O Físico Prodigioso (bib.) é uma novela de Jorge de Sena que pega em duas histórias encontradas no Orto do Esposo, uma compilação de lendas portuguesas feita no fim da Idade Média por um monge anónimo, e as combina para criar uma fantasia medieval que...
Mas esperem lá.
Isto foi uma releitura. E eu já tinha escrito sobre esta história há dez anos (e o tempo, irritantemente, passa, caraças!), nos velhos tempos do E-nigma. Uma crítica que continua disponível. Ao reler hoje algumas das velhas críticas que escrevi para o E-nigma dou por mim a torcer o nariz, por um motivo ou por outro. Mas esta poderia tê-la escrito agora mesmo, logo a seguir a reler esta novela de Jorge de Sena. Portanto remeto-vos para lá. É basicamente aquilo.
Só há uma diferença significativa: gostei mais da releitura do que da leitura original. Mergulhei melhor na história, julgo que me apercebi melhor de certas subtilezas. Já não encontro defeitos na conjugação das duas lendas, não que tivesse encontrado muitos para começar. É verdade que, emocionalmente, a história continua a não me entusiasmar muito, mas reafirmo: este é sem dúvida alguma dos melhores exemplos que conheço da literatura fantástica portuguesa. De toda a literatura fantástica, não só da fantasia. Se há textos de leitura obrigatória para quem quiser dizer com propriedade que percebe do fantástico português, este é um deles.
domingo, 27 de maio de 2012
sábado, 26 de maio de 2012
Lido: Quenta Silmarillion
O Quenta Silmarillion é um longo texto de J. R. R. Tolkien, do tamanho de um pequeno romance que, embora o título prometa uma "História dos Silmarils" (os quais são três joias radiantes, produzidas por um elfo no início do mundo, e posteriormente roubadas pelo senhor do mal, Morgoth), na verdade relata uma série de episódios da história de "Arda" (o mundo; suponho que o nome provenha da palavra germânica para Terra: Erde) que traçam um esboço, com graus variáveis de nitidez e elaboração, da história dos elfos, dos anões e dos homens no legendário tolkieniano. Por outro lado, boa parte dessa história pode resumir-se a uma longa luta pela posse dos silmarils.
Compreendo o fascínio que este texto exerce sobre os fãs mais dedicados de Tolkien. Afinal, nele se explicam muitas coisas que são só entrevistas n'O Senhor dos Anéis e n'O Hobbit e todo o substrato histórico-mitológico destas obras, mais elaboradas enquanto tal, é aqui bastante desenvolvido. Imagino que, para um verdadeiro fã, ler este livro seja como abrir uma arca de tesouro e remexer entre moedas, colares e anéis reluzentes. Mas eu não sou fã de Tolkien. O mundo que criou não me fascina, há nele subjacente uma filosofia conservadora, ludita, que colide de frente com a minha forma de encarar o mundo. Se consigo compreender que, para um fã, possa ser uma delícia desenterrar minúcias e estabelecer ligações entre um episódio e outro, e entre estes e os livros principais, a verdade é que para mim não é. Eu poderia gostar desta história se ela realmente funcionasse como história. Mas não me parece que funcione. Ao contrário dos textos anteriores do livro, que imitavam eficazmente mitos da criação, e funcionavam enquanto textos literários precisamente por causa desse mimetismo, que ia dos temas gerais à toada da linguagem e ao caráter poético do texto, o Quenta Silmarillion é um texto híbrido e indefinido. Aqui parece um relato histórico, ali já toma tons de mitologia, acolá é como um conto, com enredo e diálogos e um fio condutor mais sólido.
E depois, há todos aqueles nomes. Que me perdoem os fãs, que provavelmente encaram com prazer e antecipação cada viagem ao glossário para descortinar que nome é aquele, quem é, onde fica, se é nome élfico ou humano, e desenterrar mais uma pitadinha de história, mas a mim falta por completo a paciência para passar toda a leitura para trás e para a frente, aos saltos entre história e glossário. Toda a leitura, pois as referências aos mais díspares locais e personagens são uma constante ao longo de todo o texto. E há trechos em que isso se agrava. Há trechos do Quenta Silmarillion que, para mim, são uma insuportável e impenetrável floresta de nomes, todos semelhantes uns aos outros, com as suas terminações em -on, -ir ou -in. Sim, bem sei que Tolkien era linguista e que em termos linguísticos faz todo o sentido haver coerência nas terminações. Mas com tantos nomes, tão empilhados uns em cima dos outros (metaforicamente, pois há parágrafos que contêm um ou dois nomes por linha, mas também literalmente, visto que há personagens e regiões designadas por dois e três nomes, inteiramente diferentes uns dos outros), essa coerência redunda em confusão.
Creio que se nota demasiado que o Quenta é composto por uma mistura de notas destinadas à construção do mundo ficcional em que Tolkien ambientou as suas histórias e de esboços pouco detalhados de histórias que nunca chegou a escrever. Que é um texto cujo principal objetivo era a orientação (e o divertimento) do escritor, não a divulgação pública. Que, provavelmente, fazia muito mais sentido para o próprio Tolkien do que fará para qualquer dos seus leitores; sei por experiência própria que, por mais notas que quem escreve faça sobre os universos ficcionais que cria, boa parte do que liga e dá sentido a essas notas nunca chega a sair da cabeça. Por isso houve alguns episódios de que quase gostei, mas em geral, do todo, não consegui gostar.
Contos anteriores desta publicação:
Compreendo o fascínio que este texto exerce sobre os fãs mais dedicados de Tolkien. Afinal, nele se explicam muitas coisas que são só entrevistas n'O Senhor dos Anéis e n'O Hobbit e todo o substrato histórico-mitológico destas obras, mais elaboradas enquanto tal, é aqui bastante desenvolvido. Imagino que, para um verdadeiro fã, ler este livro seja como abrir uma arca de tesouro e remexer entre moedas, colares e anéis reluzentes. Mas eu não sou fã de Tolkien. O mundo que criou não me fascina, há nele subjacente uma filosofia conservadora, ludita, que colide de frente com a minha forma de encarar o mundo. Se consigo compreender que, para um fã, possa ser uma delícia desenterrar minúcias e estabelecer ligações entre um episódio e outro, e entre estes e os livros principais, a verdade é que para mim não é. Eu poderia gostar desta história se ela realmente funcionasse como história. Mas não me parece que funcione. Ao contrário dos textos anteriores do livro, que imitavam eficazmente mitos da criação, e funcionavam enquanto textos literários precisamente por causa desse mimetismo, que ia dos temas gerais à toada da linguagem e ao caráter poético do texto, o Quenta Silmarillion é um texto híbrido e indefinido. Aqui parece um relato histórico, ali já toma tons de mitologia, acolá é como um conto, com enredo e diálogos e um fio condutor mais sólido.
