecem simplesmente aparecer vindas do nada. Pode tratar-se do que resta de uma história complexa depois de sofrer uma degradação razoavelmente intensa ao longo dos séculos. Ou talvez o fenómeno seja outro. De qualquer forma, não é das histórias mais interessantes deste conjunto.

Contos anteriores deste livro:

domingo, 11 de dezembro de 2016

Lido: Selvagens

Na vinheta Selvagens, Luiz Bras volta a um território híbrido entre a ficção científica e o horror. É um daqueles contos de laboratório e de ideia que a FC tanto explorou ao longo da sua história, focando-se numa experiência baseada em implantes neurológicos que fazem com que os voluntários humanos tenham acesso a todo o fluxo sensorial uns dos outros. O que um faz e sente, todos sentem, acabando por sentir que fazem também.

É ideia que dá pano para mangas, mas Bras resolve-a em menos de duas páginas, mergulhando rapidamente no horror e na loucura. E não, embora este meu "mas" possa levar a crer o contrário, o resultado não é insatisfatório. O conto é bom, forte e eficaz. O facto de me ter ficado na mente uma rede de possibilidades narrativas com base na ideia deste conto não o diminui.

Textos anteriores deste livro:

Lido: Transplante

Transplante é um curtíssimo mas muito eficaz texto de horror, escrito em jeito de poema mas com muito pouco (ou nenhum) lirismo, no qual Luiz Bras conta uma historinha que será tanto mais arrepiante quanto mais os leitores acreditarem na existência de espíritos. E não convém dizer mais porque a eficácia deste texto depende fortemente do constante reajuste de perspetiva sobre a história que está a ser contada que ele provoca no leitor, o que só se consegue alcançar com o mistério e a surpresa. E além disso, este texto sobre o poema já está significativamente maior que o poema.

Textos anteriores deste livro:

sábado, 10 de dezembro de 2016

Lido: A Boneca

A Boneca (bibliografia), de João Ventura, é no essencial um conto de fantasia com alguns elementos de ficção científica — bastante ténues — cuja protagonista, de certa forma, é uma boneca. A história começa num momento especial de uma antiguidade distante, no qual a feiticeira de um povo primitivo prepara magicamente uma boneca que possa ser usada para levar a morte a um tirano que, segundo informações dignas de crédito, se prepara para invadir a região. Mas as tropas do imperador chegam antes de a boneca poder ser usada, e esta fica esquecida, à espera.

Séculos mais tarde, já tudo está mudado, e a aldeia, entretanto há muito esquecida, é alvo de uma campanha arqueológica que acaba por desenterrar a boneca, a qual se mostra em surpreendente bom estado. E por casualidade, ou talvez não, isso acontece nas vésperas de uma nova invasão por parte de um novo tirano.

A ideia é interessante, e o próprio conto também, mas há um problema: o desenlace torna-se demasiado óbvio demasiado depressa. Assim, embora o conto esteja de uma forma geral bem construído e bem escrito, a leitura não é tão interessante como poderia ser porque lhe falta algum mistério que sustente melhor a história.

Contos anteriores deste livro:

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Lido: Makas da Banda

Desde que me lancei na aventura de fazer o Bibliowiki, já vai para dez anos (xiiii!) parte das minhas leituras é determinada pela curiosidade de saber se o livro X inclui fantástico, como por algum motivo me parece poder acontecer, ou se trata apenas de falso alarme. Makas da Banda é um desses casos. Quando surgiram as notícias sobre a iminente falência da Campo das Letras corri para o site da editora e vasculhei-o, tão exaustivamente como o tempo permitiu, em busca de livros que de alguma forma pudessem interessar ao Bibliowiki. A sinopse desta novela de Xakolo Monangumba chamou-me a atenção, amplificada por se tratar de um autor angolano, país de que há escassíssimas notícias sobre produção de fantástico à parte um habitué chamado Agualusa, e encomendei-o.

E sim, demorei a lê-lo. Também é costume.

Afastando desde já a curiosidade: é falso alarme. Existem neste texto algumas piscadelas de olho ao fantástico, mas são arroubos poéticos claramente fantasiosos no contexto da narrativa, que é essencialmente realista, ou então referências mais ou menos oblíquas a certos momentos e figuras, não fantástico propriamente dito.

