Como um Fim de Tarde Simulado (bib.) é um conto de FC ciberpunk de Samuel Peregrino que conta, de uma forma tudo menos linear, uma história do futuro próximo. Não sou grande fã de narrativas não-lineares, em especial das que o são muito. É demasiado fácil que essa técnica resulte em detrimento da história, confundindo desnecessariamente o leitor. Mas reconheço que se há estilo a que esse tipo de narrativa se aplica bem, é o ciberpunk, porque a não-linearidade reflete de forma bastante precisa o caráter descontínuo da experiência web. Contudo, para o conseguir é necessário pôr em prática capacidades de que nem todos os escritores dispõem.
No caso deste conto, o resultado não é bom, mas é, pelo menos, intrigante. Para o meu gosto, há personagens a menos (e não me refiro ao número, mas à profundidade) e infodump a mais. O autor, claramente, usa as personagens apenas para falar do desenvolvimento dos acontecimentos. É uma opção legítima, mas não me agrada muito quando é levada a extremos, que é o que julgo que acontece aqui. E também falta uma revisão digna desse nome, pois o conto está salpicado de erros ortográficos que dificilmente se perdoam (erros na crase, o eterno calcanhar de aquiles de tantos brasileiros, e também erros de concordância e noutras construções gramaticais), em especial porque o estilo nem é mau e as partes bem escritas do texto estão mesmo bem escritas, mostrando um autor com potencial, potencial esse que também se revela no facto de conseguir fazer com que as peças aparentemente desconexas da narrativa não-linear acabem por fazer sentido no fim. Em suma: um conto razoável de um autor promissor, caso consiga limar algumas arestas.
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
Lido: História de Portugal, Director's Cut
História de Portugal, Director's Cut (bib.), de Renato Carreira é, supreendentemente, um livro sobre a história de Portugal. Ninguém diria, mesmo com a bandeira nacional na capa e tudo, mas é verdade. O tema do livro é a história do nosso glorioso retângulo à beira-mar plantado, desde os tempos em que ainda nem existíamos enquanto tugas e o nosso mapa não era em forma de jardim, até aos dias um tudo-nada anteriores aos de hoje. Ainda não inclui o desastre do Passos Coelho, mas já inclui o desastre do José Sócrates, além de uma multidão de desastres anteriores. E também uma ou outra coisinha decente, naturalmente. Afinal, o 25 de Abril não ficou de fora.
Obviamente, como a história de Portugal é uma anedota, trata-se de um livro de humor. Por vezes com piada genuína, que deu aqui a este leitor para esboçar sorrisos e até chegar mesmo algumas vezes a desenhá-los a tinta da china e até um ou outro a óleo. E também, ainda que mais raramente, para soltar uma ou outra gargalhadinha discreta. Para rebentar em gargalhadas não deu, e ainda bem, que não queríamos cá a brigada de minas e armadilhas nem alarmar a vizinhança com rebentamentos noturnos (o livro foi lido principalmente à noite). De outras vezes, porém, a piada não resistiria a uma vistoria da ASAE. Piadolas pirateadas, disfarçadas de piadas, números repetidos tentando passar por novos. Convenhamos que não é fácil manter um humor uniformemente humorístico ao longo de 250 páginas, mas o facto é que esses fraquejos fazem com que o livro não seja tão bom como podia ter sido. Tem piada, mas podia ter mais. Gostei, mas podia ter gostado mais. E não há muito mais que possa dizer sobre ele.
A não ser, talvez, que quem encare a história do nosso país (e o nosso país) como coisa séria, é melhor manter-se afastado desta... hm... versão, chamemos-lhe assim à falta de um termo mais adequado.
Ah, sim, o livro vem incluído numa coleção de literatura fantástica. Porquê?, perguntarão. A pergunta é boa, mas eu julgo saber a resposta. Pelo mesmo motivo por que, mantendo-se as devidas distâncias, A História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges, pertence à literatura fantástica. Porque se apresenta como história mas mistura facto e ficção, baralhando tudo e voltando a dar. Há algo de história alternativa em algumas passagens, embora não muito; é que neste livro é em geral fácil separar facto de ficção, e para isso nem é preciso ter grandes conhecimentos sobre a história de Portugal tal como nos é apresentada por quem a reputa de verdadeira. Em Borges chega a ser quase impossível, e na HA a premissa ucrónica é clara desde o início. Portanto este livro é, parece-me, algo diferente. Mais humor que qualquer outra coisa. Mas não deixa de ter em si elementos fantásticos mais ou menos relevantes.
Este livro foi comprado, se a memória não me engana. Mas também pode ter sido fruto da tal promoção "leve 3, pague 2".
Obviamente, como a história de Portugal é uma anedota, trata-se de um livro de humor. Por vezes com piada genuína, que deu aqui a este leitor para esboçar sorrisos e até chegar mesmo algumas vezes a desenhá-los a tinta da china e até um ou outro a óleo. E também, ainda que mais raramente, para soltar uma ou outra gargalhadinha discreta. Para rebentar em gargalhadas não deu, e ainda bem, que não queríamos cá a brigada de minas e armadilhas nem alarmar a vizinhança com rebentamentos noturnos (o livro foi lido principalmente à noite). De outras vezes, porém, a piada não resistiria a uma vistoria da ASAE. Piadolas pirateadas, disfarçadas de piadas, números repetidos tentando passar por novos. Convenhamos que não é fácil manter um humor uniformemente humorístico ao longo de 250 páginas, mas o facto é que esses fraquejos fazem com que o livro não seja tão bom como podia ter sido. Tem piada, mas podia ter mais. Gostei, mas podia ter gostado mais. E não há muito mais que possa dizer sobre ele.
A não ser, talvez, que quem encare a história do nosso país (e o nosso país) como coisa séria, é melhor manter-se afastado desta... hm... versão, chamemos-lhe assim à falta de um termo mais adequado.
Ah, sim, o livro vem incluído numa coleção de literatura fantástica. Porquê?, perguntarão. A pergunta é boa, mas eu julgo saber a resposta. Pelo mesmo motivo por que, mantendo-se as devidas distâncias, A História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges, pertence à literatura fantástica. Porque se apresenta como história mas mistura facto e ficção, baralhando tudo e voltando a dar. Há algo de história alternativa em algumas passagens, embora não muito; é que neste livro é em geral fácil separar facto de ficção, e para isso nem é preciso ter grandes conhecimentos sobre a história de Portugal tal como nos é apresentada por quem a reputa de verdadeira. Em Borges chega a ser quase impossível, e na HA a premissa ucrónica é clara desde o início. Portanto este livro é, parece-me, algo diferente. Mais humor que qualquer outra coisa. Mas não deixa de ter em si elementos fantásticos mais ou menos relevantes.
Este livro foi comprado, se a memória não me engana. Mas também pode ter sido fruto da tal promoção "leve 3, pague 2".
domingo, 27 de novembro de 2011
Lido: Primeiro Encontro
Primeiro Encontro (bib.), vinheta de Volmar Camargo Junior, é outro dos tais contos em que o autor sente a necessidade de explicar o que se segue logo em subtítulo. Neste caso, trata-se de um continho steampunk, claramente inspirado pelo filme Wild Wild West, e muito, muito pulp: há um vilão estereotipadamente mauzão, um soldado-aranha que tem sete patas por causa de um encontro anterior com a heroína. Esta também é uma personagem bem cliché: a ladra de bom coração. Já Fritz Leiber escreveu história atrás de história (ainda que de fantasia) com personagens do género, começando ainda nos anos 30 do século passado. E depois aparece caído do céu (bem... ou pelo contrário) um nerd que, claro, acaba com a mocinha. Tudo movido a ação, com os tiros, saltos e esquivas na iminência do desastre da praxe. É um conto adolescente. Se o autor também o for, tem muito tempo para crescer e fazer coisas fracas como esta faz parte do percurso. Se não... bem...
Lido: The Grass and Trees
The Grass and Trees, de Eliot Fintushel, é uma novela muito bizarra, que se centra num grupo de metamorfos, capazes de se transformar seja no que for. Têm o nome de shashas, bem ridículo perante olhos portugueses. No meio duma confusa teia de relações interpessoais (ou intermetamorfosais, talvez), o que faz mover a história é a busca que uma personagem particularmente endoidecida leva a cabo, tentando encontrar um irmão. Mas aquilo que esta história tem de interessante é a forma como é utilizado o inglês coloquial e imperfeito dos americanos com fraca instrução, nos diálogos e, em geral, o estilo literário de Fintushel. E temo bem que seja só isso. A história é muito aborrecida, as personagens estão suficientemente mal caracterizadas para nunca se chegar a perceber bem (ou até mal) o que as move, e todo o ambiente dos metamorfos é demasiado disparatado e inverosímil enquanto ficção científica para poder ser levado minimamente a sério. Sim, que é difícil olhar para uma história incluída numa Asimov's como outra coisa que não FC. Mas esta de FC tem pouco, e só não é nada o que tem devido à existência dumas conversas vagamente matemáticas lá pelo meio. Está muito longe de chegar. Não gostei nada desta novela, e o facto de ser tão comprida não ajudou nada a gostar mais. Tem algum interesse literário, mas à parte a qualidade na utilização da língua inglesa não lhe encontrei interesse algum.
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
The Bang! wordle
Já ouviram falar do wordle? É um site que rearranja o texto contido numa página web (com feed), ou aquele que lhe fornecermos, e faz com ele arranjos mais ou menos artísticos das palavras mais frequentes, nos quais quanto maior o tipo de letra maior a frequência da palavra.
Pois este aqui ao lado é o wordle da coleção Bang!, da Saída de Emergência, feito com os títulos tal como se podem encontrar no Bibliowiki. Se quiserem vê-lo em ponto grande, basta clicar nele.
Nada de especial. Só uma curiosidade curiosamente curiosa.
Pois este aqui ao lado é o wordle da coleção Bang!, da Saída de Emergência, feito com os títulos tal como se podem encontrar no Bibliowiki. Se quiserem vê-lo em ponto grande, basta clicar nele.
Nada de especial. Só uma curiosidade curiosamente curiosa.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
Lido: História Natural
História Natural (bib.) é uma vinheta de Max Mallmann que cheira às Cosmicómicas de Italo Calvino por todos os lados. Porque está bem escrita, porque está imbuída de um humor fino e muito bem conseguido e porque, acima de tudo, parece contada pelo Qfwfq. Escrito na primeira pessoa, o conto traça a história natural de um determinado ser vivo, desde os tempos de molécula, a flutuar entre as suas congéneres na sopa primordial, até aos dias de hoje. E sempre, ao longo de todo este percurso, a molécula, depois célula, depois organismo multicelular e cada vez mais complexo, sempre foi avisando que as coisas não iam dar certo. E não é que não deram mesmo? Não faço a mínima ideia se Mallmann leu ou não as Cosmicómicas, mas se não leu deve ler. Este seu continho sentir-se-ia bem à vontade entre elas. E é um bom conto, e de bónus ainda por cima é divertido.
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
Lido: O Artista da Carne
O Artista da Carne (bib.) é uma vinheta de Fábio Fernandes que tem como subtítulo "Uma Parábola". Não costuma ser bom sinal quando uma obra literária tem de esclarecer em subtítulo o que pretende ser. Costuma ser sinal de que o objetivo do autor não fica claro no lugar próprio: o texto propriamente dito. Ou pelo menos de que o autor não confia o suficiente na inteligência do leitor para o deixar tirar as suas próprias conclusões. De um ou de outro modo, é sempre mau sinal.
Aqui, a história é uma pequena história de amores infelizes em ambiente de ficção científica, cujo protagonista é um vampiro em busca de um amor perdido. Literalmente. Para isso procura o artista da carne do título, o que trocado por miúdos significa alguém capaz de criar um clone. O clone, claro, da mulher que o vampiro tinha amado. Falha óbvia, em que no entanto tantos autores caem: não é por terem a mesma genética que duas pessoas são idênticas. Cada um de nós é resultado da interação entre a genética e o ambiente. Por isso, um clone é sempre outra pessoa, mas aqui é como se fosse a mesma.
OK, é uma parábola, não é? Uma história com moral, e a moral da história é que é escusado tentar recuperar o passado. Está bem. Aceita-se. Se estivesse particularmente bem escrita, talvez a considerasse uma boa história. Mas o texto não é nada por aí além. Há infodumps escusados. Há construções deselegantes ("até ao dia do seu vigésimo segundo aniversário" é imensamente preferível ao "até ao dia de seu aniversário de vinte e dois anos" que aparece no conto, por exemplo), enfim, há coisas mal conseguidas. O conto é, portanto, razoável. Não passa disso.
Aqui, a história é uma pequena história de amores infelizes em ambiente de ficção científica, cujo protagonista é um vampiro em busca de um amor perdido. Literalmente. Para isso procura o artista da carne do título, o que trocado por miúdos significa alguém capaz de criar um clone. O clone, claro, da mulher que o vampiro tinha amado. Falha óbvia, em que no entanto tantos autores caem: não é por terem a mesma genética que duas pessoas são idênticas. Cada um de nós é resultado da interação entre a genética e o ambiente. Por isso, um clone é sempre outra pessoa, mas aqui é como se fosse a mesma.
OK, é uma parábola, não é? Uma história com moral, e a moral da história é que é escusado tentar recuperar o passado. Está bem. Aceita-se. Se estivesse particularmente bem escrita, talvez a considerasse uma boa história. Mas o texto não é nada por aí além. Há infodumps escusados. Há construções deselegantes ("até ao dia do seu vigésimo segundo aniversário" é imensamente preferível ao "até ao dia de seu aniversário de vinte e dois anos" que aparece no conto, por exemplo), enfim, há coisas mal conseguidas. O conto é, portanto, razoável. Não passa disso.
Lido: Darwinia
AVISO: Esta opinião tem spoilers
Darwinia (bib.) é um romance de ficção científica de Robert Charles Wilson sobre, como vem escrito na capa, "um século XX muito diferente." Mas se virmos bem as coisas, não é exatamente sobre isso.
A história começa mostrando-nos um acontecimento, assim mesmo, em itálico. Algo de gigantesco e inexplicável, um milagre. A Europa ou, mais precisamente, um círculo de território terrestre que engloba a Europa e partes dos continentes limítrofes, é de um momento para o outro substituída por uma sua versão alternativa, geograficamente semelhante mas totalmente estranha no que toca à biologia. Uma Europa que não tem seres vivos reconhecíveis e, como é óbvio, não tem seres humanos. Nem as coisas que os seres humanos foram fazendo e o impacto que foram tendo na paisagem. Não só a biosfera é diferente, como o mesmo acontece com toda a sua história natural. Um continente virgem e coberto de uma vida como que vinda de outro planeta, embora simultaneamente com todos os sinais de ter evoluído ali mesmo durante os mesmos milhões de anos que nós demorámos a chegar cá. Um continente a que é dado o nome de Darwinia.
Acontece este milagre no início do século XX. O romance centra-se no espaço anglófono, e é logo aqui que reside a sua primeira falha. Porque os EUA surgem como potência dominante em toda a Europa, é como se as potências europeias da época — com a notável exceção do Reino Unido — não tivessem colónias, e como se pelo menos Portugal e a Espanha não tivessem também, à semelhança da Inglaterra, ex-colónias com capacidade e muito provavelmente vontade de intervir nas ex-metrópoles, ou naquilo em que elas se transformaram. Como se só houvesse laços familiares quebrados em famílias anglófonas, numa inverosimilhança bastante etnocêntrica e um bom bocado simplória.
Mas ultrapassada esta pequena irritação, a história é interessante, e mais interessante se torna quando começa a descobrir-se onde é que está, afinal, a FC. É que esta Terra não é a nossa, e nem sequer é uma outra Terra alternativa à nossa, localizada nalgum universo paralelo, a menos que se postule que nós, vocês e eu e toda a gente, vivemos no interior de uma singularidade e que toda a realidade que nos rodeia não passa de ilusão. Porque é precisamente isso que explica Darwinia. Na realidade do romance, todo o planeta, todo o universo, aliás, não passa de uma simulação num sistema informático imensamente poderoso, que no entanto se encontra sob ataque por parte de uns seres que pretendem destruí-lo. Algo de semelhante a vírus. E o acontecimento origina-se aí: foi um ataque, um grão na engrenagem, uma corrupção da informação que provocou uma alteração fundamental no rumo traçado para a simulação.
Não foi por acaso que este livro ganhou o prémio Philip K. Dick. Joga com a ideia de que a realidade é ilusória duma forma bem semelhante à de Dick.
No entanto, julgo que há uma falha no enredo. Ou pelo menos houve uma coisa que eu não entendi. É que depois do acontecimento, essa intrusão violenta, súbita e de escala gigantesca, o combate entre os "deuses" que dirigem a simulação e os que procuram destruí-la desce literalmente à Terra. Esses "deuses" passam a controlar indivíduos que, através dos seus atos, vão preparando o palco para uma batalha final. E eu não consigo entender que motivo poderia levar algo suficientemente poderoso para uma corrupção súbita de grande escala a ter de se reduzir a levar a cabo trabalhinho de sapa através da manipulação de avatares. A não ser, naturalmente, esse facto permitir que mais de metade do romance exista. Mas essa razão não me parece suficiente. As obras de ficção devem ter uma lógica interna, que julgo que aqui é violada. E acho a necessidade de haver uma confrontação final desagradavelmente cliché. E no entanto...
... e no entanto gostei bastante. Talvez andar a ler relativamente pouca ficção científica nos últimos tempos faça com que saboreie melhor quando me vem parar às mãos um exemplo do género com alguma sofisticação. Ou talvez Darwinia tenha mesmo qualidade, apesar das falhas. Não recomendo este livro a toda a gente, mas os fãs de Dick, pelo menos, devem gostar muito de o ler.
Este livro foi adquirido como brinde na promoção "Leve 3, pague 2" da Saída de Emergência.
Darwinia (bib.) é um romance de ficção científica de Robert Charles Wilson sobre, como vem escrito na capa, "um século XX muito diferente." Mas se virmos bem as coisas, não é exatamente sobre isso.
A história começa mostrando-nos um acontecimento, assim mesmo, em itálico. Algo de gigantesco e inexplicável, um milagre. A Europa ou, mais precisamente, um círculo de território terrestre que engloba a Europa e partes dos continentes limítrofes, é de um momento para o outro substituída por uma sua versão alternativa, geograficamente semelhante mas totalmente estranha no que toca à biologia. Uma Europa que não tem seres vivos reconhecíveis e, como é óbvio, não tem seres humanos. Nem as coisas que os seres humanos foram fazendo e o impacto que foram tendo na paisagem. Não só a biosfera é diferente, como o mesmo acontece com toda a sua história natural. Um continente virgem e coberto de uma vida como que vinda de outro planeta, embora simultaneamente com todos os sinais de ter evoluído ali mesmo durante os mesmos milhões de anos que nós demorámos a chegar cá. Um continente a que é dado o nome de Darwinia.
Acontece este milagre no início do século XX. O romance centra-se no espaço anglófono, e é logo aqui que reside a sua primeira falha. Porque os EUA surgem como potência dominante em toda a Europa, é como se as potências europeias da época — com a notável exceção do Reino Unido — não tivessem colónias, e como se pelo menos Portugal e a Espanha não tivessem também, à semelhança da Inglaterra, ex-colónias com capacidade e muito provavelmente vontade de intervir nas ex-metrópoles, ou naquilo em que elas se transformaram. Como se só houvesse laços familiares quebrados em famílias anglófonas, numa inverosimilhança bastante etnocêntrica e um bom bocado simplória.
Mas ultrapassada esta pequena irritação, a história é interessante, e mais interessante se torna quando começa a descobrir-se onde é que está, afinal, a FC. É que esta Terra não é a nossa, e nem sequer é uma outra Terra alternativa à nossa, localizada nalgum universo paralelo, a menos que se postule que nós, vocês e eu e toda a gente, vivemos no interior de uma singularidade e que toda a realidade que nos rodeia não passa de ilusão. Porque é precisamente isso que explica Darwinia. Na realidade do romance, todo o planeta, todo o universo, aliás, não passa de uma simulação num sistema informático imensamente poderoso, que no entanto se encontra sob ataque por parte de uns seres que pretendem destruí-lo. Algo de semelhante a vírus. E o acontecimento origina-se aí: foi um ataque, um grão na engrenagem, uma corrupção da informação que provocou uma alteração fundamental no rumo traçado para a simulação.
Não foi por acaso que este livro ganhou o prémio Philip K. Dick. Joga com a ideia de que a realidade é ilusória duma forma bem semelhante à de Dick.
No entanto, julgo que há uma falha no enredo. Ou pelo menos houve uma coisa que eu não entendi. É que depois do acontecimento, essa intrusão violenta, súbita e de escala gigantesca, o combate entre os "deuses" que dirigem a simulação e os que procuram destruí-la desce literalmente à Terra. Esses "deuses" passam a controlar indivíduos que, através dos seus atos, vão preparando o palco para uma batalha final. E eu não consigo entender que motivo poderia levar algo suficientemente poderoso para uma corrupção súbita de grande escala a ter de se reduzir a levar a cabo trabalhinho de sapa através da manipulação de avatares. A não ser, naturalmente, esse facto permitir que mais de metade do romance exista. Mas essa razão não me parece suficiente. As obras de ficção devem ter uma lógica interna, que julgo que aqui é violada. E acho a necessidade de haver uma confrontação final desagradavelmente cliché. E no entanto...
... e no entanto gostei bastante. Talvez andar a ler relativamente pouca ficção científica nos últimos tempos faça com que saboreie melhor quando me vem parar às mãos um exemplo do género com alguma sofisticação. Ou talvez Darwinia tenha mesmo qualidade, apesar das falhas. Não recomendo este livro a toda a gente, mas os fãs de Dick, pelo menos, devem gostar muito de o ler.
Este livro foi adquirido como brinde na promoção "Leve 3, pague 2" da Saída de Emergência.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
Lido: Código Denominativo: RG-12
Código Denominativo: RG-12 (bib.) é uma vinheta de FC de Carlos Alberto Ramos cujo protagonista é um robot, numa Terra futura vazia de seres humanos. Não sei que experiência teria o autor na escrita de histórias de ficção científica quando escreveu esta, mas não devia ser muita porque comete quase todos os erros que se podem cometer numa história deste tipo e tamanho. Para começar, não existe história, só a descrição de uma situação, na qual o robot descreve aquilo que sucedeu até chegar àquela situação, que também descreve. Num conto tão pequeno (uma página apenas), ocupá-lo todo com infodump não é grande ideia. Além disso, se o robot fala para outros robots do seu tempo, para quê estar a descrever coisas que serão do conhecimento geral da "maquinidade" sua contemporânea? Sim, porque falar para nós, humanos, não faz sentido: estamos extintos (Extinguimo-nos, precisamente, em 2110). E há mais, mas não vale a pena bater mais no ceguinho. Achei este conto muito fraco.
Lido: A Mosca
A Mosca (bib.) é um conto de ficção científica de Bertrand Solet, aparentemente muito influenciado pelas histórias do James Bond, ou talvez pela BD. Algures no futuro, um supervilão ameaça a Terra com atos de sabotagem e terrorismo, exigindo avultadas somas para não fazer cair satélites gigantes sobre as grandes cidades do planeta. A mosca do título é um aparelho de espionagem em forma de mosca, criado pelo protagonista, especialista nesse tipo de miniaturização tecnológica, e destinado a tentar descobrir quem é ao certo o tal supervilão e, se possível, segui-lo e prendê-lo.
Escrito muito antes do 11 de Setembro, podia ser um conto bastante bom, quase profético até. Mas não é. Pareceu-me razoável, em especial para conto juvenil, mas não acho que passe disso. As coisas desenrolam-se sem grande ritmo, e o protagonista tem um interesse amoroso que parece metido à pressão na história, uma vez que não tem qualquer intervenção nela, limitando-se a aparecer no início e depois no fim.
Escrito muito antes do 11 de Setembro, podia ser um conto bastante bom, quase profético até. Mas não é. Pareceu-me razoável, em especial para conto juvenil, mas não acho que passe disso. As coisas desenrolam-se sem grande ritmo, e o protagonista tem um interesse amoroso que parece metido à pressão na história, uma vez que não tem qualquer intervenção nela, limitando-se a aparecer no início e depois no fim.
Lido: Lentidão
Lentidão (bib.) é um conto de ficção científica de Ana Cristina Rodrigues, algo space-operático, com um estilo um pouco antiquado, cujo protagonista é um contrabandista que se associa a um grupo guerrilheiro num planeta distante. A trama gira em volta dos negócios — obviamente sujos — do contrabandista e dos sarilhos em que se mete para cumprir com aquilo que dele esperam... ou não. É um conto razoável, mas não me parece que passe daí. Tem alguns aspetos interessantes, mas a impressão principal que me causou foi de ser um conto apressado, no sentido de não ter sido pensado até ao fim. Exemplifico: o fulcro do desfecho do conto, e aquilo que explica o título, reside na ausência de um motor de dobra na nave que o contrabandista usa para ir encontrar-se com uns contactos alienígenas tão trapaceiros como ele. Nada a opor ao motor de dobra; trata-se de um cliché na FC (em trekês chama-se warp drive, mas é a mesma coisa), mas até é teoricamente possível à luz da física atual e tudo. Só que antes dessa ausência ser revelada, ao mesmo tempo que nos é dada a informação de que em naves daquele tipo tais motores não são autorizados, tinha aparecido como motivo da viagem o teste de... motores de dobra novos. Esta é a pior incongruência do conto, mas há mais algumas, em especial no que toca ao ambiente espacial propriamente dito. Isso, as personagens etereotipadas e um enredo que não me pareceu lá muito bem ligado puxa a qualidade do conto para baixo. Mas, como disse, há alguns pontos interessantes, portanto também não o achei mau.
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
Lido: O Cágado
O Cágado (bib.), de José de Almada Negreiros, é um conto curto que, se tivesse sido escrito hoje em dia, teria sido englobado sem pestanejar na weird fiction. Conta a história de um homem que era muito senhor da sua vontade, como Negreiros não se cansa de repetir no princípio do conto, parando de o fazer mesmo antes de levar quem lê à exaustão, e que mete na cabeça que havia de apanhar um cágado que de repente se lhe atravessa no caminho e desaparece num buraco. Mas o homem enfia a mão no buraco, depois o braço até ao ombro, e de cágado nem sombra. Desata a cavar, e nada, mas vai cavando, teimoso, até acabar por atravessar o mundo inteiro e sair nos antípodas. Não propriamente naqueles antípodas que acabamos por conhecer se formos para os lados da Nova Zelândia, mas nuns antípodas bem bizarros, bem surreais. Depois... bem, não vou contar o conto todo.
Tirando as repetições do início do conto, que achei demasiadas e chatas, a história é curiosa e até mesmo divertida, em especial no remate. E também é engraçado encontrar os paralelismos entre este conto e obras posteriores de autores como Italo Calvino ou os já referidos weird fictionists modernos. Decididamente, nada há de novo debaixo das estrelas.
Tirando as repetições do início do conto, que achei demasiadas e chatas, a história é curiosa e até mesmo divertida, em especial no remate. E também é engraçado encontrar os paralelismos entre este conto e obras posteriores de autores como Italo Calvino ou os já referidos weird fictionists modernos. Decididamente, nada há de novo debaixo das estrelas.
domingo, 13 de novembro de 2011
Lido: Mundos, nº 1
O Mundos foi um fanzine do qual só conheço este número 1, editado em 1996 e dirigido por João Vasco Almeida e Nuno Miguel Cruz. De fanzines, e em especial dos números 1 (ou zero) dos fanzines, nunca se espera muito, e de facto não é muito o que este apresenta. Nenhum conto me pareceu bom. Aliás, pondo-me na pele dos editores, eu só teria publicado um deles, o primeiro. Os outros teria devolvido aos autores, pedindo-lhes para trabalharem melhor alguns deles, outros sem mais porque não me parece que deles pudesse sair algo com algum interesse.
Em todo o caso, se de facto este foi o único número do fanzine, é pena. Como muitas outras coisas, um fanzine precisa de tempo para se desenvolver e atingir o seu potencial. Sim, este número é muito fraco, mas essa fraqueza não é esculpida em pedra no momento da conceção. Poderia ter melhorado, e muito, tanto a publicação como os próprios autores. Estes sei que não o fizeram, caso contrário ter-se-iam visto por aí nos últimos 15 anos e, pelo menos num par de casos, é pena. E a publicação também é pena. Mais uma das falsas partidas que tão abundantes são em Portugal.
Aqui fica o que achei dos contos:
- Lusóluna;
- Abraços em Contra-Luz;
- Ao Acaso;
- O Relatório;
- Mundo Interior
Em todo o caso, se de facto este foi o único número do fanzine, é pena. Como muitas outras coisas, um fanzine precisa de tempo para se desenvolver e atingir o seu potencial. Sim, este número é muito fraco, mas essa fraqueza não é esculpida em pedra no momento da conceção. Poderia ter melhorado, e muito, tanto a publicação como os próprios autores. Estes sei que não o fizeram, caso contrário ter-se-iam visto por aí nos últimos 15 anos e, pelo menos num par de casos, é pena. E a publicação também é pena. Mais uma das falsas partidas que tão abundantes são em Portugal.
Aqui fica o que achei dos contos:
- Lusóluna;
- Abraços em Contra-Luz;
- Ao Acaso;
- O Relatório;
- Mundo Interior
Lido: El Extraterrestre
El Extraterrestre, da mexicana Rebeca Montañez, é um pequeno conto em forma de testemunho, cuja narradora é uma mulher que se envolveu romanticamente com um extraterrestre e que assim desabafa. Extraterrestes "de outras galáxias" que só diferem dos terrestres por causa de uns sulcos nas plantas dos pés são das tais coisas que violentam furiosamente a minha capacidade de suspender a descrença. É em grande medida por esse motivo que achei o conto fracote, embora me pareça bem escrito e um final interessante compense até certo ponto a fragilidade da efabulação. Podem verificar pessoalmente dando um salto a esta página e descendo até à quarta história.
Lido: Mundo Interior
Mundo Interior, de João Almeida, é um conto de ficção científica baseado numa ideia que por vezes dá histórias interessantes: as pequenas criaturas que vivem em pequenos mundos e são tão pequenas que nós, habituados ao nosso mundo macroscópico, não as reconhecemos como portadoras de inteligência, ou, até, como seres vivos. Ainda recentemente li uma boa história dessas: Os Besouros de Ouro, de Simak. Esta história de João Almeida, porém, é muito deficiente. Ao conto falta ligação e estrutura. A princípio leva-nos a um lugar estranho onde algo, aparentemente, está a partir o céu, depois salta para uma noite de observação astronómica em Cabo Verde onde tudo se revela abruptamente e de uma forma nada original. Mesmo assim, boa prosa talvez tivesse conseguido salvar o conto. Mas a prosa do autor é tão tosca que isso esteve muito longe de acontecer. Muito fraco.
Lido: A História de Avery
A História de Avery (bib.) é um brilhante continho de Bruce Holland Rogers que nos relata um momento, aparentemente banal mas ao mesmo tempo extraordinário, em que os olhos de duas pessoas se encontram no muito do bulício de uma grande cidade, momento esse que é também o instante em que uma dessas pessoas é atropelada. Carregado de subtileza e poesia, é um conto que transcende em muito a sua dimensão. Muito bom.
Lido: O Relatório
O Relatório é um pequeno conto de Nuno Matias repleto de um humorismo que, ou muito me engano, ou é absolutamente involuntário. É ficção científica, julgo que sobre uma avaria num planeta qualquer, nas não porque fosse hábito do autor escrever contos de ficção científica. Diz que é o primeiro, e atrevo-me a supor que terá também sido o último porque este primeiro resultado é muito, muito mau. Tão mau que não é descritível. Tão mau que me fez rir. Nem tudo se perde.
Lido: Uma Récita do Roberto do Diabo
Sim, eu sei. Não foi há tanto tempo como isso que aqui falei de Uma Récita do Roberto do Diabo (bib.), conto fantástico de Júlio César Machado que acompanha em paralelo uma representação teatral e um relato pessoal e "verídico", que acabam por se confundir, confundindo também real e teatral. Mas calhou, na peculiar ordem que as minhas leituras tomam, pôr esta edição na pilha antes de me dar conta de que a mesma história estava incluída noutro livro que tinha em leitura. Podia tê-la deixado para mais tarde? Podia, com certeza. Mas esta edição inclui também, em jeito de prefácio, um ensaio de Moisés Espírito Santo sobre o diabo e tive curiosidade.
Sobre a Récita propriamente dita pouco tenho a acrescentar ao que escrevi aqui, a não ser que, talvez previsivelmente, gostei menos na segunda leitura do que na primeira. Não só por ser a segunda leitura, mas também porque a edição é pior, com mais gralhas e outros detalhezinhos que a prejudicam. E com vastos espaços em branco destinados a fazer com que um conto, que nem é dos mais longos, ocupe quase cinquenta páginas. É uma edição francamente manhosa.
Quanto ao ensaio/prefácio, achei-o delicioso, cheio de informação sobre o Coisa-Ruim, muita dela de caráter etnográfico mas não só, empacotada num embrulho muito bem-humorado. É um prefácio que vale mesmo a pena ler. Mesmo pouca relevância tendo para o texto que se lhe segue e que, supostamente, justifica a edição.
Este livro foi comprado.
Sobre a Récita propriamente dita pouco tenho a acrescentar ao que escrevi aqui, a não ser que, talvez previsivelmente, gostei menos na segunda leitura do que na primeira. Não só por ser a segunda leitura, mas também porque a edição é pior, com mais gralhas e outros detalhezinhos que a prejudicam. E com vastos espaços em branco destinados a fazer com que um conto, que nem é dos mais longos, ocupe quase cinquenta páginas. É uma edição francamente manhosa.
Quanto ao ensaio/prefácio, achei-o delicioso, cheio de informação sobre o Coisa-Ruim, muita dela de caráter etnográfico mas não só, empacotada num embrulho muito bem-humorado. É um prefácio que vale mesmo a pena ler. Mesmo pouca relevância tendo para o texto que se lhe segue e que, supostamente, justifica a edição.
Este livro foi comprado.
sábado, 12 de novembro de 2011
Lido: Ao Acaso
Ao Acaso é um continho de Miguel Cruz, cheio de angst, que trata das ruminações poéticas do protagonista sobre um amor perdido. É ficção científica, mas apenas de uma forma incidental; há coisas como "materializadores de comida" e "holo-livros", mas nada disso tem a mínima relevância para a história. Mais importante é Cruz cair numa armadilha muito comum nos escritores iniciantes: a tentativa de fazer literatura antes de ter realmente uma história para contar, e o pouco que desta aparece se perder entre frases de efeito que soam a postiço e nada adiantam. Achei muito fraco, e o conto é demasiado curto para avaliar se o autor teria ou não tido potencial, uma vez que tivesse ganho alguma experiência na arte de contar histórias.
Lido: Os Primeiros Aztecas na Lua
Os Primeiros Aztecas na Lua (bib.), de Flávio Medeiros, Jr., é uma movimentada história de espionagem cuja galeria de personagens é composta em grande medida por Júlio Verne, H. G. Wells e respetivas criações. O clima é de guerra fria, entre uma França muito inchada com as suas conquistas na Europa e nos impérios coloniais das potências que engoliu (especialmente o português), e uma Inglaterra hegemónica nas Américas (onde controla pelo menos a maioria do território que no nosso mundo foi espanhol) e na Ásia. Nessa guerra fria têm grande relevo os dois monstros sagrados da ficção científica do século XIX e do início do século XX, ambos com altos cargos nos respetivos governos. As personagens de um e do outro também se mostram relevantes, ainda que nem sempre do mesmo lado dos seus criadores; Para dar um exemplo, Robur, personagem de Verne, lidera as forças aéreas inglesas.
A mim, a noveleta fez imediatamente lembrar o romance de Octavio Aragão, A Mão que Cria, onde também existe esta mistura entre personagens reais e de ficção, mas acima de tudo a novela Não Estamos Divertidos, de João Barreiros. Com efeito, tanto a história de Medeiros como a de Barreiros se focam na rivalidade entre Wells e Verne. Tanto numa como na outra, as personagens de um e de outro têm existência "real" no contexto das histórias e interagem com os seus criadores. Tanto uma como a outra envolvem viagens espaciais, pelo menos em aparência; a trama de Medeiros gira em volta de uma viagem à Lua, a de Barreiros em volta de uma viagem a Marte. Tanto numa como na outra, a cavorite (elemento fictício, criado por Wells, que não é afetado pela gravidade como a matéria normal) é relevante.
Mas esta noveleta é mais movimentada do que a de Barreiros, é muito mais rica em personagens e referências, embora não jogue com a dependência da criação relativamente ao criador com que a novela do português joga e que lhe confere outra profundidade. Apesar da ideia-base ser no fundamental idêntica, a abordagem que sofre é diferente. O facto de ler uma delas tornará a outra reconhecível nos seus elementos-chave, mas não a torna previsível.
Gostei bastante da história de Flávio Medeiros, apesar de um ou outro detalhe que forçou um pouco em demasia o meu sentido de verosimilhança. A páginas tantas, por exemplo, uma personagem enfia as mãos nas entranhas de um cadáver e, embora nunca chegue a limpá-las, a história prossegue como se o homem tivesse acabado de sair do banho. Mas mesmo com um ou dois detalhes deste género, a história é bastante interessante, tem um bom ritmo, e está bem concebida e bem escrita.
A mim, a noveleta fez imediatamente lembrar o romance de Octavio Aragão, A Mão que Cria, onde também existe esta mistura entre personagens reais e de ficção, mas acima de tudo a novela Não Estamos Divertidos, de João Barreiros. Com efeito, tanto a história de Medeiros como a de Barreiros se focam na rivalidade entre Wells e Verne. Tanto numa como na outra, as personagens de um e de outro têm existência "real" no contexto das histórias e interagem com os seus criadores. Tanto uma como a outra envolvem viagens espaciais, pelo menos em aparência; a trama de Medeiros gira em volta de uma viagem à Lua, a de Barreiros em volta de uma viagem a Marte. Tanto numa como na outra, a cavorite (elemento fictício, criado por Wells, que não é afetado pela gravidade como a matéria normal) é relevante.
Mas esta noveleta é mais movimentada do que a de Barreiros, é muito mais rica em personagens e referências, embora não jogue com a dependência da criação relativamente ao criador com que a novela do português joga e que lhe confere outra profundidade. Apesar da ideia-base ser no fundamental idêntica, a abordagem que sofre é diferente. O facto de ler uma delas tornará a outra reconhecível nos seus elementos-chave, mas não a torna previsível.
Gostei bastante da história de Flávio Medeiros, apesar de um ou outro detalhe que forçou um pouco em demasia o meu sentido de verosimilhança. A páginas tantas, por exemplo, uma personagem enfia as mãos nas entranhas de um cadáver e, embora nunca chegue a limpá-las, a história prossegue como se o homem tivesse acabado de sair do banho. Mas mesmo com um ou dois detalhes deste género, a história é bastante interessante, tem um bom ritmo, e está bem concebida e bem escrita.
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Lido: Abraços em Contra-Luz
Abraços em Contra-Luz é um texto estranho de Marina Tavares, algo como uma crónica fantasiosa e íntima, na primeira pessoa, muito feminina, sobre lugares domésticos e o modo como a luz com eles interage, tratando-a, à luz, quase como se de um ser com vontade própria se tratasse (o que a traz para o âmbito do fantástico, suponho). O texto está escrito com uma prosa bastante poética (embora, de novo, mal revista ou não revista de todo) que mostra potencial no uso da língua, mas que usa esse potencial para fazer algo que não me agrada. Por vezes, muitas vezes, a simplicidade é o verdadeiro segredo da literatura. O rebuscamento só atrapalha, em especial quando é exagerado. E aqui pareceu-me exagerado. Achei fraco.
Lido: O Homem que Via o Futuro
O Homem que Via o Futuro (bib.), tradução tipicamente Argonáutica de So Bright the Vision, é uma coletânea de contos de ficção científica, de Clifford D. Simak na qual, também muito típico da Argonauta, cada conto é apresentado como um "capítulo", fingindo que se trata de um romance. Não, quando eu digo "muito típico" não estou a fazer figura de estilo. Não se trata de caso isolado. Quem nos dias que correm barafusta contra a edição que se vai fazendo em Portugal mostra um completo desconhecimento sobre o caminho percorrido desde o tempo em que coisas destas eram norma. E nem falemos de uma capa muito pouco atraente e que, pior um pouco, nada tem a ver com o conteúdo do livro. Mas mesmo nada.
Mas falemos um pouco sobre a tradução. Eurico Fonseca (ou da Fonseca, como era apresentado sempre que ia à TV falar sobre o espaço) dispensa apresentações para leitores de FC de uma certa geração, visto que lhe passaram pelas mãos largas dezenas de livros. Nunca foi um bom tradutor, mas apresentou muitas vezes trabalho razoável. Neste livro, contudo, esteve muito, muito mal. Fiquei várias vezes com os cabelos em pé, e eu tenho cabelo comprido.
Apesar de tudo o que ficou dito acima, as histórias são em geral boas. Algo datadas, dado o seu meio século de existência, mas boas, com aquela mescla de quotidiano e banalidade e de criaturas extraordinárias que vão intrometer-se nessa banalidade, que é muito característica de Simak. Apesar das muitas falhas desta edição, achei o livro bom.
Eis o que disse sobre cada uma das histórias:
- Os Besouros de Ouro;
- Le.Pra:;
- A Mais Brilhante das Visões;
- Tesouro Galáctico;
Este livro foi comprado.
Mas falemos um pouco sobre a tradução. Eurico Fonseca (ou da Fonseca, como era apresentado sempre que ia à TV falar sobre o espaço) dispensa apresentações para leitores de FC de uma certa geração, visto que lhe passaram pelas mãos largas dezenas de livros. Nunca foi um bom tradutor, mas apresentou muitas vezes trabalho razoável. Neste livro, contudo, esteve muito, muito mal. Fiquei várias vezes com os cabelos em pé, e eu tenho cabelo comprido.
Apesar de tudo o que ficou dito acima, as histórias são em geral boas. Algo datadas, dado o seu meio século de existência, mas boas, com aquela mescla de quotidiano e banalidade e de criaturas extraordinárias que vão intrometer-se nessa banalidade, que é muito característica de Simak. Apesar das muitas falhas desta edição, achei o livro bom.
Eis o que disse sobre cada uma das histórias:
- Os Besouros de Ouro;
- Le.Pra:;
- A Mais Brilhante das Visões;
- Tesouro Galáctico;
Este livro foi comprado.
Lido: Tesouro Galáctico
Tesouro Galáctico (bib.) é uma noveleta de ficção científica de Clifford D. Simak, protagonizada por um jornalista ainda iniciante, ao qual são entregues trabalhos aborrecidos e/ou bizarros. A história, escrita na primeira pessoa, lê-se quase como uma história de detetives, pois descreve as investigações que o protagonista leva a cabo para tirar a limpo umas informações estranhas que dão conta da presença de gnomos na cidade.
Pois, gnomos.
Ou pelo menos umas criaturinhas baixinhas e bem-intencionadas, que se dedicam a limpar o que está sujo, a endireitar o que está torto, a consertar o que precisa de conserto, etc. A princípio, o jovem jornalista sente-se cético, convencido de que o chefe o está a mandar numa caça aos gambozinos, talvez para o testar, talvez para gozar com ele. Mas depois, as coisas alteram-se. E muito.
É uma história que consegue manter-se interessante mesmo estando algo datada e mesmo apesar da péssima tradução de que foi vítima. Uma história que nada tem de sombrio; bem pelo contrário, há por ali algo de conto de fadas. Quem acha que a FC para o ser tem de ser negra certamente não irá gostar. Eu, como não tenho tais ideias, gostei. Não muito, até porque a tradução não deixou, mas gostei.
Pois, gnomos.
Ou pelo menos umas criaturinhas baixinhas e bem-intencionadas, que se dedicam a limpar o que está sujo, a endireitar o que está torto, a consertar o que precisa de conserto, etc. A princípio, o jovem jornalista sente-se cético, convencido de que o chefe o está a mandar numa caça aos gambozinos, talvez para o testar, talvez para gozar com ele. Mas depois, as coisas alteram-se. E muito.
É uma história que consegue manter-se interessante mesmo estando algo datada e mesmo apesar da péssima tradução de que foi vítima. Uma história que nada tem de sombrio; bem pelo contrário, há por ali algo de conto de fadas. Quem acha que a FC para o ser tem de ser negra certamente não irá gostar. Eu, como não tenho tais ideias, gostei. Não muito, até porque a tradução não deixou, mas gostei.
Lido: Lusóluna
Lusóluna é um conto de ficção científica de Ana Rui, de 1996, muito bem escrito (embora muito mal revisto) mas deficiente no que toca à história. Passado na Lua, ou por outra, numa Lua aparentemente terraformada, conta uma história muito mundana sobre um velho moribundo que está prestes a finar-se e a odisseia em que os familiares se metem em busca de um padre que lhe dê a extrema unção. A história é confusa e pouco interessante, os elementos de FC só por vezes são bem usados, parecendo de outras vezes enfiados na história um pouco à força, mas a qualidade e o estilo do texto, a par de algum humor de facto divertido, fazem-me ter pena desta autora não ter vingado. Com mais cuidado na criação dos seus mundos ciencio-ficcionais, podia ter dado uma autora com muito interesse.
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
Lido: Suitable for the Orient
Suitable for the Orient é um conto de ficção científica de Karen Traviss, centrado num protagonista que explica o título. Mas a coisa é tão britânica que vou ter de a explicar. É que antigamente, nos tempos do império em que Sua Majestade dominava vastos territórios no Oriente (a Índia, claro, mas não só, longe disso), os médicos recém-licenciados eram avaliados como adequados para diferentes tipos de serviço. Numa clara expressão do colonialismo no seu pior, os mais incompetentes recebiam o carimbo de SFTO, Suitable for the Orient, Adequado Para o Oriente.
Neste caso, porém, já não estamos nesses tempos, mas sim no futuro. E no futuro, o "Oriente" é outro planeta, no qual existe uma colónia humana, tolerada por uma espécie nativa primitiva (os "minkies"), vista pelos "nossos" como possuidora de inteligência sub-humana, e eternamente mergulhada em brigas internas. O protagonista é um médico, dos incompetentes, cuja tarefa principal é tratar os alienígenas que lhe aparecem no consultório, feridos em consequência dessas brigas.
Até que um dos humanos caça um dos alienígenas. Aí a coisa muda de figura.
A colonização humana de mundos habitados por espécies alienígenas com um nível de desenvolvimento inferior ao humano é um tema bastante batido na FC, mas apesar disso é frequente render boas histórias. Às vezes são mesmo excelentes; lembro-me, por exemplo, de Floresta é o Nome do Mundo, de Ursula K. Le Guin. Mas aqui, a história não me pareceu mais que razoável, sem grandes surpresas, sem nada que a faça sobressair das outras. Uma historiazinha mediana, que se lê bem mas não passa daí.
Neste caso, porém, já não estamos nesses tempos, mas sim no futuro. E no futuro, o "Oriente" é outro planeta, no qual existe uma colónia humana, tolerada por uma espécie nativa primitiva (os "minkies"), vista pelos "nossos" como possuidora de inteligência sub-humana, e eternamente mergulhada em brigas internas. O protagonista é um médico, dos incompetentes, cuja tarefa principal é tratar os alienígenas que lhe aparecem no consultório, feridos em consequência dessas brigas.
Até que um dos humanos caça um dos alienígenas. Aí a coisa muda de figura.
A colonização humana de mundos habitados por espécies alienígenas com um nível de desenvolvimento inferior ao humano é um tema bastante batido na FC, mas apesar disso é frequente render boas histórias. Às vezes são mesmo excelentes; lembro-me, por exemplo, de Floresta é o Nome do Mundo, de Ursula K. Le Guin. Mas aqui, a história não me pareceu mais que razoável, sem grandes surpresas, sem nada que a faça sobressair das outras. Uma historiazinha mediana, que se lê bem mas não passa daí.
Lido: O Nautilus
O Nautilus (bib.) é um conto de Maria Adelaide Couto Viana que adapta partes do romance 20.000 Léguas Submarinas, de Júlio Verne. Trata-se, basicamente, da descrição do submarino Nautilus, feita pelo Capitão Nemo ao seu hóspede forçado, Aronnax, e da engenharia empregue na sua conceção e construção. Se bem me lembro do romance, a intervenção de Couto Viana consistiu em fundir numa só partes de várias conversas que as duas personagens foram tendo ao longo da viagem e que eram frequentemente interrompidas de forma abrupta. Talvez como efeito secundário dessa fusão, talvez por decisão consciente da autora, Nemo aparece aqui bastante mais tratável do que eu recordo, e a tensão entre os dois quase desaparece. A ideia foi claramente realçar as capacidades antecipatórias do escritor francês, e isso é meritório, mas parece-me que se perde demasiado do tom de Verne, ou seja, que ao ler este texto o leitor não fica com uma ideia correta do livro completo. E isso é mau.
Lido: A Estranha Morte do Professor Antena
A Estranha Morte do Professor Antena (bib.) é uma noveleta de Mário de Sá-Carneiro que até se poderia enquadrar numa certa proto-FC, visto que pega em vários dos mecanismos da ficção científica do início do século XX (principalmente o cientista louco, ou pelo menos incompreendido), embora os use de uma forma muito própria. O que afasta este conto da proto-FC da época é o seu ênfase na descrição dos meandros filosófico-esotéricos, da mundovisão repleta de transmigrações e planos de existência, que terá estado na base da morte do Professor Antena, em detrimento da história propriamente dita dessa morte, ou das investigações que a ela terão levado. E em parte por isso, achei este conto bastante aborrecido, apesar da sua inegável qualidade literária. É com contos como este que eu melhor reparo que as minhas preferências caem mesmo para o lado do "mostrar em vez de contar", embora seja nisso bem menos radical do que outros leitores de género. Também terá contribuído para o aborrecimento o facto de todo aquele modo esotérico de olhar o mundo colidir fortemente com a minha própria mundovisão. Quando os contos são tão descritivos como este, não ajuda nada à experiência de leitura que o leitor a passe quase toda a achar as ideias disparatadas.
Tenho a certeza de que leitores mais dados a hermetismos e a deambulações filosóficas se deliciarão ao ler esta história, até porque ela é boa, literariamente falando. Mas eu não gostei. Fiquei curioso com o resto da obra em prosa de Mário de Sá-Carneiro, que ainda não li (mas hei de ler, talvez em breve; há cá por casa um livro que a tem toda), mas deste conto em concreto não gostei.
Tenho a certeza de que leitores mais dados a hermetismos e a deambulações filosóficas se deliciarão ao ler esta história, até porque ela é boa, literariamente falando. Mas eu não gostei. Fiquei curioso com o resto da obra em prosa de Mário de Sá-Carneiro, que ainda não li (mas hei de ler, talvez em breve; há cá por casa um livro que a tem toda), mas deste conto em concreto não gostei.
quarta-feira, 9 de novembro de 2011
Vaporpunk / Dieselpunk outra vez
Finalmente, depois duma longa odisseia alfandegária, chegaram cá a casa os Vaporpunks e os Dieselpunks. Quem se mostrou interessado nos livros (nos comentários daqui, no twitter e por email) já foi contactado por email com as condições, e perguntando se o interesse se mantém. Com uma exceção por não ter conseguido encontrar o endereço dele: o Jauch, ao qual peço que me contacte pelo endereço que está ali do lado direito (--->) no caso do interesse se manter.
Depois das respostas que já obtive, resta 1 Vaporpunk (que irá para o Jauch, se ele não tiver mudado de ideias entretanto, portanto está disponível à condição) e 5 Dieselpunks. Os preços são um euro mais caros do que tinha indicado no post original, mais portes quando é caso disso.
Depois das respostas que já obtive, resta 1 Vaporpunk (que irá para o Jauch, se ele não tiver mudado de ideias entretanto, portanto está disponível à condição) e 5 Dieselpunks. Os preços são um euro mais caros do que tinha indicado no post original, mais portes quando é caso disso.
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
Lido: Liber Beneficiorum
Liber Beneficiorum é um continho onírico de Fermín Moreno, que vagueia algures entre o horror, a FC e a fantasia. E, claro, o surrealismo, como convém a contos oníricos. Infelizmente, tem também uma outra característica dos sonhos: a incoerência: E isso que faz com que o texto acabe por ser bastante inconsequente, de tal modo que nem se consegue perceber muito bem sobre o que versa o conto. Sobre um tal Juan, talvez, habitante (provisório) de um mundo de sonhos. Não gostei, confesso. Podem avaliá-lo vocês seguindo este link. É o terceiro conto.
Lido: Os Oito Nomes do Deus Sem Nome
Os Oito Nomes do Deus Sem Nome (bib.), de Yves Robert, é uma noveleta de algo a que eu chamaria fantasia a vapor se outros não lhe tivessem já chamado steampunk. Trata-se no essencial de uma história de espionagem, na qual se veem envolvidos agentes das três grandes potências do universo criado por Robert, Inglaterra, França e Portugal, cada uma com a sua especialização particular numa área do conhecimento. Conhecimento, entenda-se, em sentido lato, pois no mundo de Robert a magia funciona mesmo.
O mistério principal a desvendar pela história é qual a especialização portuguesa, se bem que a espécie de prólogo que abre a noveleta forneça ao leitor atento pistas importantes, em especial quando conjugada com o título. As outras duas especializações, que vão sendo reveladas através da rivalidade e troça mútua dos agentes estrangeiros, funcionam como contraponto da portuguesa.
Apesar de me ter parecido um pouco ingénua e, aqui e ali, não tão "limpinha" em termos de escrita e de conceção do enredo como teria desejado, a noveleta agradou-me. Leve, com um pé solidamente implantado nos velhos pulps do início do século XX (mais, pareceu-me, do que nos grandes da proto-FC do século XIX, que normalmente são usados como referência para o steampunk), lê-se bem e diverte. E como eram claramente esses os objetivos do autor, o sucesso foi alcançado.
O mistério principal a desvendar pela história é qual a especialização portuguesa, se bem que a espécie de prólogo que abre a noveleta forneça ao leitor atento pistas importantes, em especial quando conjugada com o título. As outras duas especializações, que vão sendo reveladas através da rivalidade e troça mútua dos agentes estrangeiros, funcionam como contraponto da portuguesa.
Apesar de me ter parecido um pouco ingénua e, aqui e ali, não tão "limpinha" em termos de escrita e de conceção do enredo como teria desejado, a noveleta agradou-me. Leve, com um pé solidamente implantado nos velhos pulps do início do século XX (mais, pareceu-me, do que nos grandes da proto-FC do século XIX, que normalmente são usados como referência para o steampunk), lê-se bem e diverte. E como eram claramente esses os objetivos do autor, o sucesso foi alcançado.
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