E depois, há todos aqueles nomes. Que me perdoem os fãs, que provavelmente encaram com prazer e antecipação cada viagem ao glossário para descortinar que nome é aquele, quem é, onde fica, se é nome élfico ou humano, e desenterrar mais uma pitadinha de história, mas a mim falta por completo a paciência para passar toda a leitura para trás e para a frente, aos saltos entre história e glossário. Toda a leitura, pois as referências aos mais díspares locais e personagens são uma constante ao longo de todo o texto. E há trechos em que isso se agrava. Há trechos do Quenta Silmarillion que, para mim, são uma insuportável e impenetrável floresta de nomes, todos semelhantes uns aos outros, com as suas terminações em -on, -ir ou -in. Sim, bem sei que Tolkien era linguista e que em termos linguísticos faz todo o sentido haver coerência nas terminações. Mas com tantos nomes, tão empilhados uns em cima dos outros (metaforicamente, pois há parágrafos que contêm um ou dois nomes por linha, mas também literalmente, visto que há personagens e regiões designadas por dois e três nomes, inteiramente diferentes uns dos outros), essa coerência redunda em confusão.
Creio que se nota demasiado que o Quenta é composto por uma mistura de notas destinadas à construção do mundo ficcional em que Tolkien ambientou as suas histórias e de esboços pouco detalhados de histórias que nunca chegou a escrever. Que é um texto cujo principal objetivo era a orientação (e o divertimento) do escritor, não a divulgação pública. Que, provavelmente, fazia muito mais sentido para o próprio Tolkien do que fará para qualquer dos seus leitores; sei por experiência própria que, por mais notas que quem escreve faça sobre os universos ficcionais que cria, boa parte do que liga e dá sentido a essas notas nunca chega a sair da cabeça. Por isso houve alguns episódios de que quase gostei, mas em geral, do todo, não consegui gostar.
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sexta-feira, 25 de maio de 2012
Lido: Titus: O Herdeiro de Gormenghast
Titus: O Herdeiro de Gormenghast (bib.) é um longo romance de Mervyn Peake, cujo qualificativo mais acertado é bizarro. Titus é, como o título português explica logo à partida, o herdeiro do Conde Sepulchrave Groan, e o seu nascimento, a par do aparecimento de um jovem arrivista cínico e sem escrúpulos, vai abalar a imutável rotina da vida do castelo de Gormenghast e respetivos domínios. Este é um imenso e surreal labirinto de pedra, uma caricatura de castelo que ultrapassou em muito as proporções normais. E é habitado por uma fauna humana não menos caricatural e surreal, disforme de corpo, espírito e atitudes. Um cozinheiro imensamente gordo, imensamente nojento, o seu arqui-inimigo, imensamente magro, com membros de aranhiço, duas gémeas deficientes mentais e incapazes de expressar emoções, seja com os rostos, seja com as vozes, um médico que só consegue falar com discursos convolutos e intercalados de gargalhadinhas, a condessa que por nada se interessa a não ser gatos e pássaros, e etc. E etc. E etc.
Tudo isto é descrito com uma riqueza de pormenores também ela bizarra, e de tal forma excessiva que, ao longo das densas 400 e tal páginas que o livro comporta é pouco o que acontece. Subtraindo a este volume as elaboradas descrições que contém, será fácil não ultrapassar 50 páginas, e será com dificuldade que se chegará às 100. É provável, porque é possível entrevê-lo aqui e ali, que essa riqueza de detalhe descritivo corresponda no original a uma riqueza semelhante no tratamento dado à língua inglesa. Mas a sensação que fica ao ler a edição portuguesa é que para lhe fazer realmente justiça a tradução teria de ser impecável, exemplar. E não é.
Valerá a pena falar da história? Esta parece ser aquilo que menos importa a Peake. Embora a personagem titular seja o herdeiro, apesar do livro começar praticamente com o seu nascimento, este pouco aparece, e na verdade pouca relevância tem no relativamente escasso enredo do livro. O verdadeiro protagonista (além do castelo propriamente dito, entenda-se), quem faz avançar a história, é Steerpike, o tal canalha sem escrúpulos que vai manipulando tudo e todos para ir subindo na rígida hierarquia do castelo. E, basicamente, a história resume-se a isso: o que Steerpike faz, com quem fala, que cordelinhos manipula, com quem trava amizades de conveniência, quem apunhala pelas costas, figurativamente falando, sim, mas não só.
Assim descrito, Steerpike soa a um daqueles vilões simpáticos e com frequência verosímeis que muitos leitores adoram odiar. Mas desengane-se quem esperar encontrar algo de credível ou verosímil neste livro. As personagens são de tal forma distorcidas que nelas muito pouco resta de humano. Os locais, as tradições, tudo, enfim, como que tem embutido um daqueles espelhos de feira, que criam versões aberrantes do que é refletido. Por conseguinte, leitores que precisem de descobrir alguma forma de identificação com as personagens terão a vida difícil, quando não mesmo impossível. Duvido que algum destes leitores consiga gostar deste livro, por mais que se esforce. Outros, os que se deliciam com descrições, aqueles para os quais o surrealismo é uma virtude, os fãs de coisas bizarras, provavelmente gostarão.
Se eu gostei? Não. A leitura deste livro foi-me francamente penosa. Terminei-o por pura teimosia, e por saber que por vezes há surpresas agradáveis no fim dos livros. Já tive algumas. Mas não foi aqui o caso, embora sensivelmente a partir de meio as coisas melhorem um pouco e comecem finalmente a acontecer algumas... bem... coisas. Contudo, fiquei na dúvida sobre qual teria sido a minha reação se tivesse lido o livro em inglês. Acho provável que tivesse gostado bastante mais dele, muito embora nunca pudesse chegar sequer perto de se tornar um dos meus livros preferidos. É demasiado... poeirento.
Este livro foi comprado.
