terça-feira, 28 de julho de 2020

Paolo G. di Filippo: Síndroma do Rodovalho

De Paolo G. di Filippo, ou melhor, de Paul di Filippo, já tinha lido algumas coisas antes desta, contos, geralmente muito bons, de uma espécie de FC repleta de uma biologia descontrolada e muito metamorfoseante, algo semelhante a algumas das histórias do João Barreiros. Numa palavra: ribofunk. Assim, esperava encontrar nesta Síndroma do Rodovalho (bibliografia) qualquer coisa de semelhante. Desiludi-me.

Não que a biologia descontrolada e metamorfoseante esteja ausente daqui. Pelo contrário, a história baseia-se fortemente nela, pois revela uma doença que consiste em as vítimas possuírem órgãos vagabundos, sendo infinitamente variáveis os órgãos afetados e os lugares para onde eles se deslocam. O problema é que Filippo parece mais interessado em produzir gags do que em desenvolver a ideia com alguma consistência, o que não teria nenhum problema se tivesse sido bem sucedido nos gags. Mas não foi. Ou pelo menos a mim não divertiram; sendo o sentido de humor o que é a possibilidade de outras pessoas acharem isto hilariante é impossível de descartar.

Comigo é que decididamente não funcionou. Saí desta leitura muito pouco satisfeito.

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segunda-feira, 27 de julho de 2020

Edgar Allan Poe: William Wilson

Mais uma rapidinha. É que quem tem alguma bagagem nesta coisa dos contos vai inevitavelmente reencontrar vários que já conhece sempre que lê uma antologia de clássicos, e claro que eu já antes tinha lido este William Wilson (bibliografia) de Edgar Allan Poe. A única dúvida era se o tinha lido tão recentemente que uma opinião sobre ele figurasse na Lâmpada ou a leitura era mais antiga. A resposta é sim, a ambas: esta foi pelo menos a minha terceira leitura desta noveleta, e já há na Lâmpada opinião sobre ela, datada de há cinco anos.

E, como por vezes acontece, em especial quando as leituras anteriores são recentes (e esta é), nada tenho a acrescentar a essa opinião. A noveleta continua tão boa como era em 2015.

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sexta-feira, 24 de julho de 2020

Mário-Henrique Leiria: Imagem Devolvida

Quem anda por aqui há algum tempo (bem... há bastante tempo) ter-me-á certamente visto falar dos Novos Contos do Gin do Mário-Henrique Leiria, o segundo dos seus livros do Gin. Mas como nessa época não fazia ainda comentários individualizados conto a conto (ou poema a poema ou até livro a livro), aglomerando-os num resumo semanal, talvez lhe tenha passado despercebida uma opinião antiga, que vem desde a primeira leitura do primeiro desses dois livros, os Contos do Gin-Tonic: sempre gostei muito mais dos seus contos do que dos seus poemas. Muito mais.

Pois bem, Imagem Devolvida é um poema, ainda que possa parecer uma coleção de quatro. Pelo menos é o que se pode deduzir do subtítulo de Poema-Mito que Leiria resolveu agregar-lhe. Um poema muito surrealista — não será por acaso que é precedido por uma espécie de introdução de Mário Cesariny — e muito disposto a ser interpretado e reinterpretado de mil e uma maneiras, cheio de detalhes que remetem à poesia concreta e acompanhado por várias ilustrações. Tudo muito vanguardista, como de resto era timbre do autor. Talvez demasiado vanguardista para mim. Sim, não gostei deste poema, ainda que seja o primeiro a reconhecer que de poesia pouco percebo. É questão de gosto, ou talvez de falta dele.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Irmãos Grimm: Os Três Filhos da Fortuna

Não sei ao certo se contos como este Os Três Filhos da Fortuna, que os Irmãos Grimm terão recolhido e alterado pouco, e em cuja nota dão conta de vários contos aparentados espalhados um pouco por toda a Europa, terão derivado de velhas farsas teatrais. Mas que parece, parece, uma vez que o seu enredo depende quase por inteiro de aceitarmos que existem algures no mundo pessoas prodigiosamente ingénuas, ignorantes ou estúpidas. Personagens de farsa, portanto.

A história aqui é mais uma variação da velhíssima história de tanta literatura popular, a do trio de rapazes que partem pelo mundo em busca de qualquer coisa ou a fim de cumprirem alguma tarefa. Aqui, vão em busca de riquezas, enviados pelo pai quando este sente a morte a aproximar-se, e providos apenas de um galo para um, uma foice para outro e um gato para o terceiro. A ideia é encontrarem algum lugar onde essas coisas sejam desconhecidas e ganharem bom dinheiro com elas. E conseguem, graças a vários prodígios de ingenuidade e/ou estupidez alheias. Especialmente os habitantes do reino encontrado pelo terceiro, o do gato.

Este é um conto de essência muito mercantil, cuja moral se poderia resumir no velho ditado tão amado por todos os chicos-espertos "em terra de cegos quem tem olho é rei". E que se conte como história popular, convenhamos, explica muita coisa sobre a cultura de certos povos.

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Michael Barry: Síndroma de Rashid

Já disse pelo menos uma vez, em pelo menos uma das já numerosas opiniões que aqui tenho vindo a deixar sobre as historietas deste livro, que pedir a gente que escreve para inventar doenças equivale a correr um risco considerável de várias dessas doenças terem a ver diretamente com os livros ou o ato de escrever ou de contar histórias. De facto, não é uma nem são duas as histórias que já ficaram para trás e comprovam esse risco, e nesta Síndroma de Rashid (bibliografia) Michael Barry encarrega-se de somar mais um membro a esse abundante grupo.

