quinta-feira, 30 de março de 2017

Lido: Portugal e o Mundo Interior

Ainda na secção dedicada a "notícias", isto é, a pequenos contos escritos sob a forma de artigos mais ou menos noticiosos, vamos encontrar Portugal e o Mundo Interior, de Joel Puga, uma ficção subterrânea baseada nas histórias sobre a Terra Oca, que descreve o modo como uma expedição portuguesa atinge um mundo subterrâneo iluminado por dois "sóis" e o que lhe acontece depois. E, de novo, a sensação principal que a leitura deixa é de potencial desaproveitado, de esboço de (início de) um romance que poderia ser bastante interessante, em especial se Puga quisesse e lograsse evitar um certo tom nacional-porreirístico a que o tema se presta. Durante a leitura de um texto que despacha em duas penadas a perfuração de um longo túnel, uma série de peripécias e o início de uma guerra, este leitor, pelo menos, ansiava por uma versão muito mais desenvolvida, que realmente envolvesse quem lê nessas peripécias e perigos, e de preferência que soubesse fazer as devidas homenagens aos inspiradores (Júlio Verne está aqui claramente presente, pelo menos) sem as tornar demasiado intrusivas. Mas não é isso que aqui temos. Pena.

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quarta-feira, 29 de março de 2017

Lido: Explosão da Fundição de Sinos

Explosão da Fundição de Sinos, de Manuel Alves, partilha com o texto anterior a característica de ser um conto apresentado como artigo noticioso e também uma outra: ambos são construídos em volta de crimes e da investigação que lhes sucede. Mas isso é basicamente tudo o que os dois textos têm em comum. Onde o texto de Pedro Ferreira toca de raspão o steampunk, o de Alves coloca-o no centro de tudo; onde o texto de Ferreira se fica pela rama no que toca à parte investigativa, deixando entrever que haveria ainda muitos factos por apurar, o de Alves consegue, de uma forma bastante hábil, dar a entender que o mistério deverá perdurar, pois os investigadores já terão desenterrado todos as provas disponíveis, sem que elas façam grande sentido.

Conta este texto o que é possível contar sobre o misterioso desaparecimento de um tal Engenheiro Henrique Aldim, talvez vítima da explosão a que o título faz referência, embora o corpo não tenha sido encontrado e apesar de haver notícias de que, pouco antes da explosão, um grupo de encapuzados teria entrado aos tiros pela Fundição dentro. Também destes encapuzados não há rasto. O leitor recebe a maior parte da informação relevante através de alguns fragmentos de páginas escritas, que teriam pertencido ao diário do malogrado engenheiro, e que deixam entrever uma história complexa com ramificações por desenvolvimentos tecnológicos no campo da robótica e, ao que parece, pela espionagem industrial... ou talvez da outra? Não é claro.

Esta é uma história bastante bem contada, que consegue deixar água na boca ao mesmo tempo que se encerra em si mesma de forma satisfatória. Um dos melhores textos desta publicação.

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segunda-feira, 27 de março de 2017

Lido: Insólito "Crime" nas Margens do Tejo

Não sei bem se era comum os almanaques de antanho terem a sua secção de notícias; nunca vi tal secção em nenhum, visto tratar-se de publicações menos ancoradas à atualidade do que um jornal ou uma revista. Mas este tem, e Insólito "Crime" nas Margens do Tejo, assinado por um tal Rodrigo Dias, que na verdade é Pedro Ferreira, é um conto em formato de notícia de jornal, que relata os factos relativos a um crime, aparentemente passional, no qual o steampunk aparece de forma quase casual por intermédio de um par de maquinetas usadas por dois dos investigadores que, no entanto, não têm nenhuma influência na trama, pois do resultado dessas investigações não nos chega notícia. É por esse motivo que não me parece que este conto seja satisfatório, pese embora vir escrito numa prosa bastante competente enquanto prosa jornalística, e ainda que possa bastar àqueles que fazem do steampunk uma ideia basicamente cosmética. E os que dão à estética primazia sobre a especulação ficcional são uma corrente inteira, e isso, na minha opinião, é pena. Para mim, a estética não basta. Longe disso.