Tudo isto é descrito com uma riqueza de pormenores também ela bizarra, e de tal forma excessiva que, ao longo das densas 400 e tal páginas que o livro comporta é pouco o que acontece. Subtraindo a este volume as elaboradas descrições que contém, será fácil não ultrapassar 50 páginas, e será com dificuldade que se chegará às 100. É provável, porque é possível entrevê-lo aqui e ali, que essa riqueza de detalhe descritivo corresponda no original a uma riqueza semelhante no tratamento dado à língua inglesa. Mas a sensação que fica ao ler a edição portuguesa é que para lhe fazer realmente justiça a tradução teria de ser impecável, exemplar. E não é.
Valerá a pena falar da história? Esta parece ser aquilo que menos importa a Peake. Embora a personagem titular seja o herdeiro, apesar do livro começar praticamente com o seu nascimento, este pouco aparece, e na verdade pouca relevância tem no relativamente escasso enredo do livro. O verdadeiro protagonista (além do castelo propriamente dito, entenda-se), quem faz avançar a história, é Steerpike, o tal canalha sem escrúpulos que vai manipulando tudo e todos para ir subindo na rígida hierarquia do castelo. E, basicamente, a história resume-se a isso: o que Steerpike faz, com quem fala, que cordelinhos manipula, com quem trava amizades de conveniência, quem apunhala pelas costas, figurativamente falando, sim, mas não só.
Assim descrito, Steerpike soa a um daqueles vilões simpáticos e com frequência verosímeis que muitos leitores adoram odiar. Mas desengane-se quem esperar encontrar algo de credível ou verosímil neste livro. As personagens são de tal forma distorcidas que nelas muito pouco resta de humano. Os locais, as tradições, tudo, enfim, como que tem embutido um daqueles espelhos de feira, que criam versões aberrantes do que é refletido. Por conseguinte, leitores que precisem de descobrir alguma forma de identificação com as personagens terão a vida difícil, quando não mesmo impossível. Duvido que algum destes leitores consiga gostar deste livro, por mais que se esforce. Outros, os que se deliciam com descrições, aqueles para os quais o surrealismo é uma virtude, os fãs de coisas bizarras, provavelmente gostarão.
Se eu gostei? Não. A leitura deste livro foi-me francamente penosa. Terminei-o por pura teimosia, e por saber que por vezes há surpresas agradáveis no fim dos livros. Já tive algumas. Mas não foi aqui o caso, embora sensivelmente a partir de meio as coisas melhorem um pouco e comecem finalmente a acontecer algumas... bem... coisas. Contudo, fiquei na dúvida sobre qual teria sido a minha reação se tivesse lido o livro em inglês. Acho provável que tivesse gostado bastante mais dele, muito embora nunca pudesse chegar sequer perto de se tornar um dos meus livros preferidos. É demasiado... poeirento.
Este livro foi comprado.
Lido: Manequins do Horror
Manequins do Horror (bib.) é o mais conhecido conto de terror de Robert Bloch. Colin, o protagonista, é um louco que vive internado num hospício, no qual se dedica a fazer pequenas esculturas de barro como terapia ocupacional. Pequenas esculturas obsessivamente detalhadas de corpos humanos, completas com órgãos internos, vasos sanguíneos, tudo. Mas quando os médicos decidem que aquela terapia ocupacional talvez não esteja a ter o resultado pretendido e tentam acabar com ela, as coisas precipitam-se. É um conto muito bem concebido, inspirado nos velhos mitos judaicos sobre golems, e constrói com grande eficácia um crescendo de tensão até ao desenlace final, adequadamente horrível e não tão previsível como a princípio se poderá supor. Embora já tenha lido histórias com vários pontos de contacto com esta, creio que nenhuma é mais antiga (esta data de 1937) e em nenhuma o aumento de tensão ao longo do conto está tão bem conseguido. Gostei.
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Steampunk: o que há num nome?
Andei muito tempo com cócegas para escrever um post sobre o que raio é, ao certo, o steampunk, mas a preguiça falta de tempo livre falou mais alto. Hoje, contudo, conjugaram-se dois acontecimentos que me libertaram um pouco os dedos e a massa cinzenta: acabei a última tradução (guardem os foguetes, que ainda me falta revê-la) e apareceu-me nos feeds um link para uma página que mostra fotografias de umas tais "esculturas de aranha steampunk". Deixando de parte o desconfortável facto de algumas das ditas aranhas terem seis patas em vez das oito que são de praxe em qualquer aracnídeo que se preze (a única exceção é o Homem-Aranha, mas isso é, suponho, por ser um híbrido... e sim, estou a gozar), a questão é que várias dessas esculturas são apenas bonecos articulados, sem rigorosamente nada que faça lembrar por mais remotamente que seja o steampunk... a não ser que, agora, tudo quanto seja mecânico tenha obrigatoriamente de levar com o rótulo de steampunk na testa.
E bem sei que este post não vai servir de nada. Bem sei que a força de quem encara o steampunk como uma simples estética e não vai mais fundo do que isso é irresistível. Bem sei que para a grande maioria steampunk é latão, couro, goggles e rodas dentadas e disso não passa. Mas como o facto de saber que para muita gente ficção científica é Star Wars e Star Trek nunca me desencorajou de tentar explicar que não é, não será uma coisa tão insignificante como a força dos números que me demoverá de explicar o que eu acho que steampunk realmente é.
Para isso, mergulhemos num pouco de história.
O termo, inicialmente, pretendeu ser uma paródia sem mais pretensões. Parodiava o ciberpunk (daí o elemento "punk" no nome), e foi inicialmente usado para identificar um conjunto restrito de obras algo limítrofes entre a FC e a fantasia, que tinham em comum ambientar-se em versões alteradas da era vitoriana e serem inspiradas pelo trabalho de grandes autores de ficção científica do século XIX e do início do século XX, em particular Júlio Verne e H. G. Wells. Mas o livro que pôs o termo nas bocas do mundo e que, a meu ver, definiu uma versão algo mais "pura" de steampunk foi The Difference Engine, de Bruce Sterling e William Gibson, não por acaso dois dos principais cultores do ciberpunk.
Ora, The Difference Engine é em vários aspetos diferente das obras a que o termo foi inicialmente aplicado. Trata-se de um romance de história alternativa sem elementos fantasiosos, que postula um desenvolvimento mais precoce de certas tecnologias e desenvolve as consequências que esse desenvolvimento teria sobre a sociedade da época. Da época vitoriana, sim, mas parece-me mais relevante pensar nela como a época do vapor, na qual as tecnologias que seriam predominantes a partir do século XX estavam apenas no começo. Afinal, o género chama-se steampunk, não victorianpunk.
