Este Eucalyptus é mais um poema, longo, que me pareceu mais interessante do que o anterior, se bem que se Richard Simpson lhe tivesse tirado a organização em versos e estrofes e disposto as mesmíssimas palavras em frases e parágrafos, eu estaria aqui a falar de um conto e não de um poema, sem sequer sentir a necessidade de referir que a prosa é particularmente poética.
Simpson conta aqui uma história. Uma história nostálgica, aparentemente autobiográfica mas pode perfeitamente não o ser, sobre viagens pelas regiões ocidentais dos Estados Unidos nos anos 40 e pelos próprios anos 40, uma viagem de crescimento e descoberta, na qual o protagonista começa rapaz e termina pré-adulto. É uma história sobre aquilo a que os anglófonos chamam "coming of age", um conceito que é semelhante ao nosso amadurecimento mas não exatamente igual.
E também faz uma espécie de declaração de amor à música, e sobretudo ao jazz. Para isso só tenho aplausos.
Quanto ao poema enquanto objeto literário, posso dizer que gostei. Não muito, propriamente, mas gostei. Mas lá está: eu não percebo nada disto.
Textos anteriores desta publicação:
quarta-feira, 30 de novembro de 2022
terça-feira, 29 de novembro de 2022
Leiturtugas #180
Um dia e picos de atraso, e cá estamos de volta com mais um post de divulgação das Leiturtugas. E este é feito sobretudo de participantes oficiais.
Ou melhor, de uma participante oficial, a Cristina Alves. Temos nada menos que quatro posts dela a divulgar, ainda que nem todos sejam desta semana. Dois são; os outros dois são de semanas anteriores, posts em que ela se esqueceu de colocar a etiquetazinha das Leiturtugas, o que me levou a supor que não pretendia incluí-los nestas listas. Mas entretanto soube que pretendia, portanto aqui vão eles:
São dois posts de outubro, ambos sobre banda desenhada. O primeiro debruça-se sobre Uluru, de Marco Fraga da Silva, Matthieu Pereira e Sofia Pereira, uma edição deste ano da Tentáculo.
Já o segundo é sobre O Pescador de Memórias, álbum de Miguel Peres e Majory Yokomizo publicado no ano passado pela Kingpin Books.
Além destas opiniões atrasadas, a Cristina também nos brindou esta semana com mais duas. A primeira teve por alvo Periferia, um romance de Catarina Costa que venceu o Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal. O extraordinário é que é um livro de FC, ainda que para não nos enchermos de esperança há que reconhecer que as distopias de base mais ou menos alegórica até têm conseguido rebentar com alguma frequência a quarentena imposta ao género, sem que isso tenha grandes implicações para o género como um todo. É outra edição deste ano, esta da Guerra e Paz.
A segunda opinião que a Cristina nos apresenta esta semana regressa à BD, mais propriamente a Bestiário da Isa. Publicada também este ano pel'A Seita, esta é uma obra de Joana Afonso. Tudo somado, é um livro de FC e 3 de BD, que contam como sem FC. E é assim que a Cristina, depois de um longo deserto, passa de repente a 1c4s.
E quanto a participantes oficiais estamos conversados. Mas também houve oficiosos.
O primeiro a aparecer, ou antes, a primeira, foi a Maria João, trazendo-nos a sua opinião sobre um romance distópico que já surgiu por aí há muito pouco tempo. Do Outro Lado, edição deste ano da Suma de Letras, foi escrito por Mafalda Santos e sim, tem FC.
Por fim, quem nos traz o inevitável José Saramago é a Daniela. Opina ela sobre Todos os Nomes, um romance publicado originalmente em 1997 pela Caminho mas aqui lido numa das edições recentes da Porto Editora, e que é uma das menos fantásticas obras de Saramago. Tem a atmosfera e um detalhe ou outro de realismo mágico, mas fica-se por aí. No entanto, tem a atmosfera e os detalhes, pelo que conta. Não tem é FC nenhuma.
E é tudo. Para a semana há mais. Até lá.
Ou melhor, de uma participante oficial, a Cristina Alves. Temos nada menos que quatro posts dela a divulgar, ainda que nem todos sejam desta semana. Dois são; os outros dois são de semanas anteriores, posts em que ela se esqueceu de colocar a etiquetazinha das Leiturtugas, o que me levou a supor que não pretendia incluí-los nestas listas. Mas entretanto soube que pretendia, portanto aqui vão eles:
São dois posts de outubro, ambos sobre banda desenhada. O primeiro debruça-se sobre Uluru, de Marco Fraga da Silva, Matthieu Pereira e Sofia Pereira, uma edição deste ano da Tentáculo.
Já o segundo é sobre O Pescador de Memórias, álbum de Miguel Peres e Majory Yokomizo publicado no ano passado pela Kingpin Books.
Além destas opiniões atrasadas, a Cristina também nos brindou esta semana com mais duas. A primeira teve por alvo Periferia, um romance de Catarina Costa que venceu o Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal. O extraordinário é que é um livro de FC, ainda que para não nos enchermos de esperança há que reconhecer que as distopias de base mais ou menos alegórica até têm conseguido rebentar com alguma frequência a quarentena imposta ao género, sem que isso tenha grandes implicações para o género como um todo. É outra edição deste ano, esta da Guerra e Paz.
A segunda opinião que a Cristina nos apresenta esta semana regressa à BD, mais propriamente a Bestiário da Isa. Publicada também este ano pel'A Seita, esta é uma obra de Joana Afonso. Tudo somado, é um livro de FC e 3 de BD, que contam como sem FC. E é assim que a Cristina, depois de um longo deserto, passa de repente a 1c4s.
E quanto a participantes oficiais estamos conversados. Mas também houve oficiosos.
O primeiro a aparecer, ou antes, a primeira, foi a Maria João, trazendo-nos a sua opinião sobre um romance distópico que já surgiu por aí há muito pouco tempo. Do Outro Lado, edição deste ano da Suma de Letras, foi escrito por Mafalda Santos e sim, tem FC.
Por fim, quem nos traz o inevitável José Saramago é a Daniela. Opina ela sobre Todos os Nomes, um romance publicado originalmente em 1997 pela Caminho mas aqui lido numa das edições recentes da Porto Editora, e que é uma das menos fantásticas obras de Saramago. Tem a atmosfera e um detalhe ou outro de realismo mágico, mas fica-se por aí. No entanto, tem a atmosfera e os detalhes, pelo que conta. Não tem é FC nenhuma.
E é tudo. Para a semana há mais. Até lá.
segunda-feira, 28 de novembro de 2022
Escrita de outubro
Quase no fim de novembro, é mais que tempo de vos falar do que andei a escrever em outubro. Sim, tenho estas coisas da Lâmpada muitíssimo atrasadas, e muito poucas perspetivas de as pôr em dia a breve trecho. Enfim, faz-se o que se pode.
E o que se pode fazer inclui escrever. Mas na verdade não há muito a dizer sobre isso: continuo a trabalhar no mesmo romance em que tenho estado a trabalhar nos últimos meses, e apenas nele. A novidade de outubro é simplesmente o facto de o ter feito crescer mais cerca de 6200 palavras, o que equivale a um pouco menos que 20 páginas. Mais que em setembro mas menos que em agosto; ou seja, está na média dos últimos tempos.
E é isso o que tenho a dizer sobre a escrita de outubro. Entretanto já sei praticamente tudo o que há para dizer sobre a de novembro, mas vocês só saberão em dezembro. Podem pôr-se a adivinhar, e se calhar até acertam, mas no próximo post destes terão a certeza.
Até que ele apareça, fiquem por aí que eu por cá fico.
domingo, 27 de novembro de 2022
Tex Taylor: As Montanhas Negras
O meu pai lia muito. A minha mãe também lia muito, de resto, até ficar com grandes problemas de visão, mas aqui falo só do meu pai por um motivo. Ele lia muito e sempre leu muito, desde miúdo. Tinha os seus gostos, as suas preferências, mas sempre foi um leitor eclético, tão capaz de mergulhar em Proust como de devorar livrinhos de bolso policiais, tão capaz de ler a poesia mais erudita como de se deliciar com ficção científica (tentou, de resto, convencer muitos dos intelectuais com que se dava de que Ray Bradbury era dos melhores escritores americanos vivos... sem grande sucesso, ao que me consta), tão capaz de gastar dinheiro numa edição em capa dura do Quixote como nos muito baratos livrinhos de bolso espanhóis. Livrinhos como este As Montanhas Negras.
Sim, não deixem que o nome de Tex Taylor vos engane. O autor é espanhol, o nome é pseudónimo e o livro pertence a um conjunto razoavelmente abundante de livrinhos de vários géneros, que foram editados durante anos e vendidos (exclusivamente?) em quiosques, todos eles com origem em Espanha, onde recebem o nome de "novelas de a duro". Aqui há tempos fui descobrir três ou quatro na biblioteca do meu pai e, porque sei que parte desses livros espanhóis são de géneros relevantes para o Bibliowiki, decidi a páginas tantas ler um para ver ao certo como são. Que tipo de escrita, que tamanho têm, essas coisas. O escolhido, sem grande escolha pois foi simplesmente o primeiro em que agarrei, foi este.
