segunda-feira, 29 de junho de 2020

Iain Rowan: Síndroma de Afogamento Invertido

Uma das formas mais eficazes que tenho encontrado nestes continhos para transmitir a ideia de história a sério, por contraponto aos pseudofactuais secos mais estritamente borgesianos, é a introdução neles, por parte dos autores, da personalidade dos médicos que as descrevem, quase sempre acompanhada por múltiplas subjetividades. E é precisamente isso o que Iain Rowan fez neste Síndroma de Afogamento Invertido (bibliografia).

O nome da doença, isto é, o título, explica a ideia. Costuma dizer-se, quando se está a suar muito, que se está a desfazer em água. Não está, claro: está-se apenas a suar. Mas aqui os infelizes atacados pela maleita desfazem-se em água de uma forma muito literal, sem que se saiba bem porquê. É uma boa ideia, mas Rowan dá-lhe um pouco mais de tempero entreabrindo um pouco a porta para a personalidade (bastante desagradável, diga-se) do homem que a descreve, as tricas e rivalidades com outros médicos, etc. O único senão de uma tal abordagem será o risco que se corre da personagem se tornar mais interessante do que a própria doença, mas Rowan consegue manter aqui esse risco sob controlo. E ser divertido.

Um bom continho.

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domingo, 28 de junho de 2020

Leiturtugas #64

E lá passou mais uma semana com Leiturtugas a assinalar, que isto nos últimos tempos tem andado movimentado apesar de continuar a haver alguns participantes que ainda não estrearam o ano.

Desta feita temos novidades por intermédio do Artur Coelho e de uma das suas opiniões resumidas sobre BD, mais desenvolvidas noutro sítio. Agora, o Artur leu o álbum Mindex, de Fernando Dordio, Pedro Cruz e Mário Freitas, publicado já este ano pela Kingpin Books e que, sendo BD, conta como "sem FC". O Artur passa, portanto, a 3c5s.

E por esta semana parece ser só. Se não foi, já sabem: avisem-me.

B. M. Stableford: Síndroma de Acreção Ferrobacteriana

Uma das características mais importantes das ficções pseudofactuais à Borges é a sua plausibilidade. Esta é conseguida não só através de um estilo literário decalcado da escrita académica (geralmente, embora não só) mas também fazendo com que até as ideias mais estapafúrdias ganhem um ar de possibilidade, ainda que remota. Assim, a ideia é instalar a dúvida: será isto real? Sabemos que não é, mas...

B. M. Stableford não esteve para isso. Esta sua Síndroma de Acreção Ferrobacteriana (bibliografia), que até tem uma ideia daquelas que a malta criativa inveja — uma infeção por bactérias que pegam nos metais que são ingeridos ou inalados pelos pacientes e com eles criam objetos sob a orientação do próprio paciente, pois é este a determinar a forma da coisa que produz — é um pseudofactual que nem chega a contar propriamente uma história nem faz grande esforço por gerar alguma espécie de dúvida sobre a sua veracidade, ficando-se por uma tentativa muito surreal de ter piada.

Tendo a certeza de que alguém se divertirá com este texto, devo confessar que não me chega. Basta a ideia e o facto de o texto em si não a ter destruído para fazer com que não seja mau, mas não me chega.

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quinta-feira, 25 de junho de 2020

Liz Williams: Sarcoma Auto-Esfolante Espontâneo de Hsing

Há neste livro histórias que são mesmo histórias, com praticamente tudo o que compõe uma história, ainda que em forma abreviada, há também textos pseudofactuais que encaram mais a sério essa qualidade, revestindo-se da aparência de um texto médico propriamente dito, de uma forma mais proximamente decalcada das imposturas borgesianas, e há ainda vários textos intermédios, que como que contam a história, ou por vezes várias histórias, em entrelinhas bastante visíveis. É o que Liz Williams faz com este Sarcoma Auto-Esfolante Espontâneo de Hsing (bibliografia).

Mais uma vez estamos perante uma doença que leva ao esfolamento, só que desta vez é um esfolamento artístico, chamemos-lhe assim, pois a pele dos pacientes como que se abre "como as pétalas de uma flor". Sem pele, a morte é inevitável, o que criaria um cenário de um certo horror se a autora não o tivesse salpicado de sensualidade. Mas a parte mais interessante deste conto nem é essa; é a forma como Williams sugere subtilmente uma variante da doença (ou sintomas desta que não são reconhecidos por quem a descreve) e a sua ligação a pragas de gafanhotos e com isso consegue contar uma história mais escrita em entrelinhas do que no texto propriamente dito.

O resultado é francamente bom.

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Guy de Maupassant: O Horla

Outro conto muito oitocentista de Guy de Maupassant, e provavelmente o mais conhecido dos seus contos fantásticos, este O Horla (bibliografia) é uma daquelas histórias contadas através de excertos do diário do protagonista. Este é o principal motivo por que o conto — melhor dizendo, a noveleta — é muito oitocentista. Há uma personagem que surge tão repetidamente nas ficções de mil e oitocentos que se transforma em característica ou mesmo em cliché: o ocioso, jovem, dotado de fortuna pessoal e a viver de rendimentos, que, apesar do desafogo financeiro, sofre horrores, seja por exacerbação de sentimentalismo, seja por loucura ou paixão mais ou menos platónica, duas coisas tantas vezes indistinguíveis uma da outra. E é precisamente essa personagem que aqui encontramos.

Mas apesar de ser tão oitocentista, e apesar de ser frequente que o estilo da época me canse e desagrade, este texto é realmente ótimo. Já vos disse que Maupassant era muito bom? Pois. Aqui, o principal motor da história, aquilo que sustenta o interesse até ao fim, é a forma como o protagonista vai lentamente descobrindo (e descrevendo no seu diário) o que realmente lhe está a acontecer. Entre suspeitas de loucura, entre avanços e recuos, ou melhoras e recaídas se se aceitar como boa a hipótese de doença, é sobretudo o mistério, o seu desvendar e as experiências que vão contribuindo para esse desvendar que sustentam o interesse do leitor. Isso e as qualidades técnicas da prosa, naturalmente.

E ainda que a noveleta seja basicamente de horror, há nela um toque bastante evidente de ficção científica, ainda que a ciência usada esteja há muito desacreditada, por mais popular que fosse na época. A noveleta é basicamente uma história de fantasmas na qual uma (ou várias?) entidade sobrenatural começa a ter impacto sobre a vida do protagonista. Mas Maupassant liga essa explicação extranatural ao mesmerismo, imaginando uma raça de Invisíveis que connosco compartilhariam o mundo e fariam por vezes sentir a sua influência nele, originando experiências extraordinárias e ataques de aparente loucura. É esse ser invisível o Horla do título e é ele que leva o protagonista de Maupassant a atos extremos.

Ou então o homem está simplesmente louco. Também essa explicação é plausível no contexto da história, o que a leva a obedecer de forma bastante estrita ao conceito todoroviano de fantástico. Seja como for, esta história é excelente. Um verdadeiro clássico.

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quarta-feira, 24 de junho de 2020

China Miéville: Praga de Buscard

Weird fiction. Um termo inglês para o qual ainda não se encontrou nenhuma designação portuguesa que não soe algo tosca e — paradoxalmente — pouco descritiva em comparação, ainda que a que eu prefiro seja ficção bizarra. Designa histórias fronteiriças entre o horror, a fantasia e a ficção científica,  nas quais o grotesco tende a marcar presença destacada. Um dos nomes grandes da weird fiction moderna é há vários anos China Mieville. E, sem deixar créditos por mãos alheias, a história que aqui apresenta é weird fiction (como o são, aliás, boa parte das outras). E da boa.