O livro trata sobretudo de Angola, da sua história e da sua política, tanto pré como pós independência (mais pós), numa narrativa com aspirações poetizantes que vai avançando de episódio em episódio de uma forma que parece ter muito de autobiográfico. Há personagens, sim, há diálogos e essas coisas de que costuma fazer-se a ficção, mas não se nota uma verdadeira vontade de construir personagens ou uma narrativa realmente ficcional, antes esta e aquelas parecem servir sobretudo para transmitir ideias sobre o verdadeiro protagonista do livro: o país em si mesmo e o seu povo.

É frequente encontrar em livros de autores angolanos uma certa busca por uma identidade, uma permanente interrogação sobre o que significa afinal, ao certo, isso de ser angolano. Não é caso único; também se encontra idêntica interrogação em alguma literatura portuguesa. Mas na angolana que tenho lido ela faz-se particularmente premente e, de todos os livros angolanos que já li, este talvez seja aquele em que é mais óbvia, não só, mas também, pela abundância de palavras e expressões em kimbundo, que chegam ao próprio título. Makas são problemas. A Banda, aqui, é Angola.

Para alguém de fora, para os outros lusófonos e até, imagino, para angolanos cujo substrato linguístico seja outro (o kimbundo é apenas uma das duas ou três dezenas de línguas nacionais em Angola, ainda que seja das mais importantes), essa profusão de expressões em kimbundo tende a tornar a leitura algo pesada, o que é incentivado pela propensão de Monangumba para a frase de efeito poético e para o diálogo declamatório. Estas últimas características são coisas que não costumo gostar de encontrar no que leio, e este livro não foi exceção. Por isso, e apesar de lhe reconhecer interesse, particularmente para os leitores mais curiosos sobre Angola, a sua história e as suas gentes, não gostei muito desta leitura.

Este livro, como se viu mais acima, foi comprado.

Lido: O Piquenique de um Milhão de Anos

Eis mais um conto de Ray Bradbury de que é muito fácil falar e que também é muito fácil de avaliar. O Piquenique de um Milhão de Anos (bibliografia) é um excelente conto de ficção científica, um dos grandes clássicos de Bradbury em forma de conto, que eu já tinha lido e comentado aqui na Lâmpada há seis anos e picos (e fora dela há mais tempo ainda; esta foi a quarta leitura que fiz deste conto... e não, não me farto). Ao que escrevi há seis anos apetece-me acrescentar agora que o conto faz este ano 70 anos de idade o que, em termos de ficção científica, é uma eternidade. E é espantoso, um testemunho de brilhantismo, como um conto tão antigo consegue ainda conservar toda a sua força. Bradbury tem alguns contos assim (e pelo menos um romance), e é isso que o eleva ao panteão dos grandes autores de FC de todos os tempos.

Contos anteriores deste livro:

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Lido: Escola de Mulheres / Dom João

Ler teatro é sempre uma experiência com o seu quê de bizarro: temos as palavras, temos um punhado de indicações cénicas, mas falta-nos tudo o resto. O texto, se visto sob o ponto de vista estrito da literatura, tende a ficar algo coxo. Havendo imaginação suficiente, ou talvez seja mais adequado dizer havendo experiência suficiente de teatro e do que lhe é inerente, calculo que seja possível suprir mentalmente o que falta ao texto, mas isso não invalida que ao texto falte mesmo alguma coisa. Sempre.

Mesmo assim, as duas peças de que se constitui este livro, Escola de Mulheres e Dom João, duas comédias de costumes mais ou menos moralistas, constituíram, cada uma à sua maneira, uma surpresa para mim. Uma por ser quase um texto feminista com mais de trezentos anos, escrito por um Molière que pelos vistos estava bem à frente do seu tempo. Outra por conter algo que não esperava de todo encontrar aqui: elementos claros de fantástico.

No final da leitura, percebi por que motivo Molière é tido como o pai do teatro moderno. Mesmo sabendo eu muito pouco sobre teatro. Mesmo tendo um apreço limitado pela arte (sempre me desagradou um certo artificialismo que parece ser inerente ao teatro). O facto é que, tendo em conta a época em que foram escritas, estas peças são de se lhe tirar o chapéu. E o gosto pessoal que vá dar uma voltinha pelo quarteirão.