Não esperava nada de especial e não foi nada de especial o que li. A prosa é tão básica e o enredo é tão formulaico como eu já esperava. Surpresa, e apenas relativa, foi a exiguidade da obra. No bibliowiki, estes livros estão rotulados como romances, mas esse rótulo está errado. Apesar de ultrapassarem as 100 páginas, o formato do livro é tão pequeno e o tipo de letra tão grande que o texto pouco ultrapassa o tamanho de noveleta. E também surpresa, de novo relativa, foi a fraca qualidade da tradução, carregada de castelhanismos um tanto ou quanto estapafúrdios.
De resto, como a capa revela sem deixar margem para dúvidas, esta é uma história de faroeste protagonizada por uma mulher jovem que chega à fronteira acompanhada por uma tia, vinda de Nova Iorque, em busca do noivo que partira em busca de fortuna e deixara de dar notícias. Mas o que encontra nos territórios que formalmente pertenciam a índios mas estavam a ser invadidos pelo homem branco é muito perigo, canalhas decididos a violá-la e um galante galã (pleonasmo? acham?) que a protege. Claro que há perseguições, sopapos, índios que atacam e são mortos às dezenas, enfim, todos os clichés de uma história do faroeste. E amor instantâneo, obviamente. O galã fica sempre com a rapariga.
É tudo muito mauzinho, em vários detalhes é altamente duvidoso, quem goste de ser surpreendido com o que lê deverá ficar bem longe deste livro. Mas por outro lado, ele tem a qualidade principal do pulp: distrai. Sim, que pulp é isto. Pulp puro. É daquelas leituras feitas de propósito para desligar o cérebro, tirá-lo da cabeça e enfiá-lo no jarro de formol sobre a mesa de cabeceira. Não gosto, nunca gostei, nunca gostarei, mas há quem goste.
O meu pai? Não sei. A escassa quantidade destes livros cá em casa leva-me a crer que também não gostava, mas arranjava um ou outro de vez em quando, talvez quando andasse mais apertado de finanças e não pudesse comprar coisas mais interessantes e mais caras. E ao contrário dos livros de FC, que me aconselhou a ler quando cheguei à adolescência, não me lembro de alguma vez me ter tentado passar estes livros para as mãos. Portanto desconfio que a opinião que deles tinha era muito semelhante à minha. Mas só desconfio. Já não lhe posso perguntar, essa é que essa.
Escusado será explicar que este livro veio da biblioteca dos meus pais, mas aqui fica na mesma.
Sim, não deixem que o nome de Tex Taylor vos engane. O autor é espanhol, o nome é pseudónimo e o livro pertence a um conjunto razoavelmente abundante de livrinhos de vários géneros, que foram editados durante anos e vendidos (exclusivamente?) em quiosques, todos eles com origem em Espanha, onde recebem o nome de "novelas de a duro". Aqui há tempos fui descobrir três ou quatro na biblioteca do meu pai e, porque sei que parte desses livros espanhóis são de géneros relevantes para o Bibliowiki, decidi a páginas tantas ler um para ver ao certo como são. Que tipo de escrita, que tamanho têm, essas coisas. O escolhido, sem grande escolha pois foi simplesmente o primeiro em que agarrei, foi este.
Não esperava nada de especial e não foi nada de especial o que li. A prosa é tão básica e o enredo é tão formulaico como eu já esperava. Surpresa, e apenas relativa, foi a exiguidade da obra. No bibliowiki, estes livros estão rotulados como romances, mas esse rótulo está errado. Apesar de ultrapassarem as 100 páginas, o formato do livro é tão pequeno e o tipo de letra tão grande que o texto pouco ultrapassa o tamanho de noveleta. E também surpresa, de novo relativa, foi a fraca qualidade da tradução, carregada de castelhanismos um tanto ou quanto estapafúrdios.
De resto, como a capa revela sem deixar margem para dúvidas, esta é uma história de faroeste protagonizada por uma mulher jovem que chega à fronteira acompanhada por uma tia, vinda de Nova Iorque, em busca do noivo que partira em busca de fortuna e deixara de dar notícias. Mas o que encontra nos territórios que formalmente pertenciam a índios mas estavam a ser invadidos pelo homem branco é muito perigo, canalhas decididos a violá-la e um galante galã (pleonasmo? acham?) que a protege. Claro que há perseguições, sopapos, índios que atacam e são mortos às dezenas, enfim, todos os clichés de uma história do faroeste. E amor instantâneo, obviamente. O galã fica sempre com a rapariga.
É tudo muito mauzinho, em vários detalhes é altamente duvidoso, quem goste de ser surpreendido com o que lê deverá ficar bem longe deste livro. Mas por outro lado, ele tem a qualidade principal do pulp: distrai. Sim, que pulp é isto. Pulp puro. É daquelas leituras feitas de propósito para desligar o cérebro, tirá-lo da cabeça e enfiá-lo no jarro de formol sobre a mesa de cabeceira. Não gosto, nunca gostei, nunca gostarei, mas há quem goste.
O meu pai? Não sei. A escassa quantidade destes livros cá em casa leva-me a crer que também não gostava, mas arranjava um ou outro de vez em quando, talvez quando andasse mais apertado de finanças e não pudesse comprar coisas mais interessantes e mais caras. E ao contrário dos livros de FC, que me aconselhou a ler quando cheguei à adolescência, não me lembro de alguma vez me ter tentado passar estes livros para as mãos. Portanto desconfio que a opinião que deles tinha era muito semelhante à minha. Mas só desconfio. Já não lhe posso perguntar, essa é que essa.
Escusado será explicar que este livro veio da biblioteca dos meus pais, mas aqui fica na mesma.
sábado, 26 de novembro de 2022
Philip K. Dick: Segunda Variedade
Nada como um conto (ou melhor, uma novela) profundamente dickiano para abrir uma coletânea de contos de Philip K. Dick.. Mas só mesmo com uma máquina do tempo quem escolheu esta história para abrir este volume poderia saber que se tornaria tão relevante para os tempos que estamos a viver neste momento. Sim, que ler hoje este Segunda Variedade (bibliografia) tem um impacto bem diferente, e bastante maior, do que teria se a novela fosse lida em 2017, o ano em que este livro foi publicado.
Porquê?
Por causa da guerra.
É que esta é uma história de guerra. Uma guerra longa que opõe as Nações Unidas à União Soviética, por motivos que os combatentes que a protagonizam já nem conhecem. E quando hoje olhamos em volta e vemos uma Rússia fascista a lançar, por interposta Ucrânia, uma guerra contra as regras internacionais corporizadas pelas mesmíssimas Nações Unidas, o arrepio de contemporaniedade é inevitável. E pior se torna quando nos lembramos que esta guerra do mundo real é em grande medida travada através de drones, veículos não tripulados de vários tipos, e a história de Dick se centra no perigo constituído por máquinas auto-replicantes que os americanos criaram para tentarem defender-se dos ataques russos... e que depois lhes fugiram completamente ao controlo.
Há muito em comum entre este enredo e as ideias que estão na base dos filmes do Terminator, embora aqui esteja ausente o elemento de viagem no tempo presente na obra de Cameron. Mas o mundo descrito por Dick é muito parecido ao mundo futuro de onde a personagem de Swarzenegger vem: um mundo arruinado, uma distopia absoluta, onde uma Terra devastada é palco de uma guerra de extermínio movida por máquinas contra os últimos resistentes da espécie humana. Que aqui não exista Skynet pouco importa. Que nesta novela haja três lados e não dois, por mais difusas que sejam as fronteiras entre esses três lados, importa ainda menos. Mas já tem mais importância que o fulcro do enredo, aquilo que o faz mover, seja outro. Ou seja: o cenário é muito semelhante, mas as histórias contadas são diferentes.
Os filmes da franquia Terminator centram-se na tentativa de salvar um combatente da guerra futura, sem o qual a derrota face às máquinas seria inevitável. Mas, fiel a si próprio, Dick centra-se na própria infiabilidade daquilo que os olhos nos dizem, na impossibilidade de certezas quanto à natureza das coisas. É que as máquinas nesta história arranjaram uma forma infalível para se infiltrarem nos bunkers russos (e será que só russos?): transformaram-se em androides praticamente indistinguíveis de pessoas comuns, salvo pelo facto de serem produzidos em massa, em séries de "pessoas" todas iguais. As variedades de que o título fala. E resulta. A guerra está prestes a terminar quando, a um muito delapidado bunker de tropas da ONU, chega um soldado russo com uma mensagem: a guerra está quase a ser perdida. Não por eles, russos, mas por toda a humanidade. Os da ONU desconfiam, mas vão investigar. E assim arranca um enredo dickiano no qual nada é realmente o que parece.
Ler esta história em tempo de guerra é particularmente terrível. Não que já existam androides assassinos a exterminar combatentes humanos, mas a desumanidade nas trincheiras é tal que é quase como se houvesse. E há evoluções tecnológicas que vão nesse sentido. Parece ser apenas questão de tempo até se chegar a este ponto, e isso é de arrepiar o mais fleumático.