E é aqui que o steampunk que me interessa realmente vai beber, à abordagem seguida por Sterling e Gibson. Encolho os ombros à estética, viro costas aos corpetes e estou-me nas tintas para o período concreto em que as histórias se passam. Interessam-me duas coisas: a predominância do vapor no que faz mover (literalmente) a sociedade e uma abordagem de história alternativa na qual a precocidade do desenvolvimento tecnológico é fundamental. Ou, por outras palavras, interessa-me que as histórias sejam retrofuturistas e movidas a vapor.
Sim, histórias retrofuturistas e movidas a vapor, se tiverem como cenário a esfera anglófona, acabam por cair com grande frequência na época vitoriana. Acabam por obedecer à tal estética dominada por couro e latão, cheia de cartolas e goggles e maquinaria com os mecanismos visíveis do exterior. Mas, para mim, isso é mera consequência, não o centro da coisa. Até porque se o fosse limitaria o steampunk à esfera anglófona e condenaria quem quer escrever histórias steampunk na esfera lusófona a macaquear o que os outros fazem e/ou a ambientá-las em territórios de língua inglesa ou em mundos dominados pelo Império Britânico.
Sim, esse é um caminho possível. Porque não? Mas, por outro lado, porque raio haveremos de estar limitados a ele?
Como seria uma revolução industrial com início na esfera lusófona, por exemplo? Seria certamente movida a vapor, porque era essa a única fonte energética disponível para revolucionar os meios de produção antes do século XIX. E aqui, nestas duas frases que esboçam um cenário de história alternativa (ou, na verdade, muitos cenários possíveis), reside toda a ideia steampunk tal como foi redefinida por The Difference Engine: temos o retrofuturismo de uma revolução industrial precoce e deslocada no espaço, e temo-la movida a vapor. Mas há algumas coisas que não temos.
Não temos, por exemplo, nada de vitoriano. Com uma revolução industrial nossa, todos os equilíbrios de poder na Europa seriam bem diferentes. A importância do Império Britânico reduzir-se-ia, e uma rainha Vitória, se chegasse a existir, teria muito menos impacto do que teve na história real, e um impacto bem mais restrito à esfera anglófona. As modas seriam diferentes, porque seria um país de clima mais quente a servir-lhes de motor; a própria tecnologia também, pois esta depende não só do período histórico, como dos materiais disponíveis para serem manuseados. Ou seja, toda a estética seria bem diferente... mas o ambiente seria na mesma steampunk. Porque é retrofuturista. E porque a tecnologia predominante é o vapor. Ponto.
E é por isso que me parece um erro que se centre a definição de steampunk em coisas tão volúveis como a estética ou em períodos históricos concretos, o vitoriano ou outro qualquer. A do steampunk ou a de qualquer outro subgénero retrofuturista. Centremo-las na tecnologia dominante. E demos aos autores a liberdade de inovar, não os tentemos cerrar em estreitas baias espaçotemporais.
Porque, se por um lado é verdade que não é o género que determina aquilo que é escrito, por outro não é menos verdade que é muitas vezes o género que determina aquilo que é publicado, e onde, especialmente nos dias que correm, em que as oportunidades de publicação de ficção curta estão muito ligadas a antologias temáticas. Por mais livres que os escritores queiram ser, acabam por ter de se resignar a seguir o tema proposto, ou pura e simplesmente a renunciar à participação. E se isso é por vezes inevitável, no caso dos vários "punks" retrofuturistas não é. Basta seguir o caminho desbravado por Gibson e Sterling.
Sigamo-lo, pois.
E bem sei que este post não vai servir de nada. Bem sei que a força de quem encara o steampunk como uma simples estética e não vai mais fundo do que isso é irresistível. Bem sei que para a grande maioria steampunk é latão, couro, goggles e rodas dentadas e disso não passa. Mas como o facto de saber que para muita gente ficção científica é Star Wars e Star Trek nunca me desencorajou de tentar explicar que não é, não será uma coisa tão insignificante como a força dos números que me demoverá de explicar o que eu acho que steampunk realmente é.
Para isso, mergulhemos num pouco de história.
O termo, inicialmente, pretendeu ser uma paródia sem mais pretensões. Parodiava o ciberpunk (daí o elemento "punk" no nome), e foi inicialmente usado para identificar um conjunto restrito de obras algo limítrofes entre a FC e a fantasia, que tinham em comum ambientar-se em versões alteradas da era vitoriana e serem inspiradas pelo trabalho de grandes autores de ficção científica do século XIX e do início do século XX, em particular Júlio Verne e H. G. Wells. Mas o livro que pôs o termo nas bocas do mundo e que, a meu ver, definiu uma versão algo mais "pura" de steampunk foi The Difference Engine, de Bruce Sterling e William Gibson, não por acaso dois dos principais cultores do ciberpunk.
Ora, The Difference Engine é em vários aspetos diferente das obras a que o termo foi inicialmente aplicado. Trata-se de um romance de história alternativa sem elementos fantasiosos, que postula um desenvolvimento mais precoce de certas tecnologias e desenvolve as consequências que esse desenvolvimento teria sobre a sociedade da época. Da época vitoriana, sim, mas parece-me mais relevante pensar nela como a época do vapor, na qual as tecnologias que seriam predominantes a partir do século XX estavam apenas no começo. Afinal, o género chama-se steampunk, não victorianpunk.
E é aqui que o steampunk que me interessa realmente vai beber, à abordagem seguida por Sterling e Gibson. Encolho os ombros à estética, viro costas aos corpetes e estou-me nas tintas para o período concreto em que as histórias se passam. Interessam-me duas coisas: a predominância do vapor no que faz mover (literalmente) a sociedade e uma abordagem de história alternativa na qual a precocidade do desenvolvimento tecnológico é fundamental. Ou, por outras palavras, interessa-me que as histórias sejam retrofuturistas e movidas a vapor.
Sim, histórias retrofuturistas e movidas a vapor, se tiverem como cenário a esfera anglófona, acabam por cair com grande frequência na época vitoriana. Acabam por obedecer à tal estética dominada por couro e latão, cheia de cartolas e goggles e maquinaria com os mecanismos visíveis do exterior. Mas, para mim, isso é mera consequência, não o centro da coisa. Até porque se o fosse limitaria o steampunk à esfera anglófona e condenaria quem quer escrever histórias steampunk na esfera lusófona a macaquear o que os outros fazem e/ou a ambientá-las em territórios de língua inglesa ou em mundos dominados pelo Império Britânico.