Eis o que achei mais desenvolvidamente sobre as duas peças:
Este livro foi rapinado à biblioteca dos meus pais (para onde voltará de seguida).

Lido: Estação Morta

De Maria Ondina Braga julgo que só tinha lido uns contos infantis, na época em que a idade era a própria, e dessas leituras ficou-me na memória sobretudo o nome da autora, portanto ler este Estação Morta foi praticamente uma estreia. Esta história, no entanto, não é uma história infantil. Trata-se de um conto adulto, uma daquelas histórias de veraneio, que se servem da muito comum técnica de arrancar as pessoas aos seus lugares e gestos rotineiros para dar o pontapé de saída em histórias que se pretendem interessantes. Neste caso, estamos perante a história de uma mulher que se aloja num hotel semivazio, algures no norte, perto da praia mas fora de época, e aí é confrontada com os mistérios do lugar e com um homem, bronco, retornado, salazarento, por quem sente um misto de repugnância e atração. Bem escrito, introspetivo, o melhor do conto são as suas subtilezas, suficientes para o arrancar a uma mediania a que a banalidade de cenários e personagens poderiam tê-lo condenado. Não que o arranquem com grande força ou de uma forma muito definitiva. Mas arrancam o suficiente para se terminar a leitura com opinião positiva.

Contos anteriores desta publicação:

Lido: Caim

Já se escreveram rios de tinta, virtual e real, sobre Caim, o último romance de José Saramago, que, como sempre aconteceu quando o nosso nobel tocou a religião, gerou apreciável polémica. Para isso, teria bastado a humanização das figuras bíblicas, como se verificou com outro livro muito atacado por setores ligados à igreja católica, O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Teria bastado que reconhecesse aos homens dos mitos cristãos a soma de defeitos, virtudes, acertos e falhas que cabem a qualquer ser humano. Mas em Caim Saramago vai mais longe e deita o seu olhar implacavelmente crítico de todas as injustiças e crueldades sobre a figura divina propriamente dita... que não sai nada bem no retrato.

O enredo do romance descreve-se rapidamente. O protagonista é Caim, filho primogénito de Adão e Eva e o primeiro homicida da história tal como esta vem descrita nas mitologias abraamicas. Começa o romance em pleno Paraíso, depressa passa ao crime de Caim, que assassina o irmão, Abel, e por isso é marcado por deus (em minúscula, sempre, ao longo de todo o romance), e segue-se depois uma longa deambulação por diversos lugares e tempos, nos quais é Caim testemunha de variados episódios bíblicos.

Um detalhe relevante: nunca se chega a sair do Antigo Testamento, e o deus com que Caim contacta, e de que Saramago assim fala, é o deus colérico, vingativo, cruel e de uma forma geral desumano dessa coleção de textos bíblicos. Caim odeia-o, e a cada episódio de crueldade a que assiste mais se aprofunda esse ódio. Perante os crimes de deus, argumenta, o seu (de que, de resto, rapidamente se arrepende) é uma insignificância. Assim sendo, como pode deus arrogar-se a ter a legitimidade de o condenar ou absolver?

(Um parêntesis: se pusermos de parte por um momento que estamos a falar de deus, não seria uma ideia muito semelhante aplicável aos estados?)

Esta é a tese do livro, e é uma tese que, enquanto ateu, não partilho. Para um ateu, todos e quaisquer deuses não passam de invenções humanas, e portanto são tão cruéis como quem os criou queira. Deus não é mais culpado das qualidades e defeitos que lhe inculcam do que qualquer outra personagem de ficção. O deus do Antigo Testamento, como todos os seus pares, serviu (e continua a servir) um propósito, não tem existência autónoma nem vontades próprias. A sua crueldade fala-nos da sociedade que o criou e daquelas que o perpetuaram, não de si próprio. Esta seria, a meu ver, a abordagem realmente ateia à mitologia abraamica, mas não é a que Saramago aqui usa. Saramago, aqui, é cristão. Iconoclasta, talvez, mas cristão.

E é isto o que os que o odeiam por causa deste livro não perdoam.