Como? Arranjando uma doença que combina a bibliofagia com a metamorfose dos pacientes no estágio terminal. Não uma metamorfose qualquer, desestruturada, não; eles não se transformam em qualquer coisa. Transformam-se em livros. E se estão a pensar que uma doença que começa com um paciente a devorar (literalmente) livros para acabar por se transformar num tem qualquer coisa de alegórico, estão a pensar o mesmo que eu.

Não sendo esta propriamente uma das histórias que contam realmente uma história, ela tem apesar disso um interesse acrescido para mim, uma vez que o autor é hábil no manejo da terminologia médica ao ponto de transformar uma ideia tão absurda em algo quase credível. Serve-se para isso das técnicas típicas da ficção científica, claro, e fá-lo muito bem.

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terça-feira, 21 de julho de 2020

I. A. Ireland: Final Para um Conto Fantástico

E de repente, no meio de contos longos e noveletas, eis que surge um miniconto de sete linhas pouco densas. Julgo nunca ter lido nada de I. A. Ireland, mas este Final Para um Conto Fantástico (bibliografia) deixou-me bem impressionado. É daqueles mini e microcontos que conseguem deixar nas entrelinhas toda uma história, significativamente mais ampla do que a extrema brevidade do texto tem espaço para deixar explícito. Escrevê-los com eficácia é uma arte em si mesma, e Ireland, pelos vistos, sabia bem o que estava a fazer. Ainda por cima consegue que o final seja surpreendente.

E sim, ele funcionaria perfeitamente bem como um final para um conto fantástico. Um conto fantástico da variedade fantasmagórica, provavelmente. Bastante bom.

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sexta-feira, 17 de julho de 2020

António Bettencourt Viana: A Independência da Lua

Há muita gente que defende a opinião de que o início é fundamental para uma obra literária. Há até quem se apresse a abandonar a leitura quando o início não agrada por inteiro. Eu discordo vivamente. Para mim, o início tem importância, sim, mas tanta quanto qualquer outra parte da narrativa, à exceção de uma: a conclusão. Para mim é a conclusão a parte mais importante de uma obra de ficção, pois só no fim toda a história e todo o seu significado ficam claros. Ou não. E já tenho no currículo várias leituras cujo início achei mau ou aborrecido e de que acabei por gostar, por vezes bastante. A mais afamada dessas leituras é o Memorial do Convento, do Saramago, um livro que adoro mas cujas primeiras 100 páginas, mais coisa menos coisa, me custaram bastante a ler. Foi só aí que a leitura realmente engrenou em puro deleite até ao fim.

Pois bem: foi por ser esta a minha atitude perante maus começos que passei das primeiras páginas deste A Independência da Lua (bibliografia). É que o início desta noveleta de FC dura de António Bettencourt Viana é francamente mau.

O principal problema é o intenso "como-sabes-zé" com que Viana decide abrir a história. É das formas mais toscas que existem (e demasiado usada na FC clássica, infelizmente) de transmitir ao leitor informação que lhe permita situar-se no onde e quando da narrativa. Quando os autores põem as suas personagens a explicar detalhadamente umas às outras coisas que todas estão fartas de saber, só porque o leitor não sabe, só me apetece revirar os olhos e deitar o livro pela janela. O que às vezes se justificaria em pleno, porque as histórias acabam por ser quase todas assim. Mas de outras vezes seria pena.

Neste caso seria pena. Porque, apesar de algumas ingenuidades, o resto da história até tem interesse. O título revela não só o tema, mas até o desfecho. Com efeito, a noveleta conta a história de como um governo mundial totalitário na Terra leva a Lua à revolta, devido a exigências de tributação que as colónias lunares não estão em condições de satisfazer. No fundo, uma situação semelhante à que levou à independência dos Estados Unidos e, como aconteceu com esta, também aqui à revolta segue-se uma guerra, com os terrestres a procurarem impor pela força a sua vontade e os lunares a defender-se como podem. À superioridade terrestre em força e material, contrapõem os da Lua um superior conhecimento do terreno e do ambiente, e claro que, sendo Viana quem é, estes conhecimentos selenitas são aproveitados para os transmitir aos leitores.

Aquele início desastrado impede esta história de ser realmente boa. Mas o resto é suficiente para a transformar numa história interessante de FC hard, um subgénero tão pouco cultivado entre nós que esta história até é capaz de merecer um certo destaque se algum dia alguém se dedicar a tentar descobrir e classificar a produção nacional nele enquadrável.

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Ivan Turgueniev: Um Sonho

A fantasia e o terror estão cheios de histórias em que parte ou a totalidade do enredo se baseia em sonhos premonitórios, e este conto de Ivan Turgueniev é uma dessas histórias. Mas o título, Um Sonho (bibliografia), diz pouco mais do que isso. Ou melhor: nem isso chega bem a dizer.

A verdade é que sob um título tão vago se esconde um conto bastante sofisticado, cheio de conteúdo e que, apesar de não esconder uma certa pegada do romantismo, está tão bem construído que ela mal se nota. Nele encontramos o jovem narrador amargurado e arrebatado de tantas histórias românticas, mas o que o faz mover não é um amor instantâneo como tantas vezes acontece, e sim um mistério sobre as suas origens, por um lado, e algo que não compreende e está a afetar a sua mãe. É que ele sonha que procura o pai e quando o encontra ele não é o pai que conhece e que perdera aos sete anos, mas outro homem, um desconhecido.