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Lido: A Bela-Menina

Há, nos contos populares de vários países, várias histórias que têm nos príncipes encantados, magicamente transformados numa quantidade de monstros ou animais o seu principal motor narrativo. A Bela-Menina, recolhida por Adolfo Coelho em Ourilhe (é relevante a recolha ter sido feita nesta aldeia minhota dadas algumas peculiaridades linguísticas do texto que o afastam um pouco do português habitual) é um exemplo bem português, uma história maravilhosa (naturalmente), cuja moral, razoavelmente complexa mas também bastante cristã, defende a tolerância para com o que e os que são diferentes, a supremacia moral de bons sentimentos como a piedade e a resignação com aquilo que cabe em sorte a cada um. A Bela-Menina do título é uma rapariga urbana cuja família é forçada a mudar-se para a aldeia pelos azares da sobrevivência e, longe de fazer dessa mudança um drama, como as irmãs, recolhe dela o que de melhor ela tem para oferecer. É uma história interessante, em parte por causa dos detalhes linguísticos já referidos.

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segunda-feira, 20 de março de 2017

Lido: Dicas Para Donas de Casa de Madame C.

Não poderia faltar numa publicação deste género a inevitável secção de autoajuda para senhoras, inevitavelmente machista até dizer basta. Dicas Para Donas de Casa de Madame C., a qual na realidade se chama Cláudia Sérgio, é um consultório meio mundano, meio sentimental, composto por sete perguntas e respetivas respostas sobre os mais variados problemas da vida numa sociedade steampunk. Estando longe de ser memorável, tem alguma graça, em especial quando não mete a pata na poça (viagens de dirigível à... Lua? Ui! Esta doeu.) ou quando não se vai inspirar na vida real de forma demasiado óbvia (cozinha tradicional vs. a "nova bimbautomática"? Ahem...). Quando não é o caso, aparecem aqui e ali algumas ideias curiosas que, mais uma vez, dão vontade de ver mais bem exploradas em ficções mais desenvolvidas. Em especial o dilema da Brigite, mulher com inteligência e queda para coisas mecânicas, poderia ser desenvolvido numa história bastante interessante.

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domingo, 19 de março de 2017

Lido: O Duelo que não Aconteceu

Ainda incluído na secção de artigos, João Ventura apresenta uma brevíssima historinha, escrita num estilo razoavelmente semelhante ao de um artigo de jornal, sobre uma disputa entre dois cientistas que quase degenerava em duelo. Mas não, acabou por ser apenas O Duelo que não Aconteceu porque, enfim, um homem não é de ferro. Mesmo se cientista.

Quem já conhece o que Ventura escreve não se surpreenderá por encontrar aqui a sua habitual ironia e brevidade narrativa, ajudadas por um uso rigoroso das potencialidades do steampunk. Também positiva é a adequação da ideia à extensão do texto, pois aquela parece realmente não dar muito mais pano para mangas do que o que aqui se desenrola.

Por outro lado, o facto de a ideia não parecer dar para mais que página e meia (em tipo grande) ajuda a fazer com que esta história não tenha grande impacto; é uma historinha morna e divertida mas disso não passa, ficando algo longe dos melhores contos que Ventura já publicou.

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sábado, 18 de março de 2017

Lido: Salto no Tempo

A ficção científica dos anos 40 e 50 do século passado raramente envelheceu bem o suficiente para chegar aos dias de hoje ainda com alguma frescura. Em parte isso deve-se a ter sido encarada muitas vezes, tanto por gente de fora do género, como por gente de dentro, como paraliteratura, mero objeto de consumo e produção rápidas, sem grande elaboração, concentrando-se na trepidação da ação em enredos mais ou menos mirabolantes e pondo de parte quase tudo o resto que compõe a experiência literária. A famigerada abordagem pulp à coisa.

Nem toda foi assim, naturalmente. E felizmente. Mas muita foi, e nisso nem existem tão grandes diferenças entre a FC dos vários países como por vezes se apregoa. E este livro, francês, é disso um claro exemplo.

Salto no Tempo (bibliografia) não é propriamente um livro de viagem no tempo, ao contrário do que o título português (que se substitui por completo ao original Via Velpa, diga-se) sugere. Yves Dermèze cria aqui uma aventura pulp movimentada que inclui viagens no tempo mais vai além disso, metendo também ao barulho o conceito de universos paralelos. O enredo é enovelado, pois há uma rapariga vinda do futuro (que tem a função habitual das mulheres nas histórias pulp de meados do século XX, o interesse romântico do herói macho, mas é um pouco menos incapaz do que é hábito) que procura salvar a sua civilização do ataque de umas criaturas implacáveis, destruindo a civilização que lhes deu origem, para o que conta com o auxílio de um dissidente político genial de uma civilização rigidamente totalitária, que vem a descobrir que essas criaturas foram criadas pela sua própria civilização, e por aí fora.