A Praga de Buscard (bibliografia) é mais uma história-mesmo-história, das que não se limitam às descrições pseudofactuais da doença mas contam histórias mais ou menos desenvolvidas sobre a sua descoberta e/ou casos clínicos especialmente interessantes. E é também uma daquelas histórias, tão comuns neste volume, que têm nas palavras agente infeccioso e/ou sintoma. Mas Miéville vai mais longe, e explica que a palavra-verme que origina a doença desencadeia, quando é ouvida e repetida vezes suficientes, uma série de reações no cérebro que levam certos neurónios a deixar de se comportar como integrantes do organismo de que fazem parte, autonomizando-se e tornando-se parasitas.

Bizarro? Sim, bastante. Mas curiosamente plausível, se nos lembrarmos do que acontece com os priões responsáveis pela doença das vacas loucas, os quais não passam de proteínas. Não me surpreenderia, de resto, que tivesse sido precisamente essa a inspiração original para este conto. Ora, essa plausibilidade acrescenta força a uma história que, apesar de o ser, não deixa de ser contada com a frieza médica típica de um estudo de caso (e que alguns destes textos põem de parte... mas não o de Miéville), o que a faz passar de boa a muito boa. Mesmo indo ainda a menos de meia leitura, tenho já a certeza de que este é um ponto alto deste livro.

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terça-feira, 23 de junho de 2020

Eliot Fintushel: Perturbação Zigótica Cutânea Crónica

Mais uma história-mesmo-história, este conto de Eliot Fintushel é daqueles que despertam memórias de uma série de referências. Apesar do título de Perturbação Zigótica Cutânea Crónica (bibliografia) poder levar a pensar que se trata de qualquer coisa de cariz sexual, ou pelo menos reprodutivo, não é bem o que acontece. Antes, trata-se de uma história com fortes elementos de ficção científica e com reminiscências do conto de Bradbury O Esqueleto e também do Venom, o parasita das BDs (e filmes) do Homem-Aranha.

Sim, pois aqui estamos perante um parasita, aparentemente alienígena, que se substitui à pele do hospedeiro, e o conto narra os primeiros casos com abundância de pormenores. A cura, se tal designação se pode aplicar a um procedimento que mata sem apelo nem agravo o paciente, só se alcança pela remoção integral do parasita. Ou seja: da pele. Sim, estamos a falar de esfolamento completo e sim, o conto é sobretudo de horror, exacerbado pelo facto de a pele poder sobreviver durante bastante tempo ao seu antigo corpo.

Este é um conto arrepiante que conta uma história bastante perturbadora. Francamente bom.

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segunda-feira, 22 de junho de 2020

Harvey Jacobs: Placebose Pós-Traumática

Ah! Uma verdadeira história! É destas que eu realmente gosto. Harvey Jacobs, para apresentar a sua Placebose Pós-Traumática (bibliografia), conta a história do primeiro (e único?) indivíduo afetado pela doença, um tal Horace Wolf. Este desenvolve uma série vasta e variada de sintomas, alguns dos quais a atirar para o hilariante, depois de participar por várias vezes em estudos farmacológicos nos quais lhe é sempre administrado um placebo. Vem-se a constatar que o seu sistema imunitário é praticamente imbatível... e que é essa a fonte dos seus problemas. O médico que descreve a doença (o próprio Harvey Jacobs, claro) afirma também tê-lo curado. Como? Adoecendo-o, evidentemente. Pois de que outra forma será possível curar uma doença causada por um sistema imunitário que impede o paciente de ficar doente?

É destes pormenores irónicos que se constrói esta história. Francamente divertida, concebida de forma inteligente e uma verdadeira história, não uma simples descrição de doença em tom pseudofactual, tem tudo para me agradar. E de facto agradou. Não me parece que chegue ao nível das melhores histórias deste livro, pois algumas são geniais, mas é bastante boa.

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domingo, 21 de junho de 2020

Jack Slay: Monocromite

Um dia, provavelmente, já ninguém saberá que houve um tempo em que a generalidade das pessoas viam o mundo a preto e branco. Não todo, claro, mas pelo menos a parte deles que lhes entrava em casa pela televisão e, alguns anos, antes, também aquele que iam ver ao cinema. Terá certamente sido a essa época que Jack Slay foi buscar inspiração para esta doença que inventou.

Pois a Monocromite (bibliografia) é uma doença do foro psicológico, como se costuma dizer, que consiste numa aversão irracional a todos os tipos de cor. E o texto que a descreve é engraçado, com umas ironias bem dirigidas a certos tipos de pessoas (não necessariamente padecedoras de monocromite), embora tenha a característica, que para mim é defeito, de não chegar propriamente a contar uma história. Ou seja, é um texto que achei razoável mas está longe de ser dos meus favoritos.

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Leiturtugas #63

Ora cá temos mais uma semana cheia de Leiturtugas, e desta feita sem qualquer participação minha.

De quem houve participação foi do Artur Coelho, por intermédio da opinião que publicou sobre o romance de Luís Filipe Silva, edição da Épica que reúne num só volume algo que na edição original foi editado como uma série de dois romances: Galxmente. É FC, naturalmente, pelo que o Artur passa a sinalefar 3c4s.

No mesmo dia apareceu a primeira das várias entradas da semana vindas da pena da Cristina Alves. Todas contos. Todos publicados na Antologia de Ficção Especulativa Queer. Ela começou por falar de O Sabor do Lepton, de Nuno Miranda Ribeiro, um conto de FC. No dia seguinte, disse de sua justiça sobre Nau Fossilizada em Dó Maior, de A. M. Catarino, um conto de horror sobrenatural. Mais dois dias, e ela opinou sobre Miriam, de Joana Eça de Queiroz, mais um conto de FC. Tudo somado, são dois contos com FC e um sem, pelo que a Cristina passa a 3c8s.

A meio deste trio, surge também uma opinião da Carla Ribeiro a rematar as leiturtugas da semana. Bastante diferente das anteriores, trata-se de uma opinião sobre um volume de poesia onde aparentemente se encontram várias referências a seres fantásticos e a elementos de FC. É ele a Poesia Completa da Maria Alberta Menéres, uma edição da Porto Editora. Como parece ter FC, por mais tangente e escassa que ela seja, pelo que a Carla passa a 1c2s.

E por esta semana estamos conversados. O que nos reservará a próxima? Não perca as cenas dos próximos capítulos!

António Bettencourt Viana: Europa, um Mundo Fechado

É precisamente este o grande perigo de se escrever ficção científica (ou, na verdade, qualquer outro género literário) com a pedagogia no primeiro plano das preocupações: no afã de fornecer aos seus leitores informações sobre Europa, a lua de Júpiter, e algumas ideias especulativas que autores e cientistas têm tido sobre o que poderá encontrar-se no seu oceano subglacial, António Bettencourt Viana esqueceu-se do que de mais importante existe na FC: a história.

Não que não exista história, propriamente. Europa, um Mundo Fechado (bibliografia) conta como uma cápsula tripulada que atravessa o gelo para chegar ao oceano europano o descobre demasiado cedo e cheio de vida, mas essa história não passa de um esboço bastante tosco — especialmente quando comparado com várias outras ficções que contam a mesma história — a envolver aquilo que realmente interessa ao autor: explicar que condições existem no satélite joviano e o que se especula poder lá existir. Tudo o que é enredo é despachado em dois tempos, sem profundidade nem verdadeiro interesse, tão depressa o tripulante entra em perigo como dele sai sem um arranhão e sem que o leitor chegue a começar a preocupar-se com o seu destino e, transmitida a informação, o conto é rapidamente encerrado em clima de "e viveram felizes para sempre".