Com o decorrer da história acabamos por ficar a saber que o jovem é fruto de uma relação sexual forçada e que por isso provoca na mãe uma tensão contante e debilitante entre o amor de uma mãe por um filho e a lembrança da violentação que lhe deu origem. O pai biológico é, claro, o do sonho, não aquele que recorda como pai. E tudo só piora quando ele reaparece, de uma forma bastante fantasmagórica. E volta a desaparecer, de um modo quase igualmente fantástico, deixando para trás um rasto de perturbação e confissões.

Este é um conto no qual os elementos fantásticos e de terror contribuem para acentuar o que de terrível existe na situação, e onde as personagens não chegam propriamente a ter direito a redenção. Um conto muito bem construído. Bastante bom.

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quarta-feira, 15 de julho de 2020

Porque é que eu faço isto?


O fim do Ficção Científica Literária, devido aos motivos que a ele levaram, levou-me a colocar muito seriamente a hipótese de este blogue a que no já longínquo ano de 2003 decidi dar o nome de A Lâmpada Mágica chegar também ao fim. E isso levou-me a analisar os motivos por que faço isto. Por que motivo o mantive durante todos estes anos, porque é ele como é e se se perderia alguma coisa se ele desaparecesse.

A Lâmpada nunca foi um blogue literário em sentido estrito, pois sempre cá fui publicando outras coisas que não têm diretamente a ver com a literatura. A última foi uma denúncia do comportamento do Facebook, por exemplo. Mas é sobretudo um blogue literário, e é-o praticamente desde o início, em boa medida porque a minha vida gira em torno da literatura. A leitura sempre fez parte importante dos meus tempos livres, escrevo desde a adolescência, ainda que com uns hiatos pelo meio, e poucos anos depois de começar a escrever aqui encetei uma carreira de tradutor que dura até hoje e durará muitos mais anos, se covid quiser.

Também nunca foi propriamente um blogue popular, apesar de o número de visualizações ter vindo sempre a crescer ao longo dos anos. E também é natural: as minhas preferências literárias, e por conseguinte as minhas leituras, são em boa parte de nicho, e há muita gente que prefere não ler opiniões sobre histórias que pode vir ainda a ler um dia, ou que não tem, pura e simplesmente, interesse em ler opiniões, quer haja a possibilidade de vir a ler as histórias, quer não haja. Ou seja: a Lâmpada tem o seu público, que talvez lhe sentisse a falta se desaparecesse, mas esse público é tão pequeno que no grande esquema das coisas o blogue estar cá ou não estar pouco importa.

Ou seja: para o mundo exterior, a existência da Lâmpada pouco importa. Podia desaparecer sem deixar rasto e nada realmente mudaria. E para mim?

Ao longo dos anos escrevi na Lâmpada por motivos variados. A princípio foi para ver o que raio era isso dos blogues de que toda a gente falava, mas depressa encontrei aqui um veículo para dar vazão a alguma criatividade. Mais tarde, as motivações mudaram e o conteúdo também, e ao longo dos últimos anos este blogue tem-me servido sobretudo como registo de leituras. E disso sim, se acabasse eu sentiria a falta. Porque fui descobrindo à medida que escrevia sobre o que lia que escrever uma opinião, mesmo que sumária, me obriga a pensar mais sobre o que vai sendo lido, o que enriquece a experiência. Acontece com alguma frequência eu só decidir mesmo o que penso sobre este texto ou aquele quando estou a escrever a opinião sobre ele, e por vezes há detalhes que me incomodam, que me desagradam ou de que gosto, que logo após a leitura ficam como meras sensações difusas e só se concretizam quando me sento aqui a escrever. Também é por isso que as opiniões que aqui deixo não são propriamente as coisas mais estruturadas que poderão ler sobre as obras que leio: quem aqui vem ler estes textos vem ver-me pensar. É isso o que aqui faço: pensar um pouco em forma escrita.

(Isto, já agora, e diga-se em jeito de parêntesis, torna muito estranho para mim que este blogue seja usado como fonte primária para trabalhos académicos, como já aconteceu umas quantas vezes. Isto não é crítica propriamente dita, ainda que eu perceba que a fronteira seja difícil de traçar.)

Também há nisto um certo grau de ativismo, baseado na ideia de que informar o mundo do que obtemos das leituras, tanto das que nos agradam mais como daquelas que nos são mais indiferentes, partilhar a paixão mesmo quando esta é pouco correspondida, pode ser uma forma de despertar interesse em outros, ou pelo menos de afastar neles ideias simplistas e às vezes simplórias sobre os motivos porque gostamos do que gostamos ou não gostamos do que não gostamos. Mesmo quando o mundo em geral se está nas tintas, e está, há sempre a esperança de que uma pequeníssima parte dele não esteja e acabe por compreender. E reparem que neste parágrafo usei quase sempre o plural: é que esta parte da questão é coletiva, pois nenhum de nós, os que lemos e comentamos o que lemos, é dono da verdade, seremos no máximo apenas donos da nossa verdade, e a verdade completa só se obtém quando somos muitos a exprimir a porção dela que nos cabe. Que sejamos tão poucos a fazê-lo é um problema, e o mais importante motivo externo para eu continuar a fazer isto é precisamente contribuir para não passarem a ser ainda menos.