Sim, esse é um caminho possível. Porque não? Mas, por outro lado, porque raio haveremos de estar limitados a ele?
Como seria uma revolução industrial com início na esfera lusófona, por exemplo? Seria certamente movida a vapor, porque era essa a única fonte energética disponível para revolucionar os meios de produção antes do século XIX. E aqui, nestas duas frases que esboçam um cenário de história alternativa (ou, na verdade, muitos cenários possíveis), reside toda a ideia steampunk tal como foi redefinida por The Difference Engine: temos o retrofuturismo de uma revolução industrial precoce e deslocada no espaço, e temo-la movida a vapor. Mas há algumas coisas que não temos.
Não temos, por exemplo, nada de vitoriano. Com uma revolução industrial nossa, todos os equilíbrios de poder na Europa seriam bem diferentes. A importância do Império Britânico reduzir-se-ia, e uma rainha Vitória, se chegasse a existir, teria muito menos impacto do que teve na história real, e um impacto bem mais restrito à esfera anglófona. As modas seriam diferentes, porque seria um país de clima mais quente a servir-lhes de motor; a própria tecnologia também, pois esta depende não só do período histórico, como dos materiais disponíveis para serem manuseados. Ou seja, toda a estética seria bem diferente... mas o ambiente seria na mesma steampunk. Porque é retrofuturista. E porque a tecnologia predominante é o vapor. Ponto.
E é por isso que me parece um erro que se centre a definição de steampunk em coisas tão volúveis como a estética ou em períodos históricos concretos, o vitoriano ou outro qualquer. A do steampunk ou a de qualquer outro subgénero retrofuturista. Centremo-las na tecnologia dominante. E demos aos autores a liberdade de inovar, não os tentemos cerrar em estreitas baias espaçotemporais.
Porque, se por um lado é verdade que não é o género que determina aquilo que é escrito, por outro não é menos verdade que é muitas vezes o género que determina aquilo que é publicado, e onde, especialmente nos dias que correm, em que as oportunidades de publicação de ficção curta estão muito ligadas a antologias temáticas. Por mais livres que os escritores queiram ser, acabam por ter de se resignar a seguir o tema proposto, ou pura e simplesmente a renunciar à participação. E se isso é por vezes inevitável, no caso dos vários "punks" retrofuturistas não é. Basta seguir o caminho desbravado por Gibson e Sterling.
Sigamo-lo, pois.
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quinta-feira, 24 de maio de 2012
Lido: Alefestra
Alefestra (bib.) é um conto curto de Bruce Holland Rogers que vai buscar inspiração à mitologia greco-romana para contar a história de Alefestra, uma antiga segunda lua que nos tempos antigos giraria em volta do nosso planeta, e portanto, como todos os objetos celestes do tempo, também uma deusa de direito próprio, que se terá apaixonado pela Terra e por isso se transformou em gente, ou talvez em espírito de beleza. É um bom conto, ternurento e ecológico, muito poético, mas não é dos meus preferidos, não sei bem porquê. Talvez por ser tão descritivo. Talvez por não fugir muito dos clichés das histórias baseadas em velhas lendas greco-romanas, que são numerosas e bastante exaustivas. Seja por que motivo for, tudo indica que esta história não me perdurará na memória.
quarta-feira, 16 de maio de 2012
Lido: A Peste Negra
A Peste Negra (bib.), conto fantástico de Gomes Leal, é uma daquelas histórias de que eu não consigo gostar nem com uma pistola apontada à cabeça. Romanticíssimo, pleno de sentimentalismo e frases de efeito que até poderão ser muito redondinhas, muito poéticas, mas nada adiantam para a história que aqui se conta, relata uma tragédia de faca e alguidar sobre um homem que se perde de amores por uma moribunda, atacada da peste negra do título, e depois como que absorve a doença, passando a levar consigo a tragédia para onde quer que vá. O desfecho, claro, é tenebroso, e portanto previsível mesmo tendo o autor tentado criar um final surpreendente.
Não, mil vezes não. Isto está mais ou menos precisamente nos antípodas do que me agrada ler. Quem tiver um gosto oposto ao meu é possível que adore.
Não, mil vezes não. Isto está mais ou menos precisamente nos antípodas do que me agrada ler. Quem tiver um gosto oposto ao meu é possível que adore.
terça-feira, 15 de maio de 2012
Lido: Ensaio Sobre a Lucidez
Ensaio Sobre a Lucidez (bib.), é o primeiro (e julgo que único, se bem que, não os tendo ainda lido todos, não arrisque afirmá-lo) romance de José Saramago que funciona como sequela direta de uma obra anterior, ao ponto de apresentar algumas das mesmas personagens do Ensaio Sobre a Cegueira. Os acontecimentos deste livro desenrolam-se na mesma cidade, capital de um país imaginário com inquietantes semelhanças com Portugal, alguns anos depois dos do primeiro Ensaio, e há, entre os dois, uma relação quase de yin-yang, que aliás já está expressa nos próprios títulos. A cegueira branca do primeiro livro é aqui substituída por outro tipo de brancura, a brancura do voto, provocada por uma generalizada recusa por parte do eleitorado em pactuar com uma classe política que não responde às suas ansiedades e desejos e por isso comparece em massa a uma eleição, não para votar num dos três partidos em compita (o PDE, da Esquerda, pequenino, o PDM, do Meio, grande mas minoritário, e o PDD, da Direita, no governo), mas para lhes voltar costas, votando em branco.
A primeira parte do romance mostra a perplexidade dos governantes com o que está a acontecer, e é, a meu ver, a parte menos interessante. Mas quando o governo decide, como forma de punir os habitantes da capital, abandoná-la, retirando-se não só a si, mas a todos os instrumentos de autoridade do Estado, deixando-a isolada, entregue a si própria (embora mantendo-a fornecida dos produtos e serviços necessários à vida quotidiana), o romance começa a ganhar interesse, e maior ele se torna quando sobe à ribalta um grupo de três polícias, encarregados de investigar o grupo que o Ensaio Sobre a Cegueira acompanhou, depois de um dos membros desse grupo ter denunciado os restantes por intermédio de uma carta onde insinuava que eles seriam responsáveis pela "epidemia" de votos em branco.