O resultado até pode ser um bom auxiliar pedagógico, mas é um conto de ficção científica bastante mau.

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sábado, 20 de junho de 2020

Isaac Asimov: Irrompendo Pela Neve

A concluir este primeiro volume das aventuras do demónio Azazel, ou melhor, as desventuras criadas pelos atos mal planeados do demónio Azazel, Isaac Asimov apresenta Irrompendo Pela Neve (bibliografia), mais um conto cujo melhor qualificativo é "esquecível". De facto, esquece-se tão depressa que é quase como se Azazel, o próprio, tenha tratado pessoalmente de fazer o leitor esquecê-lo.

A história é simples: um homem não consegue arranjar mulher porque, embora seja uma alma sensível, tem aspeto de brutamontes. Por isso isola-se numa cabana nas margens de um lado, mas como detesta neve (o seu peso leva-o a afundar-se muito nela) e na área caem grandes nevões durante o inverno, isolando a cabana, só pode usá-la durante parte do ano. Um verão convida o tipo que controla o demónio a ir passar uns tempos com ele e este, que passa a vida a fugir de credores, decide que seria ótimo se pudesse também passar lá o inverno. Mas como?

Recorre ao Azazel, claro. E este resolve o problema, fazendo com que o dono da cabana deixe de ter problemas com a neve. Como? Fazendo com que ele possa controlar à vontade o seu peso sempre que se encontra sobre neve. Uma solução um bocadinho pateta, não é? E claro que vai correr mal.

Muito fraquinho, este conto. Mas serviu para consolidar na minha cabeça algumas ideias sobre o motivo por que as fórmulas funcionam em certos casos mas não noutros. Isso, no entanto, é conversa para quando falar do livro como um todo. Este conto encerrou o primeiro volume. Siga para o segundo.

Contos anteriores deste livro:

Glen Cook: Mar Sereno

Escrever nem ciência é, muito menos é exata. Às vezes as coisas começam por correr mal e acabam por correr bem, outras vezes há altos e baixos vários ao longo da narrativa, outras vezes corre-se o risco de dar ao leitor a ideia que os textos são uma coisa quando na realidade são outra, de outras começam a correr bem e acabam a correr mal. Desconfio que neste Mar Sereno (bibliografia) Glen Cook padeceu de uma mistura destes dois últimos efeitos. É que a noveleta começa francamente interessante, mas esse interesse não dura até ao fim.

Estamos num planeta longínquo. Um mundo aquático, praticamente desprovido de terra emersa mas com alguns baixios. E vida indígena, incluindo pelo menos uma espécie que parece dotada de alguma inteligência. Aí, desenvolve-se uma civilização humana, composta pelos descendentes longínquos dos tripulantes de uma nave que, não se sabe bem porquê, se despenhou no planeta, os quais agora vagueiam pelo vasto oceano numa frota de navios. Veleiros. Mantêm-se no limiar da sobrevivência, basicamente pescando para terem o que comer. E repelindo ataques dos mais perigosos membros da fauna local.

Um ambiente francamente interessante, portanto. Mas a ele acrescenta-se um náufrago recente, um homem cuja nave se despenhara apenas alguns anos antes, e que vive com os humanos do planeta mas continua a ser estrangeiro, inábil nas técnicas que eles desenvolveram para sobreviver, tolerado apenas porque o clero local o considera importante e porque desenvolveu uma espécie de amizade com alguns dos tripulantes do navio em que viaja. E assim as coisas ficam ainda mais interessantes.

Mas depois, em vez de explorar bem este cenário, Cook usa-o apenas para uma aventurazinha de ação com reminiscências das 20.000 Léguas Submarinas de Jules Verne, nomeadamente do combate entre as forças do Capitão Nemo e os polvos gigantes, misturada com elementos de space opera. É que o homem era procurado por uma espécie qualquer de bandidos espaciais e estes tinham estado em contacto com a casta dos sacerdotes, os quais lhes revelam a existência dele. E tudo acaba sem glória nem grande interesse, numa FCzinha inconsequente que tinha potencial para ser muito melhor.

Detesto quando isto acontece.

O facebook e a censura

«Ze ultra-right groupz muscht have freedom auf expressiohn, aba boobz und sarcazm are schtricktly verbotten!»
Há longos anos, desde muito antes do escândalo da Cambridge Analytica, empresa que se dedicava a recolher e tratar dados de utilizadores do Facebook para alimentar a máquina de propaganda da extrema-direita internacional, e continuando depois praticamente sem quaisquer freios, que o Facebook e as suas subsidiárias, especialmente o Whatsapp mas também o Instagram, funciona alegremente e sem freios como veículo para a disseminação da propaganda de extrema-direita, com influência direta em resultados eleitorais um pouco por todo o mundo, com a eleição do Trump e do Bolsonaro à cabeça.

Todos os dias, todas as horas, arriscar-me-ia mesmo a dizer todos os minutos, o lixo xenófobo e racista, as notícias falsas mais ou menos caluniosas, os memes mentirosos, são publicados e distribuídos sem qualquer travão. Páginas universalmente reconhecidas como propagadoras desse tipo de lixo mantêm a sua atividade há anos sem percalços. Denúncias caem sistematicamente em saco roto; o facebook não vê nelas nada de errado. Quem as procurar facilmente as encontra; há listas delas, feitas por jornalistas que investigaram esse género de propaganda fascista e as suas ligações e financiamentos. Está tudo no facebook, tão à vontade como se estivesse numa esplanada dos tempos pré-covid.

E não estou aqui a falar dos idiotas úteis que repetem estas coisas, sempre indignadíssimos e a espumar pela boca. Estou a falar de operações de propaganda de extrema-direita friamente calculadas, devidamente financiadas, a operar livremente no facebook enquanto este olha para o outro lado.

Mas para que lado, ao certo? E porquê?

Quanto ao lado, posso contar uma historinha que se passou comigo. Foi-se desenvolvendo durante anos mas teve um primeiro desenlace há umas semanas.

Começou com esta imagem:


Esta fotografia é um documento histórico. Parte de uma série de três (julgo eu), representa Mário Soares, então Presidente da República Portuguesa, a sua mulher, Maria Barroso, e uma banhista em topless que o casal encontrou na praia e com quem trocou umas palavras. Foi tirada pelo fotógrafo que acompanhava o presidente, portanto com pleno conhecimento e consentimento de todos os envolvidos, veio publicada na imprensa e é um documento histórico porque é das imagens mais eficazes que conheço a retratar um estilo descontraído de presidência e uma época. O conteúdo sexual é rigorosamente igual a zero. E apesar de tudo isto...

... o facebook baniu-a.

Porque, que horror, tem mamas!

Sim, que no reino do facebook o discurso de ódio tem rédea livre mas ai de quem publique alguma foto com (glup!) mamas! E assim se apaga a história. E assim se apaga a cultura de povos inteiros que não têm os provincianos pudores puritanos dos americanos, numa atitude não só desrespeitosa, não só profundamente sexista (os homens podem aparecer seminus à vontade, as mulheres têm de se tapar) como profundamente racista. E não estou a ser hiperbólico: um amigo meu, angolano, teve problemas com o facebook por partilhar imagens de uma cerimónia tradicional do seu povo. É schtricktly verbotten, ja. Nada de mamas, sem apelo nem agravo!