Durante uns anos, e não foram tão poucos como isso, manter o blogue também me permitiu escrever material original, mesmo sendo este quase sempre outras coisas que não a ficção, o que me foi muito útil para desenjoar das traduções com que ganho a vida. Sim, ambas as coisas consistem em trabalhar o texto e a língua, mas a tradução e a produção de material novo correspondem a estados mentais muito diferentes. Traduzir é uma busca constante pela melhor forma de exprimir ideias alheias na minha língua; há aí criatividade mas é uma criatividade fundamentalmente diferente de produzir material original, seja ele qual for, que é um ato de criação absoluta, não só linguística mas também conceptual. E durante vários anos os meus únicos atos deste tipo de criação aconteceram aqui na Lâmpada. Ou quase os únicos.

Ora, se é verdade que de há coisa de ano e meio a esta parte tenho escrito bastante ficção, o que faz com que a criação que faço no blogue perca importância, nada garante que ele não venha um dia a ser necessário para retomar essa função. A vida dá muitas voltas, como é sabido e a pandemia se encarregou de relembrar.

O que de tudo isto se pode retirar é que a Lâmpada é fundamentalmente diferente de outros blogues que eu tenho tido, e até de outros projetos fora da blogosfera. Embora seja algo aberto ao exterior, não é algo que eu faça primordialmente para fora. É algo que faço principalmente para mim, porque me é útil a mim. Ter ou não público pouca diferença faz, o que me torna imune àquela desmotivação típica do blogger que vê a quantidade de visitas a baixar ou a não subir tanto quanto gostaria, e explica em grande medida a longevidade deste espaço, com hiatos e tudo. E também torna a Lâmpada imune a sabotagens por parte dos génios que acham boa ideia "modernizar" o Blogger tornando-o mais difícil e demorado de utilizar.

Portanto sim, a Lâmpada há de acabar um dia, porque quem a faz não é eterno, mas para já não vai a lado nenhum. Ou talvez feche aqui e reabra noutro lado qualquer, se o Blogger me moer mesmo muito o juízo. Mas vai andar por aí. É-me demasiado útil para acabar com ela.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Mia Couto: O Gato Nacional

Apesar do título, não é sobre um gato, esta história de Mia Couto, mas é sobre a nação moçambicana, ou o estado em que ela se encontrava quando foi escrita. O Gato Nacional aparece mas é uma aparição alegórica, pois o verdadeiro tema da história é o poder. Que é como quem diz, o dinheiro. Que é como quem diz, a prostituição.

O protagonista da história (o próprio Mia Couto, provavelmente), é abordado durante a noite por uma mulher que lhe pede lume. Mas não é para acender um cigarro; é para lhe iluminar a subida ao apartamento, mal disfarçada solicitação para uma sessão de sexo. Só que afinal, quando chega a lugar iluminado, a mulher reconhece-o e confessa que julgara que ele era cooperante, o que não faz grande sentido a menos que se conheça o estatuto dos cooperantes nos países africanos: homens (eram quase sempre homens) vindos dos países desenvolvidos com o objetivo declarado de ajudarem os países pobres a prepararem quadros e infraestruturas que permitissem o seu desenvolvimento futuro. Homens pagos em dólares, salários que também por isso eram astronómicos quando comparados com o que ganhavam as pessoas da terra (na verdade, eram bastante elevados mesmo para os padrões portugueses). Homens que por isso tinham um poder considerável, ao mesmo tempo que se transformavam em alvo apetecível para certas atividades.

Este é um conto muito político, mas, como é costume em Mia Couto, também bastante oblíquo, que ele tem um jeito muito próprio de falar de umas coisas parecendo estar a contar outras. E sim, também muito bem escrito, mas isso já se espera, já mal vale a pena mencionar.

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Charles Nodier: História de Helena Gillet

Charles Nodier parece ter sido um homem preocupado com as injustiças do seu tempo, especialmente com aquelas cometidas pelas instituições que deviam pugnar pela justiça. Digo isto porque o que encontramos nesta História de Helena Gillet (bibliografia), um conto com elementos fantásticos relativamente escassos, embora suficientes para merecer a designação de "conto fantástico", é basicamente uma denúncia das injustiças da Justiça e daqueles que a exercem.

É, tal como o título indica, a história de uma tal Helena Gillet, que é vítima de um caso escabroso. Boa rapariga, atrai as atenções de um canalha que, com o auxílio de uma cúmplice, a droga e viola. E, pior, a engravida. Ora, uma gravidez fora do casamento em época de todos os puritanismos é motivo mais que suficiente para destruir a vida de qualquer mulher, mas no caso de Helena o caso é mais grave porque ela se vê acusada do crime de conduta imoral e condenada. E os juízes, guardiães da moral e dos bons costumes, não se ficam por menos: condenam-na à morte.

E, depois da inutilidade dos apelos, lá vai ela rumo ao cadafalso, deixando toda a gente que a sabe inocente em paroxismos de aflição. Toda a gente menos uma velha freira, que diz a todos para não se preocuparem porque Helena não será morta. É aqui que o conto se torna fantástico, uma vez que a premonição da freira se concretiza e algo — a justiça divina, provavelmente — salva a inocente da justiça humana. E para o caso da moral da história não ficar assim inteiramente clara, Nodier encerra-a com página e meia de violento ataque contra a pena de morte e aqueles que a defendem.