Dermèze consegue manter este enrodilhado enredo sob controlo, criando um romance ritmado e razoavelmente interessante. Mas claro, pulp, com tudo o que isso implica. Acaba-se a leitura, chega-se ao final que, como é habitual neste tipo de história, soa a conto de fadas, e descobre-se que enquanto ela durou se esteve entretido mas não se obteve mais do que isso do tempo gasto. Este livro é literatura-chiclete assumida e, sob esse ponto de vista, até se poderá considerá-lo bonzinho. Mas esteve longe de me agradar. Leu-se. E só.

Este livro foi comprado.

Lido: O Vapor do Chique

Ao mesmo tempo semelhante e completamente diferente da Carta Anónima que o antecede, O Vapor do Chique é mais um texto ficcional epistolar, escrito por uma tal Madame S., que na realidade é Rogério Ribeiro. Conta a breves pinceladas três historinhas do "social", às quais falta a solidez que se encontra no texto anterior, apesar de estarem razoavelmente bem escritas. A futilidade, embora presente, não é tão grande como talvez fosse de esperar de uma espécie de crónica social, ainda que o tom genérico seja de comédia de costumes, como num texto deste género teria sempre de ser. Nesse sentido, o autor foi bem sucedido no que se propôs fazer.

Este texto tem também em comum com o anterior (e com vários dos outros, diga-se) a característica de despachar em dois tempos temas e personagens que deixam entrever potencial para ficções mais longas, as quais provavelmente teriam o seu público, ainda que neste caso eu não pertencesse a esse público — a minha paciência para comédias de costumes centradas nas andanças da alta sociedade, sejam steampunk ou quaisquer outras, tende para zero.

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sexta-feira, 17 de março de 2017

Lido: Carta Anónima

Ainda no setor deste almanaque destinado a ficções inconvencionais no sentido de não se aterem ao formato tradicional do conto, encontra-se esta Carta Anónima, que só o é em contexto ficcional, pois na realidade foi escrita por André Nóbrega. É a carta de um revoltado contra a maquinização e automatização, um descendente steampunkiano dos luditas do mundo real, radicalizado ao ponto de ameaçar combatê-las à bomba. E é, por isso, não só um exemplo interessante de reflexão sobre o ambiente social resultante da evolução tecnológica inerente ao steampunk e sobre as suas contradições, bastante sólida em termos de construção de um universo ficcional, como um texto bastante atual devido aos paralelos óbvios com a informatização em curso no mundo real. Um texto bastante bem sucedido, portanto.

Por outro lado, o sucesso deste texto é também a sua mais clara insuficiência, pois abre portas a (e gera interesse por) uma exploração do universo criado que aparentemente nunca chegará a existir, tendo em conta que esta publicação data de há cinco anos e não há notícia de o autor se ter entretanto dedicado a explorar as histórias interessantes que esta carta deixa entrever. Potencial desaproveitado. A FC&F portuguesa está cheia dele.

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Lido: Noite de Walpúrgis na Brain-Net

Alguns dos textos deste livro de Luiz Bras são razoavelmente clássicos enquanto contos, ainda que breves, e muitos têm até características de género bastante bem identificáveis. Outros há, porém, que ocupam territórios bastante mais mistos, seja em termos genéricos, seja mesmo no que toca à sua caracterização como prosa ou poesia. Noite de Walpúrgis na Brain-Net é um destes últimos, com uma prosa muito poética e bastante expressiva, que me fez lembrar os arroubos tecnófilos do engenheiro pessoano Álvaro de Campos. Há também nele muito de borgesiano, o que é a maior obviedade que se pode dizer sobre este texto, e há também muito de ciencio-ficcional, o que é bastante menos óbvio porque o texto não obedece a praticamente nenhuma das características convencionais da ficção científica, ainda que lhe faça referência com alguma insistência. É que, segundo creio, uma das principais inspirações para esta história, além do referencialismo literário que está muito evidente desde o título até às últimas frases-parágrafos, é o ciberpunk e a forma como os ciberespaços tendem a pixelizar as coisas. Trata-se, em suma, de uma experiência. Bem sucedida? Creio que sim, que o autor conseguiu fazer precisamente o que pretendia.

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quinta-feira, 16 de março de 2017

Lido: Décimo Nono Teste de Competência Robótica

Embora ainda não seja um conto na completa aceção da palavra, o que é sublinhado pela sua inclusão numa secção de "artigos" (após um verdadeiro artigo que explica o conceito de steampunk), Décimo Nono Teste de Competência Robótica é um texto de ficção plena, no qual a autora, Débora Fortunato Moreira, encarna um robô escritor chamado Bartholomew Keylock e apresenta uma espécie de relatório da sua tentativa de criação literária, repleta dos inevitáveis automatismos e picuinhices desnecessários causados pela condição da personagem. "O céu está aproximadamente da cor #42c7fe", escreve-se a dado passo, um exemplo entre muitos.