Depois, foi esta imagem:


Foi tirada por mim, no Festival Bang, porque me divertiu encontrar aquele orc a caminho da casa de banho. E é óbvio para qualquer pessoa que pelo menos tenha visto alguma propaganda dos filmes do Senhor dos Anéis ou do Hobbit que se trata de um orc.

Tendo achado piada à ideia (foi coisa da organização do Festival Bang, certamente), resolvi pô-la nas redes sociais com uma legenda que lhe acrescentava um bocadinho mais de ironia, fazendo referência a uma canção do Miguel Araújo que na altura passava por tudo quanto era rádio, «Os Maridos das Outras»
Eh pá, tá certo que toda a gente sabe que os homens são uns animais, mas isto é um exagero!
O facebook não gostou. Baniu-me a foto com o argumento de que violava as regras referentes ao discurso de ódio.

E eu fiquei absolutamente boquiaberto. Que raio tem uma foto de uma piada com um orc e uma casa de banho a ver com discurso de ódio?! Ou uma outra piada relativa a uma canção?! Especialmente quando o mais puro ódio xenófobo, racista e sexista é destilado todos os dias nas páginas do facebook, com a mais absoluta complacência de quem as gere?

Depois de meses a lembrar-me de vez em quando desta coisa sem sentido e a pensar no que poderia tê-la causado, cheguei a uma tentativa de explicação, mas o grau de racismo por parte do facebook necessário para que seja verdadeira é tão gigantesco que não quero crer na sua veracidade. A única explicação que me ocorreu foi algum racista empedernido, lá nas catacumbas do facebook, ter achado que o orc era um negro. O que seria... sei lá. Imbecil? Nojento? Asqueroso?

Fiquemo-nos por inqualificável.

A última foi esta:


Trata-se de uma publicação da Manuela d'Ávila, ex-candidata a vice-presidente do Brasil, na qual ela chama ironicamente a atenção para o caráter arianíssimo das criancinhas que o governo neonazi do Bolsonaro escolheu para um cartaz de exaltação do orgulho patriótico. Se num país europeu isto já seria racista, num país como o Brasil, feito de miscigenações múltiplas, tanto voluntárias como forçadas, rebenta a escala do racismo.

Cometi a imprudência de usar de sarcasmo, chamando nazi ao que é nazi com uma citação do hino nazi. Suponho que seja por isso que o facebook voltou a banir a foto, de novo sob o argumento de que era discurso de ódio. Na verdade é precisamente o inverso de discurso de ódio, mas para o compreender é forçoso que exista um cérebro funcional, e isso talvez seja pedir demasiado lá por aquelas bandas.

De modo que o facebook me baniu durante 24 horas e me impôs mais umas quantas limitações, supostamente porque eu atingi as 5 violações aos termos e condições. Contaram-nas? São três, não são? Pois, também me parece que são três. Mas eles teimam que são cinco, e pode-se contestar à vontade que de nada serve. Ou há algum bug no programa, o que não é de excluir, ou então estamos no reino da mais absoluta arbitrariedade, um reino surrealista em que se chama discurso de ódio ao que é o oposto e em que cinco é três e três é cinco. Como no 1984 do Orwell, guerra é paz.

E entretanto, os verdadeiros grupos de ódio continuam a destilá-lo com total impunidade. Provavelmente porque guerra é paz. O verdadeiro racismo continua a ser destilado completamente à vontade, com raríssimas e muito publicitadas exceções, para se mostrar que se faz alguma coisa. Só para testar as águas, enquanto escrevia este texto resolvi denunciar uma publicação clarissimamente racista. Um indivíduo, num grupo que não é de fascistas e racistas, mas onde fascistas e racistas costumam sentir-se à vontade, achou por bem divulgar um vídeo de um negro a partir coisas, sabe-se lá feito onde e quando, com o ternurento comentário de "a culpa é dos brancos porque os foram tirar da selva". Denunciei este asco, e o facebook foi lesto a dizer-me que não via aqui mal algum. E como este existem aos milhares.

Mas mamas? Piadas? Sarcasmo antifascista? É proibido. Porque guerra é paz.

Ou se calhar porque o negócio do facebook, uma empresa que não paga impostos, com lucros milionários ganhos com base na venda de dados dos utilizadores, depende da promoção do fascismo na rede porque são os fascistas que lhe compram os dados. Isso foi óbvio no caso da Cambridge Analytica, talvez demasiado óbvio, mas só alguém muito ingénuo pensará que esse caso serviu de emenda para alguma coisa. Terá, quando muito, avisado os tubarões para serem menos óbvios, mas mais do que isso? Nem pouco mais ou menos.

O facebook devia ser destruído. Pura e simplesmente. No seu lugar devia criar-se uma rede de redes sem monopólios, intermodal e interligada, cuja infraestrutura fosse gerida por alguma associação sem fins lucrativos, constituída mais ou menos nos moldes do W3C. Uma rede a que uma série de pequenas e médias redes sociais pudessem ligar-se, permitindo a cada utilizador escolher a que prefere sem por isso perder o acesso aos seus amigos que prefiram outras.

Há empresas que são too large to fail, segundo parece. O facebook é too large to exist.

E demasiado facho, também.

Guy de Maupassant: Quem Sabe?

Tenho deixado por aqui ao longo dos anos várias expressões do meu apreço pela ficção de Guy de Maupassant e por isso foi na expetativa de encontrar mais uma história muito boa que peguei neste Quem Sabe? (bibliografia). E de facto o conto que encontrei nada deve à imaginação e é contado com a mão segura de um escritor que sabe perfeitamente o que está a fazer e porquê. E no entanto, este não foi dos seus contos que mais me agradaram.

O problema são os clichés. Talvez nem seja propriamente culpa de Maupassant, pois em 1890 as características mais banais deste conto ainda estavam longe de ficar tão irremediavelmente gastas como estão hoje em dia, mas a experiência de leitura raramente se compadece desses detalhes cronológicos, por mais que intelectualmente se dê o desconto que lhes é devido. E o protagonista enlouquecido porque algo de sobrenatural lhe acontece é, hoje, um cliché irremediável.

Por outro lado, o que de sobrenatural acontece ao protagonista é não só interessante como engraçado. Está o pobre um belo dia a desfrutar da amenidade de uma noite em que saíra para assistir a um espetáculo quando, ao chegar perto da sua casa, começa a ouvir uma sucessão de estranhos estrondos vindos do interior. Temerosamente, abre a porta e... e é forçado a esconder-se porque todo o recheio da sua casa — objetos pelos quais ele nutria especial carinho, ainda por cima — decide ir-se embora, sair porta fora e desaparecer na noite.

Assombrado e atemorizado pelo espetáculo, temendo ter enlouquecido, o homem lá se resigna a participar "o roubo" às autoridades, as quais naturalmente não encontram nenhuma pista. Ele tenta, pois, voltar à sua vida, mas um dia descobre as suas coisas à venda numa misteriosa loja. Confronta o dono, corre à polícia para que esta prenda o homem, mas a polícia vai dar com a loja vazia. De novo abananado, o protagonista volta para casa. E aí acha-a de novo cheia com o mesmo mobiliário que tinha saído pelo seu pé algum tempo antes. E o homem passa-se de vez.