Bastante bem escrito e muito bem estruturado, este conto, sendo fantástico, é também político por inteiro (não seria descabido até chamar-lhe um "conto de intervenção"), demonstrando mais uma vez, como se ainda fosse preciso, que literatura fantástica e política sempre andaram de mãos dadas, quer de forma bem explícita, como aqui, quer de maneiras mais subtis. Beatices à parte (que não deixam de ser naturais), gostei bastante.

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domingo, 12 de julho de 2020

Leiturtugas #65

Sim, sim, não foi impressão vossa. Tivemos mesmo uma semaninha de pausa, que isto não pode ser sempre a abrir a 200 à hora. Mas voltámos às semanas com Leiturtugas a divulgar, e voltou a ser o Artur Coelho quem contribuiu com elas. Desta feita deu a sua opinião sobre um conto em ebook do João Barreiros intitulado Um Gosto a Céu no Lago do Breu, publicado já este ano pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Embora o conto não seja primordialmente FC, a leitura da opinião do Artur deixou-me a ideia de que tem elementos do género, pelo que o Artur passa a 4c5s.

E por esta semana parece ter sido só. Se me escapou alguma coisa, o que é sempre uma possibilidade, não se esqueçam de avisar. E vamos em frente que atrás vem gente.

sábado, 11 de julho de 2020

Isaac Asimov: Lógica é Lógica

De volta aos contos do Azazel, agora em novo livro — ou no segundo volume do livro único, mais propriamente — encontramos este Lógica é Lógica (bibliografia), afirmação incontestavelmente verdadeira embora bastante lapalissana. No conto, Isaac Asimov segue fielmente a fórmula que concebeu para estas histórias, o que se por um lado facilita a sua conceção, por outro aumenta o risco de elas se tornarem cansativas. Mas não é o que acontece com esta.

Porque neste conto há um cheirinho do tipo de narrativa que o autor empregou com pleno êxito nos seus contos sobre robôs positrónicos: uma situação estabelece determinados parâmetros e é a obediência ou não a esses parâmetros que vai determinar o seu desfecho, num bem conseguido jogo de consequências lógicas. Todos os contos sobre Azazel têm um pouco disso, mas sendo mágico o pequeno demónio, as regras da causalidade tendem a ser algo flexíveis, dependendo as histórias de qualquer detalhe que passou despercebido à partida. E esses detalhes conseguem ser por vezes bastante forçados. Mas aqui não.

Aqui estamos perante um senhor de boas famílias cujo maior orgulho é fazer parte de um exclusivíssimo clube privado chamado Éden. Aí só pode ter lugar gente rica, gente que vive de rendimentos, gente que não trabalha. Mas o homem tem uma frustração: é incapaz de contar uma piada, o que o obriga a permanecer na periferia dos círculos sociais. E lá vem o Azazel em sua salvação, e a ação do demónio é tão eficaz que o homem faz um sucesso estrondoso num clube de comédia onde vai testar o recém-adquirido talento humorístico. E dão-lhe um cheque de recompensa. Ops. Tudo estragado, e Adão é expulso do Éden.

Este conto, mesmo sem ser nada de especial, como é timbre desta série, consegue pelo menos ser mais engraçado e estar mais bem concebido que a maioria.

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quinta-feira, 9 de julho de 2020

Escrita de junho


Como seria de esperar, uma vez que neste momento estou em férias de covid (sim, o vírus não atingiu só o turismo. Toda a cultura foi afetada e parte dela foi pura e simplesmente arrasada, perante a completa inexistência do ministério. A minha área, não sendo a que apanhou mais pancada — essa é aquela cultura que depende da exibição em sala —, também levou com força e como consequência vou passar uns meses sem trabalho), este mês escrevi bastante. Em comparação com o que tem sido hábito, entenda-se.

Sim, que sou lento nisto. Não há nada a fazer. Nem quando a inspiração ataca a sério sou gajo para dispensar longas pausas para pensar e planear o que escrever a seguir e como. Há quem consiga despachar dez mil palavras ou mais num só dia (estou a olhar para ti, Brandon Sanderson); eu nunca logrei ultrapassar umas três ou quatro mil, mesmo nos momentos mais produtivos. Fitar a página vazia ou meio escrita como quem fita um poço onde sabe que existe água mas não está bem a ver como alcançá-la faz parte tão inextricável do processo como organizar mesmo as letras em palavras e estas em frases.

Pior um pouco quando me ponho a escrever coisas que exigem algo que tende a roubar muitíssimo tempo à escrita propriamente dita: pesquisa.

Tudo isto para dizer que escrevi mais do que tem sido hábito desde que recomecei a dedicar-me a esta coisa de alinhar palavras em frases e frases em páginas de ficção, mas nem por sombras se pode considerar que tenha escrito muito. Menos de 14500 palavras, ou o equivalente a umas 40 páginas e picos. O total do ano chegou a cerca de 150 páginas, o que já daria para um livrito, mas será certamente cerca do dobro quando o ano chegar ao fim, a menos que aconteça alguma coisa que estanque a produção. Como por exemplo pôr-me finalmente a rever o tal romance. É sempre uma possibilidade.