O resultado é que este romance vai em crescendo, do início ao fim, e, na verdade, as páginas mais tremendas, mais terríveis, mais bem conseguidas, são as últimas. É uma alegoria fantástica, claro. Já o Ensaio Sobre a Cegueira o era, embora pudesse perfeitamente ser também visto como um livro de ficção científica. Neste segundo Ensaio, contudo, o caráter alegórico acentua-se e a ligação à FC esmorece bastante. Se no primeiro Ensaio tudo era rigorosamente credível, se havia uma sensação de verosimilhança em tudo o que era descrito, se a cegueira branca, cuja origem nunca é explicada, se espalha com a clássica propagação de qualquer epidemia, neste segundo Ensaio não. Aqui, temos um sobressalto cívico em que participa de forma espontânea uma parcela significativa da população. Ora, se é credível que uma epidemia de origem desconhecida se espalhe como é próprio das epidemias espalhar-se, se é mesmo credível que essa epidemia se cure sozinha depois da doença chegar ao fim do seu ciclo, como acontece a qualquer doença benigna, já não parece nada verosímil que oitenta porcento da população de uma cidade decida de um momento para o otro voltar costas à sua classe política e votar em branco. Porque nada separa mais as pessoas umas das outras do que as ideias que têm na cabeça. E porque estas têm muitas vezes raízes suficientemente profundas para resistirem até à mais óbvia das evidências.
E esta inveromilhança básica, parece-me, mina todo o romance e reduz o impacto que ele poderia ter. Porque Saramago pretende mostrar como um regime na aparência democrático tem no seu seio as raízes do totalitarismo, como os líderes, privados da autoridade convencional que o voto confere, facilmente resvalam para a autoridade da força, como a decência corre riscos fatais quando confrontada com canalhas. E mostra, com eficácia crescente ao longo do romance. Mas a inverosimilhança da base, do início de tudo, faz com que o leitor encare o resto com dúvidas. Se o que dá origem ao romance não permite suspender a descrença com eficácia, mais difícil se torna suspendê-la com o resto. E isso, a meu ver, diminui o impacto do livro. Diminui a sua eficácia enquanto questionamento da realidade em que vivemos.
Por outro lado, a partir de uma certa altura os acontecimentos vão-se desenrolando com a inexorabilidade de um acidente ferroviário, e o comissário de polícia que se transforma em protagonista é uma das grandes personagens de Saramago. A segunda metade do livro é, realmente, muito boa, e o final, então, é soberbo. Ensaio Sobre a Lucidez não será dos melhores livros do seu autor, e decididamente não é um romance perfeito. Mas é um bom livro. Poderia ser melhor? Julgo que sim. Mas é bom.
Este livro foi comprado.
A primeira parte do romance mostra a perplexidade dos governantes com o que está a acontecer, e é, a meu ver, a parte menos interessante. Mas quando o governo decide, como forma de punir os habitantes da capital, abandoná-la, retirando-se não só a si, mas a todos os instrumentos de autoridade do Estado, deixando-a isolada, entregue a si própria (embora mantendo-a fornecida dos produtos e serviços necessários à vida quotidiana), o romance começa a ganhar interesse, e maior ele se torna quando sobe à ribalta um grupo de três polícias, encarregados de investigar o grupo que o Ensaio Sobre a Cegueira acompanhou, depois de um dos membros desse grupo ter denunciado os restantes por intermédio de uma carta onde insinuava que eles seriam responsáveis pela "epidemia" de votos em branco.
O resultado é que este romance vai em crescendo, do início ao fim, e, na verdade, as páginas mais tremendas, mais terríveis, mais bem conseguidas, são as últimas. É uma alegoria fantástica, claro. Já o Ensaio Sobre a Cegueira o era, embora pudesse perfeitamente ser também visto como um livro de ficção científica. Neste segundo Ensaio, contudo, o caráter alegórico acentua-se e a ligação à FC esmorece bastante. Se no primeiro Ensaio tudo era rigorosamente credível, se havia uma sensação de verosimilhança em tudo o que era descrito, se a cegueira branca, cuja origem nunca é explicada, se espalha com a clássica propagação de qualquer epidemia, neste segundo Ensaio não. Aqui, temos um sobressalto cívico em que participa de forma espontânea uma parcela significativa da população. Ora, se é credível que uma epidemia de origem desconhecida se espalhe como é próprio das epidemias espalhar-se, se é mesmo credível que essa epidemia se cure sozinha depois da doença chegar ao fim do seu ciclo, como acontece a qualquer doença benigna, já não parece nada verosímil que oitenta porcento da população de uma cidade decida de um momento para o otro voltar costas à sua classe política e votar em branco. Porque nada separa mais as pessoas umas das outras do que as ideias que têm na cabeça. E porque estas têm muitas vezes raízes suficientemente profundas para resistirem até à mais óbvia das evidências.
E esta inveromilhança básica, parece-me, mina todo o romance e reduz o impacto que ele poderia ter. Porque Saramago pretende mostrar como um regime na aparência democrático tem no seu seio as raízes do totalitarismo, como os líderes, privados da autoridade convencional que o voto confere, facilmente resvalam para a autoridade da força, como a decência corre riscos fatais quando confrontada com canalhas. E mostra, com eficácia crescente ao longo do romance. Mas a inverosimilhança da base, do início de tudo, faz com que o leitor encare o resto com dúvidas. Se o que dá origem ao romance não permite suspender a descrença com eficácia, mais difícil se torna suspendê-la com o resto. E isso, a meu ver, diminui o impacto do livro. Diminui a sua eficácia enquanto questionamento da realidade em que vivemos.
Por outro lado, a partir de uma certa altura os acontecimentos vão-se desenrolando com a inexorabilidade de um acidente ferroviário, e o comissário de polícia que se transforma em protagonista é uma das grandes personagens de Saramago. A segunda metade do livro é, realmente, muito boa, e o final, então, é soberbo. Ensaio Sobre a Lucidez não será dos melhores livros do seu autor, e decididamente não é um romance perfeito. Mas é um bom livro. Poderia ser melhor? Julgo que sim. Mas é bom.
Este livro foi comprado.
domingo, 13 de maio de 2012
Lido: O Último Parente de Justino
O Último Parente de Justino (bib.) é uma vinheta de Jaime Rocha que, tirando o fim, me agradou bastante. Justino, o protagonista, sofre de uma estranha enfermidade: passa catatónico a maior parte do tempo, regressando à vida e atvidade normais, durante breves períodos, apenas quando lhe morre um parente. Assim vai sobrevivendo durante gerações, nessa espécie de vida intermitente movida a morte, até que se lhe acaba a família direta. E é então que se dá o desfecho. É uma ideia curiosa, que me pareceu bem executada (exceto o final, que achei demasiado abrupto), embora o conto me pareça mais fantástico do que propriamente de terror. Mas isso não passa de taxonomia. Gostei.