Tudo isto é imaginativo, até engraçado, e o conto está tão bem escrito como seria de esperar de Maupassant, o que faz com que, apesar dos clichés e de conter daqueles exageros sentimentais tão típicos de oitocentos, não possa considerá-lo outra coisa que não seja bom. Mas a verdade é que não gostei muito dele.

A culpa é dos "apesares".

Textos anteriores deste livro:

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Rachel Pollak: Mania de Grandeza Universal

Como acontece em quase todas as antologias, há uma ou outra história que não atinge um patamar de qualidade equiparável às restantes. Aqui já tivemos várias que ficaram na minha avaliação abaixo das melhores, mas em muitas dessas reconheço que o meu gosto pessoal influenciou essa avaliação, geralmente por preferir histórias propriamente ditas aos exercícios pseudofactuais mais ou menos borgesianos. O caso da Mania de Grandeza Universal (bibliografia) de Rachel Pollak parece-me diferente: é um caso de uma história objetivamente fraca, que no confronto com o meu gosto piora mais um pouco. Para mim, este conto é mau.

Imaginação basicamente não há. Pollak trata os resultados das investigações científicas sobre tudo o que não seja visível com as limitações do olho humano como sintomas da tal mania da grandeza e as instituições que as promovem como centros de contágio. E é isto; assim que o leitor se apercebe de que a ideia é esta, e apercebe-se quase imediatamente, está tudo compreendido, pois não existe qualquer surpresa no desenvolvimento. Ideia que, ainda por cima, é a mais tola que já apareceu nestas páginas. Pode ser que ainda venha a surgir alguma mais pateta, mas parece-me difícil. E quando a isso acresce um texto que se limita à descrição da "doença", sem lhe associar alguma coisa que se pareça com uma história, estão os ingredientes a postos para criar aquele que é, de longe, o pior texto do livro até ao momento.

Textos anteriores deste livro:

Mais "meus"? Mais "meus"!

Não sei se repararam, que a coisa tem sido discreta e quem não esteja mesmo muito atento mal nota, mas temos por aí uma epidemiazita.

Graças a ela, houve uma série de mudanças na subsistência das pessoas. Malta ficou sem emprego, malta ficou sem trabalho (não, não é a mesma coisa), fecharam lojas, supermercados e centros comerciais. E fecharam livrarias. E mesmo agora, que estão a reabrir, ainda o fazem só a meio gás.

As consequências que isso teve para a vida das editoras foram sérias. As mais comuns foram a suspensão dos lançamentos agendados e a reformulação dos planos editoriais. Há de haver livros que vão ficar por publicar, mas outros são publicados na mesma, embora mais tarde do que estava previsto.

É o caso destes dois, mais duas das reedições especiais dos livros d'As Crónicas de Gelo e Fogo do George R. R. Martin. O Festim dos Corvos é o sétimo volume, O Mar de Ferro é o oitavo, e ambos saíram por estes dias. E mais uma vez, em ambos, as sobrecapas são um espetáculo à parte, um autêntico jogo de "descubra a referência" num estilo visual diretamente inspirado pelas iluminuras dos manuscritos medievais.

Eu babo sempre que vejo uma destas capas, já vos tinha dito? É que estão todas do caraças. É o termo técnico: do caraças.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Charles Nodier: As Aventuras de Thibaud de la Jacquière

Olha-se para um título como As Aventuras de Thibaud de la Jacquière (bibliografia) e, sem qualquer informação adicional, pode julgar-se estar perante uma movimentada história de aventuras, possivelmente em quaisquer paragens longínquas. Essa ideia sofrerá um pequeno abalo quando se souber que o autor da história é Charles Nodier, pois essa não era muito a sua onda, e um abanão maior quando se sabe que se trata de um conto curto, extensão que não dá para grandes aventuras. Lendo, desfaz-se o que restar da ilusão.

Trata-se na verdade de um conto moral, cautelar, sobre um jovem estroina que, sem se dar realmente conta do que faz, num momento de irreflexão, vende a alma ao diabo. E paga o preço por isso, claro. Parte do conto é gasto a caracterizar o protagonista e a vida dissoluta que levava, arrancando o enredo verdadeiro quando ele se afirma disposto a empenhar a vida em troca de companhia feminina, para desagrado dos amigos, que não eram tão dissolutos como ele. Surge então uma beldade, e o resto é o que facilmente se adivinha.

Este é um conto razoável que não me parece que passe muito disso. Não pela beatice, que pessoalmente dispensava mas acho totalmente espectável dada a época e o tema, mas por o achar demasiado previsível, embora muito bem escrito. De facto, e pensando melhor, está tão bem escrito que talvez chegue mesmo a ser bom. Mas não me agradou por aí além.

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John Crowley: O Manuscrito Perdido de Lord Byron

Em 1815, o Monte Tambora, na Indonésia, entrou violentamente em erupção. A violência foi tal que o clima do planeta sofreu alterações profundas e esse ano ficou conhecido na Europa como o ano sem verão. Por coincidência, 1815 foi também o ano em que um grupo de jovens aristocratas ingleses resolveu passar o verão em conjunto nas margens do lago Leman, na Suíça. Entre estes contava-se Mary Wollstonecraft Godwin, então ainda solteira, o poeta Percy Shelley, que viria a casar com ela mudando-lhe o nome para Mary Shelley, o escritor John Polidori e o poeta George Gordon Byron, mais conhecido como Lord Byron.

Segundo reza a história, o péssimo tempo daquele verão que não o foi levou o grupo a manter-se dentro de casa e terá sido o Lord Byron a propor que, para passarem o tempo cada um escrevesse uma história de fantasmas. Nenhuma história de fantasmas acabou por ser produzida, mas isso não quer dizer que a ideia fosse infrutífera. Pelo contrário. Mary Shelley escreveu o início do que viria a ser a sua obra-prima, o romance Frankenstein. E Byron escreveu um fragmento de uma história de vampiros que viria mais tarde a ser usado por Polidori para escrever o conto que daria origem a todo o subgénero dos vampiros.

E que tem isto a ver com John Crowley?

Bastante. É que Crowley parte do seguinte "e se?": E se Byron tivesse de facto escrito um romance inteiro? Talvez durante esse período, talvez só começado durante esse período, como aconteceu com o de Shelley, talvez mais tarde. Mas e se o romance tivesse mesmo existido? E se tivesse estado perdido durante praticamente dois séculos, sendo redescoberto recentemente? Ora é esse, precisamente, O Manuscrito Perdido de Lord Byron.

Mas este livro não se limita a mimetizar o romance (incompleto?) de Byron. Isso, criar um pastiche credível de algo escrito em prosa por alguém que ficou conhecido basicamente como poeta, já teria sido um feito relevante. Mas Crowley vai além do pastiche, contando concomitantemente outras duas histórias: a história da relação problemática entre Byron e a sua filha, a não menos famosa Ada Lovelace, e a história da descoberta e decifração do romance de Byron.

(Consta que o pastiche não é muito credível, que o estilo de Byron não está particularmente bem imitado. Eu deixei-me levar por ele; pode não ser exatamente o que Byron teria escrito e como o teria escrito, mas é totalmente oitocentista.)

E fá-lo interligando profundamente as três histórias. O romance de Byron é parcialmente autobiográfico (ou, melhor dizendo, biográfico), contando uma história de paternidade ausente e amores volúveis. O progatonista é Ali, filho ilegítimo de um tal Lord Sane e de uma mulher albanesa, criado na sua Albânia natal até que o pai — um aventureiro e criminoso falido, frequentador de todos os submundos — o vem buscar, no final da infância. Porquê? Por não ter herdeiros legítimos e ver nele a única possibilidade do título e as propriedades ficarem na família.