E que 14500 palavras foram essas? Pois terminei o conto de que falei no mês passado, que acabou por não ser conto mas sim uma noveleta, e dei início a outra história, a tal que está a exigir pesquisa, e que vai ser uma novela. Há de ser acabada agora em julho ou, no máximo, no início de agosto. E desta vez é mesmo para cumprir.

Daqui por um mês logo saberão se já está ou ainda falta alguma coisa. Duvido que saibam muito mais além disso; duvido que tenha mais alguma coisa a vos dizer nessa altura. O post sobre a escrita de julho deve ser bastante curto. Mas se querem saber se será curto ou comprido têm bom remédio: voltem cá no início de agosto. Até lá.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Steve Redwood: Síndroma de Pinóquio Inverso

Algumas histórias deste livro têm uma certa queda para a diatribe, o que em geral não é grande ideia, mas o mais interessante nas que aqui se encontram é trazerem suficientes elementos exteriores à diatribe para que apesar disso os textos se tornem interessantes. Por vezes são diatribes com piada; de outras vezes, como no caso desta história de Steve Redwood, são diatribes que vêm embrulhadas em ideias altamente imaginativas.

Com um título como Síndroma de Pinóquio Inverso (bibliografia) é fácil perceber-se que o fulcro da coisa é a mentira e os mentirosos. Rapidamente se percebe que Redwood se atira a classes inteiras de mentirosos, mas a doença que arranja para os afetar é curiosíssima. As mentiras, na imaginação de Redwood, têm existência física, como uma espécie de muco, dotado naturalmente de massa e densidade. Ora, quando a doença ataca, o nariz em vez de crescer, como no caso do Pinóquio de Collodi, mingua e desaparece. Daí o "inverso". Mas porquê?

Porque as mentiras não aumentam a quantidade de muco, mas a sua densidade. Aumentam a quantidade de matéria mas não o seu volume. Não as mentiras que são ditas, entenda-se, mas aquelas que ficam retidas, que são apenas concebidas mas não podem partir mundo fora. Ora, o que é que acontece quando a densidade da matéria aumenta exponencialmente? Exato: chega a certo ponto e forma-se um buraco negro. E é precisamente o buraco negro criado pelas mentiras não proferidas pelos mentirosos profissionais que gera a doença, devorando primeiro o nariz e depois outras partes da anatomia dos desgraçados. E é isso, juntamente com uma ou duas historietas engraçadas que acompanham a descrição da doença, que faz com que esta diatribe de Redwood se leia com muito mais gosto que uma diatribe comum.

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terça-feira, 7 de julho de 2020

José Conrado Dias: Irish Bar «La Gomera»

Em dezembro do ano passado falei aqui do primeiro livro de José Conrado Dias, e muito do que teria a dizer aqui sobre a parte editorial deste segundo livro está dito nesse texto. Com efeito, e apesar da óbvia evolução, continua a sentir-se demasiado neste Irish Bar «La Gomera» a falta de profissionalismo na edição, com a ausência de uma revisão que colocasse certos sinais de pontuação no sítio certo, os travessões esquecidos em demasiados diálogos no lugar, as palavras que faltam em algumas frases, por aí fora.

E também muito do que aí digo sobre o primeiro livro também poderia dizer sobre este, ainda que, de novo, se notem aqui melhorias evidentes. Isto é, as qualidades e defeitos são os mesmos, mas aquelas estão aqui mais presentes e estes estão aqui mais atenuados. Mas a estrutura geral é quase igual: o protagonista é um homem já entradote que deambula entre as ilhas atlânticas e o Algarve numa busca por qualquer coisa que não parece saber bem o que é, e acaba sempre por encontrar mulheres dispostas a partilhar a sua cama, talvez mais do que envolvimentos afetivos propriamente ditos. Talvez em parte porque ambos os livros são parcialmente autobiográficos, indo o autor buscar inspiração a experiências muito semelhantes, se não forem até as mesmas.

Depois há as diferenças. Se no primeiro livro o protagonista dá um saltinho a Cabo Verde, neste a viagem é às Canárias e à Madeira. Aqui, as motivações também estão um pouco mais interessantes, pois a viagem às Canárias advém da história familiar do protagonista, filho de um irlandês e de uma canária da ilha de La Gomera que se vieram estabelecer na região de Portimão, fugidos do franquismo, e acabaram donos de um bar, adequadamente chamado Irish Bar «La Gomera». E a viagem à Madeira justifica-se por ter uma filha a viver na ilha com o marido.

E também a escrita está um pouco melhor, embora continue bastante irregular, alternando a banalidade e demasiadas falhas e desatenções com trechos em que vai assomando alguma qualidade literária. Felizmente, desapareceram as desastradas tentativas de fazer estilo do princípio do primeiro livro, surgindo agora, aqui e ali, um estilo diferente, bastante mais bem conseguido, em boa parte por ser visível que surge naturalmente, não é forçado.

Por outro lado, mantém-se aquela abordagem miudinha do professor que não resiste a dar aulas. Há trechos cheios de factos desnecessários ao desenrolar da narrativa, há uma preocupação aparentemente obsessiva com a precisão de endereços e localizações, há nomes completos, ou pelo menos conjuntos de nome e apelido, onde um nome simples teria bastado, por aí fora. Ou seja: não só por isso mas também por isso, as melhorias não são suficientes para transformar esta novela num bom livro. Continua a ser uma obra fraca, mal editada (embora aqui a responsabilidade seja principalmente de outrem), que apesar de mostrar que o autor até pode vir a chegar algum dia a algum lugar com interesse, mostra sobretudo que ainda não chegou.