Contos anteriores desta publicação:
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sábado, 12 de maio de 2012
Lido: Melros de Asa Vermelha
Melros de Asa Vermelha (bib.) é uma belíssima vinheta fantástica de Bruce Holland Rogers, a qual descreve o surgimento de uma espécie de melro norte-americano, cujos machos são negros com asas vermelhas (daí o nome) e cujas fêmeas são simplesmente castanhas, a partir da mais inesperada das origens: corações humanos que, fartos de viverem abafados no mundo empresarial da sociedade moderna, resolvem sair dos peitos, ganhar vida própria.
Foi muito curiosa a coincidência de ler esta história logo a seguir à do Yoss, com a qual há tantos paralelos. E Rogers sai-se muito melhor, julgo que em boa parte por ter escolhido a abordagem certa. Esta historinha é uma delícia.
Foi muito curiosa a coincidência de ler esta história logo a seguir à do Yoss, com a qual há tantos paralelos. E Rogers sai-se muito melhor, julgo que em boa parte por ter escolhido a abordagem certa. Esta historinha é uma delícia.
Lido: El Efecto Cibeles
El Efecto Cibeles é um bizarro conto de ficção científica do cubano Yoss. Muito contado e pouco mostrado, violando assim um mandamento sagrado para alguns leitores (não este; este tende a preferir os mostrados mas não desdenha um bom contado de vez em quando), o conto traça uma situação de cataclismo anunciado, que possivelmente terá na génese mão alienígena, embora haja explicações alternativas.
E que situação é essa?
Bem... é uma estranhíssima doença que faz com que aos afetados caiam os órgãos genitais, externos e internos, da parte mecânica à gonadal. A queda só acontece quando os infelizes se aproximam de extensões de água, e depois de se verem de repente privados dos pénis e testículos, ou das vaginas, úteros e ovários, mais respetivos canais de ligação, caem num coma ao qual, dias mais tarde, se segue a morte. Quanto ao aparelho sexual, esse, ganha vida autónoma e parte, lagos e oceanos fora, em busca de parceiros reprodutivos. Eu avisei que a coisa era bizarra. Só mesmo lendo, realmente.
Será um bom conto? Um mau conto? Bem, eu gosto de como o Yoss escreve. Gosto do estilo, gosto do ritmo. Neste conto gosto da ironia. Mas também acho que às vezes exagera. E se calhar também usa por vezes as técnicas do género errado para as histórias que quer contar. Esta ideia, por exemplo, talvez ganhasse se não tivesse sido revestida de ficção científica. Daria um bom conto surrealista, absurdista, de um fantástico mais tradicional. Mas ficção científica? Não me parece.
E que situação é essa?
Bem... é uma estranhíssima doença que faz com que aos afetados caiam os órgãos genitais, externos e internos, da parte mecânica à gonadal. A queda só acontece quando os infelizes se aproximam de extensões de água, e depois de se verem de repente privados dos pénis e testículos, ou das vaginas, úteros e ovários, mais respetivos canais de ligação, caem num coma ao qual, dias mais tarde, se segue a morte. Quanto ao aparelho sexual, esse, ganha vida autónoma e parte, lagos e oceanos fora, em busca de parceiros reprodutivos. Eu avisei que a coisa era bizarra. Só mesmo lendo, realmente.
Será um bom conto? Um mau conto? Bem, eu gosto de como o Yoss escreve. Gosto do estilo, gosto do ritmo. Neste conto gosto da ironia. Mas também acho que às vezes exagera. E se calhar também usa por vezes as técnicas do género errado para as histórias que quer contar. Esta ideia, por exemplo, talvez ganhasse se não tivesse sido revestida de ficção científica. Daria um bom conto surrealista, absurdista, de um fantástico mais tradicional. Mas ficção científica? Não me parece.
Lido: A Erva Vermelha
A Erva Vermelha (bib.), de Boris Vian, é um daqueles romances dificilmente classificáveis com que de vez em quando nos deparamos. Trata-se de um romance bastante curto, cujo protagonista é Wolf, uma espécie de engenheiro que constrói ou opera uma máquina que viaja no tempo, aparentemente não o físico mas pelo menos o psíquico, o tempo mental, subjetivo, existente na cabeça de cada um de nós, e que tem como objetivo apagar recordações.
Ficção científica?
O ambiente geral, o cenário, é, realmente, de ficção científica. Wolf vive numa sociedade futurista, e viaja por uma série de realidades subjetivas com grandes semelhanças com as realidades virtuais que tão bem conhecemos do ciberpunk e de obras correlatas. Até está presente a indefinição entre o que é real e o que não é, tão comum na obra de Philip K. Dick e noutra FC mais recente. E isto é de assinalar, em especial tendo em conta que o original deste livro data de 1950.
No entanto, o romance afasta-se claramente da FC quando o olhamos mais de perto. O caráter difuso da trama, o modo como o autor se intromete por vezes nela explanando preocupações próprias, ultrapassando personagens e até a própria trama e substituindo-se a elas, o surrealismo sem peias de longos trechos, aqueles diálogos indiretos, muito à francesa, que quem tenha assistido a filmes franceses dos anos 50 e 60 certamente conhece bem, tudo isso afasta este livro da FC, e principalmente da FC americana que se fazia na época.
E isso é bom? Mau?
A resposta depende, obviamente, dos leitores. Este que aqui escreve tem de confessar que não saiu da leitura impressionado. Tentei gostar, fiz um esforço honesto, mas as preocupações e as iconoclastias do Boris Vian dos anos 50 estão demasiado coladas ao seu tempo para resultarem comigo, nesta segunda década do século XXI (o meu pai teria certamente gostado mais deste livro do que eu, só por causa disto). As iconoclastias já há muito não o são, e, não o sendo, salta demasiado à vista o que o surgimento delas na história tem de artificial. Nunca se chega a perceber porque quer o bom do Wolf deitar as memórias fora e uma das coisas que me parecem mais interessantes nesse ato, isto é, a exploração de até que ponto ao deitar as memórias fora não estará a deitar-se a si próprio, a deixar de ser ele mesmo, nem sequer é abordada. Há sexo, talvez escandaloso em 1950, mas hoje quase puritano. Gastam-se páginas e páginas a descrever a dinâmica de dois casais de namorados nos quais não encontrei interesse nenhum. E etc.