Quanto ao livro propriamente dito, não é das melhores obras de Saramago. As alegorias têm sempre qualquer coisa de tese, mas esta pode estar mais ou menos bem embrulhada numa história, pode estar mais ou menos bem construída. As melhores põem a tese em segundo plano, visível mas não intrusiva. Saramago sabia disso, tanto assim que em nenhuma das suas alegorias dispensa a construção de uma história propriamente dita... mas aqui quase o faz. Talvez por estar a sentir o tempo a esgotar-se-lhe, talvez por estar já diminuído (afinal de contas, publicou o livro aos 86 anos, um ano antes de morrer), o facto é que o livro é mais uma coleção de episódios dispersos e debilmente interligados, destinados a vincar uma ideia, do que uma história propriamente dita. As deambulações de Caim, que não só é dotado de uma vida extraordinariamente longa, como salta no tempo de uma forma quase ciencioficcional, são reminiscentes das do grupo que protagoniza A Jangada de Pedra mas enquanto neste livro o motor narrativo e principal personagem é a própria Península Ibérica à deriva no Atlântico, em Caim não existe nada de semelhante que lhe forneça estrutura, e até a voz narrativa está algo distante do melhor a que Saramago habituou os seus leitores.

Por outro lado, é um livro de Saramago e isso diz muito. A qualidade literária está lá, quase intacta, o característico estilo, aquela forma tão sua de tornar o texto ao mesmo tempo simples e complexo também, o que é notável para a idade do autor. Até há algum humor e certamente há bastante amor no meio de toda a raiva. Mesmo não sendo do melhor que Saramago nos deu, Caim está muito longe de ser um mau livro.

Mais um livro comprado.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Lido: Venha ao Meu Porão

De Venha ao Meu Porão (bibliografia) é bastante fácil falar, pois este conto em que Ray Bradbury mistura a ficção científica com o horror foi lido há relativamente pouco tempo, noutra edição, e comentado aqui na Lâmpada. E nada tenho a acrescentar agora ao que escrevi há três anos: o conto que então era muito bom, muito bom continua a ser agora. Só a edição difere, o que inclui a tradução. E aí, entre as duas, prefiro claramente a de há três anos.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Ficções, nº 9

A Ficções, nº 9 talvez seja o número mais irregular, e também mais fraco, da revista Ficções que já me passou pelos olhos. Com efeito, embora seja comum e até natural que os vários contos sejam de diferentes qualidade ou adequação ao meu gosto de leitor, não é comum que o sejam tanto, tal como não é comum que se quedem tanto por uma mediania razoavelmente sensaborona.

Mas lá está, volto a dizer o que digo sempre nestas circunstâncias: em antologias e em revistas como esta basta que seja incluído um conto realmente bom para já valer a pena. O todo pode não ser grande coisa, mas basta publicar-se nele uma história de qualidade que sem ele não veria a luz do dia para que seja bom ter-se feito a edição.

O ideal seria que se pudesse sempre dizer mais do que isto em abono destas edições. Mas nem sempre é possível. E deste número na Ficções só posso dizer que é razoável mas ainda bem que foi publicado. Ah, e inclui fantástico. É sempre um bónus positivo, pela parte que me toca.

Eis o que achei dos contos que o constituem:
Esta revista foi comprada.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Lido: Um Homem de Carreira

Em Um Homem de Carreira (bibliografia), Telmo Marçal leva-nos a Marte, acompanhando um destituído da vida que para lá emigra a fim de sobreviver trabalhando como mineiro, em contratos de dois anos (marcianos, dizem as letras miudinhas). É mais um conto bastante típico das ficções do Telmo: sombrio, profundamente distópico, protagonizado por alguém cuja única ambição na vida é conseguir safar-se no salve-se-quem-puder cruel a que chama sociedade. No caso, vai-se safando emigrando, por períodos de quatro anos (terrestres), e regressando no fim de cada período para um lugar sempre pior, cada vez mais miserável e desumano, cada vez mais mar de portas fechadas. A única porta entreaberta é voltar a emigrar. Mas mesmo essa...