Ali desenvolve-se então na Grã-Bretanha, fazendo o pai questão de que tenha uma educação e vida de nobre inglês, independentemente da sua condição financeira e social. Isso inclui, claro, uma passagem por escolas de prestígio, e esta passagem inclui, evidentemente, a boémia típica do meio. Acontece o despertar da sexualidade, sugestões de bissexualidade (e sim, Byron foi bissexual), por aí fora, até tudo ser interrompido pelo assassinato do pai de Ali, em circunstâncias misteriosas. Preso, acusado de um crime que não cometeu, Ali vê-se surpreendentemente libertado da cadeia por um zombie negro, o que constitui a principal aparição do fantástico neste livro (em todo ele, pois fora do manuscrito de Byron não há qualquer fantástico), e depois levado no barco de uns contrabandistas irlandeses para fora da Grã-Bretanha. Anos mais tarde regressa, após ter contribuído para uma importante vitória britânica na Guerra Peninsular, em solo espanhol, é julgado e absolvido, e acaba por casar e gerar uma filha, só para partir mais uma vez para o estrangeiro, abandonando a mulher e a filha, terminando o romance mais ou menos em aberto. Há quem critique o facto de este não estar particularmente bem estruturado. E não está. Mas o pressuposto é que se trata de uma primeira versão, escrita ao correr da pena, não destinada a publicação. Dificilmente seria um romance perfeito.

E de resto, o romance é um meio para um fim. Tudo nele é usado para contar a história de Byron e da sua relação com a família, por intermédio de notas que a filha, Ada Lovelace, acrescenta ao manuscrito. Eu geralmente não gosto nada de notas de rodapé — ou, como neste caso, de fim de capítulo — porque as acho intrusivas e de uma forma geral inúteis pois ora nada trazem de realmente relevante, ora o que trazem pode com vantagem ser incluído no texto principal. Mas neste caso as notas são usadas para pôr uma segunda história por cima da primeira e usar esta como fio condutor para contar a segunda. E Crowley fá-lo magnificamente bem, numa execução literária brilhante.

Depois, há a terceira história, contada de forma epistolar (sendo as epístolas mensagens de email) em capítulos que de vez em quando interrompem o romance de Byron. Aqui relata-se a história da descoberta do romance e da sua decifração, pois Ada, influenciada pelo amigo Charles Babbage, teria cifrado o romance para o salvar da destruição, numa longa tabela numérica que um pequeno grupo de pessoas recebe das mãos de uma personagem misteriosa e vai depois tentar (e conseguir) decifrar.

A protagonista deste grupo é uma americana chamada Alexandra "Smith" Novak, que vai a Inglaterra para ajudar a elaborar um site dedicado a Ada Lovelace. É ela quem recebe os papéis de Ada e, entre estes, as folhas cifradas contendo o manuscrito de Byron. Com a ajuda da namorada, académica e matemática, e do pai, um antigo estudioso de Byron, a viver no estrangeiro para escapar aos tribunais, consegue trazer à luz o romance perdido e ao mesmo tempo reata o contacto com o pai distante.

E este, o pai distante, é outro tema comum do romance. Todos os pais aqui são homens distantes, defeituosos, talvez mesmo criminosos, a braços com a justiça. Crowley percorre caminhos arriscados, aflorando temas quentes como o abuso sexual ou a pedofilia, e correndo o risco de despertar acusações de não ser suficientemente condenatório. O livro é por vezes imcómodo, em parte por isso, mas quem disse que a literatura tem de ser cómoda?

Este livro surpreendeu-me. Surpreendeu-me por me ter levado a gostar tanto, estando tão distante do tipo de literatura que mais costuma agradar-me. Surpreendeu-me por nunca me ter aborrecido. Surpreendeu-me por me ter mostrado as suas falhas e mesmo assim ter mantido o encanto intacto. Gostei muito dele, mesmo. Surpreendentemente.

Este livro foi comprado.

John Coulthart: Mal dos Tipógrafos

A ficção literária, digamos, "normal", para não estar a perder demasiado tempo à procura de um termo melhor, precisa apenas de texto para criar o efeito pretendido. A sequência de palavras e a sua organização em frases e parágrafos bastam. Mas há algumas obras que precisam de mais: uma paginação específica, por exemplo, ou tipos de letra particulares, coisas dessas. Este Mal dos Tipógrafos (bibliografia) é uma dessas obras.

John Coulthart, além disso, é daqueles autores que criam mesmo uma história em vez de se limitarem a descrever a doença que imaginaram. Esta é uma parasitose fatal, provocada por uma espécie de bolor que gosta particularmente de celulose e forma manchas características nas páginas que afeta. Um bolor que infeta as pessoas que entram em contacto com ele. E vocês, que são espertinhos, já estão a perceber onde entra a paginação na criação plena do efeito pretendido pela história. É que uma coisa é lê-la em páginas normais, limpas de tudo o que não seja caracteres. Funciona, mas de forma razoavelmente distante. Outra coisa bem diferente é lê-la em páginas manchadas e com sinais de esborratamento de tinta. Bolorentas, em suma. Páginas em que o leitor tem de tocar para passar à próxima.

Esta é mais uma historinha francamente boa. Não só em si mesma, mas também porque funciona como um comentário irónico às polémicas que se têm levantado nos últimos anos sobre a leitura eletrónica. Uma história que exige ser bem editada, e em papel, para resultar em pleno. E foi.

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domingo, 14 de junho de 2020

Irmãos Grimm: O Ladrão e o Seu Mestre

É curioso, este O Ladrão e o Seu Mestre. Não por ter grande mão dos Irmãos Grimm, pois parece não ter, também não por ser particularmente invulgar no contexto dos contos populares, pois não é, mas pelo modo como o ladrão se torna ladrão. É que o pai, homem bom e temente a deus, vai à igreja perguntar à divindade qual o ofício a que deve dedicar a vida do filho, e é o próprio sacristão que lhe sussurra "ladrão". Temos assim, pois, um jovem que se torna ladrão não tanto por intervenção divina, talvez, mas por intervenção eclesiástica. Não está mal como ironia.

De resto, o conto não tem muito interesse. É um daqueles contos com muito de lengalenga, sempre em grupos de três, e conta o modo como o ladrão vai tornar-se aprendiz de um mestre-ladrão, o qual não se limita a roubar segundo as artes terrenas de todos os ladrões mas usa também artes mágicas, e depois como o suplanta, num enredo que inclui um variado leque de traições e deslealdades. Nada de transcendente. Mas podia ser usado como esqueleto ou inspiração para um conto interessante.

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Iain Rowan: Lubricidade de Pentzler

O aspeto mais curioso desta doença inventada por Iain Rowan é ser descrita sob a perspetiva de um charlatão que, ao descrevê-la, procura capitalizar com um "tratamento" de sua autoria, ao mesmo tempo que lança violentamente veneno contra todos os que se atreveram a tentar desacreditá-lo. Mas a Lubricidade de Pentzler (bibliografia) em si mesma não tem nada de especial. Está muito longe de ser a mais imaginativa das doenças aqui descritas, resumindo-se a uma forma extrema e fatal de satiríase, uma doença inteiramente real, com os mesmos sintomas, ainda que aqui eles venham exagerados. O resultado é um conto divertido graças à personagem criada por Rowan, mas com um interesse bastante relativo.