Estará em viagem, suponho. Ajuizando pelos dois livros dele que li, é onde gosta de estar.

Este livro foi comprado.

Michael Barry: Síndroma de Órgãos Balísticos

Há muitas ideias bizarras neste compêndio de historietas baseadas em doenças bizarras, mas poucas o serão mais que a que deu origem a este Síndroma de Órgãos Balísticos (bibliografia). O que Michael Barry aqui inventa é uma doença cujo principal sintoma é, sim, o disparo de órgãos pelo corpo, como se de munições de armas de fogo se tratassem. Parece que em casos menos graves, esses disparos causam "algum inconveniente" aos pacientes, mesmo que por vezes a força seja tanta que os órgãos saem disparados em velocidades supersónicas.

Uma ideia tão estapafúrdia é em si mesma interessante, mas o mais interessante nesta história é Barry ter procurado envolvê-la em roupagens científicas, próprias da medicina e também da ficção científica, com a explicação do processo metabólico que daria origem a tal bizarria infeciosa. E, ao mesmo tempo, enchê-la de humor, nomeadamente menorizando de forma sistemática as consequências que uma tal projeção de órgãos teria para as pobres vítimas. A consequência é este ser dos contos mais interessantes entre os que se contêm na pseudofactualidade mais estrita. E sim, é bastante divertido.

Textos anteriores deste livro:

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Stepan Chapman: Síndroma Fasciolar Cerebral dos Carteiros

Ah. Este é rápido. É que sobre este Síndroma Fasciolar Cerebral dos Carteiros (bibliografia), de Stepan Chapman, há falei aqui há pouco mais de um ano, e nada tenho realmente a acrescentar ou a alterar ao que ficou então escrito. Haveria a possibilidade de reler este conto integrado no seu habitat natural — este livro — e rodeado por todos os primos e irmãos poder alterar um pouco a perceção que dele se obtém após a leitura, mas a verdade é que não altera. É um conto engraçado, interessante... e mediano no contexto destas histórias.

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domingo, 5 de julho de 2020

M. M. O'Driscoll: Síndroma da Falácia Empática

Um problema comum em antologias temáticas com grande quantidade de contos é a quase inevitabilidade de aparecerem histórias muito semelhantes umas às outras, o que pode deixar os leitores mais apreciadores de variedade algo insatisfeitos. Esse problema agrava-se quando as semelhanças não são apenas temáticas, mas também estilísticas, nomeadamente porque a própria estrutura da antologia assim as obriga. É um pouco o que acontece com este conto/doença de M. M. O'Driscoll. O Síndroma da Falácia Empática (bibliografia) tem muitas semelhanças com o Síndroma Amordnís.

Pois também aqui estamos perante uma doença que consiste parcialmente de uma forma de mimetismo. Mas o mimetismo de O'Driscoll é psicológico; a doença que inventou é mais ou menos como uma forma extrema de hipocondria que leva os pacientes a assumir as características psicológicas da pessoa ou objeto inanimado (sim, também) que espelham, sentindo o que elas sentem. Pode ser apenas um incómodo. Mas também pode ser fatal, caindo os pacientes em estado vegetativo caso o seu alvo seja, por exemplo, um aparelho de cozinha.

Este é um conto mais divertido do que propriamente interessante, em parte porque pende mais para o lado pseudofactual destas histórias. Gostei mais do de Andrew J. Wilson precisamente por isso: é mais história. Além de ser mais imaginativo, ainda que não muito mais. Dito isto, o de O'Driscoll está longe de ser um mau conto ou falho de imaginação. É mediano, no contexto desta antologia, e provavelmente teria mais impacto se não se assemelhasse tanto ao de Wilson.

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sábado, 4 de julho de 2020

Irmãos Grimm: Jorinda e Jorindel

É precisamente em contos como este que se pensa quando se pensa em contos de fadas, mas o mais curioso é que não temos aqui um fruto de recolhas próprias dos Irmãos Grimm ou de algo declaradamente vindo da tradição popular, tendo este conto sido, segundo a nota que acompanha o texto, encontrado na autobiografia de Heinrich Stilling (i.e., Johann Heinrich Jung), embora a mesma nota dê conta de um texto popular bastante semelhante. Não faço ideia se e até que ponto os Grimm poderão tê-lo alterado, e o mesmo pode dizer-se de Stilling, havendo até a possibilidade de se tratar de uma história original deste autor, inspirada pelo conto popular.

E é, claro, uma história cheia de magia e metamorfoses, na qual uma bruxa má enfeitiça a região que rodeia a sua casa por forma a que todos os homens que lá entram fiquem paralisados e as mulheres sejam transformadas em pássaros, que a bruxa se apressa a engaiolar. Naturalmente, Jorinda e Jorindel vão acabar por cair nas malhas da bruxa e, passadas algumas peripécias, um deles acaba por arranjar forma de salvar o outro, ou não fosse necessário que quando a história acaba o final seja feliz.