Este é uma história invulgarmente política para o que é hábito em Dick. É uma novela antiguerra, cuja mensagem principal, além da ideia habitual de não se dever acreditar naquilo que à primeira vista parece ser real, é que da guerra não saem realmente vencedores, só derrotados, e que em última análise derrotados seremos todos.
É uma ótima história. Uma história perturbadora e de toda a relevância para os dias que vivemos.
Porquê?
Por causa da guerra.
É que esta é uma história de guerra. Uma guerra longa que opõe as Nações Unidas à União Soviética, por motivos que os combatentes que a protagonizam já nem conhecem. E quando hoje olhamos em volta e vemos uma Rússia fascista a lançar, por interposta Ucrânia, uma guerra contra as regras internacionais corporizadas pelas mesmíssimas Nações Unidas, o arrepio de contemporaniedade é inevitável. E pior se torna quando nos lembramos que esta guerra do mundo real é em grande medida travada através de drones, veículos não tripulados de vários tipos, e a história de Dick se centra no perigo constituído por máquinas auto-replicantes que os americanos criaram para tentarem defender-se dos ataques russos... e que depois lhes fugiram completamente ao controlo.
Há muito em comum entre este enredo e as ideias que estão na base dos filmes do Terminator, embora aqui esteja ausente o elemento de viagem no tempo presente na obra de Cameron. Mas o mundo descrito por Dick é muito parecido ao mundo futuro de onde a personagem de Swarzenegger vem: um mundo arruinado, uma distopia absoluta, onde uma Terra devastada é palco de uma guerra de extermínio movida por máquinas contra os últimos resistentes da espécie humana. Que aqui não exista Skynet pouco importa. Que nesta novela haja três lados e não dois, por mais difusas que sejam as fronteiras entre esses três lados, importa ainda menos. Mas já tem mais importância que o fulcro do enredo, aquilo que o faz mover, seja outro. Ou seja: o cenário é muito semelhante, mas as histórias contadas são diferentes.
Os filmes da franquia Terminator centram-se na tentativa de salvar um combatente da guerra futura, sem o qual a derrota face às máquinas seria inevitável. Mas, fiel a si próprio, Dick centra-se na própria infiabilidade daquilo que os olhos nos dizem, na impossibilidade de certezas quanto à natureza das coisas. É que as máquinas nesta história arranjaram uma forma infalível para se infiltrarem nos bunkers russos (e será que só russos?): transformaram-se em androides praticamente indistinguíveis de pessoas comuns, salvo pelo facto de serem produzidos em massa, em séries de "pessoas" todas iguais. As variedades de que o título fala. E resulta. A guerra está prestes a terminar quando, a um muito delapidado bunker de tropas da ONU, chega um soldado russo com uma mensagem: a guerra está quase a ser perdida. Não por eles, russos, mas por toda a humanidade. Os da ONU desconfiam, mas vão investigar. E assim arranca um enredo dickiano no qual nada é realmente o que parece.
Ler esta história em tempo de guerra é particularmente terrível. Não que já existam androides assassinos a exterminar combatentes humanos, mas a desumanidade nas trincheiras é tal que é quase como se houvesse. E há evoluções tecnológicas que vão nesse sentido. Parece ser apenas questão de tempo até se chegar a este ponto, e isso é de arrepiar o mais fleumático.
Este é uma história invulgarmente política para o que é hábito em Dick. É uma novela antiguerra, cuja mensagem principal, além da ideia habitual de não se dever acreditar naquilo que à primeira vista parece ser real, é que da guerra não saem realmente vencedores, só derrotados, e que em última análise derrotados seremos todos.
É uma ótima história. Uma história perturbadora e de toda a relevância para os dias que vivemos.
terça-feira, 22 de novembro de 2022
Mário Cláudio: O Passeio da Tarde
Não tenho muito a dizer sobre este conto de Mário Cláudio. Há contos que se leem com agrado mas causam um impacto tão inexistente que se esquecem num ápice e este O Passeio da Tarde é uma dessas histórias. Ambientado entre o Porto e a Holanda, protagonizado por judeus portugueses que, na Holanda, se tornam criados de judeus holandeses, é um conto impecavelmente escrito que pretende, e consegue, esboçar o retrato de uma certa vivência. É um bom conto: faz na perfeição aquilo que, segundo me parece, pretende fazer. Mas também é um conto que não (me) aquece nem arrefece. Um conto indiferente. Não um conto aborrecido, note-se; enquanto durou a leitura não foi causa de bocejos. Mas terminada a leitura, virada a última página, o cérebro está pronto a expulsá-lo para bem longe da memória por não ter encontrado nele nada de realmente interessante.
Às vezes, maus contos podem ser interessantes ou ficar na memória por outros motivos (até por serem muito maus, simplesmente). Outras vezes, bons contos podem não ter interesse rigorosamente nenhum. Não me lembrarei deste conto. Mas é bom.
Contos anteriores deste livro:
Às vezes, maus contos podem ser interessantes ou ficar na memória por outros motivos (até por serem muito maus, simplesmente). Outras vezes, bons contos podem não ter interesse rigorosamente nenhum. Não me lembrarei deste conto. Mas é bom.
Contos anteriores deste livro:
segunda-feira, 21 de novembro de 2022
Leiturtugas #179
Olá, sejam bem-vindos a mais uma nota de divulgação das Leiturtugas. Esta é uma boa semana: temos uma Leiturtuga por cada dia da semana. E no fim temos um anúncio.
E também temos Leiturtugas por participantes oficiais e por participantes oficiosos. Começando pelos primeiros, como sempre...
... é mais uma vez o Artur Coelho a fazer as honras da casa, e logo com duas leituras. A primeira, mais uma das suas opiniões muito curtas sobre obras de BD que desenvolve mais noutro sítio, debruça-se sobre o nº 5 (e último) de Holy, uma obra de Rafael Marques e Katiurna. Edição deste ano da RK Comics, provavelmente um selo criado pelos próprios autores, esta BD leva o Artur a 3c18s.
A segunda muda completamente de género, saltando para o romance mainstream. O autor é Raul Brandão, o título é Húmus e o ano em que este livro foi dado ao público é 1917, embora a edição lida tenha sido a da Bookcover, de 2020. Sem nada de FC, este livro faz subir mais um pouco os números do Artur. Para 3c19s.
Mas desta vez as honras da casa não se ficaram pelo Artur, e um tal Jorge Candeias também apareceu por aí com uma opinião sua. Também sem FC, o livro lido foi O Fim Chega Numa Manhã de Nevoeiro, o autor é Renato Carreira e o livro foi publicado pela Saída de Emergência no já algo distante ano de 2011. As minhas leituras e os seus característicos atrasos. Seja como for, as sinalefas passam a 4c5s.
Quanto aos oficiosos, começaram pelo inevitável José Saramago, em ano de centenário. Quem no-lo trouxe foi a «Charneca em Flor», e o livro sobre o qual a opinião se debruça é Caim, um romance fantástico de 2009 lançado pela Caminho, edição essa que parece ter sido precisamente aquela que foi lida. Não há aqui qualquer FC.
Depois passaram à quase igualmente inevitável literatura infanto-juvenil, trazida pela mão da Anabela Risso. Trata-se de uma fabulazinha curiosa, e aparentemente boa, visto ter sido nomeada para um prémio, publicada em 2020 pela Tigre de Papel, e intitulada Inácia, a Galinha Sindicalista. Sim. A autoria é de duas mulheres: Dora Santos Rosa é responsável pelo texto e Felisbela Fonseca pelas ilustrações. Nada de FC, claro.
Quase a acabar a semana, a Raquel fala-nos de uma coletânea que se bem me lembro já apareceu por aí há algum tempo, até porque é uma edição de 2020 da Cultura: Alice do Lado Errado do Espelho. Trata-se de um conjunto de contos de Pedro Rodrigues que vão buscar algumas personagens de histórias fantásticas bem conhecidas para as modernizar. Mas não as leva para algo que tenha a ver com FC, pelo que por aí continuamos a seco.
Mas quem conclui mesmo a semana é o Paulo Nóbrega Serra com a sua opinião sobre um livro que tem elementos, ainda que um tanto ou quanto ténues, de realismo mágico. Tornado, romance de Teresa Noronha, é uma edição de 2021 de uma editora que eu desconhecia, a Exclamação. E terminamos a semana sem nenhuma FC, o que é sempre desagradável.
Mas não a terminamos sem um anúncio: vai haver um sorteio.
O livro a sortear é este que está aqui ao lado, a antologia Ratazanas e Outros Acepipes, que organizei e publiquei no mês passado, e já conhecem o processo. Mas eu repito: a lista de candidatos é composta por todas as publicações (i.e., os blogues e afins) que têm aparecido aqui nas Leiturtugas, às quais são atribuídos coeficientes com base na quantidade de opiniões publicadas sobre material relevante. O momento de cristalização desses coeficientes é o fim deste mês, e algures durante o mês de dezembro farei um sorteio no excel, e publicarei o respetivo vídeo. O resultado do sorteio é uma lista ordenada, e os autores dos blogues serão contactados um a um até que algum queira o livro. Eu também participarei no sorteio, porque sim, mas aviso desde já que vou recusar a oferta. O livro só será enviado já em 2023, porque estar a usar os correios na altura do natal, ou mesmo logo a seguir, é coisa que só se deve fazer se não houver maneira de o evitar. E neste caso há.