É mais um conto francamente bom, sim. E neste caso, para mim, tratou-se de uma releitura de um conto especial. É que nos idos tempos do E-nigma tive a ideia de publicar em papel uma ampliação da antologia O Planeta das Traseiras, idealmente com histórias mais elaboradas do que as da antologia em ebook. Abri submissões e este conto foi o primeiro conto aprovado... e o único. Não houve contos candidatos em quantidade e qualidade suficiente e o projeto morreu, adiando por alguns anos a publicação desta história, que pode ter sido escrita especialmente para ele, não sei. Felizmente, acabou por ver a luz do dia. É sempre um prazer quando isso acontece porque é demasiado comum dar-se a tristeza de boas histórias ficarem enterradas nos labirintos da edição.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Viajantes do Tempo

Clifford D. Simak é um dos escritores de ficção científica mais originais de meados do século XX, com um conjunto de obras singulares que por vezes não passam disso, de obras singulares, mas por vezes ascendem à condição de clássicos. E Viajantes do Tempo (bibliografia) é, certamente, uma obra singular.

Tudo gira em volta do "Anzol", um misto de empresa de investigação e desenvolvimento e laboratório público, num planeta Terra (ou nuns Estados Unidos, o que demasiadas vezes na FC americana é uma e a mesma coisa) resignado a nunca poder partir realmente para o Espaço. Mas felizmente foi possível encontrar uma maneira alternativa de explorar o universo, através de pessoas especiais, dotadas de capacidades paranormais amplificadas por maquinaria.

Shepherd Blaine é uma dessas pessoas. Mas um belo dia, ao explorar um planeta distante, é "infetado" por uma criatura alienígena que se aloja (parcialmente, pelo menos) no seu cérebro. E a partir desse momento passa a fugitivo.

Segue-se uma história contada mais ou menos em jeito de thriller, movida pelas peripécias da fuga de Blaine, pelas suas dificuldades em adaptar-se à sua nova natureza dual, ou pelo menos em gerir a presença alienígena em si, enquanto as pessoas do Anzol procuram apanhá-lo e pô-lo de quarentena. Mas também, e é isto o mais interessante no livro, pela lenta revelação da verdadeira natureza do Anzol (uma corporação que se serve da exploração do espaço por via extrassensorial para pôr no mercado inovações tecnológicas exclusivas), e da sua condição de corpo estranho numa sociedade que o olha, e a todos os que lá trabalham, com sentimentos que vão da desconfiança à aberta hostilidade. Hostilidade essa que se estende a todos os que revelem possuir dons.

Uma hostilidade claramente xenófoba.

O grande problema deste livro é ter um enredo bastante pobre. É a fuga de Blaine e pouco mais, mesmo havendo também umas reviravoltas que vão além disso, pois Blaine é ajudado (ou desajudado, depende) por um grupo que se opõe ao Anzol por motivos diferentes da generalidade das pessoas. Isso torna-o um pouco aborrecido, por vezes. Mas tem bastantes pontos de interesse, em especial quando pensamos que nos dias que correm uma história baseada em parte em sentimentos xenófobos que levam à perseguição intolerante do diferente tem absoluta relevância. É um bom livro. Mas será bom o suficiente para ascender a clássico?

Não, não creio que o seja.

Este livro foi comprado.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Lido: O Menino Invisível

O Menino Invisível (bibliografia) é um conto sobre a solidão. A história, à primeira vista, é de fantasia: um miúdo, porque os pais vão de viagem, vai passar uns dias com uma velha tia excêntrica mas esta, porque nesses dias ganhou gosto a ter o miúdo por perto, decide fazer com que ele fique consigo, desejavelmente para sempre, pelo menos durante mais algum tempo. E para isso convence-o de que é bruxa, capaz de fazer feitiços. E o rapaz pede-lhe para ser invisível, desejo que ela prontamente concede.

Ou pelo menos ele julga que sim.

O conto é divertido, coisa que não é muito comum em Ray Bradbury, pois boa parte dele é composto pelos problemas que a pobre velha tem com as travessuras do miúdo "invisível", às quais não pode responder como desejaria para não destruir a ilusão de que não o consegue ver. Mas no fim o conto muda de caráter, porque ela acaba derrotada e sozinha, talvez até meio enlouquecida, acompanhada apenas por um rapaz não só invisível mas só existente na sua imaginação.

É um conto de ambiente fantástico que no entanto não tem realmente fantástico na história que conta, ainda que também possa haver argumentos para manter uma certa dúvida no ar, à maneira todoroviana. Um conto sensível e humano. Não dos melhores contos de Bradbury, mas um conto bom.