Sem nada que a torne memorável, muito semelhante a muitas outras histórias do género, motivos pelos quais, suponho eu, raramente apareça por aí adaptada naqueles livrinhos pequeninos de capa dura e profusamente ilustrados, esta é, mesmo assim, uma boa história infantil. De facto, ao passo que um bom quinhão destas histórias recolhidas/retocadas pelos Irmãos Grimm mostram uma crueldade que as adaptações para crianças de tempos mais recentes se esforçam por fazer desaparecer, aqui a crueldade, que ainda existe, já está bastante atenuada, o que não deixa de ser curioso. Será resultado da mão de Stilling? Talvez, pois os Grimm tendem a deixá-la intacta. Ou talvez seja já assim na forma popular. Em qualquer caso é uma história com interesse.

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sexta-feira, 3 de julho de 2020

Mia Couto: Lixo, Lixado

Mais um conto com guerra civil ao fundo. Parece ser uma constante, ou quase, nestas pequenas ficções a que Mia Couto chamou crónicas (eu sei, não é só ele, apesar de eu sempre ter achado algo estranho o uso da palavra para designar textos claramente ficcionais... exceto quando estes são de cariz histórico ou pseudo-histórico e ela aparece como truque para lhes conferir verosimilhança). Mas desta feita não existe nela nada de fantástico. Lixo, Lixado é um conto realista.

Um conto realista sobre um catador de lixo que encara a lixeira como porto seguro e território. Não só cata o lixo, como vive na lixeira, ouvindo por vezes os tiroteios da guerra que se vai desenrolando lá fora. Solitário, mas que lhe importa sê-lo, se está alimentado e seguro? Até ao dia em que ganha companhia: um porco.

As ficções de Mia Couto são sempre ambíguas, mas esta é-o mais que a maioria. Se por um lado parece dizer-nos que até viver no meio do lixo pode ser preferível aos horrores da guerra, por outro diz-nos que o homem quando perde a dignidade pouco mais é que um animal. Mas haverá alguma dignidade na guerra? Mia Couto não fala disso. Diz-nos que na lixeira não há, mas omite a da guerra.

Se gostei do conto? Gostei. Mas como tendo a preferir quando ele desfralda as velas da imaginação e se deixa ir fantasia fora, tendo gostado desta história, gostei mais de outras.

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Andrew J. Wilson: Síndroma Amordnís

E cá temos mais uma das histórias que o são mesmo. Sob o estranho título de Síndroma Amordnís (bibliografia), que se torna menos estranho assim que se percebe que "amordnís" é "síndroma" escrito de trás para a frente, Andrew J. Wilson conta a história de um tal Nemo Omen (de novo, Omen é o inverso de Nemo), membro de uma expedição às ilhas Kerguelen, que teria entrado numa espiral absoluta de mimetismo.

É essa a essência da ideia: os afetados pela doença, contagiosa, transformam-se em autênticos espelhos daquilo que os rodeia (donde o espelhamento dos nomes), escolhendo um objeto animado ou inanimado e assumindo todas as suas características até se tornarem praticamente indistinguíveis do original, num mimetismo perfeito. Também esta é das tais ideias que deixam a cabeça cheia de maneiras de a explorar mais profundamente, mas o texto de Wilson não é frustrante, pois a história que conta está longe da descrição seca da doença e é interessante em si mesma.

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quinta-feira, 2 de julho de 2020

Steve Aylett: Síndroma de Download

Apesar de Steve Aylett ter decidido usar este seu espacinho numa antologia de doenças inventadas sobretudo para lançar uma diatribe contra uma certa subcultura de partilha vápida e inconsequente de tudo o que acontece ao partilhador, num exibicionismo permanente, e de a ideia de usar a ficção para diatribes geralmente não ser propriamente brilhante, tendendo a resultar em textos que se tornam previsíveis e insípidos assim que o leitor se apercebe de que o que está a ler é uma diatribe, a verdade é que o faz com uma certa piada, o que impede este Síndroma de Download (bibliografia) de ser um mau conto.

Certo, o conceito de "piada" é inerentemente subjetivo. Aquilo a que Fulano acha graça não passa para Beltrano do mais banal dos aborrecimentos. Mas há aqui também alguma piada literária, com um bom uso do modo oral da linguagem, que é ao mesmo tempo iconoclasta no contexto de um seco compêndio de enfermidades, por mais excêntricas que estas passam ser, e inteiramente adequado para a enfermidade específica que ajuda a descrever. De modo que este conto tem interesse, e é significativamente melhor que a generalidade das diatribes que de vez em quando aparecem por aí.

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quarta-feira, 1 de julho de 2020

Lance Olsen: Síndroma de Deficiência Crono-Unificada

Mais um conto profundamente borgesiano, este Síndroma de Deficiência Crono-Unificada (bibliografia), que aliás faz uma referência direta a um conto de Borges que provavelmente o terá inspirado, e que é escrito em modo pseudofactual estrito. Os pacientes de Lance Olsen são assolados por memórias. Não memórias suas, mas memórias alheias, provenientes de pessoas vivas noutros momentos no tempo, geralmente passados mas também futuros. É uma ideia muitíssimo interessante que aqui é explorada de uma forma que não é a que mais me agrada, limitando-se Lance Olsen à descrição da doença por intermédio de alguns casos clínicos e pouco mais.

Este foi daqueles contos com uma ideia tão interessante mas uma execução tão insatisfatória, em parte pelas limitações do projeto em que se insere, é certo, mas em parte também pelas opções tomadas pelo autor, que me deixou a cabeça cheia de possíveis histórias baseadas na ideia. É inspirador? É. Mas também é algo frustrante. E eu já tenho histórias mais que suficientes na cabeça, muito obrigado.

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