Fica a impressão de um livro escrito ao sabor das mutáveis marés do dia-a-dia, nos intervalos da boémia. De bocados de vida real nele enxertados sem que o autor tenha parado para pensar até que ponto fazem sentido no contexto em que os enfiou. De um puzzle de peças que não se ajustam bem umas às outras.
Haverá decerto quem goste. Eu, nem por isso.
Este livro foi comprado.
Ficção científica?
O ambiente geral, o cenário, é, realmente, de ficção científica. Wolf vive numa sociedade futurista, e viaja por uma série de realidades subjetivas com grandes semelhanças com as realidades virtuais que tão bem conhecemos do ciberpunk e de obras correlatas. Até está presente a indefinição entre o que é real e o que não é, tão comum na obra de Philip K. Dick e noutra FC mais recente. E isto é de assinalar, em especial tendo em conta que o original deste livro data de 1950.
No entanto, o romance afasta-se claramente da FC quando o olhamos mais de perto. O caráter difuso da trama, o modo como o autor se intromete por vezes nela explanando preocupações próprias, ultrapassando personagens e até a própria trama e substituindo-se a elas, o surrealismo sem peias de longos trechos, aqueles diálogos indiretos, muito à francesa, que quem tenha assistido a filmes franceses dos anos 50 e 60 certamente conhece bem, tudo isso afasta este livro da FC, e principalmente da FC americana que se fazia na época.
E isso é bom? Mau?
A resposta depende, obviamente, dos leitores. Este que aqui escreve tem de confessar que não saiu da leitura impressionado. Tentei gostar, fiz um esforço honesto, mas as preocupações e as iconoclastias do Boris Vian dos anos 50 estão demasiado coladas ao seu tempo para resultarem comigo, nesta segunda década do século XXI (o meu pai teria certamente gostado mais deste livro do que eu, só por causa disto). As iconoclastias já há muito não o são, e, não o sendo, salta demasiado à vista o que o surgimento delas na história tem de artificial. Nunca se chega a perceber porque quer o bom do Wolf deitar as memórias fora e uma das coisas que me parecem mais interessantes nesse ato, isto é, a exploração de até que ponto ao deitar as memórias fora não estará a deitar-se a si próprio, a deixar de ser ele mesmo, nem sequer é abordada. Há sexo, talvez escandaloso em 1950, mas hoje quase puritano. Gastam-se páginas e páginas a descrever a dinâmica de dois casais de namorados nos quais não encontrei interesse nenhum. E etc.
Fica a impressão de um livro escrito ao sabor das mutáveis marés do dia-a-dia, nos intervalos da boémia. De bocados de vida real nele enxertados sem que o autor tenha parado para pensar até que ponto fazem sentido no contexto em que os enfiou. De um puzzle de peças que não se ajustam bem umas às outras.
Haverá decerto quem goste. Eu, nem por isso.
Este livro foi comprado.
quinta-feira, 10 de maio de 2012
Lido: A Espada Encantada
A Espada Encantada (bib.) é um conto clássico de terror, de Rui Zink, que parte de uma história verdadeira de crime, provável loucura e violência e a ficciona recorrendo ao sobrenatural e ao apagamento da fronteira entre sonho e realidade. A história centra-se num rapaz que é atormentado por terrores noturnos provocados por um monstro, que aparentemente está relacionado com uma espada de brinquedo, do He-Man. A família, preocupada mas sem grande sensibilidade para as necessidades do filho, tenta resolver o problema o melhor que pode e sabe. Mas não é o suficiente, e tudo vai acabar mal.
É daqueles contos que se leem, não parecem maus, mas se depressa se esquecem, não causam impacto. Tem coisas que me pareceram bem feitas (o fim, por exemplo), mas também outras que me pareceram gratuitas e desnecessárias (por exemplo: o filho, a páginas tantas é levado a um psiquiatra, o qual como que é contagiado pelos pesadelos do rapaz, mas isto não parece ter nenhuma relevância para o desenlace da história) ou até contraproducentes (Rui Zink tem uma forte veia de humorista, e não parece ser capaz de evitar introduzir no que escreve pequenas notas irónicas... o que em geral está muito bem e só enriquece, mas quando se pretende que um texto tenha uma atmosfera pesada e terrorífica a ironia torna-se descabida). E está em geral bem escrito, apesar de algum excesso na adjetivação, em particular no início.
Ou seja: pareceu-me um conto mediano. Não mais do que isso.
Contos anteriores desta publicação:
É daqueles contos que se leem, não parecem maus, mas se depressa se esquecem, não causam impacto. Tem coisas que me pareceram bem feitas (o fim, por exemplo), mas também outras que me pareceram gratuitas e desnecessárias (por exemplo: o filho, a páginas tantas é levado a um psiquiatra, o qual como que é contagiado pelos pesadelos do rapaz, mas isto não parece ter nenhuma relevância para o desenlace da história) ou até contraproducentes (Rui Zink tem uma forte veia de humorista, e não parece ser capaz de evitar introduzir no que escreve pequenas notas irónicas... o que em geral está muito bem e só enriquece, mas quando se pretende que um texto tenha uma atmosfera pesada e terrorífica a ironia torna-se descabida). E está em geral bem escrito, apesar de algum excesso na adjetivação, em particular no início.
Ou seja: pareceu-me um conto mediano. Não mais do que isso.
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segunda-feira, 7 de maio de 2012
Lido: O Rico e a Bela
O Rico e a Bela (bib.) é mais uma pequena vinheta de Bruce Holland Rogers que só é fantástica na medida em que a exemplaridade da história lhe confere uma atmosfera de surrealismo e bizarria. Trata de um casal, ele rico, ela bela, que se juntam por isso mesmo, ele ser rico e ela bela, mas nunca se satisfazem, ela com a riqueza dele, ele com a beleza dela. Assim, vão-se incentivando vida fora a aumentar a riqueza do parceiro e a beleza da parceira, e acabam por se transformar em títeres sem vida própria, reduzidos às respetivas obsessões. É um continho que denuncia a superficialidade do que na vida não é importante, mas que depressa se torna previsível e não tem boa parte da habitual subtileza do autor. Acabei por isso por gostar, mas não muito.
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