Contos anteriores deste livro:

Lido: Atlas das Nuvens

Tenho uma forte desconfiança, formada e reforçada por anos de leitura das coisas mais variadas, por aqueles livros de que toda a gente fala e (diz que) lê, especialmente quando a sua adaptação ao cinema é rápida e só reforça o hype. É raro agradarem-me de todo e, quando agradam, mais raro ainda é agradarem muito.

Há exceções a essa regra, claro. Assim de repente, vem-me à memória O Perfume como um exemplo de exceção, pois quando li o livro já toda a gente parecia tê-lo lido e achado maravilhoso (bem... atendendo à história "maravilhoso" talvez não seja o qualificativo mais adequado) e, ao contrário do que é hábito, também eu terminei a leitura plenamente satisfeito. Mas o hábito é outro.

Atlas das Nuvens de David Mitchell chegou-me também dessa forma, recomendadíssimo por todos e um par de botas, com atores famosos na capa armada em poster (ou vice-versa), e foi de nariz firmemente torcido que me lancei à leitura.

Trata-se de um romance em mosaicos que só não é bastante típico porque as histórias se entrelaçam em camadas, como uma espécie de grande cebola literária. São seis ao todo, todas com dimensões que, se encaradas como histórias autónomas, as situariam perto da fronteira entre a novela e o romance, e quase todas (a exceção é a história central) divididas em duas partes.

Estão interligadas por uma continuidade de personagens, que parecem funcionar como uma só personagem recorrente, talvez reencarnada, uma espécie de cometa humano (embora não tão regular), e cujas vidas se interligam de formas subtis. Alguém escreve um diário; décadas mais tarde, outro alguém (ou outra encarnação do mesmo alguém, quiçá) lê esse diário e escreve cartas que incluem menções ao diário; passam-se mais décadas, e alguém tem nas cartas um motivo de investigação. E por aí fora, de meados do século XIX ao futuro distante e depois de volta até meados do século XIX para concluir as histórias que foram ficando a meio ao longo do mergulho no futuro.

O que se segue, avisa-se desde já, contém abundância de spoilers. Não é possível falar do modo como todas estas histórias se interligam sem revelar os seus enredos e desfechos.

O livro começa (e acaba) no Pacífico, com o Diário da Travessia do Pacífico de Adam Ewing. Este, Adam Ewing, é um pacato notário de São Francisco, em viagem pela Polinésia, um homem cuja decência intrínseca vai pôr em sarilhos, devido em boa parte à sua recusa em aceitar as atrocidades cometidas contra os nativos das ilhas, mas também a doses saudáveis de curiosidade e de inocência. Esta história lê-se quase como um dos romances de aventuras em paragens exóticas, que tão comuns foram no século XIX.

É o diário que Ewing escreve durante a viagem, ou pelo menos parte dele, que o protagonista da segunda história vai encontrar (e roubar) em 1931 numa biblioteca particular. Cartas de Zedelghem, a segunda história, é uma novela epistolar que consiste em cartas enviadas por Robert Frobisher a Rufus Sixsmith, seu antigo amante. Frobisher é um músico inglês deserdado, bissexual e sem vintém que arranja trabalho como amanuense de um velho compositor belga que vive doente e recolhido na sua propriedade, a quem Frobisher ajuda a compor enquanto vai também tentando compor as suas próprias obras. As cartas contam a vida e preocupações do jovem músico e as variadas dificuldades e prazeres nas relações pessoais e profissionais com o compositor (Vyvyan Ayrs) e a sua família e terminam com uma carta de despedida, uma obra musical que ele considera prima intitulada Sexteto do Atlas das Nuvens, e o diário de Ewing. Esta história lê-se como um dos romances mundanos do período entre guerras.

A terceira história, Vidas a Meio - O Primeiro Mistério de Luisa Rey, é um thriller quase policial passado em 1975 e protagonizado por Luisa Rey, uma jornalista californiana cuja vida muda quando conhece Rufus Sixsmith. O velho inglês trabalha agora numa central nuclear na cidade ficcional de Buenas Yerbas e prepara-se para fornecer a Luisa provas de que a central não é segura quando é assassinado. A história segue depois as peripécias por que Luisa passa ao tentar descobrir a verdade, pois isso leva-a a também ser alvo de tentativas de assassinato. Mas acaba por descobrir mais do que procurava. Descobre também as cartas de Frobisher e a sua obscura peça Sexteto do Atlas das Nuvens.