E é isso. Vamos em frente que o tempo não para. Até para a semana.
E também temos Leiturtugas por participantes oficiais e por participantes oficiosos. Começando pelos primeiros, como sempre...
... é mais uma vez o Artur Coelho a fazer as honras da casa, e logo com duas leituras. A primeira, mais uma das suas opiniões muito curtas sobre obras de BD que desenvolve mais noutro sítio, debruça-se sobre o nº 5 (e último) de Holy, uma obra de Rafael Marques e Katiurna. Edição deste ano da RK Comics, provavelmente um selo criado pelos próprios autores, esta BD leva o Artur a 3c18s.
A segunda muda completamente de género, saltando para o romance mainstream. O autor é Raul Brandão, o título é Húmus e o ano em que este livro foi dado ao público é 1917, embora a edição lida tenha sido a da Bookcover, de 2020. Sem nada de FC, este livro faz subir mais um pouco os números do Artur. Para 3c19s.
Mas desta vez as honras da casa não se ficaram pelo Artur, e um tal Jorge Candeias também apareceu por aí com uma opinião sua. Também sem FC, o livro lido foi O Fim Chega Numa Manhã de Nevoeiro, o autor é Renato Carreira e o livro foi publicado pela Saída de Emergência no já algo distante ano de 2011. As minhas leituras e os seus característicos atrasos. Seja como for, as sinalefas passam a 4c5s.
Quanto aos oficiosos, começaram pelo inevitável José Saramago, em ano de centenário. Quem no-lo trouxe foi a «Charneca em Flor», e o livro sobre o qual a opinião se debruça é Caim, um romance fantástico de 2009 lançado pela Caminho, edição essa que parece ter sido precisamente aquela que foi lida. Não há aqui qualquer FC.
Depois passaram à quase igualmente inevitável literatura infanto-juvenil, trazida pela mão da Anabela Risso. Trata-se de uma fabulazinha curiosa, e aparentemente boa, visto ter sido nomeada para um prémio, publicada em 2020 pela Tigre de Papel, e intitulada Inácia, a Galinha Sindicalista. Sim. A autoria é de duas mulheres: Dora Santos Rosa é responsável pelo texto e Felisbela Fonseca pelas ilustrações. Nada de FC, claro.
Quase a acabar a semana, a Raquel fala-nos de uma coletânea que se bem me lembro já apareceu por aí há algum tempo, até porque é uma edição de 2020 da Cultura: Alice do Lado Errado do Espelho. Trata-se de um conjunto de contos de Pedro Rodrigues que vão buscar algumas personagens de histórias fantásticas bem conhecidas para as modernizar. Mas não as leva para algo que tenha a ver com FC, pelo que por aí continuamos a seco.
Mas quem conclui mesmo a semana é o Paulo Nóbrega Serra com a sua opinião sobre um livro que tem elementos, ainda que um tanto ou quanto ténues, de realismo mágico. Tornado, romance de Teresa Noronha, é uma edição de 2021 de uma editora que eu desconhecia, a Exclamação. E terminamos a semana sem nenhuma FC, o que é sempre desagradável.
Mas não a terminamos sem um anúncio: vai haver um sorteio.
O livro a sortear é este que está aqui ao lado, a antologia Ratazanas e Outros Acepipes, que organizei e publiquei no mês passado, e já conhecem o processo. Mas eu repito: a lista de candidatos é composta por todas as publicações (i.e., os blogues e afins) que têm aparecido aqui nas Leiturtugas, às quais são atribuídos coeficientes com base na quantidade de opiniões publicadas sobre material relevante. O momento de cristalização desses coeficientes é o fim deste mês, e algures durante o mês de dezembro farei um sorteio no excel, e publicarei o respetivo vídeo. O resultado do sorteio é uma lista ordenada, e os autores dos blogues serão contactados um a um até que algum queira o livro. Eu também participarei no sorteio, porque sim, mas aviso desde já que vou recusar a oferta. O livro só será enviado já em 2023, porque estar a usar os correios na altura do natal, ou mesmo logo a seguir, é coisa que só se deve fazer se não houver maneira de o evitar. E neste caso há.
E é isso. Vamos em frente que o tempo não para. Até para a semana.
domingo, 20 de novembro de 2022
Carlos Guilherme Riley: Lusitania Expresso
A maré de poemas continua, mas agora estamos de regresso à língua portuguesa, deixando o francês para trás.
Este Lusitania Expresso é um poema razoavelmente extenso, no qual Carlos Guilherme Riley usa as reminiscências de uma viagem pessoal para a Europa para manifestar choque e consternação pelos ataques terroristas de 11 de março em vários pontos do sistema ferroviário madrileno, especialmente mortíferos na estação de Atocha.
É uma visão pessoal de um acontecimento que hoje é já apenas histórico mas na época (esta edição é de 2004, o ano dos ataques) estava absolutamente fresco na vivência das pessoas. Dezoito anos é muito tempo, e ler este poema hoje é certamente diferente de lê-lo então. O impacto é muito menor e é muito maior a proporção de atenção dada à parte literária do texto face ao que ele tem de mais saído das entranhas, por assim dizer.
Não tenho nada contra os sentimentos expressos no poema, muito pelo contrário. Mas do poema propriamente dito não gostei muito. Felizmente, eu de poesia não percebo nada, portanto o que gosto ou deixo de gostar pouco importa.
Textos anteriores desta publicação:
Este Lusitania Expresso é um poema razoavelmente extenso, no qual Carlos Guilherme Riley usa as reminiscências de uma viagem pessoal para a Europa para manifestar choque e consternação pelos ataques terroristas de 11 de março em vários pontos do sistema ferroviário madrileno, especialmente mortíferos na estação de Atocha.
É uma visão pessoal de um acontecimento que hoje é já apenas histórico mas na época (esta edição é de 2004, o ano dos ataques) estava absolutamente fresco na vivência das pessoas. Dezoito anos é muito tempo, e ler este poema hoje é certamente diferente de lê-lo então. O impacto é muito menor e é muito maior a proporção de atenção dada à parte literária do texto face ao que ele tem de mais saído das entranhas, por assim dizer.
Não tenho nada contra os sentimentos expressos no poema, muito pelo contrário. Mas do poema propriamente dito não gostei muito. Felizmente, eu de poesia não percebo nada, portanto o que gosto ou deixo de gostar pouco importa.
Textos anteriores desta publicação:
Renato Carreira: O Fim Chega Numa Manhã de Nevoeiro
Dizer-se que não há regra sem exceção é um lugar-comum dos mais aborrecidos, mas não deixa de tender à verdade, especialmente quando essas regras e exceções se referem a conjuntos alargados de elementos. E a literatura pulp é um conjunto alargado de elementos, pelo que quando eu digo que não gosto de pulp, coisa que faço com regularidade e verdade, fica sempre entreaberta a porta para a chegada de alguma exceção que contrarie a regra.
Este romance de Renato Carreira quase foi essa exceção. Quase.
Se se tivesse mantido até ao fim com as características que mostrou no início, tê-lo-ia sido. De início, até chegar talvez a metade do livro, O Fim Chega Numa Manhã de Nevoeiro é uma ficção pulp de uma forma muito assumida e consciente, mas que não se leva a sério, mostrando uma autoironia bastante interessante. Com as características boas do pulp — a prosa ágil, o enredo movimentado, etc. — mas sem que os seus defeitos — clichés, caráter formulaico, personagens unidimensionais, por aí fora — sobressaíssem demasiado, ou pelo menos envolvendo esses defeitos em ironia, como quem diz "eu sei que vocês sabem que isto é uma treta, mas estou-me a divertir e espero que vocês também estejam". E a leitura flui entre sorrisos.
Mas com o avanço do romance, essa frescura vai-se perdendo.
Será isso que explica que quando a leitura se encerra a sensação que fica é que qualquer coisa se perdeu pelo caminho. Que se acabou de ler uma história pulp com algum interesse, mas apenas uma história pulp, tão repleta de clichés e tão formulaica como qualquer outra. Fica de mais positivo a ironia de desconstruir o mito de D. Sebastião, desfazendo séculos de exaltação do rei-herói pátrio que um dia haveria de regressar para pôr ordem nesta bandalheira e retratando essa figura como um velho e poderoso taumaturgo pronto para instaurar o seu reino maligno, matando mundo e meio ao fazê-lo. E fica a pena por tão promissora ironia não ter conseguido soltar-se do lastro de clichés criado pelo ambiente de fantasia urbana, cheio de vampiros e feiticeiros e mais ou menos discretas criaturas mágicas, escondidas de olhos indiscretos nos interstícios do mesmo mundo que nós, simples mortais, habitamos e por o protagonista que Carreira vai buscar ao policial negro também ter trazido consigo todos os clichés do género, incluindo a inevitável femme fatale que o deixa embeiçado e acaba por traí-lo.
Se Renato Carreira tivesse querido ou conseguido subverter a estrutura narrativa que escolheu para o seu romance, talvez todos estes clichés servissem como efeitos poderosos de prestidigitação literária, elementos de reforço de um truque que leva o leitor a instalar-se confortavelmente no sofá do que já conhece para no fim lhe tirar o tapete, mergulhando-o em algo de novo. Durante a primeira parte do romance pareceu-me (ou nutri a esperança de) que era precisamente para aí que a história se encaminhava. Mas não, ou pelo menos não de uma forma eficaz. Há no desenlace do enredo uma certa subversão da jornada do herói, mas é uma subversão tão ambígua que não tem o poder necessário para criar esse efeito de "ha, por esta não esperavas tu!" E assim, o romance termina como uma mera história pulp.
Será uma história pulp genericamente bem feita e com alguns elementos realmente interessantes, mas é apenas uma história pulp. É muito provável que agrade a quem goste de histórias pulp, mas quem tiver alergia a clichés o mais certo é não gostar. É um livro que entretém; se foi apenas esse o objetivo, ele foi alcançado. É também um livro que teria potencial para ser bastante mais e pela parte que me toca tenho pena que não tenha querido ou conseguido sê-lo.
Não é mau. É pelo menos razoável, talvez um pouco mais que isso. Mas podia ter sido bem melhor.
Este livro foi comprado.
Este romance de Renato Carreira quase foi essa exceção. Quase.
Se se tivesse mantido até ao fim com as características que mostrou no início, tê-lo-ia sido. De início, até chegar talvez a metade do livro, O Fim Chega Numa Manhã de Nevoeiro é uma ficção pulp de uma forma muito assumida e consciente, mas que não se leva a sério, mostrando uma autoironia bastante interessante. Com as características boas do pulp — a prosa ágil, o enredo movimentado, etc. — mas sem que os seus defeitos — clichés, caráter formulaico, personagens unidimensionais, por aí fora — sobressaíssem demasiado, ou pelo menos envolvendo esses defeitos em ironia, como quem diz "eu sei que vocês sabem que isto é uma treta, mas estou-me a divertir e espero que vocês também estejam". E a leitura flui entre sorrisos.
Mas com o avanço do romance, essa frescura vai-se perdendo.
Será isso que explica que quando a leitura se encerra a sensação que fica é que qualquer coisa se perdeu pelo caminho. Que se acabou de ler uma história pulp com algum interesse, mas apenas uma história pulp, tão repleta de clichés e tão formulaica como qualquer outra. Fica de mais positivo a ironia de desconstruir o mito de D. Sebastião, desfazendo séculos de exaltação do rei-herói pátrio que um dia haveria de regressar para pôr ordem nesta bandalheira e retratando essa figura como um velho e poderoso taumaturgo pronto para instaurar o seu reino maligno, matando mundo e meio ao fazê-lo. E fica a pena por tão promissora ironia não ter conseguido soltar-se do lastro de clichés criado pelo ambiente de fantasia urbana, cheio de vampiros e feiticeiros e mais ou menos discretas criaturas mágicas, escondidas de olhos indiscretos nos interstícios do mesmo mundo que nós, simples mortais, habitamos e por o protagonista que Carreira vai buscar ao policial negro também ter trazido consigo todos os clichés do género, incluindo a inevitável femme fatale que o deixa embeiçado e acaba por traí-lo.
Se Renato Carreira tivesse querido ou conseguido subverter a estrutura narrativa que escolheu para o seu romance, talvez todos estes clichés servissem como efeitos poderosos de prestidigitação literária, elementos de reforço de um truque que leva o leitor a instalar-se confortavelmente no sofá do que já conhece para no fim lhe tirar o tapete, mergulhando-o em algo de novo. Durante a primeira parte do romance pareceu-me (ou nutri a esperança de) que era precisamente para aí que a história se encaminhava. Mas não, ou pelo menos não de uma forma eficaz. Há no desenlace do enredo uma certa subversão da jornada do herói, mas é uma subversão tão ambígua que não tem o poder necessário para criar esse efeito de "ha, por esta não esperavas tu!" E assim, o romance termina como uma mera história pulp.
Será uma história pulp genericamente bem feita e com alguns elementos realmente interessantes, mas é apenas uma história pulp. É muito provável que agrade a quem goste de histórias pulp, mas quem tiver alergia a clichés o mais certo é não gostar. É um livro que entretém; se foi apenas esse o objetivo, ele foi alcançado. É também um livro que teria potencial para ser bastante mais e pela parte que me toca tenho pena que não tenha querido ou conseguido sê-lo.
Não é mau. É pelo menos razoável, talvez um pouco mais que isso. Mas podia ter sido bem melhor.
Este livro foi comprado.
sábado, 19 de novembro de 2022
Marc-Ange Graff: Exil et Exuvie
Provavelmente estarão a pensar qualquer coisa como "lá vem este outra vez dizer que não percebeu nada de outro poema do Marc-Ange Graff", e se o pensarem têm certamente motivos para isso. Afinal, é basicamente o que tenho vindo aqui dizer sobre os dois anteriores, e este Exil et Exuvie também tem título de poema em francês. 1+1=2, assunto arrumado.
Mas não, não propriamente.
Ou seja, sim, estamos perante um poema, ainda que um poema de versos tão longos que quase parecem parágrafos, e sim, começa por ser em francês. Mas é um poema muito musical, e o francês de que se serve é significativamente mais acessível do que o dos textos anteriores, o que faz com que eu não tenha ficado nem por sombras tão aos papéis com ele. É um poema sobre a língua, com um ritmo francamente interessante em que o som das palavras quase parece ser mais importante do que o seu significado. Quase.
E além disso, a segunda metade do poema é em inglês, o que por um lado torna tudo muito mais fácil para mim e por outro transforma todo o texto numa espécie de metáfora de emigração e exílio (a perda da língua como equivalência da perda da pátria?). E da solidão que isso acarreta.
Se bem o entendi, claro. Que eu, como digo sempre, não percebo nada de poesia.
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Mas não, não propriamente.
Ou seja, sim, estamos perante um poema, ainda que um poema de versos tão longos que quase parecem parágrafos, e sim, começa por ser em francês. Mas é um poema muito musical, e o francês de que se serve é significativamente mais acessível do que o dos textos anteriores, o que faz com que eu não tenha ficado nem por sombras tão aos papéis com ele. É um poema sobre a língua, com um ritmo francamente interessante em que o som das palavras quase parece ser mais importante do que o seu significado. Quase.
E além disso, a segunda metade do poema é em inglês, o que por um lado torna tudo muito mais fácil para mim e por outro transforma todo o texto numa espécie de metáfora de emigração e exílio (a perda da língua como equivalência da perda da pátria?). E da solidão que isso acarreta.
Se bem o entendi, claro. Que eu, como digo sempre, não percebo nada de poesia.
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quinta-feira, 17 de novembro de 2022
Marc-Ange Graff: Nanan
Pelo nome do autor, Marc-Ange Graff, já calcularão que o que vou dizer aqui é basicamente o mesmo que disse sobre Facture 2. Nanan é mais um poema em francês que pouco entendi. De diferente só o seguinte: o meu francês chega para captar o ritmo do poema, e disso gostei. E ficamos por aqui.
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terça-feira, 15 de novembro de 2022
Marc-Ange Graff: Facture 2
Falo cinco línguas, talvez seis se as contar com boa vontade, e o francês é uma delas. Compreendo, sem as falar, mais algumas. Nem todas, no entanto, falo ou compreendo com o mesmo grau de fluência, e o meu francês, se é suficiente para ler textos literários que não sejam demasiado exigentes, fica coxo quando a exigência aumenta. E este Facture 2, de Marc-Ange Graff é um texto exigente: poesia.
Portanto esta opinião não é uma opinião; é um marcador. Serve para dizer que a coisa existe, que a li, que pouco compreendi porque o meu francês é insuficiente, e nada mais.
Venha a próxima.
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Portanto esta opinião não é uma opinião; é um marcador. Serve para dizer que a coisa existe, que a li, que pouco compreendi porque o meu francês é insuficiente, e nada mais.
Venha a próxima.
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segunda-feira, 14 de novembro de 2022
Leiturtugas #178
Com um dia de atraso, que ontem quando me lembrei de que era dia de fazer isto já passava largamente da meia-noite e acabei por resolver deixar para hoje, eis o que apareceu por aí de Leiturtugas na semana passada.
E não foi grande coisa, embora tenha sido mais que nas semanas anteriores. Tivemos oficiais e oficiosas, mas em pequena quantidade.
Entre os oficiais, coube mais uma vez ao Artur Coelho fazer as honras do convento, com mais uma das suas opiniões sobre BD, que desenvolve melhor noutro sítio. Desta vez a obra lida foi A Polaroid em Branco, uma criação de Mário Freitas com recurso ao sistema de inteligência artificial Midjourney. Edição deste ano da Kingpin Books e, claro, sendo BD conta como "sem FC", pelo que o Artur passa a 3c17s. Se tivesse lido mais FC, já tinha cumprido os mínimos há meses.
Quanto a oficiosos, esta semana houve três.