É uma historinha razoavelmente divertida mas sem grande originalidade, com uma ligação ténue ao steampunk (pouco há que diferencie este robô de tantos outros robôs da FC não steampunk) e com alguns pormenores que destoam do rigor que a personagem pretende evidenciar, o que prejudica a verosimilhança. Não é credível, por exemplo, que um maquinismo tão obcecado com a precisão trate a mulher como subespécie do homem, chamando-lhe "Homo Sapiens Mulier", pelo menos sem um pano de fundo que o justifique. Lineu, morto em 1778, logo bem antes da época em que o steampunk de inspiração vitoriana tende a ambientar-se, definiu bem as regras da sua nomenclatura sistemática. Embora o humor não tenha de se submeter sempre à verosimilhança, estas coisas funcionam melhor quando as piadas que a atacam são fulcrais para a história, o que lhes dá uma razão para existir, do que quando são meros apartes que podem ser removidos sem a prejudicar em nada, caso em que passam uma imagem de descuido ou desatenção que pode prejudicar o próprio humor que se pretende alcançar.

Em suma, esta história deixa a desejar, aparentemente em resultado da inexperiência da autora.

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Lido: De Manhã à Beira Mar

Afastando-se um pouco do terror clássico do primeiro conto, Ricardo Lopes Moura relata em De Manhã à Beira Mar a história de um homem que tem como rotina matinal ir assistir à alvorada ao paredão da marginal, enquanto atira pão às gaivotas. Até ao dia em que acaba testemunha de um assassínio, com as consequências funestas que isso costuma acarretar.

Não sei bem se a ideia do autor era criar um clima inquietante, de algum terror psicológico, transmitindo ao leitor o medo do protagonista do conto perante o acontecimento que se desenrola a seu lado e vai inevitavelmente ter implicações para a sua vida. É possível que fosse, mas também é possível que pretendesse apenas contar uma história, sem se prender nesse tipo de planeamento. Se assim foi, isto é, se a ideia era criar um clima inquietante, não foi bem sucedida, talvez em parte pela brevidade do texto (três páginas). Caso contrário, a história está razoavelmente bem contada. Não posso dizer que tenha gostado muito deste conto, mas lê-se bem.

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quarta-feira, 15 de março de 2017

Lido: Homem das Cavernas

(Ainda aí andam? Desculpem lá a ausência, mas isto foi duro. Trabalho intenso, longo, sem pausas, que me fez ir pondo de lado tudo o não essencial à medida que o cansaço se foi avolumando. Agora que a parte mais exigente terminou, voltamos à programação normal.)

Homem das Cavernas (bibliografia) não se diferencia muito da maioria dos outros contos que Telmo Marçal reuniu neste volume. Trata-se, naturalmente, de mais uma distopia negra, protagonizada por um homem que é vítima das mais abjetas torturas mas acaba por aceitá-las com fleuma, pragmatismo e capacidade de adaptação porque é assim que as coisas são. Já noutros contos se encontra o mesmo tipo de ambiente e protagonista, e as diferenças são de pormenor. Aqui encontramos uma sociedade fechada num vasto complexo de grutas, que sobrevive graças em parte ao que (e aos que) nelas vai penetrando vindo do exterior. Como o protagonista, que um belo dia resolve fazer um bocadinho de espeleologia improvisada e acaba capturado, sujeito a um teste de sobrevivência que envolve ficar sem olhos (e quem precisa de olhos num sítio onde a luz nunca penetra, não é?), que ultrapassa, o que o leva a ser integrado na sociedade em vez de devorado. Depois, segue-se a história da sua vida nas grutas, contada a traços largos e na primeira pessoa, em jeito de depoimento, e do atribulado regresso à superfície.

Não me pareceu ser dos melhores contos de Marçal, este. Creio que o principal motivo para isso é não ser muito credível enquanto possibilidade real. Julgo compreender a inspiração básica, uma adaptação ao tipo de mundos e ambientes que Marçal cria das histórias sobre criaturas perdidas (ou não) nas profundezas das cavernas que surgem com alguma frequência nas histórias tradicionais. No entanto, o motivo por que a maior parte das histórias dele funciona bem é serem credíveis enquanto possibilidades reais. Extremas, certamente, mas há na maioria das histórias um toque de verosimilhança que aqui falta. Ao ler a maior parte das outras histórias, conseguimos imaginar um mundo realmente transformado naquilo no caso de tudo correr horrivelmente mal. Ao ler esta, nem tanto.

Contos anteriores deste livro: