quarta-feira, 8 de setembro de 2004

Spam fiction (6)

Avaria


Baseado num spam intitulado "Urgent - Call me"


Por favor, telefona-me quando chegares a casa. O carro avariou. Estou aqui perdido no meio do nada e sem dinheiro para o reboque. Não sei a quem ligar. Um beijo.
Olá, sou eu outra vez. É só para te pedir que telefones ao Zé, o de Serpa, antes de me telefonares a mim. Diz-lhe que tenho o carro avariado e não vou chegar a tempo. Ele que me ligue mais tarde, se quiser. Eu telefonava-lhe, mas esqueci-me de memorizar o número aqui no telelé. Merda de cabeça a minha. Enfim... já sabes como é. Olha, não demores em chegar a casa, ok? Um beijo.
Tou? Não acredito! Ainda o atendedor? Era só para ver se não te tinhas esquecido de ver as mensagens, mas estou a ver que ainda não chegaste a casa. Bolas. Bom, olha, não tem nada a ver com nada, mas o céu está-se a pôr feio. Ainda chove. Até logo.
Bolas! Quando voltar a casa, a primeira coisa que faço é mudar essa mensagem. Onde te meteste, Joana? Preciso de ti. Telefona-me. Chau. Ah, começou a chover, e o céu está a ficar preto. Mas preto. É só isso.
Tá? Tás-me a ouvir? Tás a ouvir esta barulheira? Trovoada. Tou com o sacana do carro avariado no meio duma trovoada enorme. Não sei se saia se fique cá dentro. E não passa ninguém por aqui, parece uma estrada fantasma. Telef... (ouviste? Este ainda foi longe)... Telefona-me com urgência. Até já.
Foda-se, Joana! Atende-me essa merda, se fazes favor! Tenho de falar contigo com urgência! Com urgência! Ur-gên-ci-a! E desculpa estar a gritar, mas começou a cair granizo há bocado. Isto está muito feio. E acho que o sol se está a pôr, mas não consigo ter certeza com este tempo. Merda!
Olha, Joana, é só para te dizer que já não é preciso telefonares-me. Resolvi ligar ao 112 e eles dizem que vem uma viatura a caminho. Ah, o granizo parou entretanto. É isso.
Tou? Sou eu outra vez. A tal viatura do 112 não há meio de chegar. Se calhar é melhor telefonares na mesma. Mas onde diabo te meteste? Começo a ficar seriamente preocupado contigo, sabias? E acho que a trovoada vem de volta. Bom. É melhor poupar bateria. Até logo.
Joana, por favor telefona-me! Estou no banco de trás do carro depois de ser corrido do banco da frente por uma granizada tão grande que partiu o pára-brisas. Agora está mais calmo, mas ainda se ouvem trovões ao longe, e o céu está cheio de clarões. Estou ensopado e cheio de vidrinhos e de frio. Não estou ferido, felizmente, mas ainda apanho uma pneumonia aqui. Ninguém atende do 112, por qualquer motivo que não consigo perceber. Começo a ficar com medo, Joana. Medo. Que raio de viagem! Telefona-me.
Nada? Continuas sem chegar a casa? Raios partam! Se tivesse aqui uma lista telefónica, era agora que começava a telefonar para os hospitais. Se tivesse uma lista telefónica ou então se alguém atendesse do 112. Que país, este, em que nem os números de emergência funcionam! Porra pra isto!
Pois, já esperava. Nem sei porque continuo a tentar... olha, agora só à meia-noite.
Joana? Joana? Atende o telefone. Merda! Será que vou ter de passar a noite aqui? Olha, ao menos já não chove. Este é o último telefonema que faço, que já percebi que isto é perda de tempo. Se ainda ouvires isto hoje, até amanhã. Não! Que raio estou eu práqui a dizer? Se ainda ouvires isto hoje, telefona-me logo, por favor. O telemóvel vai ficar ligado. Até logo.
Não é nada. Precisei de ouvir uma voz humana, mesmo gravada, foi só isso. Passar uma noite sozinho no meio de coisa nenhuma é muito esquisito. A cabeça começa a pregar partidas. Amanhã logo te conto. Agora vou desligar.
Se tiveres alguma coisa ligada, a televisão ou a aparelhagem, uma coisa dessas, desliga-a. Agora escuta. Parou. Ah! Ouviste? Um som que parecem gritos ao longe? Ali está outra vez. Ouviste? Sempre gostava de saber que animal faz um som daqueles. É de pôr os cabelinhos da nuca em pé. Começa-me a parecer que não vou conseguir pregar olho a noite inteira. Ao menos parou de chover. Lá está. Ouviste? Estranhíssimo. Vou desligar.