Textos anteriores deste livro:

Leiturtugas #62

Coisas razoavelmente caóticas são assim: variam. E a leitura de FC e fantástico é caótica por natureza, visto que cada leitor tem completa autonomia para decidir se e quando lê e o quê. Portanto não deverá ser surpresa para ninguém que um projeto como o das Leiturtugas tenha semanas, e por vezes meses inteiros, de completa paragem, para depois de repente se encher de atividade. E no entanto, apesar de saber disto, eu ainda me surpreendo.

É que esta semana começou, mais uma vez, com a Cristina Alves, e de novo com BD, através da opinião que ela publicou sobre o álbum Sentinel, de Luís Louro. Edição da Asa. Sendo BD, conta como "sem FC", pelo que a Cristina passa a 0c6s.

Depois, a Maria veio-me avisar de algo que me tinha passado despercebido: ela já tinha publicado, ainda em maio, a sua opinião sobre o célebre Terrarium da dupla João Barreiros e Luís Filipe Silva. A edição que leu foi a da Saída de Emergência. É um livro de FC, claro, pelo que a Maria se estreia no ano com 1c0s.

A seguir foi a vez do Artur Coelho publicar mais uma opinião sobre FC portuguesa, desta feita sobre o livro Sally de um tal Jorge Candeias. Sim, aquele que ganhou no sorteio de abril. É uma edição da Colibri, e o Artur passa assim a 2c4s.

O mesmo Jorge Candeias, moi même, também teve a sua/minha participação na abundância da semana, graças à opinião publicada sobre a antologia Talentos Fantásticos, organizada por Carlos Lopes e publicada pela edita-me. É um livro que tem FC, embora não muita e nem toda portuguesa. Mas tem, pelo que as minhas sinalefas passam a 2c2s.

Por fim, quase a fechar a semana a Cristina Alves volta à carga, opinando desta feita sobre um conto de Marta Afonso, intitulado Senhora da Boa Hora e publicado na Antologia de Ficção Especulativa Queer. E mesmo a fechar a semana publicou mais uma opinião sobre outro conto da mesma antologia: Contenção de Custos, de Inês Montenegro. O primeiro é um conto de FC, o segundo é fantasia urbana, sem FC, portanto, pelo que as sinalefas da Cristina passam a ser 1c7s.

sábado, 13 de junho de 2020

António Bettencourt Viana: O Incesto Original

Eça de Queirós parece ter tido uma grande influência sobre António Bettencourt Viana. Não que o estilo literário se lhe assemelhe ou os temas sejam de uma forma geral particularmente afins, mas a publicação de O Defunto nesta antologia, imediatamente seguida por este O Incesto Original (bibliografia) dão fortes indicações de que Viana é um grande fã do escritor oitocentista.

Infelizmente, a condição de fã nem sempre é boa conselheira.

E isso é exemplarmente revelado com este conto, que Viana assume ser uma espécie de atualização do conto bíblico de Eça Adão e Eva no Paraíso. O problema é que Viana não tenta ser profundo como Eça é, limitando-se a contar uma história de génese da humanidade sem tocar em quase nada que vá um pouco além da evolução propriamente dita. Onde Eça discute a condição humana no mundo civilizado, Viana limita-se a divagar um pouco sobre a condição de pária que tende a cair sobre aqueles que são diferentes da norma. Não se trata propriamente de um vazio de conteúdo, mas é um conteúdo significativamente menos interessante e relevante.

Mas o pior nem é isso. Eça não tenta apoiar-se na ciência, contando uma história de fundo bíblico com muito poucas alterações à lenda que ultrapassem questões de interpretação. Viana, pelo contrário, tenta apoiar-se na ciência, enchendo o seu conto de pormenores relacionados com o ADN australopiteco e humano. O problema é que a ciência que usa é muito, muito má, reduzindo toda a enorme variedade da árvore genealógica humana a uma dualidade australopiteco-homem que já está desacreditada há longas décadas, entre vários outros disparates. E isso, que podia não ser particularmente grave num autor que não tivesse a ambição de usar pedagogicamente as suas ficções (e desde que o resto compensasse), num autor como Viana, que a tem, é suficiente para aconselhar-se a esquecer que este conto existe.

Mesmo que o resto compensasse. Mesmo que o enredo e a escrita fossem realmente bons. E não compensa. A história é aborrecida e tornada desconexa pelas longas tentativas mais ou menos atabalhoadas de fornecer explicações científicas que não fazem grande sentido, e o português é correto mas daí não passa, o que de resto é imagem de marca do estilo "asimoviano" de fazer FC, corrente em que Viana claramente se insere.

Este é o pior conto da coletânea até agora. De longe.

Contos anteriores deste livro:

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Mia Couto: A Velha e a Aranha

Mais um dos belos contos fantásticos de Mia Couto, e também mais um dos seus contos de guerra e morte, este A Velha e a Aranha tem como protagonista uma velha mãe que espera o regresso do seu filho da guerra. Civil, presume-se. O leitor acompanha brevemente o frenesim de preparativos da velha, e o momento em que as coisas mudam, quando ela encontra uma teia e uma aranha. No desfecho, surge a magia a dar-nos conta de que os preparativos da mãe foram em vão e da guerra só regressou um fantasma ou as botas de um fantasma. E a velha, encasulada.

É mais um conto magnífico, este. Mia Couto domina a arte da narrativa breve como poucos, e é como poucos capaz de insuflar uma série de camadas de significados numa historinha de duas páginas. Esta é uma história sobre o amor maternal, sobre a guerra e as suas consequências, sobre a vida e a morte. Em duas páginas.

Contos anteriores deste livro:

Francisco Ruiz e Santiago Exímeno (eds.): Qliphoth, nº 1

Sim, ainda ando a vasculhar aquelas primeiras publicações eletrónicas que tenho vindo a acumular no meu disco rígido não propriamente desde que o mundo é mundo, mas às vezes dá a impressão de que quase. Aquelas publicações que fiquei à espera de conseguir ler de forma cómoda, o que só aconteceu quando arranjei um tablet, mais de uma década depois de muitas delas terem vindo cá parar. Esta é uma dessas publicações.

Trata-se de um fanzine espanhol dedicado ao fantástico de base mitológica. O nome da publicação, Qliphoth, apesar da sonoridade lovecraftiana, é na realidade um termo cabalístico (em grafia inglesa), e estes anos todos depois já não me lembro de como este número 1 me veio parar às mãos. Terá sido distribuído por um dos fóruns espanhóis que eu frequentei durante algum tempo, provavelmente. Sei que se publicaram 21 números até 2007, além de um número zero, que este data de dezembro de 2001, e que tenho este número e o número 2.

A ideia da publicação é interessante, embora corra o risco de resultar em algo demasiado afunilado. Suspeito que em Portugal nunca resultaria; se nem fanzines generalistas de FC&F com alguma longevidade tivemos, tendo todos os que houve fechado ao fim de poucos números, muito menos conseguiríamos manter um com este tipo de restrições. Em Espanha, pelo contrário, resultou. E este número, estando longe de ser algo de transcendente, não deixa de ter o seu interesse, contendo um conto bom, outro que está quase a sê-lo e um conto e um poema que me deixaram mal impressionado. Completa a edição um artigo sobre a natureza e utilidade do sacrifício que, partindo de alguma informação correta sobre os sacrifícios em certas culturas que os praticavam, avança para umas ideias que fedem a extrema-direita pura e dura por todos os lados. Muitíssimo dispensável. Mas o conto do Madrigal faz com que a edição valha a pena.