Na história seguinte desaparecem as datas. A Terrível Provação de Timothy Cavendish passa-se num presente não concretizado e é protagonizada por Timothy Cavendish, inglês já bastante entradote e muito pretensioso, editor de uma vanity press, por cujas mãos passa, sem lhe causar grande entusiasmo, o manuscrito de Vidas a Meio - O Primeiro Mistério de Luisa Rey. Infelizmente, Cavendish é obrigado a lidar com gente pouco recomendável devido a certos — e temporários, evidentemente — reveses financeiros, e acaba por fugir, ajudado pelo irmão. Só que a fuga vai levar a que seja internado num lar para idosos mais ou menos taralhocos, cujos dirigentes não consegue convencer de que está ali por engano, e de onde acaba por fugir. É uma história cómica, mas ao mesmo tempo opressiva.

A quinta história, Um Orison de Sonmi ~ 451, leva-nos pela primeira vez ao futuro. Passa-se numa Coreia transformada numa distopia corporativa, num futuro posterior a um desastre de grande monta (provavelmente uma guerra) que não é identificado. Sonmi ~ 451, a protagonista, é uma mulher geneticamente alterada e fabricada para ser servidora dos "puros sangues" (pessoas não fabricadas), que acaba por tomar consciência da sua condição subalterna e por se envolver com uma conspiração revolucionária que a ajuda a ascender a todo o seu potencial. Durante a fase de estudo que essa ascenção implica, Sonmi assiste a um filme antigo intitulado A Terrível Provação de Timothy Cavendish. Mas acaba capturada e a relatar a história da sua vida a um arquivista. É esse relato, gravado num instrumento de registo futurista chamado "orison", que constitui esta história.

Por fim, a história central (a única que é contínua, não dividida em duas partes), Sloosha's Crossin' e Tudo o Que Aconteceu Depois, passa-se no Havai, num futuro ainda mais longínquo e ainda mais distópico, em que a civilização se desfez em barbárie em quase todo o planeta com a exceção de um povo tecnologicamente avançado, identificado como "prescientes". Uma mulher desse povo visita a Ilha Grande do Havai, movida aparentemente por um interesse sociológico, onde contacta uma das várias tribos locais, que adora uma deusa chamada Sonmi. Desperta curiosidade e desconfiança nos membros da tribo, que veem a sua tecnologia como magia e por isso a temem (um dos exemplos dessa tecnologia, diga-se, é um dispositivo holográfico e de comunicação chamado — isso mesmo — orison), e vê-se mergulhada em peripécias perigosas, em parte por isso, em parte porque outra tribo da ilha, mais agressiva, mais bárbara, se lança à conquista, espalhando a morte e a destruição por toda a parte. Esta história é contada pelo filho de um dos membros da tribo visitada pela mulher, que só sobreviveu porque os dois se fizeram ao mar e navegaram até outra das ilhas do arquipélago, e conta-a como uma espécie de lenda, coisas contadas pelo pai, coisas em que ninguém acreditava.

Fim de spoilers.

Este livro conquistou-me por completo. Não só pelas histórias em si mesmas, todas elas complexas e interessantes, nem mesmo pela forma como se interligam, pela estrutura em camadas ao jeito de cebola literária de 600 páginas, mas sobretudo pela forma soberba como Mitchell soube adaptar o seu estilo às exigências de cada história. É quase como se cada uma das partes fosse escrita por um escritor diferente, do bárbaro praticamente analfabeto da história central, ao literato petulante e presunçoso que passa pela sua terrível provação, da ação direta em volta de Luisa Rey aos pensamentos contemplativos de um burguês oiticentista em viagem, chocado pelas crueldades humanas, da precisão quase robótica de uma mulher artificial coreana aos arroubos românticos de um jovem músico inglês.

E pela forma igualmente soberba como Mitchell consegue fazer ao mesmo tempo uma série de homenagens a vários géneros literários. Sendo o livro de ficção científica, porque é a ficção científica que estrutura o mosaico literário que o constitui, encontramos aqui uma série de piscadelas de olho a outros géneros, do policial ao mainstream, à comédia de costumes, à história de aventuras.

Este livro é grande literatura. Grande literatura de ficção científica. De se lhe tirar o chapéu.

Foi uma bela compra.