Começou pela «Kou Seiya Girl» (ela assina assim, apesar de ter o nome verdadeiro no blogue, portanto assim fica), que leu e comentou um livro fantástico de Gonçalo M. Tavares sobre o diabo. De resto, é mesmo assim que se intitula, O Diabo, e é uma edição deste ano da Bertrand. Não parece ter nenhuma FC.
A mesma «Kou Seiya Girl» comentou também um outro livro esta semana, este de Mafalda Santos. Intitulado Do Outro Lado, parece tratar-se de uma distopia, logo ter pelo menos alguns elementos de FC, e foi publicado também este ano pela Suma de Letras.
Quem pôs o laçarote na semana, no entanto, foi a Raquel, que leu e comentou um livro que já apareceu por aqui algumas vezes, nomeadamente a fantasia de M. G. Ferrey intitulada Inspira. É outra edição da Suma de Letras, mas esta data do ano passado.
E por esta semana é só isto. Agora tratem de ler e comentar coisas para termos material para acompanhar uma novidade que vou dar na semana que vem. Até lá.
E não foi grande coisa, embora tenha sido mais que nas semanas anteriores. Tivemos oficiais e oficiosas, mas em pequena quantidade.
Entre os oficiais, coube mais uma vez ao Artur Coelho fazer as honras do convento, com mais uma das suas opiniões sobre BD, que desenvolve melhor noutro sítio. Desta vez a obra lida foi A Polaroid em Branco, uma criação de Mário Freitas com recurso ao sistema de inteligência artificial Midjourney. Edição deste ano da Kingpin Books e, claro, sendo BD conta como "sem FC", pelo que o Artur passa a 3c17s. Se tivesse lido mais FC, já tinha cumprido os mínimos há meses.
Quanto a oficiosos, esta semana houve três.
Começou pela «Kou Seiya Girl» (ela assina assim, apesar de ter o nome verdadeiro no blogue, portanto assim fica), que leu e comentou um livro fantástico de Gonçalo M. Tavares sobre o diabo. De resto, é mesmo assim que se intitula, O Diabo, e é uma edição deste ano da Bertrand. Não parece ter nenhuma FC.
A mesma «Kou Seiya Girl» comentou também um outro livro esta semana, este de Mafalda Santos. Intitulado Do Outro Lado, parece tratar-se de uma distopia, logo ter pelo menos alguns elementos de FC, e foi publicado também este ano pela Suma de Letras.
Quem pôs o laçarote na semana, no entanto, foi a Raquel, que leu e comentou um livro que já apareceu por aqui algumas vezes, nomeadamente a fantasia de M. G. Ferrey intitulada Inspira. É outra edição da Suma de Letras, mas esta data do ano passado.
E por esta semana é só isto. Agora tratem de ler e comentar coisas para termos material para acompanhar uma novidade que vou dar na semana que vem. Até lá.
terça-feira, 8 de novembro de 2022
Philip K. Dick: O Impostor
Toda a gente sabe que há autores que ficam conhecidos por um determinado tipo de história, ou de abordagem à arte de contar histórias. Mas o que nem toda a gente sabe é que por vezes as histórias que corporizam esse tipo ou essa abordagem de forma mais perfeita nem são as mais lidas ou famosas.
Olhem o Philip K. Dick, por exemplo. Ficou conhecido pelas suas ficções convolutas, cheias de reviravoltas, que traduzem uma visão paranoica do mundo e muito duvidosa da consistência da realidade ou da identidade. E de facto, as suas obras mais conhecidas traduzem em grande medida essa visão. Mas este conto, O Impostor (bibliografia), apesar de não ser dos seus contos mais conhecidos, é capaz de ser o conto mais dickiano de todos os contos de Dick que eu conheço. E se não for mesmo o mais dickiano, está com toda a certeza no topo.
A humanidade está em guerra com uns alienígenas de Alfa do Centauro. O protagonista é Olham, um homem envolvido no esforço de guerra, que um belo dia é surpreendido em casa por uma visita inesperada. Alguém vem prendê-lo, acusando-o de ser alguém que ele sabe perfeitamente que não é. Alguém, ou por outra, algo: um robô criado pelos centaurianos e enviado para a Terra com uma bomba rebenta-planetas nas entranhas. E o bom do Olham vai ter de arranjar alguma maneira de provar que os que o rodeiam estão enganados, e ele é simplesmente quem sabe ser, não um robô assassino qualquer.
O enredo é conhecido. Não só o lemos várias vezes nas ficções de Dick como o encontrámos nas numerosas adaptações cinematográficas que as histórias dele sofreram. Mas aqui está como que destilado até à sua expressão mais pura. E está cá tudo aquilo que faz de Dick Dick.
Este conto não será tão bom como alguns dos outros contos do seu autor, talvez. Mas é Dick em estado puro. E é bom.
Conto anterior deste livro:
Olhem o Philip K. Dick, por exemplo. Ficou conhecido pelas suas ficções convolutas, cheias de reviravoltas, que traduzem uma visão paranoica do mundo e muito duvidosa da consistência da realidade ou da identidade. E de facto, as suas obras mais conhecidas traduzem em grande medida essa visão. Mas este conto, O Impostor (bibliografia), apesar de não ser dos seus contos mais conhecidos, é capaz de ser o conto mais dickiano de todos os contos de Dick que eu conheço. E se não for mesmo o mais dickiano, está com toda a certeza no topo.
A humanidade está em guerra com uns alienígenas de Alfa do Centauro. O protagonista é Olham, um homem envolvido no esforço de guerra, que um belo dia é surpreendido em casa por uma visita inesperada. Alguém vem prendê-lo, acusando-o de ser alguém que ele sabe perfeitamente que não é. Alguém, ou por outra, algo: um robô criado pelos centaurianos e enviado para a Terra com uma bomba rebenta-planetas nas entranhas. E o bom do Olham vai ter de arranjar alguma maneira de provar que os que o rodeiam estão enganados, e ele é simplesmente quem sabe ser, não um robô assassino qualquer.
O enredo é conhecido. Não só o lemos várias vezes nas ficções de Dick como o encontrámos nas numerosas adaptações cinematográficas que as histórias dele sofreram. Mas aqui está como que destilado até à sua expressão mais pura. E está cá tudo aquilo que faz de Dick Dick.
Este conto não será tão bom como alguns dos outros contos do seu autor, talvez. Mas é Dick em estado puro. E é bom.
Conto anterior deste livro:
Irmãos Grimm: O Dinheiro das Estrelas
Um fã de ficção científica alimentado a livros da Argonauta provavelmente olha para um título como O Dinheiro das Estrelas e passa-lhe pela cabeça a possibilidade de se tratar de uma história de FC, especialmente se não vir ao lado o nome dos Irmãos Grimm. Mas não é nada disso. É mais uma historinha muito curta, milagreira, sobre as coisas boas que acontecem às pessoas generosas.
É uma história de fundo muito cristão, mas não sei ao certo se será mesmo cristã ou as suas origens são outras. Para variar, a nota dos Grimm é curtíssima, dizendo apenas que o conto foi "escrito a partir de uma recordação muito ténue" (isto é: é mesmo deles), pedindo também que quem a conhecer completa a complete, o que implica que a consideram um mero fragmento. Pode ser que o seja, mas a verdade é que contém um arco narrativo completo, apesar da brevidade: menina parte pelo mundo e vai entregando tudo o que possui a quem pede, ficando absolutamente sem nada, após o que as estrelas se transformam em moedas, enriquecendo-a para o resto da vida.
Não, não é nada de especial. Mas há piores.
Contos anteriores deste livro:
É uma história de fundo muito cristão, mas não sei ao certo se será mesmo cristã ou as suas origens são outras. Para variar, a nota dos Grimm é curtíssima, dizendo apenas que o conto foi "escrito a partir de uma recordação muito ténue" (isto é: é mesmo deles), pedindo também que quem a conhecer completa a complete, o que implica que a consideram um mero fragmento. Pode ser que o seja, mas a verdade é que contém um arco narrativo completo, apesar da brevidade: menina parte pelo mundo e vai entregando tudo o que possui a quem pede, ficando absolutamente sem nada, após o que as estrelas se transformam em moedas, enriquecendo-a para o resto da vida.
Não, não é nada de especial. Mas há piores.
Contos anteriores deste livro:
segunda-feira, 7 de novembro de 2022
António Mesquita: Quotidiano
Lendo este Quotidiano, uma coisa fica evidente ao primeiro verso (que é «Riiiinnngggg....», já agora): António Mesquita leu muito, e gosta muito de, Álvaro de Campos. E pela parte que me toca tem bom gosto. Não que eu perceba alguma coisa de poesia, mas também li Álvaro de Campos e também gostei bastante.
À parte isso, Quotidiano é uma espécie de estudo sobre a monotonia, a chatice, o ramerrame do dia-a-dia, escrito sob a forma de lista daquelas coisas e momentos que todos os dias são feitas, vestidas, tocadas, sentidas, seja o que for. O verso final («igual igual igual igual...») sublinha essa ideia de uma forma que não permite seja a quem for a menor dúvida.