Tou. Olha, mudei de ideias quanto à compra de um rádio para o carro. Tinhas razão: devíamos ter um. Queria só dizer-te isso. Chau.
Sim. Espero que me consigas ouvir. Estou a falar baixinho porque anda qualquer coisa lá fora. Ouço-a a remexer nos arbustos da berma da estrada. Parece... ouviste? Agora ouviste o guincho, de certeza. Tem vindo a tornar-se mais forte ao longo da última hora e agora parece que está mesmo aqui ao lado. Acho que vou sair do carro. Estou-me a sentir encurralado aqui dentro. Só consigo ver alguma coisa de jeito através do vidro partido, que os outros estão todos embaciados. Além do mais, agora não chove. Vou sair. E vou pôr o telemóvel em modo silêncio, também. Sim, é isso mesmo que eu vou fazer.
A Lua nasceu, e de vez em quando espreita entre as nuvens, como agora. Não acreditas no que eu estou a ver. Nem eu acredito. É um... acho que olhou para cá. Desligo.
Olá, Joana. Se chegares algum dia a ouvir isto, fica sabendo que te amo. Eu sei, eu sei, sempre disse que estas conversas são lamechices inúteis, mas olha, hoje deu-me para aqui. Ver certas coisas muda um bocado as perspectivas das pessoas, sabes? Ver ou sentir, que agora que aquilo se foi embora não consigo ter a certeza de não ter sido um delírio qualquer. Não sei o que será mais assustador, aquilo ser real ou não ser. Ser ou não ser, que pensamento tão original! Chiu! É aquilo outra vez. Desligo.
Bem, são quase cinco da manhã. Provavelmente vou conseguir ver a luz do dia, mas caso não consiga, aqui vai. Tenho de aproveitar enquanto ainda tenho bateria no telemóvel, agora que aquilo se foi embora, para te dizer algumas coisas. Vi esta noite uma coisa inacreditável. Um monstro. É a única palavra possível: monstro. Nem sei descrevê-lo (até porque nunca o consegui ver bem - só um vulto escuro num luar fraco). Mas é enorme. Como um cruzamento entre um dinossauro e uma rã, ou coisa do género. Enorme. Anda pelos montes soltando aquele guincho que deves ter ouvido. Nunca percebi tão bem o velho cliché de "fazer gelar o sangue" como esta noite. Passou a noite inteira dum lado para o outro (ou então eram vários, não faço ideia), e fez várias visitas ao carro. Tenho a certeza de que se não me tivesse escondido nesta moita, não estaria agora a falar para ti. Aquilo chegou até a pegar no carro e a metê-lo na boca! Acho que tem andado à minha procura, mas nunca se aproximou muito, felizmente. Acho que não ia aguentar. Ia desatar a correr, e provavelmente a coisa apanhava-me com toda a facilidade. Claro, há a hipótese de eu estar a imaginar tudo isto. Se não ouviste guincho nenhum nas gravações, é provável que seja isso mesmo que se... olha... lá está ele outra vez. Agora está longe, se calhar não ouves. Por que gritará aquilo daquela maneira? Olha... outra vez, mais alto. Deve estar a aproximar-se. Queria dizer-te... queria dizer-te qualquer coisa, mas esqueci-me. Qualquer coisa importante. Bolas! Que... lá está ele. Esta já deves ter ouvido. Deve vir fazer outra verificação ao carro. É metódico. Até quase parece inteligente, mas provavelmente não é, é só um animal. Isto não tem importância nenhuma, eu sei. Estou aqui a falar só para ver se me lembro do que te queria dizer. Não consi... olha... está mesmo mais próximo... acho que vou calar-me.
Ele viu-me! Ele viu-me! Joana, ele viu-me! Fugi e consegui esconder-me melhor noutro sítio, mas aquilo quer mesmo apanhar-me. Veio atrás de mim. Agora está a bater o terreno com todo o cuidado. É por isso que estou a segredar. Tenho tanto medo! Porra! Isto não é hora de ser cobarde, mas tenho tanto m... merda! A bateria apitou! Espero que o monstro não tenha ouvido! Espero que... isto vai... isto vai desligar a qualquer momento. Joana, desculpa-me por tudo o que de mal te possa ter f...

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