Eis o que achei dos contos e do poema:

J. Topham: Logopetria

Peça-se a escritores para inventar doenças e é certo e sabido que uma porção desproporcionada dessas doenças vai ter qualquer coisa a ver com a linguagem, a escrita ou os livros. Já vimos neste livro vários casos, sendo o último o da Lassitude Poética, e aqui está mais um. E este é particularmente interessante. É que a ideia de J. Topham é magnificamente imaginativa.

A Logopetria (bibliografia) é um curioso problema médico que afeta o discurso. Como? Bem... os pacientes são incapazes de falar. Ou por outra, a fala deles não resulta na produção de sons, como a das pessoas saudáveis, mas na produção de sólidos. De pedras. E partindo desta ideia, Topham conta uma série de histórias sobre vários casos clínicos, alguns razoavelmente terríveis, outros francamente divertidos, e outros ainda a combinar ambas as características. O resultado é um conto muito bom, que alia a qualidade da ideia a uma execução que nada deixa a desejar.

Textos anteriores deste livro:

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Carlos Lopes (org.): Talentos Fantásticos (#leiturtugas)

Da mesma forma que a mais básica qualidade de quem quer aparafusar um objeto ou uma peça a outra é saber que instrumento usar para esse fim, digamos uma chave de fendas, em que ponta pegar, como introduzir a outra ponta na ranhura do parafuso e como e durante quanto tempo tem de girar chave e parafuso até este ficar devidamente atarrachado, assim a mais básica qualidade de quem quer escrever é saber minimamente como e de que forma terá de organizar palavras e sinais de pontuação em frases e parágrafos que façam sentido e contribuam para o todo. Sem isso, nem a melhor ideia se salva. Sem isso, nada feito.

E de igual forma, a mais básica qualidade de quem quer organizar antologias é saber como proteger leitores e autores do desagrado e do embaraço de apresentar ao público coisas mal amanhadas, toscas, coxas, demasiado amadoras.

E é precisamente por isso que esta Talentos Fantásticos (bibliografia) é uma péssima antologia, claramente a pior antologia portuguesa de FC&F que eu li até hoje. Não sabendo como se desenrolou o trabalho, não sei se a culpa é de Carlos Lopes, mas é ele que dá a cara pelo projeto, pelo que a responsabilidade última é sua.

Note-se que a antologia ser péssima não é apenas consequência da qualidade dos textos que a compõem. Na verdade, esta antologia é significativamente pior que a soma dos textos que contém, porque a sua elaboração revela um descaso, uma falta de cuidado, uma incompetência que nenhum dos contos e poemas bons ou meramente interessantes que aqui se encontram mereceria. O mínimo dos mínimos que se exigiria era mais critério na seleção, para deixar de fora os dois punhados de textos péssimos que aqui aparecem, e algo que se assemelhasse a uma revisão, que expurgasse o livro de erros toscos de português, ortográficos, de pontuação. Mas não houve nem critério nem revisão.

Se tivesse havido revisão, e especialmente se ela fosse cuidada e incidisse não só sobre a ortografia e a pontuação mas também sobre a fraca construção de algumas frases, uma quantidade razoável dos contos (sobretudo) melhorariam significativamente. Como digo acima, isso protegeria leitores, da leitura de coisas mal feitas, e autores, poupando-os a certos embaraços. E é algo que qualquer edição com algum profissionalismo inclui. Todos os autores cometem erros; também cabe ao editor encontrar esses erros antes de virem impressos em letra de imprensa.

Quanto ao critério, a conversa é mais complicada. Há quem ache que qualquer oportunidade para publicar qualquer coisa é inerentemente bem-vinda e que a rejeição corta as pernas a autores com potencial, os quais acabam por não desenvolver esse potencial porque foram rejeitados. Bem, julgo que basta olhar para esta antologia e para os piores textos que contém para perceber até que ponto esta ideia falha no confronto com a realidade, pois não tenho notícia de nenhum dos respetivos autores ter continuado a desenvolver-se nos anos que decorreram desde esta publicação. Entre os dos melhores textos ou daqueles que são razoavelmente fracos há vários, mas entre os que são mesmo maus? Nem um.

Mas a conversa sobre o critério é multifacetada e a questão dos contos maus é só parte dela. Há também a questão das boas ideias, ou pelo menos das ideias com potencial, que, porque a antologia parece só ter aceitado contos até umas três mil palavras, foram encafuadas à pressão em textos desse tamanho, caso contrário ficariam de fora. Esta não foi a primeira vez que isto aconteceu, longe disso, e de certeza que não será a última. Demasiadas oportunidades de publicação, entre nós, têm limites para a dimensão dos contos que são demasiado restritivos, e demasiados autores, ou candidatos a tal, estão tão desabituados de ler contos que não sabem bem que ideias dão um conto curto, que ideias precisam de mais espaço e que ideias são mais adequadas a romances. Que ideias e que forma de as desenvolver.

Pode argumentar-se que esses limites são um bom exercício para controlar uma certa tentação para a prolixidade que existe na literatura, e muito em especial na de fantasia, onde o padrão é a trilogia de calhamaços. Certo. Mas nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Há histórias que não cabem no conto curto, não são nada poucas, e um quinhão significativo destas histórias que aqui se encontram é precisamente assim. Até autores onde é visível o talento, quer este já comece a estar desenvolvido, quer ainda esteja apenas em potencial, caíram aqui na armadilha de espremer para dentro de um espartilho apertado histórias que suplicavam por um desenvolvimento maior.

Mais complicado é decidir se um antologista deve recusar este tipo de histórias quando estas lhe são apresentadas. Em tese, eu diria que sim. Não com uma recusa silenciosa, talvez, mas com uma recusa explicada, dizendo precisamente que a história tem potencial mas precisa de mais espaço para respirar. Mas isto é em tese. Na prática não há entre nós assim tantas oportunidades de publicação e por isso é compreensível não só que os autores se esfalfem para encaixar as suas ideias nos limites exigidos, bem ou mal, como também que os editores as aceitem mesmo quando não vêm com o tamanho que melhor serve a história.

O problema é que, embora isto seja compreensível, o que sofre é o resultado final. Incentivando os autores a desenvolver bem as suas ideias, uma antologia medíocre pode elevar-se até uma qualidade superior, mas se não faz nada por isso nunca deixará de ser medíocre. E isso tem consequências, quer para a fruição da leitura dos incautos que nela pegarem, quer para a evolução (ou não) dos autores que nela participarem.

E se é assim para uma antologia medíocre, mais assim é para uma antologia francamente má como esta, pois acrescenta a este problema os mencionados acima.

Sim, existem aqui textos mais que razoáveis, e até alguns bons. Sim, existem textos bem escritos. E sim, existem contos cujo tamanho se adequa bem à história que contam. Mas são tão poucos aqueles que reúnem estas três qualidades no meio de uma enorme lista de textos problemáticos, ou de textos francamente maus, que não conseguem fazer com que esta antologia valha a pena. Daqui, nada ficou para a história do fantástico português. Se algum dos autores cujas ideias têm mais potencial chegar a desenvolvê-la, talvez venha a ficar, mas se isso acontecer não será o que está publicado aqui a ser relevante, mas o que for publicado onde quer que acabe por sair.

E isto é o que penso da antologia como um todo. Se querem o que achei de cada um dos textos do livro, sigam estes links:
Este livro foi comprado.