Vale o que vale, que eu não percebo nada disto, mas gostei.
Textos anteriores deste livro:
À parte isso, Quotidiano é uma espécie de estudo sobre a monotonia, a chatice, o ramerrame do dia-a-dia, escrito sob a forma de lista daquelas coisas e momentos que todos os dias são feitas, vestidas, tocadas, sentidas, seja o que for. O verso final («igual igual igual igual...») sublinha essa ideia de uma forma que não permite seja a quem for a menor dúvida.
Vale o que vale, que eu não percebo nada disto, mas gostei.
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domingo, 6 de novembro de 2022
Leiturtugas #177
Mais uma semana que se despacha num ápice, aqui no reino das Leiturtugas. O que só é bom para a minha preguiça, mais nada.
É uma semana em que só temos uma opinião a mencionar. Mais: em que essa opinião não é sobre um livro de FC, fantasia ou fantástico, mas sim um livro técnico cuja relevância consiste no potencial que contém para emprestar ideias a escritores de FC. Chegou-nos pela mão do Nuno Coelho e debruça-se sobre Inteligência Artificial, um livro de Arlindo Oliveira publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em 2019. Não vou contá-lo como "com FC" pelo mesmo motivo por que não conto a BD como "com FC", mas é adjacente.
E por esta semana é só isto. Esperemos que a próxima seja melhorzinha. Até lá.
É uma semana em que só temos uma opinião a mencionar. Mais: em que essa opinião não é sobre um livro de FC, fantasia ou fantástico, mas sim um livro técnico cuja relevância consiste no potencial que contém para emprestar ideias a escritores de FC. Chegou-nos pela mão do Nuno Coelho e debruça-se sobre Inteligência Artificial, um livro de Arlindo Oliveira publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em 2019. Não vou contá-lo como "com FC" pelo mesmo motivo por que não conto a BD como "com FC", mas é adjacente.
E por esta semana é só isto. Esperemos que a próxima seja melhorzinha. Até lá.
Irmãos Grimm: O Pastorinho
Quase todos os contos coligidos e/ou elaborados pelos Irmãos Grimm têm no fantástico (ou no maravilhoso, se quisermos ser pedantes na precisão das fronteiras de género) a sua imagem de marca. A magia é quase omnipresente, e mesmo quando não há magia declarada, há insólitos que dela muito se aproximam. Mas também há algumas exceções, e este O Pastorinho pertence ao grupo dos contos que me parecem inteiramente realistas.
É também bastante curto, uma página apenas, e consiste de um conjunto de três (claro!) respostas sábias que dá às perguntas filosóficas que um rei lhe faz. Elitistas acharão no mínimo improvável que respostas tão sábias saiam da boca de alguém tão humilde como um pastor, mas eu a esses aconselharia a ler António Aleixo antes de voltarmos a conversar sobre a sabedoria que é possível encontrar entre o povo.
Continuando a não ser nada de especial em termos literários, este conto tem interesse.
Contos anteriores deste livro:
É também bastante curto, uma página apenas, e consiste de um conjunto de três (claro!) respostas sábias que dá às perguntas filosóficas que um rei lhe faz. Elitistas acharão no mínimo improvável que respostas tão sábias saiam da boca de alguém tão humilde como um pastor, mas eu a esses aconselharia a ler António Aleixo antes de voltarmos a conversar sobre a sabedoria que é possível encontrar entre o povo.
Continuando a não ser nada de especial em termos literários, este conto tem interesse.
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sábado, 5 de novembro de 2022
Maria Velho da Costa: A Ponte de Serralves
Lido este conto de Maria Velho da Costa fiquei sem perceber o título, imagino que, eventualmente, por Serralves ter uma história que eu desconheço, embora isto não passe de hipótese vaga sem grande coisa que a sustente. Certo é que este A Ponte de Serralves não parece à primeira leitura de alguém (eu) com carência de referências ter grande coisa a ver com pontes ou com a Fundação de Serralves. Embora possa ter a ver com a propriedade que esteve na génese da fundação.
Também certo é que se trata de um conto sinuoso, muitíssimo bem escrito, sobre as relações que se estabelecem numa casa aristocrática sujeita às vontades muito mais filosóficas do que despóticas de um Amo, que a autora referencia simplesmente assim. Curioso é que as únicas pessoas que nesta história têm nomes são as mulheres; os homens são o Amo e o Jardineiro Prodigioso, duas personagens que, apesar das suas diferenças sociais, se entregam à cumplicidade da conversa filosófica com razoável profundidade. Em contraste, as mulheres são nomeadas: Deodata é a mordoma, uma empregada doméstica expedita e um tanto ou quanto iconoclasta, e a protagonista principal, Miss Laura, uma jovem aparentemente inglesa que está hospedada na casa não se chega a saber bem porquê.
Esta jovem é tratada pelos outros como louca, num misto de exasperação e de pena, e sente um fascínio pelo Jardineiro que se aproxima da paixoneta, e que este retribui com gentileza. Para isso contribuem coisas que diz e faz, nem sabe bem porquê, embora não pareça haver quaisquer consequências. O que não surpreende: este conto é um retrato, não uma verdadeira história. É estático. Representa uma situação que não se altera.
A propriedade, e sobretudo a casa, aparecem em parágrafos intercalados na história principal, descritas como lugares com vontades e aspirações próprias, num registo poético que se aproxima da literatura fantástica embora, a meu ver, sem chegar a transpor a fronteira. Tudo muito bem escrito, mas...
... mas mais uma vez, tudo muito desinteressante para o leitor que sou. Tem sido um pouco uma constante nos contos deste livro. A qualidade literária é elevada, mas os temas escolhidos pelos autores e as abordagens às histórias que contam pouco interesse me despertam, pelo que acabo por não gostar tanto da leitura como a pura vertente literária mereceria. Dito isto, gostei bastante mais deste conto do que de alguns dos outros. É uma vantagem que ele tem.
Contos anteriores deste livro:
Também certo é que se trata de um conto sinuoso, muitíssimo bem escrito, sobre as relações que se estabelecem numa casa aristocrática sujeita às vontades muito mais filosóficas do que despóticas de um Amo, que a autora referencia simplesmente assim. Curioso é que as únicas pessoas que nesta história têm nomes são as mulheres; os homens são o Amo e o Jardineiro Prodigioso, duas personagens que, apesar das suas diferenças sociais, se entregam à cumplicidade da conversa filosófica com razoável profundidade. Em contraste, as mulheres são nomeadas: Deodata é a mordoma, uma empregada doméstica expedita e um tanto ou quanto iconoclasta, e a protagonista principal, Miss Laura, uma jovem aparentemente inglesa que está hospedada na casa não se chega a saber bem porquê.
Esta jovem é tratada pelos outros como louca, num misto de exasperação e de pena, e sente um fascínio pelo Jardineiro que se aproxima da paixoneta, e que este retribui com gentileza. Para isso contribuem coisas que diz e faz, nem sabe bem porquê, embora não pareça haver quaisquer consequências. O que não surpreende: este conto é um retrato, não uma verdadeira história. É estático. Representa uma situação que não se altera.
A propriedade, e sobretudo a casa, aparecem em parágrafos intercalados na história principal, descritas como lugares com vontades e aspirações próprias, num registo poético que se aproxima da literatura fantástica embora, a meu ver, sem chegar a transpor a fronteira. Tudo muito bem escrito, mas...
... mas mais uma vez, tudo muito desinteressante para o leitor que sou. Tem sido um pouco uma constante nos contos deste livro. A qualidade literária é elevada, mas os temas escolhidos pelos autores e as abordagens às histórias que contam pouco interesse me despertam, pelo que acabo por não gostar tanto da leitura como a pura vertente literária mereceria. Dito isto, gostei bastante mais deste conto do que de alguns dos outros. É uma vantagem que ele tem.
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sexta-feira, 4 de novembro de 2022
Irmãos Grimm: Os Doze Criados Preguiçosos
Mais preguiçosos, com a diferença de agora não serem príncipes, mas criados. Isso muda algumas coisas: este conto é significativamente menos subversivo que o anterior. Na verdade não é nada subversivo; se o outro reflete o ponto de vista do povo sobre os poderosos, este reflete o ponto de vista dos poderosos sobre o povo. É a visão inversa.
Mas fora isso, este Os Doze Criados Preguiçosos, que os Irmãos Grimm também parecem não ter alterado por aí além, é tão semelhante a Os Três Preguiçosos que facilmente pode ser considerado uma variante desse conto. Também se trata de uma faceciazinha, na qual os intervenientes competem uns com os outros para ver quem é dotado da preguiça mais prodigiosa e, como sempre, é o último que ganha. Nem a maior extensão deste conto, natural dado o maior número de preguiçosos, contribui muito para os separar; são basicamente a mesma coisa.
Contos anteriores deste livro:
Mas fora isso, este Os Doze Criados Preguiçosos, que os Irmãos Grimm também parecem não ter alterado por aí além, é tão semelhante a Os Três Preguiçosos que facilmente pode ser considerado uma variante desse conto. Também se trata de uma faceciazinha, na qual os intervenientes competem uns com os outros para ver quem é dotado da preguiça mais prodigiosa e, como sempre, é o último que ganha. Nem a maior extensão deste conto, natural dado o maior número de preguiçosos, contribui muito para os separar; são basicamente a mesma coisa.
Contos anteriores deste livro:
Mauro Maia: Segredos ao Luar
Não deve haver poeta que não sinta de vez em quando a necessidade de escrever sobre o ato de escrever. Isso não é exclusivo de poetas, de resto; há livros de centenas de páginas que são basicamente isso. Mas Mauro Maia é poeta, e neste Segredos ao Luar fala, precisamente, daquilo que o leva a escrever um poema. Poeticamente.
E eu gostei. Não percebo quase nada de poesia, como digo sempre, mas há uma série de imagens interessantes neste texto, e a ideia de que as nossas palavras são sussurradas algures num lugar longínquo e há que apurar o ouvido para as escutar é uma explicação tão boa como qualquer outra para o mistério de onde elas vêm.
Textos anteriores desta publicação:
E eu gostei. Não percebo quase nada de poesia, como digo sempre, mas há uma série de imagens interessantes neste texto, e a ideia de que as nossas palavras são sussurradas algures num lugar longínquo e há que apurar o ouvido para as escutar é uma explicação tão boa como qualquer outra para o mistério de onde elas vêm.
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Irmãos Grimm: Os Três Preguiçosos
Era uma vez um rei que tinha três filhos e não sabia a qual havia de deixar o reino. Na hora da morte decidiu deixá-lo ao mais... preguiçoso? Espera, estou a ler bem?
OK, estou. Esta história dos Irmãos Grimm é uma faceciazinha, está visto, e não só o título de Os Três Preguiçosos não é dado em vão, como o "zinha" na facécia se aplica por inteiro, visto que o texto pouco passa da meia página (em compensação, as notas ocupam duas páginas de letra miudinha). E consiste basicamente dos três filhos a competir uns com os outros na reivindicação de preguiças. São todas prodigiosas. O que não deixa de ter o seu interesse sob um ponto de vista sociológico; tratar os poderosos como prodígios de preguiça não deixa de ser subversivo. Esse interesse o conto tem, portanto. Mas pouco mais.
Contos anteriores deste livro:
OK, estou. Esta história dos Irmãos Grimm é uma faceciazinha, está visto, e não só o título de Os Três Preguiçosos não é dado em vão, como o "zinha" na facécia se aplica por inteiro, visto que o texto pouco passa da meia página (em compensação, as notas ocupam duas páginas de letra miudinha). E consiste basicamente dos três filhos a competir uns com os outros na reivindicação de preguiças. São todas prodigiosas. O que não deixa de ter o seu interesse sob um ponto de vista sociológico; tratar os poderosos como prodígios de preguiça não deixa de ser subversivo. Esse interesse o conto tem, portanto. Mas pouco mais.
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quinta-feira, 3 de novembro de 2022
Carla Ribeiro: A Balada do Executor
Se me pedissem para definir este conto de Carla Ribeiro numa frase, o resultado seria qualquer coisa como "um conto gótico sobre crime e castigo com uma femme fatale como vilã principal".
O protagonista de A Balada do Executor (bibliografia) é um carrasco caído em desgraça. Numa sociedade teocrática não identificada (provavelmente em mundo secundário, i.e., sem tentar ir buscar algo de semelhante ao mundo real), a autora apresenta um homem amargurado depois de tomar consciência de que todos os crimes que cometera em nome de uma deusa igualmente não identificada tinham sido fruto de uma paixão não correspondida pela inquisidora que alegadamente representaria essa deusa junto dos mortais. Na realidade, segundo acaba (e nós com ele) por perceber, fora apenas um instrumento da ambição de poder de uma mulher cruel, utilizado enquanto útil e descartado assim que a utilidade termina.
O estilo é o da literatura gótica, muito devedora das técnicas narrativas dos autores do romantismo. Não me agradam por aí além, como quem costuma ler o que eu vou aqui escrevendo já deve saber, mas Carla Ribeiro consegue evitar resvalar para aquilo que o melodramatismo inerente a tipo de ficções tem de pior, o que é um ponto a seu favor. Por exemplo, o texto é adjetivado, sim, mas não em excesso.
E outro ponto a seu favor é ter tratado o conflito que faz mover o conto com base em relações de poder e não na maldade ou bondade intrínsecas às personagens, o que confere ao todo um grau de realismo que este tipo de fantasias sombrias nem sempre consegue (ou sequer tenta) ter.
Em suma, este é um conto interessante. As suas características mais próximas do romantismo impedem que eu tenha realmente gostado dele, mas tem várias qualidades que é bem menos comum encontrar do que seria desejável, o que por seu turno me impede de não gostar dele. É leitura que vale a pena.
Conto anterior desta publicação:
O protagonista de A Balada do Executor (bibliografia) é um carrasco caído em desgraça. Numa sociedade teocrática não identificada (provavelmente em mundo secundário, i.e., sem tentar ir buscar algo de semelhante ao mundo real), a autora apresenta um homem amargurado depois de tomar consciência de que todos os crimes que cometera em nome de uma deusa igualmente não identificada tinham sido fruto de uma paixão não correspondida pela inquisidora que alegadamente representaria essa deusa junto dos mortais. Na realidade, segundo acaba (e nós com ele) por perceber, fora apenas um instrumento da ambição de poder de uma mulher cruel, utilizado enquanto útil e descartado assim que a utilidade termina.
O estilo é o da literatura gótica, muito devedora das técnicas narrativas dos autores do romantismo. Não me agradam por aí além, como quem costuma ler o que eu vou aqui escrevendo já deve saber, mas Carla Ribeiro consegue evitar resvalar para aquilo que o melodramatismo inerente a tipo de ficções tem de pior, o que é um ponto a seu favor. Por exemplo, o texto é adjetivado, sim, mas não em excesso.
E outro ponto a seu favor é ter tratado o conflito que faz mover o conto com base em relações de poder e não na maldade ou bondade intrínsecas às personagens, o que confere ao todo um grau de realismo que este tipo de fantasias sombrias nem sempre consegue (ou sequer tenta) ter.
Em suma, este é um conto interessante. As suas características mais próximas do romantismo impedem que eu tenha realmente gostado dele, mas tem várias qualidades que é bem menos comum encontrar do que seria desejável, o que por seu turno me impede de não gostar dele. É leitura que vale a pena.
Conto anterior desta publicação:
Algernon Blackwood: Luzes Antigas
As velhas lendas das Ilhas Britânicas, um pouco ao contrário das nossas, que sobreviveram com dificuldade (as que sobreviveram) a séculos de catolicismo muitas vezes violentamente intolerante com tudo o que saísse do estrito cânone bíblico, mantiveram-se vivas o suficiente para servirem de matéria-prima a centenas de escritores que, sobretudo a partir do século XIX, as exploraram das formas mais diversas. Uma dessas lendas é a do bosque encantado, protegido pela magia dos povos antigos, duendes e fadas e coisas do género, onde tudo é natural ao mesmo tempo que tudo é sobrenatural. E este Luzes Antigas (bibliografia) explora precisamente essa ideia.
O protagonista é um agrimensor que é chamado a uma propriedade no noroeste de Inglaterra cujo proprietário quer fazer alterações na paisagem. O conto é curto; Algernon Blackwood não tem muita história para contar, pelo que não precisa de se estender. Mas a que tem é quase surreal, e certamente muito onírico, pois o pobre do agrimensor vai ter contacto com a magia dos tais lugares protegidos de que falei acima; um bosque em que nada é como se esperaria que fosse e tudo parece consequência da travessura intrínseca às criaturas das florestas. Uma travessura ameaçadora, potencialmente perigosa.
Não é um conto particularmente memorável, este; talvez seja demasiado curto para isso (e daí... conheço vários contos curtos basicamente inesquecíveis), ou talvez seja o facto de seguir caminhos que já vi seguidos noutros textos que o impeça de o ser. Mas é um bom conto. Blackwood, mais uma vez, cria muito bem o ambiente que pretende criar, no que cada vez mais me parece ser a sua melhor qualidade.
Contos anteriores deste livro:
O protagonista é um agrimensor que é chamado a uma propriedade no noroeste de Inglaterra cujo proprietário quer fazer alterações na paisagem. O conto é curto; Algernon Blackwood não tem muita história para contar, pelo que não precisa de se estender. Mas a que tem é quase surreal, e certamente muito onírico, pois o pobre do agrimensor vai ter contacto com a magia dos tais lugares protegidos de que falei acima; um bosque em que nada é como se esperaria que fosse e tudo parece consequência da travessura intrínseca às criaturas das florestas. Uma travessura ameaçadora, potencialmente perigosa.
Não é um conto particularmente memorável, este; talvez seja demasiado curto para isso (e daí... conheço vários contos curtos basicamente inesquecíveis), ou talvez seja o facto de seguir caminhos que já vi seguidos noutros textos que o impeça de o ser. Mas é um bom conto. Blackwood, mais uma vez, cria muito bem o ambiente que pretende criar, no que cada vez mais me parece ser a sua melhor qualidade.
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